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GÊNEROS TEXTUAIS

DIDÁTICOS E ANÁLISE
DE MATERIAIS
DIDÁTICOS DE LETRAS
Gêneros textuais/
discursivos
Objetivos de aprendizagem
Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados:

 Interpretar o conceito de gênero textual/discursivo.


 Reconhecer os conceitos de esfera discursiva, suporte, papel social
de produtores e destinatários relacionando-os aos gêneros textuais/
discursivos.
 Classificar texto, tipologia textual e gênero textual.

Introdução
Os gêneros textuais/discursivos são ações sociais e discursivas que agem
e dizem o mundo. Esses eventos discursivos, tipificados socialmente, são
caracterizados especialmente pelo propósito ou pela funcionalidade
comunicativa. Essas formas verbais de ação social, as quais se materializam
em textos, são numerosas uma vez que são também inúmeras as esferas
da comunicação humana. Por outro lado, os tipos textuais se caracte-
rizam como sequências tipológicas de base estrutural e são limitados
em número: narração, descrição, injunção, exposição e argumentação.
Tais sequências, contudo, se manifestam e se organizam nos textos em
interação com outras sequências, do que se pode dizer que há uma
heterogeneidade de tipos textuais em um mesmo texto.
Neste capítulo, você vai estudar o que são gêneros textuais/discursivos
e conhecer algumas de suas abordagens teóricas. Além disso, você vai
reconhecer quais são os elementos que determinam os gêneros e, ainda,
identificar o que são os tipos textuais.
2 Gêneros textuais/discursivos

1 Variedade dos gêneros textuais/discursivos


O mundo atual, comumente chamado de pós-moderno, tem sido constante-
mente definido a partir de um boom tecnológico — em especial, nos sistemas
de informação e comunicação. Para Giddens (1991), esse mesmo mundo é
marcadamente construído e erguido a partir de crises de tradições, modelos e
paradigmas filosóficos de pensamento. Ora, o desenvolvimento social moderno
tem se realizado por um caminho tortuoso, pleno de descontinuidades. Nesse
amplo contexto, de efervescência tecnológica, novos suportes midiáticos
aparecem num constante piscar de olhos. Nós, como sujeitos desse novo
momento sócio-histórico, estamos nos deparando com uma intensa reestrutu-
ração das práticas sociais, práticas essas que provocam mudanças na maneira
do homem sentir a si mesmo, o mundo e o outro. É difícil, assim, pensar de
forma “descolada” da tecnologia — quem diria que um dia pensaríamos na
impossibilidade de não possuir um celular, não é mesmo? Em virtude da
imersão em um universo de planos virtuais de relações, outras necessidades e
atividades sociais têm se mostrado imperativas para o mundo do humano. Isso
se torna mais evidente quando se observa a impossibilidade de se mensurar
a quantidade de gêneros, isto é, de ações sociais discursivas, ações retóricas
tipificadas, como chama Miller (2009), que o homem utiliza para realizar suas
atividades e se comunicar.
É importante afirmar, no entanto, que os novos gêneros não são uma
inovação absoluta (MARCUSCHI, 2002). Sabe-se, porém, que da invenção da
prensa impressora por Johannes Gutenberg, na Alemanha, a qual permitiu que
a informação estivesse mais acessível à população (lembre-se de que, antes, os
livros eram escritos principalmente em latim, e a informação se restringia a
uma pequena parcela da população, tais como os escribas, padres, políticos e
grupos de elite), ao surgimento dos novos veículos de comunicação de massa,
tais como os jornais, os livros e as revistas, no final do século XIX e início
do século XX, distintas formas de organização, comunicação e produção de
cultura e conhecimento foram produzidas (DEFLEUR; BALL-ROKEACH,
1993), o que gerou inevitavelmente numa ampla variedade de gêneros textuais/
discursivos. Contudo, isso não significa dizer que são propriamente as novas
tecnologias que dão origem aos gêneros, como afirma Marcuschi (2002),
mas a intensidade dos seus usos — há uma onipresença dos grandes suportes
tecnológicos da comunicação, tais como, o rádio, a TV, o jornal, a revista e a
internet nas nossas atividades comunicativas —, e as interferências que esses
usos produzem nas nossas atividades comunicativas cotidianas — tais inter-
ferências, por sua vez, causam impacto nas maneiras com as quais sentimos
Gêneros textuais/discursivos 3

o mundo e interagimos com o outro. Em resumo: é a intensidade dos usos


tecnológicos e a influência que eles provocam nas esferas da comunicação
humana que levam ao surgimento de outras maneiras de se comunicar.
Assim, existe uma infinidade de gêneros textuais/discursivos, isto é, uma
ampla variedade de ações sociais e discursivas, que são tipificadas na sociedade
(MILLER, 2009). São várias as “maneiras” de nos comunicarmos nas diversas
situações sociais: por bate-papos virtuais, e-mails, mensagens instantâneas de
celular, anúncios publicitários, notícias jornalísticas, reportagens televisivas,
documentários cinematográficos, horóscopos, histórias em quadrinho, parece-
res científicos, sinopses de filme, artigos científicos, debates políticos, editoriais
de revista, videoconferências, hinos nacionais, programas de rádio, consultas
médicas, pareceres de caráter jurídico, telenovelas, telejornais, cumprimentos
da ordem do cotidiano no elevador, entre muitas outras maneiras. Ora, o longo
tamanho dessa lista — que é, por sua vez, interminável — se dá em virtude da
ampla variedade de gêneros discursivos que existem e circulam nos variados
meios sociais. Além disso, é só pensarmos que, para cada título, profissão,
idade, grau de intimidade, papel social, etc. há numerosas possibilidades de
se comunicar e se relacionar com o outro.
Desse modo, a reflexão sobre o que é um gênero textual/discursivo tem
relevância não apenas no que diz respeito às atividades de leitura, oralidade
e escrita, mas no tocante às nossas relações interpessoais. Isso significa dizer
também que ao nos apropriarmos do estudo sobre os gêneros textuais/discur-
sivos passamos a ter acesso ao maior número possível dos diferentes modos
de falar, escrever, ler, ouvir, por exemplo, tendo em vista que tais modos se
realizam como ações sociais que são tipificadas na sociedade, isto é, como
gêneros discursivos.

Ao longo deste capítulo, fazemos uso das expressões gêneros, gêneros textuais,
gêneros discursivos e gêneros textuais/discursivos como intercambiáveis. Embora
algumas teorizações façam uso de uma terminologia em detrimento de outra, é
importante pensar que os gêneros são eventos enunciativos, com significado, da ordem
social, relacionados às esferas de comunicação humanas, e não dizem respeito apenas
aos gêneros da modalidade (textual) escrita. Ou seja, o gênero não se materializa, de
forma necessária, em um texto escrito. Dito de outro modo, há os gêneros das artes
plásticas, da modalidade oral, dentre muitos outros.
4 Gêneros textuais/discursivos

Abordagens teóricas sobre os gêneros textuais/


discursivos
É preciso apontar, de antemão, que existem vários estudos que abordam e
definem os gêneros a partir de certos elementos característicos. Dentre esses
estudos, citamos aqui preferencialmente as teorizações fundamentadas por
Marcuschi (2002), Miller (2009), Bazerman (2005), Askehave e Swales (2009),
e Bakhtin (2003), uma vez que essas abordagens apresentam ecos umas nas
outras, tocam em pontos em comum, e, em especial, apontam a relação do
estudo do gênero com a sua funcionalidade social, tendo em vista o contexto
sócio-histórico.
Em Marcuschi (2002), os gêneros textuais são caracterizados como práticas
sociais, históricas e discursivas que organizam as atividades comunicativas
de uma sociedade. Produzidas por um esforço coletivo, tais ações discursivas
nos fornecem pistas do processo comunicativo em determinado contexto social.
Apesar de serem altamente “preditivos”, os gêneros são entidades criativas,
dinâmicas, plásticas e mutáveis, que surgem e se modificam a partir das ne-
cessidades sociais, culturais e discursivas emergentes de uma dada sociedade.
Já em Miller (2009) destacam-se os gêneros como ações sociais tipifica-
das, que se baseiam em situações retóricas recorrentes. Na sua perspectiva,
tanto a produção como a recepção da ação comunicativa são importantes, ou
seja, ambos os papeis têm relevância e não somente o daquele que produz e
responde a ação comunicativa. Dotados de traços léxico-gramaticais recorren-
tes, essas ações, tipificadas socialmente, são baseadas em práticas retóricas
(MILLER, 2009), isto é, nas convenções discursivas que uma sociedade
organiza como maneiras ou formas de agir conjuntamente. Importante dizer
que essas ações estão vinculadas ao contexto e à situação (retórica). Desse
modo, os gêneros, os quais também são caracterizados pela autora (idem)
como “artefatos” culturais, mediam as intenções privadas e a exigência social
ao mesmo tempo, relacionando o singular e o “individual” com o público e o
recorrente. Para Bazerman (2005, p. 31), além de ações sociais tipificadas, os
gêneros são também “[...] fenômenos de reconhecimento psicossocial”. Eles
dão forma às nossas atividades comunicativas porque surgem nos processos
sociais em que as pessoas interagem e tentam compreender umas às outras
para compartilhar significados, intenções, motivações e propósitos comuns.
Essas ações sociais tipificadas (padronizadas) organizam a vida das pessoas
e as práticas das instituições.
Além disso, também partindo de uma abordagem mais funcional que es-
trutural, embora as convenções linguísticas (os elementos estruturais) também
Gêneros textuais/discursivos 5

tenham a sua importância, os gêneros são definidos por Askehave e Swales


(2009) como uma classe de eventos sociais ou comunicativos que é modelada
por uma estrutura a partir da realização do seu propósito comunicativo. Para
esses teóricos, um gênero pode ter mais de um objetivo quando se inscreve
em um grupo de propósitos, os quais são reconhecidos pelos membros das
comunidades discursivas. Na opinião de Swales (1990, apud ASKEHAVE;
SWALES, 2009), o critério do propósito comunicativo deveria ser privilegiado
pelos analistas do discurso, uma vez que o propósito é o próprio fundamento do
gênero — é por meio do propósito comunicativo (da função comunicativa) que
se valida o gênero e imprime-lhe uma estrutura discursiva. Ao mesmo tempo,
contudo, esse conceito traz dificuldades relativas ao seu reconhecimento,
uma vez que pode ser difícil identificar o propósito comunicativo de alguns
gêneros. Ora, se o propósito é a motivação da atividade social comunicativa,
não poderíamos então dizer que esse não é o conceito que gera a própria
noção de gênero?
De acordo com Bakhtin (2003), os gêneros do discurso são tipos relativa-
mente estáveis de enunciados, com um conteúdo temático, um estilo e uma
construção composicional. Os gêneros refletem condições bem específicas
das esferas da atividade humana e são formados por enunciados (este, por
sua vez, é a unidade real da comunicação verbal, pois, para esse teórico, o
discurso só pode existir na forma dessa unidade e a ela se molda). Dentre as
características que Bakhtin (2003) aponta como definidoras do enunciado,
podemos citar, de maneira geral, que o enunciado é limitado pela mudança de
interlocutores, tem um acabamento interior específico, um propósito (objetivo)
comunicativo, interage com outros enunciados (que fazem parte da cadeia
de enunciados já-ditos, presentes no passado) e é sempre dirigido a alguém.
Em virtude do pioneirismo dos estudos de Bakhtin (2003) sobre os gêneros,
continuamos a sua abordagem de forma mais detalhada a seguir.
6 Gêneros textuais/discursivos

O ensaio intitulado “Os gêneros do discurso”, que faz parte da obra Estética da criação
verbal, foi escrito entre 1952 e 1953. Esse trabalho teórico, aparentemente não concluído,
foi publicado inicialmente em forma de fragmentos, em 1978, na revista Estudo literário.
A temática dos gêneros do discurso, no entanto, já tinha sido apresentada, mesmo
que brevemente, em obra anterior intitulada Marxismo e filosofia da linguagem, datada
de 1929, de autoria de V. N. Volochínov, um dos integrantes do chamado “Círculo
Bakhtiniano”.
Esse ensaio é dividido em duas seções: de início, o teórico russo analisa a problemática
da definição dos gêneros do discurso. Posteriormente, Bakhtin (2003) discute sobre o
enunciado como uma unidade real da comunicação verbal e discursiva, diferenciando-
-o de outras unidades da língua como as palavras e orações que são estudadas e
analisadas como abstraídas do contexto e, portanto, do meio social. Esse segundo
momento do ensaio constitui um ponto teórico importante para compreender que os
discursos, constituídos por enunciados (verbais, visuais, verbo-visuais) se materializam
em gêneros (BAKHTIN, 2003).

2 Gênero, enunciado e esfera discursiva


Mikhail Bakhtin (2003) foi um dos teóricos que influenciou significativamente
o estudo dos gêneros textuais/discursivos. Para esse pensador russo, os gêneros
do discurso se caracterizam como enunciados relativamente estáveis, os quais
apresentam:

 conteúdo temático;
 estilo;
 construção composicional.

Tais elementos, é importante dizer, refletem condições específicas de


cada esfera humana. Como existem numerosas esferas discursivas entre os
homens, a riqueza e a diversidade dos gêneros do discurso são infinitas; logo,
não há e nem pode haver um plano único para o seu estudo. E, mesmo diante
dessa heterogeneidade funcional dos gêneros do discurso, como trazia Bakhtin
(2003), o teórico notava que os estudos dessa temática, na sua época, tinham
a tendência de abstrair os gêneros dessa mesma heterogeneidade que estava
relacionada aos usos e aos contextos sociais: dito de outro modo, estudavam-
Gêneros textuais/discursivos 7

-se os gêneros literários, retóricos e os do cotidiano extraídos do meio social.


Desse modo, tais estudos, muitos de perspectiva formalista, apresentavam
limitações. Assim, os gêneros literários eram observados apenas na perspectiva
artístico-literária; os retóricos, apesar de atribuírem importância ao ouvinte,
não abordavam a natureza linguística do enunciado; e, ainda, as pesquisas
sobre os gêneros do cotidiano se limitavam a evidenciar esse discurso no nível
de enunciados demasiado primitivos.
Um outro ponto importante na discussão sobre os gêneros do discurso se
refere ao problema do estilo, pois, para Bakhtin (2003), o estilo é indissociável
do tema e da composição. Há, por exemplo, gêneros que são mais propícios
ao estilo individual, como os literários, já outros não oferecem tanto espaço
para a variação “individual”, como a correspondência oficial e a ordem militar.
Além disso, o teórico russo explica que a função de um enunciado e as suas
condições de produção geram um tipo de enunciado que é relativamente estável
quanto ao tema, à composição e ao estilo — é por esses elementos que vamos
nos deparando com uma pluralidade de gêneros diferentes e específicos. Desse
modo, ao estudarmos os gêneros nas sociedades, é preciso que se considere
esses três elementos.
Ademais, Bakhtin (2003) ainda traz que é preciso pensarmos na relação dos
gêneros com as esferas da atividade humana. Ora, os gêneros se manifestam
nas diversas esferas discursivas ou da comunicação humana e há numerosos
gêneros quanto atividades humanas. É importante destacar que o domínio dos
diversos gêneros, decorrentes das esferas discursivas das atividades humanas,
não está necessariamente ligado ao domínio da língua. Veja bem, os gêneros
do discurso são adquiridos, logo, não podem ser considerados uma combinação
que é totalmente livre de estruturas ou formas que fazem parte da língua. Desse
modo, alguém pode ter um bom domínio da sua língua e desenvolver bem
determinado gênero, mas esse mesmo sujeito-falante pode ter dificuldades
de produzir e/ou responder a um outro gênero em virtude desse gênero não
fazer parte das suas práticas sociais cotidianas ou de ser inexperiente em outra
esfera discursiva em que circulam outros gêneros.
É importante mencionar ainda que, ao estudar os gêneros, do discurso
o teórico russo faz uma crítica ao campo da Linguística, mais estritamente
formalista, e o da Estilística, na sua época, uma vez que tais ciências coloca-
vam em plano secundário o papel ativo do sujeito na produção e recepção do
gênero. Ou seja, o sujeito era observado como um mero receptor, cujo papel
não influenciava a cadeia enunciativa de produção do enunciado. No entanto,
para Bakhtin (2003), os sujeitos têm um papel social ativo na produção e
recepção dos enunciados, que não deve ser negligenciado.
8 Gêneros textuais/discursivos

Gênero: a cadeia ininterrupta de enunciados


Para compreender o funcionamento dos gêneros, é necessário irmos, inevita-
velmente, em busca da sua unidade básica que é o enunciado. Ora, os gêneros
textuais/discursivos são constituídos por unidades enunciativas. Ao tratar da
unidade enunciativa, Bakhtin (2003) aponta que o enunciado é uma unidade
real da comunicação, unidade essa que oferece uma compreensão responsiva
ativa por parte dos sujeitos envolvidos, por conseguinte, que faz parte da cadeia
ininterrupta de muitos outros enunciados. Uma função de um enunciado e as
condições envolvidas na sua produção geram um certo tipo de enunciado que
é relativamente estável (quanto ao tema, à composição e ao estilo), ou seja,
temos aí o gênero. E, dentre as características apontadas pelo pensador russo
no que se refere ao enunciado, podemos citar:

1. a alternância dos sujeitos/participantes, ou seja, o enunciado é definido


pela troca de turnos entre os seus participantes (o “sujeito-falante”
termina o seu enunciado para passar “a vez” ou “a palavra ao outro”,
dando lugar a sua compreensão ativamente responsiva);
2. o acabamento específico (temporário), isto é, o enunciado possui um
acabamento, mesmo que temporário, o qual permite dar ao outro (ao
“sujeito-destinatário”) a abertura da possibilidade de resposta (mesmo
que essa resposta se realize apenas na nossa mente e não se materialize
numa fala dirigida ao outro).

Contudo, para suscitar uma réplica ou uma resposta — o que já é um


outro enunciado — aquele enunciado anteriormente expresso (verbalmente,
visualmente e/ou verbo-visualmente) pelo sujeito-falante deve tratar exausti-
vamente o objeto que representa (e esse tratamento se dá conforme o gênero);
ser definido pelo querer-dizer do autor sobre o objeto; escolher o gênero
conforme a esfera humana e o objetivo do autor (é importante dizer que essa
escolha, por sua vez, determinará a entonação expressiva do falante, isto é, o
“tom” que um enunciado apresenta).
Além disso, o enunciado, na criação do objeto do sentido, submete-se a
dois momentos que lhe determinam a composição e o estilo: o primeiro, é
a escolha do gênero e dos recursos linguísticos; o segundo, é a elaboração
da expressividade do sujeito diante do objeto que trata (BAKHTIN, 2003).
É importante destacar, assim, que não se pode falar de aspectos expressivos
quando tratamos das unidades do sistema da língua: as unidades linguísticas,
como unidades estruturais de uma língua, não têm juízo de valor por si só. A
Gêneros textuais/discursivos 9

entonação expressiva materializa a relação de valor do sujeito-falante com o


objeto do seu discurso. Dito de outro modo, fora do enunciado, essa entonação
expressiva não existe.

Imagine dois sujeitos sentados em uma sala de jantar conversando sobre as atividades
que cada um realizou naquele dia no trabalho. Durante o gênero diálogo entre colegas
de trabalho em ambiente informal, o segundo jovem se levanta, aproxima-se da janela
e olha para o céu. Nesse ato, tal jovem sorri para a lua e, após vislumbrar a imagem
do astro no céu, vira para o seu colega e diz bem. Esse bem é falado com um sorriso
leve no rosto do jovem, o que é percebido pelo primeiro jovem como a admiração
que aquele colega tem pelo globo lunar, admiração essa que também expressa
gratidão e serenidade naquele momento. Tais sentidos construídos pelo enunciado
bem durante a comunicação entre os dois jovens não são dados pelo uso do advérbio
bem como uma palavra ou unidade linguística, isto é, unidade que faz parte da língua
portuguesa, mas pela relação estabelecida pelos sujeitos na troca de enunciados em
determinado contexto social.
Desse modo, bem como unidade meramente da estrutura de uma dada língua não
tem um tom expressivo por si só, pois a entonação expressiva do enunciado é construída
pelos participantes envolvidos no gênero textual/discursivo a partir do contexto em
que eles se inserem, e do papel ativo e lugar que os participantes ocupam. Portanto,
a unidade linguística bem, quando fora de contexto, não apresenta os aspectos que
revelariam a entonação expressiva dirigida ao outro — no caso do exemplo, dirigida
à lua e ao colega.

Relação entre gêneros e mudanças sociais: uma breve


reflexão
Fala-se comumente que a sociedade pós-industrial, pós-moderna e/ou pós-
-tecnológica tem se constituído a partir de crises de antigos paradigmas, como
exposto anteriormente. Tal tema é, contudo, ainda alvo de debates contraditó-
rios. No entanto nesse mesmo espaço de conflitante discussão, pode-se notar
um consenso quase cristalizado: após o significativo salto no desenvolvimento
tecnológico da sociedade — salto este que tem gerado o aparecimento de novos
suportes midiáticos —, o sujeito da atualidade tem passado a lidar com uma
intensa modificação de suas práticas sociais e discursivas. Estas, inclusive,
têm se tornado cada vez mais virtuais, fluídas e com poucas demarcações de
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fronteiras. Assim, nesse contexto, deparamo-nos com diferentes necessidades


e atividades sociais que acabam por trazer impactos diversos nas nossas ações
sociais tipificadas (MILLER, 2009), isto é, nas maneiras que realizamos nossas
atividades comunicativas.
Logo, na era atual — caracterizada também como multimidiática —, uma
significativa mistura e influência entre os gêneros passou a ser mais visibilizada
pelos nossos processos comunicativos. Ou seja, passou-se a destacar que os
gêneros nunca foram, de fato, estáticos: eles estão cada vez mais misturados,
em uma cadeia de influência mútua. Tal intercâmbio entre os gêneros, o qual
gera uma outra infinidade de gêneros, nos mostra o quão difícil é traçar limites;
pois os gêneros são gerados por processos de assimilação de outros anteriores
e não param por aí. Isso é um movimento em constante desenvolvimento, uma
vez que se liga às mudanças comunicativas e sociais que vão se dando ao longo
da história. A esse respeito, é importante mencionar que o intercâmbio entre
os gêneros não é um traço do mundo atual, pois elas já ocorriam no passado,
mesmo que em menor escala. Dito de outro modo, o processo de hibridismo
entre os gêneros já era comum nos tempos de outrora; só que, é a partir do
desenvolvimento e do avanço das tecnologias de informação e comunicação
que tais processos genéricos passaram a se tornar mais evidentes.
Conforme Marcuschi (2002), a forte presença dos grandes suportes tec-
nológicos da informação — tais como o rádio, o jornal, a revista, a televisão,
a internet, etc. —, nas atividades sociocomunicativas, tem possibilitado a
reestruturação e reconfiguração das ações discursivas, uma vez que a tecno-
logia, definitivamente, não produz novos gêneros. De fato, por apresentarem
uma relativa estabilidade — já que são maleáveis, plásticos e dinâmicos —,
os gêneros transmutam-se em outros gêneros, isto é, adquirem novas particu-
laridades comunicativas em função dos mais diversos contextos históricos e
culturais (BAKHTIN, 2003). Desse modo, com o passar dos anos, os gêneros
podem se voltar para outros propósitos, redefinindo as interações sociais.
Assim, embora seja mais notável hoje que novos gêneros surgem a partir das
modificações e adaptações de outros — é o clássico caso do e-mail que veio
para cumprir com uma necessidade social de comunicação rápida, instantânea,
a qual era coberta séculos atrás basicamente pela carta —, é preciso pensar
que os gêneros, como fenômenos históricos, não são estanques, estáticos,
invariáveis ou blocos homogêneos de comunicação. Há, no entanto, certos
gêneros textuais/discursivos que parecem ser mais monitorados, porque estão
enraizados na nossa forma de pensar, agir e se comunicar, como é o caso de
alguns gêneros literários (como os contos de fadas, as fábulas, as novelas, etc.)
e jornalísticos (como, as notícias, os fait divers, as reportagens televisivas, etc.).
Gêneros textuais/discursivos 11

Um outro aspecto que deve ser mencionado no estudo dos gêneros em


relação ao intenso uso e à influência das tecnologias nas nossas formas de
nos comunicarmos na atualidade diz respeito à disposição semiótica das
várias linguagens. Ora, na era midiática virtual, marcada por uma intensa
fluidez e ausência de marcações entre as modalidades oral, escrita e visual,
os gêneros textuais/discursivos também acabaram por integrar ainda mais os
diversos tipos de signos. Como afirma Marcuschi (2002, p. 21), “[…] a lin-
guagem dos novos gêneros torna-se cada vez mais plástica, assemelhando-se
a uma coreografia”. Logo, os gêneros ditos emergentes constituem processos
comunicativos integradores de diversos tipos de linguagens/signos, que vão
desde o uso de sons e signos escritos a imagens em movimento.

3 Texto, tipos textuais e gêneros


Dentro do universo de discussão sobre os gêneros textuais ou discursivos, um
outro debate se faz presente: o da classificação dos tipos textuais. Se, como
afirma Marcuschi (2002), baseando-se em Bakhtin (2003) e Bronckart (1999,
apud MARCUSCHI, 2002), a comunicação só é feita por algum gênero, essa
mesma comunicação é realizada por um texto. Isso porque a língua é uma
“atividade social, histórica e cognitiva” (MARCUSCHI, 2002, p. 3) e não um
conjunto de estruturas linguísticas que refletem as realidades sociais. É por isso
que os gêneros são definidos especialmente pela funcionalidade comunica-
tiva e/ou propósito social, ou seja, como eventos discursivos e ações sociais
que agem e dizem o mundo (ou que nos permite agir e dizer sobre o mundo).
Desse modo, ao se falar em gêneros textuais/discursivos, se está enfatizando
as ações ou os eventos discursivos e sociais que estão materializados na nossa
sociedade, os quais apresentam características sociocomunicativas, conteúdos,
funções, estilos e composição específica.
Os tipos textuais, em contrapartida, são definidos pelo seu critério textual
e linguístico, isto é, por meio da sua natureza linguística (elementos lexicais,
sintáticos, tempos verbais, etc.). Ao todo, se fala comumente em um número
limitado de tipos textuais, que são:

 narração;
 argumentação;
 exposição;
 descrição;
 injunção.
12 Gêneros textuais/discursivos

É preciso, antes de darmos continuidade ao estudo dos tipos textuais, abrir


um parêntese sobre a definição de texto: o texto é uma entidade concreta
em que se materializam os gêneros textuais/discursivos. Em resumo: “[…]
gêneros são formas verbais de ação social relativamente estáveis realizadas em
textos situados em comunidades de práticas sociais e em domínios discursivos
[esferas discursivas] específicos” (MARCUSCHI, 2002, p. 25).
Para facilitar o nosso entendimento sobre tais conceitos — os quais podem
parecer, à primeira vista, equivalentes —, veja o pequeno resumo abaixo que
tenta relacionar conceitualmente as principais características dessas noções
da seguinte forma:

a) os gêneros são definidos a partir das noções de ação social prática,


circulação sócio-histórica, propósito ou funcionalidade comunicativa,
conteúdo, estilo e composição;
b) os tipos textuais são definidos a partir da noção estrutural de sequências
linguísticas específicas;
c) as esferas discursivas são definidas como domínios discursivos, ins-
tâncias discursivas ou esferas da atividade comunicativa humana em
que os gêneros se realizam em forma de textos.

Tipologias textuais
De antemão, é necessário lembrar sobre o cuidado no uso da expressão “tipo
textual” ou “tipo de texto”. Os gêneros se realizam nos tipos textuais e não
o contrário. Ou seja, quando alguém escreve uma notícia jornalística, esse
sujeito está fazendo uso do gênero notícia jornalística. A notícia, contudo,
pode se realizar — e, de fato, se constrói — a partir de mais de um tipo de
texto, uma vez que, quando relata um crime, por exemplo, traz momentos
descritivos, narrativos e/ou argumentativos. Isso significa dizer que a notícia
jornalística, dentre muitos outros gêneros, apresenta uma heterogeneidade
tipológica. Mesmo quando alguém caracteriza um texto sob o nome de “nar-
rativo” ou “argumentativo”, esse alguém está falando dos tipos textuais em
que o gênero está se concretizando. Cabe aqui uma ressalva: como os tipos
textuais são definidos pelas sequências linguísticas e boa parte dos textos
apresentam mais de uma tipologia textual, não seria redutor apontar um texto
como apenas narrativo, argumentativo, descritivo, expositivo ou injuntivo? Ao
falar de tipos textuais, é preciso que se considere a sua heterogeneidade. Logo,
pode-se dizer que em um texto encontramos uma variedade de sequências
tipológicas, as quais erguem a base do texto como um todo. Observe o que
Gêneros textuais/discursivos 13

diz Marcuschi (2002, p. 29) ao apontar as principais características estruturais


das sequencias tipológicas dos tipos textuais (narração, descrição, exposição,
argumentação e injunção):

Um elemento central na organização de textos narrativos é a sequência tempo-


ral. Já no caso de textos descritivos predominam as sequências de localização.
Os textos expositivos apresentam o predomínio de sequências analíticas ou
então explicitamente explicativas. Os textos argumentativos se dão pelo pre-
domínio de sequências contrastivas explícitas. Por fim, os textos injuntivos
apresentam o predomínio de sequências imperativas.

Portanto, os tipos textuais ou tipos de texto não são o mesmo que falar
de gêneros textuais/discursivos. Enquanto os tipos textuais se limitam a um
número específico de tipos de sequências tipológicas linguísticas, os gêneros
textuais/discursivos são numerosos porque são múltiplas as formas de nos
comunicarmos. Os tipos textuais, ainda, não são ações empíricas sociais e
discursivas, mas entidades concretas em que se realizam tais sequências.
Já os gêneros, longe de serem fenômenos estanques e estáticos, são eventos
sociais, discursivos e históricos maleáveis, plásticos, que se modificam com
o passar do tempo, podendo variar ao longo também das sociedades e dos
meios culturais. Embora sejam tidos como ações relativamente estáveis, uma
vez que apresentam possibilidade de interpretação quanto à produção e re-
cepção das formas de comunicação pelos sujeitos envolvidos, essas atividades
de comunicação, mesmo que ligadas a determinada coletividade, oferecem
espaço para uma certa “singularidade” dos agentes envolvidos. Isso porque
nós temos um papel ativo e responsivo no processo de comunicação, o que dá
possibilidade para pequenas variações (nem que sejam leves e sutis).
Logo, quando tratamos de gênero estamos falando de propósitos e objeti-
vos discursivos em que a nossa comunicação linguisticamente se realiza em
tal esfera discursiva; e, de tipo textual, de bases tipológicas ou sequências
estruturais diversas que se organizam e se relacionam em um todo textual.
14 Gêneros textuais/discursivos

Os tipos de texto, comumente definidos a partir de cinco tipologias — descrição


(marcada pela estrutura enunciativa de detalhar características e representar per-
sonagens e espaços), narração (marcada pela estrutura enunciativa que situa a ação
no desenvolvimento do tempo-espaço), exposição (marcada pela identificação ou
apresentação de elementos na estrutura enunciativa), argumentação (marcada pela
defesa de um ponto de vista) e injunção (marcada pelo predomínio de um comando,
uma instrução uma ordem) — dificilmente aparecem de forma isolada ou singularizada
no texto. Assim, embora se fale em textos narrativos de um lado e descritivos de outro,
é importante ter em mente que as sequências tipológicas aparecem em relação com
outras exercendo no todo do texto um processo de influência mútua. Logo, essa
polarização de tipos textuais não parece estar de acordo com a nossa realidade de
usos dos textos.

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