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BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

Prefácio
(por Tzvetan Todorov)
Bakhtin vai encarregar-se de fazer essa explicitação no lugar deles, para permitir elevar o
debate: a doutrina formalista, diz ele, é uma estética do material, pois reduz os problemas da
criação poética a questões da linguagem; daí a reificação de noção de “linguagem poética”,
daí o interesse por “processos” de todos os tipos. Com isso, os formalistas menosprezam os
outros ingredientes do ato de criação, que são o conteúdo, ou a relação com o mundo, e a
forma, entendida aqui como intervenção do autor, como a escolha que um indivíduo
singular faz entre os elementos impessoais e genéricos da linguagem. A verdadeira noção
central da pesquisa estética não deve ser o material, mas a arquitetônica, ou a
construção, ou a estrutura da obra, entendida como um ponto de encontro ou interação
entre material, forma e conteúdo (p. 5-6).
O paradoxo dos formalistas (e sua originalidade) fora praticar descrições “clássicas”
(aristotélicas) a partir de premissas ideológicas românticas; Bakhtin estabelece a doutrina
romântica em sua pureza (p. 6)
A estética romântica valoriza a imanência, não a transcendência, logo, tem pouco interesse em
elementos transtextuais como a metáfora, ou as rimas dactílicas, ou os processos de
reconhecimento (p. 7)
(...) é o tema da relação entre o criador e os seres criados por eles, ou, como diz Bakhtin,
entre o autor e herói (...) Em linhas gerais, ela consiste em dizer que uma vida encontra um
sentido, e com isso se torna um ingrediente possível da construção estética, somente se é vista
do exterior, como um todo; ela deve estar completamente englobada no horizonte de alguma
outra pessoa; e, para a personagem, essa alguma outra pessoa é, claro, o autor: é o que
Bakhtin chama a “exotopia” deste último. A criação estética é, pois, um exemplo de um
tipo particularmente bem-sucedido de relação humana: aquela em que uma das pessoas
engloba inteiramente a outra e por isso mesmo a completa e dota de sentido. A relação
assimétrica de exterioridade e superioridade, que é uma condição indispensável à criação
estética: esta exige a presença de elementos “transgredientes”, como diz Bakhtin, isto é,
exteriores à consciência tal como ela se pensa do interior, mas necessários à constituição
como um todo. Assimetria a cujo respeito Bakhtin não hesita em recorrer a uma comparação
eloquente: “A divindade do artista se reside em sua assimilação à exotopia superior” (p. 7-8).
Sartre recusa qualquer prática romanesca em que o autor ocupasse uma posição privilegiada
em relação às suas personagens; ele não utiliza o termo “monológico”, mas não está longe de
identificar “romance” e “dialogismo” (p. 9)
A igualdade entre herói e o autor, que Bakhtin imputa a Dostoievski, não está somente em
contradição com as intenções deste; é para dizer a verdade impossível em seu próprio
princípio (...) Em Dostoievski, diz outro texto, “o autor não passa de um participante do
diálogo (e seu organizador): mas o parêntese destrói toda a radicalidade do que foi dito antes.
Se o indivíduo é o organizador do diálogo, não é apenas um mero participante (p. 12).
Bakhtin parece estar confundindo as duas coisas. Uma é que as ideias do autor sejam
apresentadas por ele, num interior de um romance, como tão discutíveis como a de outros
pensadores. A outra é que o autor esteja no mesmo plano que suas personagens (...)
Dostoievski não é uma voz entre outras nos seus romances, é o criador único,
privilegiado e radicalmente diferente de todas as suas personagens, uma vez que cada
uma delas não é, justamente, senão uma voz, enquanto Dostoievski é o criador dessa
própria pluralidade (...) é excepcional por representar simultaneamente e no mesmo plano
várias consciências, umas tão convincentes quanto as outras; mas ele não deixa de ter,
enquanto romancista, uma fé na verdade como horizonte último (p. 13).
A demonstração de Bakhtin segue dois planos da pessoa humana. O primeiro, espacial, é o do
corpo: ora, meu corpo só se torna um todo se é visto de fora, ou num espelho (ao passo que
vejo, sem o menor problema, o corpo dos outros como um todo acabado). O segundo é
temporal e relaciona-se à “alma”: apenas meu nascimento e minha morte me constituem num
todo; ora, por definição, minha consciência não pode conhecê-los por dentro. Logo, o outro é
ao mesmo tempo constitutivo do ser e fundamentalmente assimétrico em relação a ele: a
pluralidade dos homens encontra seu sentido não numa multiplicação quantitativa dos “eu”,
mas naquilo em que cada um é o complemento necessário do outro (p. 14-15)
Portanto, o absoluto encontra realmente um lugar no sistema de pensamento de Bakhtin, ainda
que ele nem sempre esteja pronto a reconhecê-lo e se trate de uma transcendência de tipo
original: não mais “vertical”, mas “horizontal” ou “lateral”; não mais de essência, mas de
posição. Os homens só têm acesso a valores e sentidos relativos e incompletos, mas o fazem
tendo como horizonte a plenitude do sentido, o caráter absoluto do valor, eles aspiram a uma
“comunhão com o valor superior (ao limite absoluto)” (p. 17).
Que vem a ser a literatura? Que vem a ser a crítica? No que tange à primeira pergunta, cumpre
primeiro destacar que, em sua prática, Bakhtin não se ateve à crítica da definição formalista
da literatura (para substituí-la por outra); não, ele simplesmente renunciou a buscar pela
especificidade literária. Não que essa tarefa perca todo sentido aos seus olhos, mas esse
sentido só existem em relação a uma história particular (da literatura ou da crítica) e não
merece a posição central que lhe atribuíram. O que lhe parece agora importante são todos os
laços que se tecem entre literatura e cultura, enquanto “unidade diferenciada” dos discursos de
uma época (...) Portanto, Bakhtin reencontra a transtextualidade, não mais no sentido dos
métodos formalistas, mas no sentido de pertencer à história da cultura (p. 18)
Quanto à crítica, Bakhtin anuncia-lhe (mais do que pratica) uma nova forma, que mereceria
receber o nome de crítica dialógica. Poder-se-ia dizer de modo esquemático que o comentário
ocidental moderno se define por uma ruptura qualitativa entre texto estudado e texto do
estudo. Se o comentário se situa no mesmo nível do texto estudado, os dois versariam sobre o
mesmo objeto e seu debate concerniria à verdade. Ao estabelecer uma ruptura radical entre os
dois, o comentário renuncia à questão da verdade do texto e limita-se à do seu sentido, à
descrição de suas formas e de seus funcionamentos. Dessa forma, o texto estudado se torna
um objeto (uma linguagem-objeto), o comentário atinge a categoria da metalinguagem (...)
Para Bakhtin, tal posicionamento do problema deforma perigosamente a natureza do
discurso humano. Reduzir o outro (aqui o autor estudado) a um objeto é ignorar-lhe a
característica principal: a saber, que é justamente um sujeito, ou seja, alguém que fala –
exatamente como estou fazendo ao dissertar sobre ele. Mas como dar-lhe de novo a
palavra? Reconhecendo o parentesco de nossos discursos, vendo em sua justaposição, não o
da metalinguagem e da linguagem-objeto, mas o exemplo de uma forma discursiva muito
mais familiar: o diálogo. Ora se aceito se aceito que nossos dois discursos estão relação
dialógica, aceito também colocar-me de novo a questão da verdade. Aspira-se aqui a buscar
a verdade, ao invés de considera-la como data de antemão: ela é um horizonte último e
uma ideia reguladora. Como diz Bakhtin: “cumpre-se dizer que tanto o relativismo como o
dogmatismo excluem igualmente qualquer discussão, qualquer diálogo autêntico, tornando-os
seja inúteis (o relativismo), seja impossíveis (o dogmatismo). Para a crítica dialógica a
verdade existe, mas não a possuímos (p. 18-19).
Ora, essa crítica dialógica de Bakhtin me faz pensar que de fato a crítica precisa considerar
o elemento crucial para as descrições e determinações estéticas de um texto literário: o
autor. No entanto, não é só o autor exegético que deve ser considerado no estudo da
literatura para delinear a estética, mas também o leitor exegético e extraliterário. Há,
portanto, uma correlação de forças entre imagens constituintes: as que o autor produz, as
que são extraídas do texto no ato da leitura, e a formação de outra imagem a partir do texto
e do autor, que é a do leitor. Há diferenças substanciais entre esses elementos: imagens do
autor, do texto e do leitor; essas diferenças são dadas por uma correlação de forças, de
nitidez. E uma não é mais ou menos importante que as outras: o fato é que elas constituem
uma diferença. Por isso, a questão da verdade incomoda. Eu a considero um falso problema.
Na literatura parece não haver a verdade porque a nitidez das imagens não permite nunca
formar uma imagem única, perfeitamente nítida: permite formar imagens próprias e
autênticas, sim; a imagem final, verdadeira, não. Então, não se trata de dar ao autor
novamente a palavra afim da verdade – o autor só nos traria mais imagens, mais ou menos
nítidas que não facilitariam jamais a verdade do texto –, trata-se da nitidez das imagens que
ele produz intencionalmente e por consequência da nitidez de sua própria imagem no texto. A
literatura é um jogo de espelhos: nela vê-se a imagem do autor, vê-se a imagem do leitor
(daquele que lerá), e vê-se a imagem de si próprio (deste que lê). A nitidez dessas imagens é
que provocam o efeito da verdade do texto ou do erro interpretativo. Por exemplo, não está
em Édipo, de Sófocles, de forma verdadeira, a arquitetura da psique humana delineada por
Sigmund Freud a partir deste texto, mas Freud tornou nítida, mais ou menos nítida, a
imagem da psique humana.
O trabalho do crítico comporta três partes. Num primeiro nível, trata-se do simples
estabelecimento dos fatos, cujo ideal, diz Bakhtin é a precisão: recolher os dados materiais,
reconstituir o contexto histórico. Na outra extremidade do espectro situa-se a explicação por
leis: sociológicas, psicológicas, até mesmo biológicas. Ambos são legítimos e necessários.
Mas entre eles, de certo modo, que se situa a atividade mais específica e mais importante do
crítico e do pesquisador em ciências humanas: é a interpretação como diálogo, a única que
permite recobrar a liberdade humana (p. 19-20)
O texto se apresenta como a descrição fenomenológica do ato de criação, em especial da
criação literária. Porém, Bakhtin descobre que a relação autor-herói não é mais do que um
caso específico da relação inter-humano e volta-se para o estudo fenomenológico desta, antes
de retorna a questões mais estritamente estéticas e literárias (p. 20).

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