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Parte ii

Para uma Definição


da Teatralidade
1. A Teatralidade:
Em Busca da Especificidade
da Linguagem Teatral 1

Colocar-se hoje a questão da teatralidade é tentar definir o que


distingue o teatro dos outros gêneros e, mais ainda, o que o
diferencia das outras artes do espetáculo, particularmente da
dança, da performance2 e das artes multimídia. É esforçar-se
por atualizar a natureza profunda do teatro, para além da mul-
tiplicidade de práticas individuais, teorias de atuação, estéticas.
É tentar encontrar parâmetros comuns a toda realização teatral
desde sua origem. O projeto parece ambicioso, titânico, talvez

1 Este texto é o desenvolvimento de uma conferência dada em 1987, no De-


partamento de Teatro da Faculdade de Letras e Filosofia da Universidade de
Buenos Aires. Em seguida, foi ampliado no artigo publicado pela primeira vez
na revista Poétique, em 1988. A Teatralidade: A Especificidade de Linguagem
Teatal”, Poétique, Paris, set. 1988, p. 347-361,. O final do artigo aqui apresen-
tado foi modificado para levar em conta pesquisas realizadas a seguir sobre
a questão da teatralidade.
2 O termo “performance” corresponde àquilo que o inglês chama de perfor-
mance art, quer dizer, uma arte nascida do happening, cujos limites com as
outras artes (pintura, escultura, música) não são estanques. Cf. o estudo de
Roselee Goldberg Performance, Live Art, 1909 to the Present, New York: E.P.
Dutton, 1979. Cf. também J. Féral, Performance e Teatralidade: O Tema Des-
mistificado, J. Féral, J. Savona e E. Walker (eds.)., Théâtralité, Écriture, Mise-
-en-scène, Coll. Brèches, Montréal: Hurtubise HMH, 1985, p. 125-140.
84 além dos limites da razão: PARA UMA DEFINIÇÃO DA TEATRALIDADE

irrealista. Portanto, trataremos aqui de ensaiar referências, es-


tabelecer balizas para uma reflexão que demanda continuidade.
Diria que o século XX colocou em xeque as certezas do tea-
tro e das outras artes, se é que se pode falar assim. O que ainda
era importante para as estéticas teatrais definidas e essencial-
mente normativas do final do século XIX, foi questionado no
século XX, ao mesmo tempo em que a cena distanciou-se do
texto e do lugar que ele deveria ocupar na realização teatral3.
Desse modo, com o texto sofrendo ataques e não podendo
mais garantir a teatralidade da cena, era normal que os homens
de teatro começassem a se interrogar sobre a especificidade do
ato teatral, especialmente porque essa especificidade parecia, a
partir daí, fazer parte de outras práticas como a dança, a per-
formance, a ópera.
A emergência da teatralidade em outros espaços que não
o teatro parece ter por corolário a dissolução dos limites en-
tre os gêneros e das distinções formais entre as práticas: da
dança-teatro às artes multimídia, passando pelos happenings,
a performance, as novas tecnologias, é cada vez mais difícil
determinar as especificidades. À medida que o espetacular e
o teatral passaram a fazer parte de novas formas, o teatro, re-
pentinamente descentrado, foi obrigado a se redefinir. A partir
daí, perdeu suas certezas.
Como, então, definir a teatralidade hoje? É preciso falar de
teatralidade, no singular, ou de teatralidades, no plural? A tea-
tralidade é uma propriedade que pertence, em sentido próprio
e único, ao teatro, ou pode investir, paralelamente, o cotidiano?
É uma qualidade (no sentido kantiano do termo) pré-existente
ao objeto em que se aplica, a condição de emergência do tea-
tral? Ou seria antes a consequência de um determinado pro-
cesso de teatralização dirigido ao real ou ao sujeito? Essas são
as questões que pretendemos formular aqui.

3 Um indício dessa importância foi a pesquisa realizada em 1912 pela revista


Les Marges, que perguntava ao público: “Segundo você, quem é superior, o
homem que ama a leitura ou o homem que tem paixão pelo teatro?”. Na oca-
sião, a maioria dos participantes respondeu que o texto era mais importante
que o espetáculo. O fato é descrito por André Veinstein em La Mise-en-scène
théâtral et sa condition esthétique, Paris: Flammarion, 1955, p. 55.
A Teatralidade: Em Busca da Especificidade da Linguagem Teatral 85

Retomada Histórica

A noção de teatralidade parece ter surgido na história ao


mesmo tempo que a noção de literalidade4, ainda que tenha
experimentado uma difusão menos rápida, já que a maior parte
dos textos que abordam o tema, e que pudemos inventariar, da-
tam dos anos de 19805. Portanto, é preciso dizer, antes de tudo,
que a noção de teatralidade enquanto conceito é uma preocu-
pação recente, que acompanha o fenômeno de teorização do
teatro no sentido moderno do termo. Entretanto, pode-se ob-
jetar que A Poética de Aristóteles, O Paradoxo Sobre o Come-
diante, de Diderot, os prefácios de Racine e Victor Hugo, para
citar alguns exemplos, constituem, efetivamente, um trabalho
de teorização do teatro. É claro que sim. Mas sabemos que a
teorização do teatro no sentido atual, ou seja, enquanto refle-
xão sobre a especificidade dos gêneros e a definição de concei-
tos, como a “semiotização”, a “ostenção”, o “enquadramento”, a
“liminaridade” é muito mais recente. É o signo de uma época
cujo fascínio pela teoria Roland Barthes expôs.
Se a noção de teatralidade difundiu-se ativamente há cerca
de alguns anos, essa difusão recente parece ter esquecido a his-
tória mais longínqua do conceito, já que a noção de teatralidade
pode ser encontrada nos primeiros textos de Evreinov (1922).
Nesses escritos, ele fala de teatralnost e insiste na importância
do sufixo nost, afirmando que é sua maior descoberta6.
Pouco definida lexicalmente, etimologicamente pouco
clara, a teatralidade parece resultar desse “conceito tácito” que

4 Ver a respeito Mircea Marghescou, Le Concept de littérarité : Essai sur les pos-
sibilités théoriques d’une science de la littérature, Coll. De proprietatibus littera-
rum, La Haye: Moutoun, 1974; Charles Bouazis, Littérature et Société : Théorie
d’um modele du fonctionnement littéraire, Paris: Mame, 1972; Thomas Aron,
Littérature et Littérarité : Um essai de mise au point, Coll. Annales littéraires de
l’université de Besançon, Paris: Les Belles Lettres, 1984, assim como as primeiras
referências à noção de “literaridade”, esboçadas no âmbito da Escola de Praga.
5 No entanto, é preciso notar que o termo “teatralidade” foi introduzido na
França por Roland Barthes em 1954 (em Le Théâtre de Baudelaire, prefácio
à edição do Oeuvres complètes de Baudelaire, Paris: Club du meilleur livre,
1955; reeditado em Essais critiques, Paris: Seuil, 1964).
6 Ver Sharon Marie Carnicke, L’Instint théâtral: Evreinov et la théâtralité, Revue
des études slaves, v. 53, f. 1, p. 97-108, 1981. Em francês, a expressão mantida
foi “théâtralité”, em inglês, parece oscilar entre “theatrality” e theatricality”, e
seu uso é menos importante que entre os franceses.
86 além dos limites da razão: PARA UMA DEFINIÇÃO DA TEATRALIDADE

Michael Polanyi menciona7 e define como uma “ideia concreta


diretamente manipulável, mas que só pode ser descrita indire-
tamente”, associando-se, de modo privilegiado, ao teatro.

A Teatralidade Como Propriedade do


Cotidiano

A partir da investigação das condições de manifestação da tea-


tralidade em cena e fora de cena, pode-se esclarecer que a tea-
tralidade não pertence, em sentido exclusivo, ao teatro. Alguns
exemplos são capazes de orientar nossa reflexão. Suponhamos
os seguintes cenários:
1o Cenário: Vocês entram em um teatro onde uma determinada
disposição cenográfica está, evidentemente, à espera do início
da representação; o ator está ausente; a peça não começou.
Pode-se dizer que aí existe teatralidade?
Responder de modo afirmativo é reconhecer que a dispo-
sição “teatral” do lugar cênico traz em si certa teatralidade. O
espectador sabe o que esperar do lugar e da cenografia: teatro8.
Quanto ao espaço, surge como portador de teatralidade porque
o sujeito percebe nele relações, uma encenação do especular.
Essa importância do espaço parece fundamental a toda teatrali-
dade, já que a passagem do literário ao teatral sempre se funda,
prioritariamente, sobre um trabalho espacial.
2o Cenário: Vocês estão em um metrô e assistem a uma discus-
são entre dois passageiros. Um deles fuma e o outro lhe pede,
com veemência, que não fume, pois é proibido. O primeiro não

7 Em The tacit Dimension, New York: Garden City, 1967, Polanyi nota que esse
saber tácito provém das ligações que o indivíduo estabelece entre duas en-
tidades. O conhecimento de uma permite que deduza as características da
outra [“tacit knowing establishes a meaningful relation between two terms”
(p. 13); “we know the first term only relying on our awareness of it for attend-
ing to the second” (p.10)]. Aplicado à noção de teatralidade, isso sublinha que
nosso conhecimento do que é o teatro permitiria deduzir as características
da teatralidade. Ver também Jacques Baillon, D’Une entreprise de théâtralité,
Travail théâtrale, n. 18-19, 1975, p. 109-122.
8 A ausência do ator coloca um problema. Há teatralidade sem ator? Essa é a
questão fundamental. Beckett tenta dar uma resposta fazendo com que o ator
trabalhe no limite do desaparecimento.
A Teatralidade: Em Busca da Especificidade da Linguagem Teatral 87

obedece: insultos, ameaças, o tom sobe. Os outros espectado-


res observam atentamente, alguns fazem comentários, tomam
partido. O vagão para diante de uma imponente propaganda
publicitária. A agredida (é uma mulher) desce, fazendo com
que os espectadores presentes notem a desproporção entre a
proibição de fumar, escrita em letras muito pequenas sobre as
laterais do metrô, e o estímulo a fumar que ocupa toda a pa-
rede da plataforma.
Há teatralidade nesse incidente? A tendência seria respon-
der pela negativa: não houve nem encenação, nem ficção, nem
apelo ao olhar do outro por parte dos protagonistas; apenas
pessoas envolvidas numa escaramuça. Ora, o espectador que
tivesse descido na mesma estação teria descoberto que as pes-
soas eram atores e faziam teatro invisível, segundo os princí-
pios definidos por Augusto Boal9. Portanto, havia teatralidade
no espetáculo a que o espectador assistiu involuntariamente?
A posteriori, seria possível dizer que sim.
O que concluir dessa mudança de opinião? Que a teatra-
lidade, nesse caso, parece ter surgido do conhecimento do es-
pectador, desde que foi informado da intenção de teatro em
sua direção. Esse saber modificou seu olhar e forçou-o a ver
o espetacular onde até então só havia o especular, ou seja, o
evento10. Ele transformou em ficção o que pensava surgir do
cotidiano; semiotizou o espaço, deslocou os signos e pode lê-los
em seguida de modo diferente, fazendo emergir o simulacro
nos corpos dos performers e a ilusão onde, supostamente, ela
não estaria próxima, ou seja, em seu espaço cotidiano. Nesse
caso, a teatralidade surge a partir do performer e de sua inten-
ção expressa de teatro. Mas é uma intenção que o espectador
deve conhecer, necessariamente, sem o que não consegue notá-
-la, e a teatralidade lhe escapa.

9 Foi efetivamente o que aconteceu nesse exemplo real. O passageiro agressor,


que desceu na mesma estação, notou a multidão que se formava em torno
da passageira agredida, e compreendeu que se tratava de uma ficção teatral.
Ficou irritado por ter sido enganado dessa maneira.
10 A respeito do espetacular, Guy Debord escreve: “O espetáculo não é identi-
ficável ao simples olhar, mesmo combinado à escuta. É o que escapa à ativi-
dade dos homens, à reconsideração e à correção de sua obra. É o oposto do
diálogo.” Guy Debord, La Société du Spectacle, Paris: Champ libre, 1971, p. 4.
88 além dos limites da razão: PARA UMA DEFINIÇÃO DA TEATRALIDADE

3o Cenário: Enfim, o último exemplo. Sentada no terraço de um


café, olho os homens passando na rua. Eles não têm intenção
de ser vistos nem desejo de atuar. Não projetam simulacro nem
ficção, ao menos aparentemente. Não exibem seus corpos ou,
ao menos, não é essa a razão de sua presença nesse lugar. Eles
mal dão atenção a esse olhar que se dirige a eles e que ignoram.
Ora, o olhar que lhes dirijo lê certa teatralidade nos corpos
que observa, em sua gestualidade, em sua inscrição no espaço.
O simples exercício do olhar inscreve essa teatralidade, colo-
cando a gestualidade do outro no espaço do especular.
Desse exemplo final, pelas restrições mínimas que exige do
espectador11, pode-se depreender uma importante conclusão: a
teatralidade não parece relacionar-se à natureza do objeto que
investe – o ator, o espaço, o objeto, o evento; também não se
restringe ao simulacro, à ilusão, às aparências, à ficção, já que
pudemos apreendê-la em situações cotidianas. Mais que uma
propriedade, cujas características seria possível analisar, é um
processo, uma produção relacionada sobretudo ao olhar que
postula e cria outro espaço, tornado espaço do outro – espaço
virtual, é claro – e dá lugar à alteridade dos sujeitos e à emer-
gência da ficção. Esse espaço resulta de um ato consciente tanto
do próprio performer (no sentido amplo do termo: ator, ence-
nador, cenógrafo, iluminador, e também arquiteto) – e esse é o
sentido dos dois primeiros exemplos -, quanto do espectador,
cujo olhar cria uma clivagem espacial de onde surge a ilusão;
olhar dirigido, sem distinção, a eventos, comportamentos, cor-
pos, objetos, espaço cotidiano e também ficcional – e isso tem
relação com nosso último exemplo.
A condição da teatralidade seria, portanto, a identificação
(quando é produzida pelo outro) ou a criação (quando o sujeito
a projeta sobre as coisas) de um outro espaço, espaço diferente
do cotidiano, criado pelo olhar do espectador que se mantém
fora dele. Essa clivagem no espaço é o espaço do outro, que
instaura um fora e um dentro da teatralidade. É um espaço
fundador da alteridade da teatralidade.

11 Isso nos permite ler, pelo avesso, o segundo exemplo dado (a cena no metrô),
dessa vez para responder afirmativamente à questão colocada anteriormente
(Esta cena é teatral?): sim, o espetáculo no metrô é portador de teatralidade,
mesmo que o espectador ignorasse tratar-se de teatro.
A Teatralidade: Em Busca da Especificidade da Linguagem Teatral 89

Percebida dessa forma, a teatralidade não seria apenas a


emergência de uma fratura no espaço, uma clivagem no real
que faz surgir aí a alteridade, mas a própria constituição desse
espaço por meio do olhar do espectador, um olhar ativo que
é condição de emergência da teatralidade e realmente produz
uma modificação “qualitativa” nas relações entre os sujeitos: o
outro torna-se ator seja porque mostra que representa (nesse
caso, a iniciativa parte do ator), seja porque o olhar do espec-
tador transforma-o em ator – a despeito dele – e o inscreve
na teatralidade (nesse caso, a iniciativa parte do espectador).
Assim, a teatralidade consiste tanto em situar a coisa ou o
outro nesse outro espaço, em que ela pode aparecer graças ao
efeito de enquadramento através do qual inscrevo o que olho
(ver nosso terceiro exemplo) quanto em transformar um evento
em signo (quando um simples fato cotidiano transforma-se
em espetáculo – ver nosso segundo exemplo). Portanto, nessa
etapa de nossa reflexão, a teatralidade não aparece como uma
propriedade, mas como um processo que indica “sujeitos em
processo”12: aquele que é olhado – aquele que olha. É um fazer,
um vir a ser que constrói um objeto antes de investi-lo. Essa
construção é resultado de uma dupla polaridade, que pode par-
tir tanto da cena e do ator quanto do espectador.
O que faz o olhar da espectadora sentada no terraço do
café, ou o do espectador no vagão do metrô, ou mesmo aqueles
dos espectadores que entram no teatro, é criar esse espaço de
clivagem, um outro espaço ou o espaço do outro no lugar do
seu próprio. Se essa clivagem não existisse, não haveria pos-
sibilidade de teatro, pois o outro estaria em meu espaço ime-
diato, ou seja, no cotidiano. Não haveria teatralidade e muito
menos teatro.
Portanto, em princípio a teatralidade aparece como opera-
ção cognitiva e até mesmo fantasmática. É um ato performativo
daquele que olha ou daquele que faz. Cria o espaço virtual do
outro, o espaço transicional referido por Winnicott, o espaço
liminar mencionado por Turner, o enquadramento evocado

12 Segundo a expressão consagrada por Julia Kristeva (1977) em O Sujeito em


Processo, Polylogue, col. Tel quel, Paris: Seuil, 1991. Com essa expressão, Kris-
teva pretende sublinhar o movimento do sujeito sempre em processo de es-
truturação, sujeito não monolítico, que escapa à lei unificadora da linguagem.
90 além dos limites da razão: PARA UMA DEFINIÇÃO DA TEATRALIDADE

por Goffman. Permite ao sujeito que faz, e àquele que olha, a


passagem daqui para outro lugar.
O que quer dizer que a teatralidade não tem manifestações
físicas obrigatórias, nem propriedades qualitativas que permi-
tam reconhecê-la com exatidão. Ela não é um dado empírico.
É uma situação do sujeito em relação ao mundo e a seu imagi-
nário. É essa situação das estruturas do imaginário, fundadas
sobre a presença do espaço do outro, que permite o teatro. Ver
a teatralidade nesses termos coloca a questão da transcendên-
cia da teatralidade.

O Teatro Como Pré-Estética:


O Que Permite o Teatral?

Para Nicolai Evreinov, um dos primeiros a teorizar sobre a no-


ção, a teatralidade é vista como instinto de “transformação das
aparências da natureza”. Esse instinto, que Evreinov chama, em
outra passagem, de “vontade de teatro”, é um impulso irresistí-
vel encontrado em todos os homens (ver Le Théâtre pour soi [O
Teatro por Si Próprio], 1930, ou Apologie de la théâtralité [Apo-
logia da Teatralidade], 1908), do mesmo modo que o jogo nos
animais (ver Le Théâtre chez les animaux13, 1924, Le Théâtre dans
la vie [O Teatro e a Vida], 1930). Portanto, trata-se de uma qua-
lidade quase universal e presente no homem antes de todo ato
propriamente estético. É o gosto pelo travestimento, o prazer
de criar a ilusão, projetar simulacros de si e do real em direção
ao outro. Nesse ato que o transporta e o transforma, o homem
parece ser o ponto de partida da teatralidade: é sua fonte e seu
primeiro objeto – oferece simulacros de si. Evreinov fala da
transformação da natureza14, outro nome dado ao real. Assim,
para Evreinov o homem está no centro do processo; é funda-
mental para a emergência e a manifestação da teatralidade.

13 O título exato do livro é Teatr u shivotnykh (O Teatro nos Animais: Sobre a


Significação Biológica da Teatralidade) 1 ed., Leningrado-Moscou: Kniga,
1924, não traduzido em francês.
14 Não desenvolveremos aqui as questões teóricas levantadas pelas noções de
natureza e de real.
A Teatralidade: Em Busca da Especificidade da Linguagem Teatral 91

Com origem no “instinto”, nesse caso a teatralidade liga-se


sobretudo ao corpo do ator e resulta de uma experiência física
lúdica, antes de tornar-se um meio intelectual visando a uma
dada estética. Essa experiência lúdica leva à transformação da
natureza. Isso quer dizer que, nesse caso, o processo fundante
da teatralidade é pré-estético. Apela à criatividade do sujeito,
mas precede a criação como ato artístico e estético acabado.
Como nota Evreinov, é uma transformação que pode acontecer
na vida cotidiana. Nesse aspecto, o limite entre teatro e coti-
diano é mínimo. Em sua definição mais ampla, a teatralidade
pertence a todos.
Ainda que se compreenda profundamente as convicções
de Evreinov e a relação que mantém com a época em que fo-
ram elaboradas (especialmente no que se refere à noção de ins-
tinto), trata-se de um modo de ver a teatralidade que não diz
respeito especificamente ao teatro, e que pode ser aplicado à an-
tropologia, à etnologia, à sociologia15. Na tentativa de aproximar
teatralidade e cotidiano, Evreinov corre o risco de anular a espe-
cificidade da teatralidade cênica (pois inscreve a teatralidade no
cotidiano), mas confere uma extensão ao termo teatralidade que
merece ser explorada. Evreinov nota que a teatralidade, antes
de ser um fenômeno teatral, é uma propriedade (uma transcen-
dência) que pode ser deduzida, sem passar pelo estudo empí-
rico que pressuporia a observação de diversas práticas teatrais.
Se estamos próximos de admitir que de fato existe uma tea-
tralidade dos atos, dos acontecimentos, das situações e dos ob-
jetos fora da cena teatral, coloca-se, a partir daí, uma questão de
ordem filosófica, a da existência possível de uma transcendência
da teatralidade (para falar em termos kantianos) de que a teatra-
lidade cênica seria apenas uma expressão. Colocando em outros
termos, a teatralidade é uma propriedade transcendental que
pode investir todas as formas do real (o artístico, o cultural, o
político, o econômico)? Ou só pode ser deduzida a partir do em-
pirismo e da observação do real, com base em um denominador
comum a práticas artísticas dotadas de teatralidade?
Vista como estrutura transcendental, a teatralidade seria
dotada de características nas quais o teatro poderia inscrever-se
15 Como faz Elizabeth Burns em seu livro Teatricality. A Study ofCconvention
in the Theatre and in Social Life, New York: Harper & Row, 1973.
92 além dos limites da razão: PARA UMA DEFINIÇÃO DA TEATRALIDADE

naturalmente. E seria justamente por existir a possibilidade


de transcendência da teatralidade que haveria teatralidade em
cena. Dito de outra forma, o teatro só seria possível porque a
teatralidade existe e o teatro a convoca. Uma vez convocada,
a teatralidade passaria a adquirir características propriamente
teatrais, valorizadas coletivamente e socialmente profundas.
Mas essa teatralidade própria ao teatro não poderia existir se
não houvesse a possibilidade de uma transcendência da tea-
tralidade. O ator toma lugar nessa estrutura transcendental,
mergulhando nesse espaço clivado que escolheu ou que lhe
foi imposto16.

A Teatralidade Teatral

Se a condição sine qua non da teatralidade, como acabamos


de defini-la, é a criação de outro espaço onde a ficção pode
surgir, essa característica não nos parece específica do teatro.
Então, quais seriam os signos característicos da especificidade
cênica?17 O que apenas o teatro consegue produzir?
Evreinov afirmava que a teatralidade do teatro repousa
essencialmente sobre a teatralidade do ator, movido por um
instinto teatral que lhe suscita o gosto por transformar o real
circundante. Apresentava a teatralidade como uma proprie-
dade que parte do ator e teatraliza aquilo que o rodeia: o eu e o
real. Ora, temos nessa dupla polaridade (eu-real) as “interfaces”
fundamentais de toda reflexão sobre a teatralidade cênica: seu
lugar de emergência (o ator) e seu ponto de finalização (a rela-
ção que institui com o real). As modalidades de relação que se
estabelecem entre os dois polos são dadas pelo jogo, cujas regras
tem a ver, ao mesmo tempo, com o pontual e o permanente.

16 Ver a participação forçada a que os espectadores são submetidos, às vezes,


pelos atores. São eloquentes, nesse sentido, as experiências do Living em An-
tígone, por exemplo, ou determinadas práticas teatrais dos anos de 1960, em
que os espectadores eram forçados a entrar no espaço de representação, ou
seja, no espaço do outro, muitas vezes com relutância.
17 Em Le Souffleur inquiet, número especial de Alternatives Théâtrales, n. 20-
21, dez. 1984, Jean-Marie Piemme afirmava que a teatralidade é aquilo que
o teatro é o único a produzir, aquilo que as outras artes não oferecem, não
podem produzir.
A Teatralidade: Em Busca da Especificidade da Linguagem Teatral 93

Na verdade, os percursos entre esses dois polos podem ser va-


riados, mas não obrigatórios. Eles organizam as três modali-
dades da relação que definem o processo de teatralidade e que
pode envolver o conjunto do teatro, respeitando as mudanças
históricas, sociológicas ou estéticas: o ator, a ficção e o jogo.

[ESPAÇAMENTO DIFERENCIADO, VER PDF]


Ator…………………………………Ficção
Jogo

O Ator

Se o ator é portador da teatralidade no teatro – axioma que


Peter Brook, sem dúvida, endossaria18 -, é porque todos os sis-
temas significantes – espaço cenográfico, figurinos, maquiagem,
narração, texto, iluminação, acessórios – podem desaparecer sem
que a teatralidade cênica seja profundamente afetada. É sufi-
ciente que o ator permaneça para que a teatralidade seja pre-
servada e o teatro possa acontecer, prova de que o ator19 é um
dos elementos indispensáveis à produção da teatralidade cênica.
Pois o ator é, ao mesmo tempo, produtor e portador da tea-
tralidade. Ele a codifica, inscreve-a em cena por meio de signos,
de estruturas simbólicas trabalhadas por suas pulsões e seus de-
sejos enquanto sujeito, um sujeito em processo que explora seu
avesso, seu duplo, seu outro, a fim de fazê-lo falar. Essas estrutu-
ras simbólicas perfeitamente codificadas, facilmente identificá-
veis pelo olhar do público, que delas se apropria como modo de

18 Ver Peter Brook: “Eu poderia tomar não importa que espaço vazio e chamá-lo
de cena. Alguém atravessa esse espaço vazio enquanto alguém o observa, e
é suficiente para que o ato teatral se inicie.” Peter Brook, L’Espace vide. Écrits
sur le théâtre, col. Pierres vives, Paris: Seuil, 1977, p. 25. A essa primeira defi-
nição, Peter Brook acrescenta a necessidade de um diálogo sobre a cena. “O
elemento de base de uma peça é o diálogo. Ele implica uma tensão e supõe
que duas pessoas não estejam de acordo. O que significa um conflito. Que
ele seja latente ou manifesto, pouco importa”, em Peter Brook, Points de Sus-
pension, col. Points Essais, Paris: Seuil, 2004.
19 A noção de ator é tomada aqui no sentido mais amplo possível: pode-se
tratar de marionetes, é claro, mas igualmente de teatro sem atores, como faz
o Nouveau Théâtre Expérimental de Montréal, quando apresenta uma peça
em que apenas os objetos atuam (Les Objets parlent [Os Objetos Falam],
1986-1987).
94 além dos limites da razão: PARA UMA DEFINIÇÃO DA TEATRALIDADE

conhecimento ou de experiência, são todas as formas do nar-


rativo e do ficcional que se inscrevem em cena (personagens,
atletas do gesto, marionetes mecanizadas, narrativas, diálogos,
representações), e que o ator faz surgirem no teatro. Resultan-
tes de simulacros, de ilusões, essas estruturas manifestam em
cena a emergência de mundos possíveis, dos quais o espectador
apreende, simultaneamente, toda a verdade e toda a ilusão. Mais
que as estruturas dadas a ver o que o olhar do público interroga
sob a máscara, é a presença do outro, seu savoir-faire, sua téc-
nica, seu jogo, sua arte da dissimulação, da representação.
Pois o olhar do público é sempre duplo. Jamais se deixa
tomar completamente. O paradoxo do comediante é o seu pró-
prio: acreditar no outro sem acreditar. Como diz Schechner, o
espectador é confrontado com o not-not me do ator20. O ator
se oferece a ele por meio de simulacros que são estases de um
processo e o público sabe muito bem que aquilo que assiste
representa apenas uma de suas etapas. Diz respeito à travessia
do imaginário, ao desejo de ser outro, à transformação, à alte-
ridade. Assim questionado, posto em cena, dado a ver, o ator
trabalha nos limites do eu, onde o desejo torna-se performance.
Ele sinaliza a diferença, o deslocamento, o desconhecido.
Portanto, a teatralidade do performer está nesse desloca-
mento que o ator opera entre ele próprio e ele como outro,
nessa dinâmica que registra. A teatralidade está nesse processo
do qual o ator é o foco, que faz com que ele sinta, nos momen-
tos de imobilismo das estruturas simbólicas, a ameaça sempre
presente de retorno ao sujeito. Conforme as estéticas, a tensão
entre as estruturas simbólicas do teatral e as invectivas do pul-
sional é mais ou menos valorizada. Em um extremo encontra-
-se Artaud, em outro o teatro oriental. De um a outro está toda
a diversidade das escolas e das práticas individuais21.

20 “Todos os espetáculos partilham esse ‘não-não eu’: Olivier não é Hamlet, mas
ao mesmo tempo ele não é não Hamlet: seu jogo se situa entre a negação de
ser um outro (= eu sou eu) e a negação de não o ser (= eu sou Hamlet)”. Rich-
ard Schechner, Between Theatre and Anthropology, Philadelphia: University
of Pennsilvania Press, , 1985, p. 123.
21 A relação com o corpo difere, é claro, segundo as escolas de formação. Al-
gumas tendem a inculcar no ator uma maestria absoluta, fundada em um
método atlético – é o exemplo de Grotowski – e outras exaltam a perda do
ator em si mesmo: é o exemplo de Artaud.
A Teatralidade: Em Busca da Especificidade da Linguagem Teatral 95

O lugar privilegiado desse confronto da alteridade é o


corpo do ator, um corpo em jogo, em cena, corpo pulsional e
simbólico em que a histeria fricciona a maestria. Esse corpo
é, a um só tempo, o lugar do conhecimento e da mestria. Um
corpo constantemente ameaçado por certa insuficiência, fa-
lhas, dificuldade de ser. Pois esse corpo é imperfeito por defi-
nição, e conhece seus limites. Feito de matéria, é vulnerável e
surpreende quando se supera22.
Mas esse corpo não é apenas performance. Posto em cena,
posto em signos, semiotiza tudo que o rodeia: o espaço e o
tempo, a narrativa e os diálogos, a cenografia e a música, a ilu-
minação e os figurinos. Introduz (cria?) a teatralidade em cena.
Quanto menos é portador de informação e saber, quanto me-
nos leva em conta a representação, não assumindo a mimese,
mais fala da presença do ator, do imediatismo do evento e de
sua própria materialidade23.
Exibido enquanto espaço, ritmo, ilusão, opacidade, trans-
parência, linguagem, narrativa, personagem, atleta, o corpo
do ator é um dos elementos mais importantes da teatralidade
em cena.

O Jogo

É nesse ponto que intervém uma segunda noção fundamental


para a teatralidade do ato teatral: a noção de jogo. Para quem
tenta apreender a noção geral de jogo no teatro, a definição de
Huizinga é apropriada. Jogar é fazer “uma ação livre, sentida
como ‘fictícia’ e situada fora da vida corrente, e no entanto
capaz de absorver completamente o jogador; é uma ação des-
provida de todo interesse material e de toda utilidade, que se
22 Surpreendentemente idêntica àquela que o espectador sente em uma com-
petição esportiva; o paralelo entre os esportes e o teatro é retomado com
freqüência. Ver Théâtre/Public, n. 63, maio 1985.
23 Para Jean-Marie Piemme, esse corpo traz a materialidade, a singularidade,
a vulnerabilidade, pois é cada vez mais anacrônico diante das tecnologias.
Mesmo sendo cada vez mais mediatizado, permanece singular. “No momento
em que o real mediatiza-se cada vez mais, em que o ser humano mergulha
nas imagens de si mesmo que as modernas tecnologias de reprodução lui
renvoient, o corpo, na radicalidade de sua presença material no espaço não
para de ganhar importância.”, op. cit., p. 40.
96 além dos limites da razão: PARA UMA DEFINIÇÃO DA TEATRALIDADE

pratica em um tempo e um espaço expressamente circunscri-


tos, desenvolve-se segundo uma ordem e com regras dadas”24.
Portanto, o jogo implica uma atitude consciente da parte do
performer (tomado aqui em seu sentido geral: ator, encenador,
cenógrafo, dramaturgo… todos eles participam), realizando-se
no aqui e agora de outro espaço que não o cotidiano, visando à
realização de “gestos fora da vida corrente”. Esse jogo provoca
um dispêndio pessoal cujos objetivos, intensidade e manifes-
tações variam de um indivíduo a outro, de uma época a outra
e de um gênero a outro.
Além disso, esse jogo é codificado a partir de regras especí-
ficas que se relacionam, por um lado, com as regras do jogo em
geral (enquadramento cênico, outro espaço, liberdade no inte-
rior dessa moldura, ostensão, transformação, transgressões), e
por outro com regras mais específicas que é possível historici-
zar, na medida em que dão conta de estéticas teatrais diferentes
de acordo com épocas, gêneros e práticas específicas25. Essas
regras impõem uma moldura de ação no interior da qual o ator
pode tomar certas liberdades em relação ao cotidiano.
Essa moldura não é cênica, como se poderia pensar (mol-
dura física que pertence, com frequência, ao domínio do visí-
vel), mas uma moldura virtual, aquela que o jogo impõe com
suas constrições e suas liberdades. Ela é visível graças à codi-
ficação tácita que opera no espaço e nos seres que o ocupam,
criando o fenômeno teatral. Em lugar de moldura, seria con-
veniente falar aqui de enquadramento teatral, para retomar um
conceito que Erving Goffman26 definiu e tem a vantagem de

24 Johan Huizinga, Homo Ludens. Essai sur la fonction sociale du jeu, trad. Cécile
Seresia, Paris: Gallimard, 1951, p. 35.
25 As regras do jogo teatral são diferentes, por exemplo, na época elisabetana
ou na época clássica; da mesma forma que a Commedia dell’Arte não impõe
as mesmas regras de jogo que a tragédia de Sófocles. Hoje, à medida que nos
colocamos ao lado do teatro herdado dos anos de 1960 ou do lado da tradição,
as regras do jogo cênico são diferentes. Nesse sentido, a historicização das
regras do jogo surge de um estudo da estética.
26 A noção de enquadramento foi definida por Ervin Goffman em 1959 em
Frame Analysis. Na Essay on the Organization of Experience, London: Harper
& Row, 1974, assim como em La Mise en scène de la vie quotidienne, Paris: Édi-
tions de Minuit, 1973 (1959). Nesse domínio da psicologia, o enquadramento
é aquilo que permite a interpretação da experiência. Esse enquadramento
virtual que impõe regras, mas também liberdades, tem certo parentesco com
o espaço transicional de Donald Woods Winnicott em Jeu et réalité. L’Espace
A Teatralidade: Em Busca da Especificidade da Linguagem Teatral 97

sublinhar o caráter dinâmico do processo. Se a moldura é um


resultado que é possível impor, o enquadramento, ao contrário,
é um processo, uma produção que expressa o sujeito em ato. O
enquadramento sublinha muito bem o fato de ser uma apreen-
são, uma iluminação das relações perceptivas entre um sujeito
e um objeto; sublinha que esse objeto transforma-se em objeto
teatral e, nessa transformação, espaço cênico e ficção estão im-
bricados. A teatralidade não emerge aí como passividade, olhar
que registra conjuntos de objetos teatrais (de que seria possível
enumerar as propriedades), mas como dinâmica, resultado de
um fazer que sem dúvida pertence, de forma privilegiada, ao
teatro; mas a teatralidade também pode pertencer àquele que
se apossa dela pelo olhar, quer dizer, o espectador.

A Ficção e Sua Relação Com o Real

O terceiro termo da relação é aquele que trata do real. Optar


por falar da relação com o real no teatro pode parecer proble-
mático, já que supõe a existência de um real concebido como
entidade autônoma, conhecível e representável. Ora, a reflexão
filosófica atual tende a mostrar que o real só pode ser resultado
de uma observação problemática, pois é sempre produzido,
sendo ele próprio resultado de uma representação, para não
dizer um simulacro. Entretanto, é importante questionar a re-
lação da teatralidade com o real porque ela marcou a reflexão
teatral desde o princípio do século XX, e diversas arte poéticas
(Stanislávski, Meyerhold) trazem a marca dessa interrogação.
Em outros termos, seria possível associar a teatralidade a uma
adequação, maior ou menor, da representação teatral ao real?
Para determinados artistas ligados a outras formas de arte
que não o teatro, e também para certos artistas de teatro, a
noção de teatralidade traz uma soma de conotações pejorati-
vas. Gérard Abensour escreve: “Nada é mais odioso para uma
peça lírica do que a ideia mesma de ‘teatralidade’. Em seu pri-
meiro nível, ela designa uma atitude completamente exterior,

potenciel (Playing and Reality), 1971, traduzido do inglês por Claude Monod
e J.B. Pontalis, Paris: Gallimard, 1997 (1975), reeditado na col. Folio, 2002.
98 além dos limites da razão: PARA UMA DEFINIÇÃO DA TEATRALIDADE

descolada do sentimento íntimo que se supõe inspirá-la, e se


identifica com a ausência deliberada de sinceridade. A partir
dessa ótica, ser teatral é ser falso.” 27
Na linguagem popular, a teatralidade opõe-se à sinceridade
que Meyerhold e Stanislávski reivindicam com objetivos dife-
rentes, cada um por seu lado.
O objetivo manifesto de Stanislávski é fazer o espectador
esquecer que está no teatro, e o termo “teatral” tornou-se pe-
jorativo no Teatro de Arte de Moscou. A verdade da peça de-
pende da proximidade entre o ator e o real a ser representado. A
teatralidade aparece aí como um desvio em relação à verdade,
um excesso de efeitos, um exagero de comportamentos que
soam falsos e estão distantes da verdade cênica.
Em sentido oposto à tese stanislavskiana, para Meyerhold
a cena deve manifestar-se por meio do realismo grotesco, rea-
lismo que refuta as teses naturalistas em todos os pontos. A
teatralidade é esse ou são esses procedimentos por meio dos
quais o ator e o encenador fazem com que o espectador jamais
esqueça que está no teatro e que tem, diante de si, um ator em
pleno domínio de seus meios, interpretando um papel. Afir-
mar o “teatral” como distinto da vida e distinto do real aparece
como condição sine qua non da teatralidade em cena. A cena
deve falar sua própria linguagem e impor suas próprias leis.
Meyerhold questiona-se acerca da adequação da representa-
ção ao real. Sublinha que a teatralidade não pode ser encontrada
na relação ilusória com o real; não está ligada a uma estética par-
ticular, mas deve ser buscada no discurso autônomo que consti-
tui a cena. Insiste na necessidade de uma especificidade teatral.
No pensamento de Meyerhold, é importante reter a ideia
que define a noção de teatralidade como um ato de ostenção
sustentado pelo ator (ao mostrar ao espectador que está no
teatro) e que designa o teatro enquanto tal, e não o real. A dis-
tinção é fundamental, pois centra a teatralidade, por um lado,
exclusivamente no funcionamento do teatro enquanto teatro,
transformando-o na máquina cibernética de que falava Bar-
thes; por outro lado, coloca-a em um espaço fora do cotidiano,

27 Gérard Abensour, Block face à Meyerhold et Stanislavski ou le problème de


la théâtralité, Revue des études slaves, vol. 54, f. 4, p. 671-679, 1982.
A Teatralidade: Em Busca da Especificidade da Linguagem Teatral 99

onde o processo de produção do teatral é importante, e onde


tudo se torna signo, e é exterior a toda relação com o real.
Ao contrário da definição de teatralidade dada por Meyerhold,
a de Stanislávski tem a marca da história, pois levanta questões
que hoje não se colocam mais nos mesmos termos. Corresponde
a um momento histórico em que se buscava o natural contra o ar-
tifício teatral do final de século XIX, que todos condenavam. Mas
se o combate contra o realismo ainda não terminou de fato, não
pode mais ser lido nos mesmos termos, já que o próprio realismo
é reconhecido como uma forma de teatralidade.
Hoje parece clara a resposta à questão de saber se a teatrali-
dade pode ser definida por meio da relação que a cena mantém
com o real que toma por objeto. A teatralidade aparece como
um processo ligado, antes de tudo, às condições de produção do
teatro e não ao grau de semelhança ou desvio em relação ao real
representado. Nesse sentido, é possível dizer que não há assuntos
mais teatrais que outros, imitações mais teatrais que outras, e que
a teatralidade tem a ver com o próprio processo de representação.

A Proibição

Na tripla relação que a dinâmica cênica registra, aparecem proi-


bições. Com efeito, como em toda moldura, o enquadramento
teatral é dotado de uma dinâmica dupla: visto do exterior ga-
rante a ordem; visto do interior autoriza todas, ou quase to-
das28, as transgressões. “A essência do teatro não está, antes de

28 Seria correto dizer que as transgressões que o jogo autoriza são determina-
das por diversos gêneros, épocas, países e estéticas. É onde a teatralidade no
singular dá lugar às teatralidades no plural (conceito que é, aqui, quase sinô-
nimo de estéticas). Explorar esses limites poderia ajudar-nos a estabelecer a
diferença entre teatralidades específicas ligadas a épocas ou gêneros dados e
a teatralidade profunda, aquela que sobrevive através de todas as teatralida-
des específicas. A título de início de reflexão, poderíamos dizer, por exemplo,
que a nudez hoje aceita em cena, como já o foi na Idade Média, provocou
escândalo nos anos de 1960. No entanto, o quadro virtual do jogo estava
bem colocado, mas as liberdades e transgressões autorizadas pela cena e pe-
las estéticas de épocas anteriores não permitiam o desnudamento do corpo
do ator. Prova de que o quadro virtual colocado pelo processo de jogo não
permite (autoriza) todas as liberdades e elas continuam marcadas por certas
restrições ligadas a épocas específicas, estéticas, gêneros, mesmo se uma das
funções do teatro é de assumir essas transgressões.
100 além dos limites da razão: PARA UMA DEFINIÇÃO DA TEATRALIDADE

tudo, na capacidade de transgredir as normas estabelecidas pela


natureza, o Estado e a sociedade?”, perguntava Evreinov. Essa
possibilidade de transgressão garante a liberdade cênica do ator
e a potência do livre-arbítrio dos diversos participantes29.
As liberdades que o jogo oferece são de reproduzir, imitar,
duplicar, transformar, deformar, transgredir as normas, a na-
tureza, a ordem social. No entanto, como mostrou Huizinga, o
jogo em geral, e o jogo teatral em particular, são constituídos,
ao mesmo tempo, por uma moldura limitativa e um conteúdo
transgressivo. O jogo é, ao mesmo tempo, aquilo que autoriza
e proíbe. Não é constituído por todas as liberdades. As liber-
dades que oferece são dadas por regras iniciais – ou seja, pela
moldura virtual que os participantes partilham (mas na qual o
espectador não pode intervir, pois franquearia um espaço que
não lhe é destinado) -, mas também pelas liberdades admiti-
das por uma época ou um determinado gênero. Tais liberdades
ligam-se, com frequência, a estéticas específicas e a normas de
recepção que constituem para o ator e o espectador um código
comum de comunicação. É possível transgredir o código, sur-
preender o público, chocá-lo, ampliar os limites da moldura;
mas não é possível fazer de tudo nesse lugar.
De fato, as liberdades não podem nos fazer esquecer certas
proibições fundamentais. A transgressão dessas proibições faz
explodir a moldura do jogo e abre espaço para a vida30, amea-
çando a cena teatral.
Há uma dessas proibições que podemos chamar de lei de
exclusão do não-retorno. Essa lei impõe à cena a reversibili-
dade do tempo e dos acontecimentos, que se opõe a toda mu-
tilação ou morte do sujeito. Dessa forma, são recusadas como
teatro cenas de retaliação do corpo às quais certas performan-
ces dos anos de 1960 apelaram: mutilação real em cena, assim
como morte teatralizada de animais sacrificados em benefício

29 Em outro lugar, Dostoiévski observou que “no teatro duas vezes dois são três
ou até mesmo cinco, em função do grau maior ou menor da teatralidade im-
plementada”. Citado por Evreinov, e retomado por Marie Carnicke, op. cit.,
p. 105.
30 É um processo paralelo àquele que D.W. Winnicott estabelecia, ao afirmar
que o investimento pulsional no jogo não devia reduzir os desejos do sujeito,
senão o jogo não seria mais possível.
A Teatralidade: Em Busca da Especificidade da Linguagem Teatral 101

da representação31. Tais cenas rompem o contrato tácito com


o espectador. A ele cabe assistir a um ato de representação ins-
crito numa temporalidade outra, que não a do cotidiano, onde
o tempo é como que suspenso e, pode-se dizer, reversível, o que
impõe ao ator o retorno sempre possível ao ponto de partida
(ver o Paradoxo de Diderot). Ora, atacando o próprio corpo,
(ou o de um animal que é morto), o ator destrói as condições da
teatralidade. A partir daí, não está mais na alteridade do teatro.
Ao se mutilar, o performer associa-se ao real e seu ato fora das
regras e dos códigos não pode mais ser percebido como ilusão,
ficção, jogo. O espaço e o tempo da cena são dramaticamente
modificados e, por isso mesmo, destruídos. Essas proibições
constituem precisamente um dos limites do teatro32, pois amea-
çam a moldura do jogo e transformam o teatro, momentanea-
mente, em pista de circo. Se a teatralidade do evento continua
lá, o teatro, ao contrário, desapareceu.

31 Ver os espetáculos de Hermann Nitsch, cuja centésima performance, con-


cebida como a conclusão de sua obra, aconteceu em 1998 e durou seis dias.
Ainda que se mantenha enquanto proibição, o processo de morte de animais
parece, paradoxalmente, entrar mais facilmente na ordem da representação
do que aquele de mutilação do ator.
32 Mas não os limites da teatralidade. Ver a esse respeito a noção de “sagrado”
em Georges Bataille, especialmente em La Sociologie sacrée du monde con-
temporain, Coll. Lignes, Paris: Manifestes, 2004, p. 33-34.

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