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O DISTANCIAMENTO BRECHTIANO COMO TEORIA DA REPRESENTAÇÃO

O princípio de distanciamento brechtiano é frequentemente apresentado destacando-se de urna


teoria da representação. Pode-se com esse intuito citar as diversas definições do distanciamento citadas
por Brecht: “Em cada momento importante o artista deve ainda, ao lado do que ele faz, formular e
deixar entrever algo que ele não faz”; “Os chineses mostram não apenas o comportamento dos homens,
mas o comportamento dos artistas”; “distingue-se nitidamente duas personagens: um mostra, o outro é
mostrado”. Contudo, o distanciamento brechtiano não pode contar somente com o ator e deve ser
pensado, para ser compreendido, em toda a complexidade de um sistema onde os parceiros são
numerosos e que, por sua colaboração, garantem a eficácia da teoria: o ator, o espectador, um projeto de
sociedade entre os quais um diretor-autor tece os vínculos. Da interação desses quatro fatores nasce o
que se poderia chamar o efeito de distanciamento.
Como observava Grotowski, o distanciamento não é um método de representação, quando
muito um princípio. Antes de Grotowski, Barthes, por sua vez, chamara a atenção, em 1954,
consequência da vinda do Berliner a Paris, a que ponto o distanciamento brechtiano afastava-se de uma
simples reflexão sobre a melhor maneira de representar e de encarnar uma personagem. Benno Besson,
que trabalhou por muitos anos com Brecht, observava em 1979:
Eu trabalhei bastante tempo com Brecht, ou seja, de 1949 a 1956, até sua morte; e
durante todo o trabalho prático, eu não o ouvi empregar uma única vez a palavra
“distanciamento”. É uma opção teórica que ele (Brecht) assumira nos anos de 1930, e da qual ele
não se servira depois. Todas as teorias de Brecht são muito perigosas se separá-las de sua prática,
e elas não servem senão para controlar e esconder a verdade da realidade de sua prática. É
detestável ver intimidar as pessoas com conceitos abstratos, e no fundo isso se transforma em
instrumentos de bloqueio. Em vez de deixar às pessoas sua percepção dos sentidos e do
emocional bem como a do intelecto, elas são bloqueadas com conceitos intelectuais e a elas são
proibidas qualquer aproximação sensível que lhes permitiria ter acesso a conceitos concretos.

Não limitar o princípio do distanciamento às simples teorias da representação é supor que o


processo de distanciamento pode ser também, e eu direi especialmente, produzido pela peça e pela cena
antes de sê-lo pelo corpo do ator e porque ele é indissociável de um projeto global da sociedade. Tal
projeto envolve em outro termo do percurso um espectador novo e um material textual novo. Se um
dos termos chegar a faltar, o distanciamento não pode acontecer.
Quais são as referências de um processo de distanciamento no palco?

a. O distanciamento como apropriação do real.


A complexidade fundamental da teoria brechtiana do teatro é que ele procede de maneira circular
partindo de uma análise política do real, representada e analisada por intermédio do teatro para aí
retomar numa tentativa de transformação desse real através de um espectador-cidadão. Nesse trajeto, o
distanciamento é um processo, um princípio — não um método —, permitindo ao autor a passagem do
real ao palco ao espectador, o retorno crítico a esse mesmo real. Nos dois termos do processo,
encontram-se portando assentadas a existência desse real e sua representação pelo palco.
A teoria do teatro em Brecht não discute de modo algum o papel mimético do palco em relação
ao real. Ela admite como a priori fundamental que esse real existe realmente fora do palco, que é possível
representá-lo, explicá-lo e modificá-lo pela mediação do espectador. O teatro encontra sua necessidade e
sua justificação fora dele.
Ora, tal representação do real, exatamente corno em Aristóteles, é essencialmente assumida pelas
palavras que passam a definir a ficção e fazem-na desembocar no real. São pois as palavras que trarão,
quanto ao essencial, a marca do processo de distanciamento, inscrevendo essa singularidade no texto. Tal
processo não obedece a nenhuma universalidade da forma que autorizaria a analisar uniformemente suas
normas; antes de tudo, ele está inscrito nas práxis específicas e difere de uma peça para outra, daí a
dificuldade em desenhar seu contorno.
Apesar desse cuidado, tentarei mostrar aqui seus princípios de funcionamento ao invés de
analisar as modalidades de realização específicas.

b. O distanciamento corno ato de palavra e como fragmento.


O princípio de distanciamento, elaborado contra a catarse aristotélica, não põe em discussão os
fundamentos da mimese aristotélica. Na verdade, o teatro brechtiano permanece um teatro de
representação, de tradução do real que se assenta antes mais nada na função representativa da linguagem.
São as palavras que importam. Elas são relato, narração, ação. Falar é agir, tanto para a personagem
apanhada no emaranhado do enredo, como para o ator apanhado no emaranhado da peça. Ora, o
enredo está no centro da representação, mesmo rompido, mesmo fragmentário, mesmo marcado por
rupturas.
O distanciamento que está em discussão em Brecht não é autorizado senão pelo texto. É o texto
que o legitima, o autoriza e o desencadeia. Ele só possui significado em relação à narração. O
aparecimento do ator por trás da personagem é primeiramente um efeito de discurso, a emergência de
um novo objeto de enunciação que subitamente se encarrega da palavra, desligando-se do enredo para
mostrá-lo — aí está um dos papéis que assumem as canções nas peças de Brecht.
Tal aparição atém-se unicamente à palavra: o ator não está mais no enredo mas porque ele fala
que esse enredo tornou-se objeto de seu discurso e que um primeiro efeito de distanciamento pode ser
registrado. Mas, ao fazer isso, o ator permanece na ficção, sua partitura sendo comandada pelo texto.
Dois enunciados se alternam e às vezes se sobrepõem: o da personagem ocupando lugar no
enredo e o do ator ocupando lugar no palco. Ora, o texto tem como sujeito da enunciação a personagem
ficcional, ora se trata de um ator narrador comentando a ação enquanto instância superior que detém
certa parte de verdade. Duas vozes se sobrepõem, urna polifonia se instala.
O distanciamento torna sensível aqui os diferentes enunciadores que estão sempre presentes no
palco. Ele os coloca no lugar, realça-os, mostrando o fenômeno de semiologia pelo qual o ator torna-se
personagem, tornando opacos os signos para o espectador.
Tudo se representa portanto a partir do enredo numa relação de afirmação — contestação da
qual é responsável o ator em relação à personagem da ficção, mas que é ditado pelo texto e pela cena.
Na ordem da narração, tal distanciamento é inicialmente uma interrupção da linearidade da
narrativa que autoriza a mudança do tema da enunciação. Ele para a narrativa e fragmenta a ficção,
introduzindo espaços abertos, recusando a progressão de uma narrativa que não obedeceria senão à sua
própria dinâmica interior. Ele introduz uma causalidade exterior à ficção que lhe justifica o movimento.
A narração submetida a um objetivo dialético que lhe é exterior. Subitamente o tempo do espetáculo se
põe no lugar daquele da ficção. A imediatez do clímax teatral aparece ao mesmo tempo que a cena
registra uma ruptura, uma quebra na ordem da representação que permite a mudança da ordem da
narração para a do espetáculo.
O distanciamento designa tal ruptura, um processo de colocar em primeiro plano. Ele representa
a passagem que opera cena entre a ordem do real e a da cena, transformando a ficção em objeto de
discurso, introduzindo uma diferença cuja pertinência e eficácia são medidas pela análise social.
As formas estéticas são elas próprias apanhadas nesse questionamento em que o palco oscila
entre o cabaré e a narrativa pura, entre o especular e o discursivo.
O distanciamento também pode ser produzido por um efeito de inserção: inserção dos
enunciados (paródia, palimpsesto), encaixe dos discursos (citações), retóricas do espetáculo (cabaré,
filme, diapositivos, imagens). As formas se encaixam umas nas outras, se revelam, se designam, se
denunciam. É de sua justaposição que emerge a singularidade. Um desencontro aparece, uma dialética
entre as formas, uma descentralização. A palavras, os acontecimentos, se encontram desse modo sempre
contextualizados, eles não remetem a seu único significado. Eles participam do conjunto. Ao mesmo
tempo todo e parte. "A parte que designa o todo" - a expressão é de Lukács – “o essencial estando
presente em cada momento”. A parte, o fragmento se põe assim a desfrutar de unia autonomia relativa,
encontrando seu significado e sua justificação somente em relação ao todo.
O processo de distanciamento aparece, portanto, em Brecht como sendo inicialmente um
distanciamento de ordem discursiva. Esse se manifesta por um deslocamento do tema da enunciação,
que nomeia a nova função da arte que o orienta em direção ao social.
Ele aparece também como uma sensibilização do ator e do público a esse efeito de derrapagem
entre o real, a ficção e a cena, a esse efeito de encaixe dos discursos; o real sendo de novo questionado
pela cena e a cena recolocada em discussão por sua necessária finalidade fora do palco.
A complexidade fundamental do processo de distanciamento é que ele realiza no quadro dessa
zona intermediária entre o real e o discurso, nessa zona de troca onde o real é antes de tudo discurso,
apreendido por intermédio da linguagem, mas onde inversamente a característica essencial do discurso é
encontrar a justificação fora dele, no real. Mais exatamente ainda, o distanciamento aparece como o
momento onde se passa de um andamento do discurso como detentor de significação sobre o real a um
andamento do discurso como veículo de uma estética e de urna teatralidade.

c. O distanciamento como domínio do real


Tal andamento do distanciamento efetua-se no domínio: do real domínio que as palavras podem
alcançar; domínio das palavras que podem aderir a urna verdade pesquisada, crença numa verdade fora
de cena, domínio de um discurso.
E o que nós queremos obter, não é tanto que seja olhado de outro modo, é que se olhe
de um modo bem determinado, de um modo diferente, não tão diferente quanto as demais, mas
de um modo justo, isto é, de acordo com as coisas. Nós não queremos simplesmente “conseguir
o domínio, na arte como na política, mas o domínio das coisas” observa Brecht em
“Considerações Sobre as Artes Plásticas”.

Brecht declara, como dogma, que o mundo é dominado pelo espírito, portanto é possível: 1.
compreendê-lo; 2. representá-lo; 3. explicá-lo; que essa apreensão passe pelas palavras.
Implica a existência de uma verdade fora do palco, que polariza e justifica não somente o
andamento da ficção cênica, mas ainda o conjunto do processo artístico. Supõe um ponto de vista
considerável sobre a história, e a possibilidade de uma atitude de supremacia para pensá-la. Nós estamos
na ordem da lei, a expressão é de Baudrillard, em oposição àquela da regra.
Como tal, o distanciamento brechtiano aparece menos como uma teoria da interpretação que
como uma teoria da representação. Ele permanece encerrado na clausura de uma representação da qual
Derrida mostrou o inevitável desvio. O que nos autoriza a dizer que, longe de romper totalmente com a
teoria aristotélica da cena, Brecht é seu último grande representante.

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