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JOÃO CABRAL DE MELO NETO

(PARTE II)

ALGUNS TOUREIROS

Eu vi Manolo González
e Pepe Luís, de Sevilha:
precisão doce de flor,
graciosa, porém precisa.
Vi também Julio Aparício,
de Madrid, como Parrita:
ciência fácil de flor,
espontânea, porém estrita.
Vi Miguel Báez, Litri,
dos confins da Andaluzia,
que cultiva uma outra flor:
angustiosa de explosiva.
E também Antonio Ordóñez,
que cultiva flor antiga:
perfume de renda velha,
de flor em livro dormida.
Mas eu vi Manuel Rodríguez,
Manolete, o mais deserto,
o toureiro mais agudo,
mais mineral e desperto,
o de nervos de madeira,
de punhos secos de fibra,
o de figura de lenha,
lenha seca de caatinga,
o que melhor calculava
o fluido aceiro da vida,
o que com mais precisão
roçava a morte em sua fímbria,
o que à tragédia deu número,
à vertigem, geometria,
decimais à emoção
e ao susto, peso e medida,

sim, eu vi Manuel Rodríguez,


Manolete, o mais asceta,
não só cultivar sua flor
mas demonstrar aos poetas:

como domar a explosão


com mão serena e contida,
sem deixar que se derrame
a flor que traz escondida,

e como, então, trabalhá-la


com mão certa, pouca e extrema:
sem perfumar sua flor,
sem poetizar seu poema.

Paisagens com figuras (1955)


GRACILIANO RAMOS:

Falo somente com o que falo:


com as mesmas vinte palavras
girando ao redor do sol
que as limpa do que não é faca:

de toda uma crosta viscosa,


resto de janta abaianada,
que fica na lâmina e cega
seu gosto da cicatriz clara.

***

Falo somente do que falo:


do seco e de suas paisagens,
Nordestes, debaixo de um sol
ali do mais quente vinagre:

que reduz tudo ao espinhaço,


cresta o simplesmente folhagem,
folha prolixa, folharada,
onde possa esconder-se na fraude.

***

Falo somente por quem falo:


por quem existe nesses climas
condicionados pelo sol,
pelo gavião e outras rapinas:

e onde estão os solos inertes


de tantas condições caatinga
em que só cabe cultivar
o que é sinônimo da míngua.

***

Falo somente para quem falo:


quem padece sono de morto
e precisa um despertador
acre, como o sol sobre o olho:

que é quando o sol é estridente,


a contrapelo, imperioso,
e bate nas pálpebras como
se bate numa porta a socos.

Serial (1961)

POEMA

Trouxe o sol à poesia


mas como trazê-lo ao dia?

No papel mineral
qualquer geometria
fecunda a pura flora
que o pensamento cria.
Mas à floresta de gestos
que nos povoa o dia,
esse sol de palavra
é natureza fria.

Ora, no rosto que, grave,


riso súbito abria,
no andar decidido
que os longes media,

na calma segurança
de quem tudo sabia,
no contato das coisas
que apenas coisas via,

nova espécie de sol


eu, sem contar, descobria:
não a claridade imóvel
da praia ao meio-dia,

de aérea arquitetura
ou de pura poesia:
mas o oculto calor
que as coisas todas cria.

(1947)

Museu de tudo (1975)

PEQUENA ODE MINERAL

Desordem na alma
que se atropela
sob esta carne
que transparece.

Desordem na alma
que de ti foge,
vaga fumaça
que se dispersa,

informe nuvem
que de ti cresce
e cuja face
nem reconheces.

Tua alma foge


como cabelos,
unhas, humores,
palavras ditas

que não se sabe


onde se perdem
e impregnam a terra
com sua morte.

Tua alma escapa


como este corpo
solto no tempo
que nada impede.
Procura a ordem
que vês na pedra:
nada se gasta
mas permanece.

Essa presença
que reconheces
não se devora
tudo em que cresce.

Nem mesmo cresce


pois permanece
fora do tempo
que não a mede,

pesado sólido
que ao fluido vence,
que sempre ao fundo
das coisas desce.

Procura a ordem
desse silêncio
que imóvel fala:
silêncio puro,
de pura espécie,
voz de silêncio,
mais do que a ausência
que as vozes ferem.
O engenheiro (1945)

TECENDO A MANHÃ

Um galo sozinho não tece uma manhã:


ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito que um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.

E se encorpando em tela, entre todos,


se erguendo tenda, onde entrem todos,
se entretendendo para todos, no toldo
(a manhã) que plana livre de armação.
A manhã, toldo de um tecido tão aéreo
que, tecido, se eleva por si: luz balão.
A educação pela pedra (1966))
CATAR FEIJÃO

Catar feijão se limita com escrever:


jogam-se os grãos na água do alguidar
e as palavras na da folha de papel;
e depois, joga-se fora o que boiar.
Certo, toda palavra boiará no papel,
água congelada, por chumbo seu verbo:
pois para catar esse feijão, soprar nele,
e jogar fora o leve e oco, palha e eco.

Ora, nesse catar feijão entra um risco:


o de que entre os grãos pesados entre
um grão qualquer, pedra ou indigesto,
um grão imastigável, de quebrar dente.
Certo não, quando ao catar palavras:
a pedra dá à frase seu grão mais vivo:
obstrui a leitura fluviante, flutual,
açula a atenção, isca-a com o risco.

A educação pela pedra (1966))

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