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QUILOMBOS E SINDICATOS DE CLASSE

COMO ESPAÇO DE ORGANIZAÇÃO E RESISTÊNCIA

Luiz Paixão

1 – OBJETIVO

A partir do poema SAUDAÇÃO A PALMARES, do livro OS ESCRAVOS, de


Castro Alves e do capitulo NUM SETOR DA LUTA DE CLASSES, do romance
PARQUE INDUSTRIAL de Patrícia Galvão, pretende-se estabelecer a relação existente
entre eles como referência a um modelo de organização e resistência de escravos e
operários no Brasil.

2 – À GUISA DE PREÂMBULO HISTÓRICO

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2.1 - A relação capital/trabalho se manifesta e se aprofunda nas primeiras
décadas do séc. XX no Brasil. A burguesia industrial e urbana, substituindo a burguesia
rural cafeeira que se encontrava em franca decadência, se assenhora da produção
econômica do país, expandindo seu poder nos diversos setores, promovendo com isso o
surgimento da classe operária brasileira.

No início do século [vinte] os sindicatos começam a despontar como modo de


organização operária, ao lado das caixas mutuais, das sociedades beneficentes,
das ligas de resistência. Seus membros – onde se destacam os estrangeiros, os
trabalhadores qualificados, os semi-artesãos – são muitos deles trabalhadores
que visam apenas a defender-se coletivamente contra a exploração sem qualquer
projeto de subversão da ordem social. Mas a parcela mais combativa, mais
capaz de unir a classe e enfrentar os patrões é constituída por anarco-
sindicalistas. (SADER et ali, 1980: 2)

Os movimentos grevistas promovidos pelo anarco-sindicalismo cedem parte do


seu espaço de influência ao PCB, fundado em março de 22 que, com propostas mais
concretas, objetivas e científicas, através de uma análise marxista da realidade,
desenvolve um trabalho de conscientização e organização mais profundo do
proletariado brasileiro. O PCB, como organismo representativo dos operários, exerce
uma influência bastante consistente nos sindicatos de classe que, por sua vez, são o
organismo fundamental para organização e reivindicação dos trabalhadores:

O sindicato ainda é um lugar privilegiado pelos trabalhadores no seu combate


pela independência de classe (...) O maior ou menor grau de independência
sindical depende da força social do movimento próprio dos trabalhadores.
(NOTA DO EDITOR, 1978: 7 e 14)

A importância dos sindicatos nas lutas e conquistas dos trabalhadores se fez


sentir ao longo da história, em diversos momentos. Trotski, destacando a importância
dos sindicatos para as classes trabalhadores, acentua que:

Se o proletariado, como classe, fosse capaz de compreender imediatamente sua


tarefa histórica, não seriam necessários nem o partido nem os sindicatos. A
revolução teria nascido simultaneamente, com o proletariado. (TROTSKI, 1978:
20)

2.2 - A luta contra a escravidão no Brasil não ficou restrita à ação de intelectuais,
juristas, artistas e pessoas de bem que repudiavam essa terrível relação de trabalho. Ao
contrário do que sempre ouvimos, o negro não se “adaptou” ao trabalho escravo. Vários
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foram os mecanismos encontrados para se libertar do jugo opressor:

Onde houve escravidão, houve resistência. E de vários tipos. Mesmo sob


ameaça de chicote, o escravo negociava espaços de autonomia, fazia corpo mole
no trabalho, quebrava ferramentas, incendiava plantações, agredia senhores e
feitores, rebelava-se individual e coletivamente. (REIS: 4).

Os quilombos foram a forma mais avançada que os negros escravos encontraram


para se organizar e fugir do trabalho forçado. Local de refúgio, trabalho e resistência, os
quilombos se caracterizavam também por serem “sociedades político militares, que
nasceram de movimentos de insurreições, levantes, revoltas armadas (...) os Quilombos
representam uma das maiores expressões de luta organizada no Brasil, em resistência ao
sistema colonial-escravista” (SIQUEIRA: 3).

Palmares – Quilombo de Palmares ou República de Palmares – foi o mais


importante e duradouro quilombo dentre tantos existentes no Brasil. Consta que
Palmares durou mais de um século (1580-1710). Podemos categorizar o modo de
organização da República de Palmares como comunismo primitivo, onde encontramos
uma sociedade sem classes, onde “tudo é de todos e nada é de ninguém, tudo que
plantam e colhem é depositado em mãos do Conselho” (SIQUEIRA: 11).

3 – PARÂMETROS PARA UMA COMPARAÇÃO

Estabelecer um quadro comparativo entre SAUDAÇÃO A PALMARES e NUM


SETOR DA LUTA DE CLASSES nos leva a entender, inicialmente, os possíveis pontos
em comum entre um quilombo (particularmente o de Palmares) e um sindicato de
trabalhadores. O mais importante a se observar é organização e resistência. É função de
um sindicato organizar seus associados e dar-lhes força pra resistir às pressões impostas
pelo capitalismo; do quilombo não se espera postura diferente no que diz respeito à
organização de escravos fugidos e sua preparação para resistir aos ataques dos senhores
coloniais através dos seus capitães-do-mato e da própria força policial de estado que
defende seus interesses.

Há que ressaltar, porém, um fator que os coloca – sindicatos e quilombos – em


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dois campos distintos: os quilombos estão em estado de guerra permanente, a ameaça de
destruição é constante e os negros lutam de armas em mãos para garantir sua
sobrevivência; os sindicatos, apesar de enfrentarem a luta de classes no seu dia-a-dia,
não estão enfrentando um processo revolucionário no qual a luta se estabelece de
maneira diversa. A luta sindical passa também pelo enfrentamento da repressão policial,
mas não somente: suas reivindicações se estabelecem num primeiro momento na mesa
de negociações com os patrões e, em última instância, a utilização da greve como força
máxima de pressão, momento no qual poderá ocorrer o confronto com o aparato
policial.
3 – PERCURSOS SEMÂNTICOS

3.1 – “NUM SETOR DA LUTA DE CLASSES”

Podemos dividir o capítulo NUM SETOR DA LUTA DE CLASSES em duas


partes distintas: a) descrição do espaço físico do sindicato de classe e os grupos de
trabalhadores que participam da reunião e b) o debate em torno dos temas de interesse
dos trabalhadores.

O próprio título já nos remete ao espaço em que a cena transcorre. Sabemos que
é um espaço privilegiado para a organização dos trabalhadores, suas reivindicações e
sua luta contra a burguesia. A expressão LUTA DE CLASSES nos remete ao conflito
fundamental capital/trabalho, patrão/empregado ou, definindo melhor a questão de
classes, burguesia/proletariado. Tomamos conhecimento também de que é um lugar
pobre. Os elementos figurativos denotam essa realidade: uma mesa, uma toalha velha.
Uma moringa, copos. Uma campainha que falha.
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A narradora nos lança uma frase aparentemente solta, no início do capítulo – Nós
nunca temos tempo de conhecer nossos filhos! –, ameaçando um discurso de um
personagem qualquer, porém interrompe a narrativa, nos remetendo a um “elemento
retardador” (AUERBACH, 1976, 3), descreve o espaço e o motivo de estarem aquelas
pessoas reunidas – Sessão de um sindicato regional – para só depois, então, retornar ao
discurso do personagem em questão.

Ao apresentar-nos os diversos grupos que compõem a reunião, apresenta-nos


também os diversos interesses em jogo, revelando-nos que dentro do movimento
operário há divisões, não só nos objetivos imediatos de cada um, mas também nos
objetivos ideológicos e políticos no nível da organização proletária, pois ali estão “os
que procuram na união o único meio de satisfazer as suas reivindicações imediatas, os
que são atraídos pela burocracia sindical. Os futuros homens da revolução. Revoltados.
Anarquistas. Policiais”.

É de se esperar – o que de fato vai acontecer no decorrer da reunião – que o


encontro de diferentes grupos e interesses provoque um conflito que interfira no bom
andamento da reunião. Quando se provoca o encontro de operários Conscientes.
Inconscientes. Vendidos., o confronto de ideias há que se estabelecer.

A retomada da primeira frase do capítulo – Nós não tempos tempo de conhecer


nossos filhos! – não é, absolutamente, circunstancial. Ela inaugura o discurso do
personagem cozinheiro (interrompido anteriormente) que é caracterizado
simultaneamente por elementos figurativos e temáticos. Sua descrição física e
psicológica é coroada focando as mãos do personagem. Engels afirma que a mão

não é apenas o órgão do trabalho; é também produto dele. Unicamente pelo


trabalho, pela adaptação a novas e novas funções, pela transmissão hereditária
do aperfeiçoamento especial assim adquirido pelos músculos e ligamentos e,
num período mais amplo, também pelos ossos; unicamente pela aplicação
sempre renovada dessas habilidades transmitidas a funções novas e cada vez
mais complexas foi que a mão do homem atingiu esse grau de perfeição que
pôde dar vida, como por artes de magia, aos quadros de Rafael, às estátuas de
Thorwaldsen e à música de Paganini.” (ENGELS, 1975: 64)

As mãos do cozinheiro são marcadas pelo uso, são “enérgicas” e trazem a marca
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de sua utilização no trabalho – Estão manchadas pelas dezenas e dezenas de cebolas
picadas diariamente no restaurante rico onde trabalha. O discurso do personagem
descreve a trajetória diária do trabalhador explorado pelo capital. Sua vida é toda em
função do trabalho – Não temos descanso dominical. A narradora confirma a veracidade
de suas palavras, assumindo uma postura claramente favorável ao trabalhador – A voz
da verdade, todos se agitam nos bancos duros. A sala toda sua. – A verdade é tão
contundente que a sala sua devido ao calor de cada palavra dita pelo cozinheiro, que
reflete a condição de cada um ali presente, com exceção do policial Miguetti, infiltrado
na reunião.

Miguetti se manifesta contra o longo discurso do cozinheiro, tentando


interromper seu fluxo de raciocínio e, ao mesmo tempo, visando “minar” a reunião. Mas
é voto vencido, pois todos aprovam a continuidade da reunião, com destaque para o
ferreiro, que denuncia a postura do policial contra os interesses da nossa classe (32). A
autora faz um jogo de palavras utilizando “bate” com duplo sentido: o ofício do ferreiro
é bater o ferro e sua palavra bate energicamente na assembleia. Um outro personagem –
o operário da construção civil – opera um discurso que se relaciona com sua profissão,
ao dizer que Nós construímos palácios e moramos pior que os cachorros dos burgueses.
(33) Dando continuidade ao discurso semântico, a narradora cede voz a uma mulher –
uma operariazinha envelhecida – que cuida da mãe e perdeu o emprego. Não deixa de
colocar também em cena uma criança que pateticamente acompanha a reunião e parece
que sente tudo o que falam.

Para encerrar o capítulo cria uma simultaneidade de imagens para nos revelar
que do outro lado da cidade, no espaço reservado aos burgueses, os teatros estão cheios
e as mesas fartas. E reforça a denúncia da exploração burguesa quando apresenta o
abismo que separa burgueses e proletários: As operárias trabalham cinco anos para
ganhar o preço de um vestido burguês. Precisam trabalhar a vida toda para comprar
um berço.

A revolta está sendo preparada em fogo brando: Isso tudo é tirado de nós. O
nosso suor se transforma diariamente no champanhe que eles jogam fora! (33)

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3.2 – “SAUDAÇÃO A PALMARES”

Ao nos depararmos com o título SAUDAÇÃO A PALMARES, nos deparamos


também com o universo semântico a ser abordado no poema, pois o título é sua síntese e
definição semântica. Não esperamos outra coisa senão uma manifestação claramente
abolicionista em louvor à luta e conquista de um espaço geográfico onde o negro é livre
e senhor do seu destino. Somos, então, chamados a participar, juntamente como o poeta
narrador, de um canto em defesa do mais importante quilombo formado no Brasil
colonial. Se nos decidirmos por continuar a leitura, seremos cúmplices neste grito de
amor à liberdade. Sejamos, então, cúmplices.

A primeira informação que nos é dada é a localização física do quilombo – Nos


altos cerros erguido – que se encontra estrategicamente situado no alto de uma colina,
espaço privilegiado para proteção contra o inimigo, porém, o mais importante
encontramos no segundo verso – Ninho d’águias atrevido – pois aí, temos várias
informações extremamente relevantes:

ninho – espaço de proteção e acolhimento do negro fugido do cativeiro que


busca sua liberdade através de sua organização, visando à autoproteçao. Segundo o
Aurélio: “Refúgio, abrigo. Toca, covil, valhacouto”. Encontramos também no Aurélio a
definição de ninho como “A pátria”, o que nos remete a uma representação da África,
lugar de origem dos negros, confirmada por Siqueira:

Africanos de diferentes grupos étnicos mesclam-se nos quilombos, como forma


de resistir a uma determinação política anterior de separá-los de tudo o que
significasse expressão identitárias de um povo: línguas, famílias, costumes,
religiões, tradições. Tudo isso é retomado em todos os momentos da resistência
quilombola, na reinvenção de políticas e estratégias de luta pela liberdade,
sempre com postura crítica, face ao colonizador, ao escravocrata, ao
imperialista. (SIQUEIRA, 4)

águias – encontramos aqui, através da comparação, uma definição do caráter e


perfil psicológico das pessoas que ocupam aquele espaço. Novamente nos valemos do
Aurélio, que nos define as águias como aves “notáveis pelo tamanho, vigor, acuidade de
visão, e capacidade de voo”. A imagem lançada pelo narrador não difere das definições
do Aurélio. A águia faz seu ninho no mais alto, para que de lá, além de proteger os
filhotes dos predadores, tenha uma visão privilegiada do entorno, tanto para defesa 7
quanto para o ataque a presas. É bastante significativa a presença de águias e condores
na poesia romântica. Não apenas em OS ESCRAVOS Castro Alves vai lançar mão dessa
imagem como símbolo de liberdade.

A presença do condor, símbolo da inspiração na última fase romântica, era um


dos meios de concretização para os seus anseios de procura do infinito. Também
a águia e o albatroz aparecem simbolizando o mesmo sentimento de busca das
alturas, uma vez que os românticos não se conformavam com as limitações e os
mistérios que a vida lhes impunha. (HILL, 1978: 35)

No caso dos quilombos a realidade não era diferente, pois eles “viviam nas
florestas, nas matas, nas montanhas e, ao mesmo tempo, em contato com a sociedade
envolvente que as rodeava, as vigiava, controlava e perseguia” (SIQUEIRA, 4). Essa
característica física e geográfica foi fundamental para a longa existência do Quilombo
dos Palmares, localizado no estado de Alagoas.

Algumas das razões por que as Entradas ao Quilombo de Palmares não


conseguiam facilmente destruí-lo eram os caminhos, a falta d´água, o
desconforto dos soldados, elevadas serras, matas espessas, muitos espinhos,
muitos precipícios; tudo concorria para que os soldados, que levavam às costas
a arma, pólvora, balas, capote, farinha, água, peixe, carne e rede para dormir,
enfrentavam dificuldades, além dos rigores do frio entre as montanhas. Isso
tornava quase impossível o acesso ao local do quilombo. (SIQUEIRA, 9)

atrevido – novamente o caráter altivo e ousado do quilombola é exaltado,


reforçando sua luta e defesa dos seus direitos. Atrevido: aquele que se atreve, aquele que
ousa. Atrevido: o negro escravo se atreve a romper com sua condição; aquele que se
nega ser escravo, ser objeto, ferramenta, animal que se compra olhando os dentes.
Atrevido: o que rompe os grilhões e alça voos sem limites de bridão.

Ainda na primeira estrofe (versos 3 e 4), uma saudação é feita qualificando os


moradores daquele quilombo. Aqui, devemos entender o adjetivo bandido não na
definição regular, mas entendendo-o como referência àquele que rompe com uma
condição de submissão a que está obrigado, colocando-se à margem do sistema vigente
escravocrata. Bandido é o que subverte a ordem e cria, a partir de sua organização em
quilombos, uma nova ordem onde impera a liberdade e o bem comum. E isso se
confirma no poema, no verso seguinte em que esse bandido é comparado ao jaguar,
animal que tem como características a força, a agilidade e a beleza. 8

Para encerrar a primeira estrofe, o narrador fala dos palmares (palmeiras) para
nos descrever Palmares (quilombo, primeiro verso da terceira estrofe):

Foram as árvores, principais palmeiras agrestes, que deram ao terreno o nome


de Palmares. Estas palmeiras são tão fecundas para todos os usos da vida
humana, que delas se faz vinho, azeite, sal, roupas; as folhas servem para cobrir
casa; os ramos, para os esteios da cobertura da casa; os frutos servem de
sustento; além de todos os gêneros de ligaduras e amarras. (SIQUEIRA, 8).

As folhas dos palmares rompendo o colúmbios ares, introduzem a ideia de


liberdade que será reafirmada ao longo do poema. Podemos identificar também uma
referência aos índios brasileiros que sofreram com a tentativa de escravização por conta
do colonizador português.

A região dos palmares é cúmplice na luta do quilombo, pois contribui com a


segurança dos negros, alertando-os, através dos ecos estridentes, da aproximação dos
caçadores de escravos fugidos. Os gritos dos capitães-do-mato, os latidos dos cães e o
som estridente das trompas são denunciados de árvore em arvore, de pedra em pedra e
os quilombolas podem se proteger para enfrentar os corvos negros que revoam a região.

Identificamos, aqui, o único momento do poema em que o narrador utiliza a


figura do animal como representação do inimigo. Ele que vinha sempre e continuará
sendo representação da beleza, agilidade, coragem e vigor. É importante observar,
também, que os corvos são negros e revoam o refúgio de negros. O negro é colocado
simultaneamente em dois espaços que se confrontam ideológica e politicamente. Uma
visão dialética do negro escravo que luta por seus direitos e sua liberdade em
contradição com a representação simbólica do corvo – ave tida como agourenta pela
cultura popular –, que também é negro, que quer impedir o negro liberto de garantir sua
liberdade.

Na terceira estrofe, percebemos claramente uma intratextualidade, onde o


narrador opera nítida referência ao poema O NAVIO NEGREIRO, contrapondo de
forma extraordinária as duas situações vividas nos “navios”: no navio negreiro o negro
é transportado para o seu trágico destino de ser cativo e escravo, apartado de sua terra e
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sua gente, tornado objeto e ferramenta de trabalho, o navio é sua prisão, a que o poeta
descreve como quadro de amarguras que transporta tétricas figuras, provocando a visão
de uma cena infame e vil; Palmares que abre a vela ao trovão, é a barca de granito que
recebe o negro liberto do seu cativeiro no porto seguro do seu bojo; ali, o negro
encontra não mais o tinir dos ferros... estalar do açoite..., mas refúgio onde viverá,
mesmo que ameaçado e perseguido, em paz e liberdade.

Palmares não é apenas um espaço físico, estático e frio, é antropomorfizado em


guerreiro que de espada em punho defende aqueles que abriga. Não se contenta em ser
refúgio somente. Do alto de si mesmo ganha voz e em seu discurso libertário, grita para
os que ameaçam aqueles que protege:

Descei de cada horizonte...


Senhores! Eis-me de fronte!

O desafio é lançado, pois sabe sua força, seu poder e sua garra. Não vai se curvar
ante a ameaça. E não para por aí: ironiza, debocha. E o poeta percebe e exalta
O riso de um monte!
E a ironia... de um chacal!

Novamente a zoomorfização: o poeta busca na astúcia do chacal a comparação


com as estratégias montadas pelos negros de Palmares para se defenderem. Local de
difícil acesso (conforme ressaltado anteriormente, p. 7) e organização social.

A quinta estrofe, onde a metalinguagem surge para apoiar e reforçar o discurso


abolicionista, divide-se em duas partes: nos quatro versos iniciais o poeta desafia os
poetas eunucos devassos, vendidos ao mando dos reis, que apenas cantam os
marmóreos paços. Enquanto ele, o poeta dos escravos, busca outros motes e outros
cantares. A mulher surge nesta e nas próximas estrofes como idealização de Palmares.
Suas formas e sua beleza seminua servem de modelo a essa pátria negra que ganha seus
contornos e sua sensualidade. A mulher negra, crioula do seio escuro, é a grande musa
que o inspira. Mas a mulher negra não é apenas amor, é também lutar e vencer e
defender o seu espaço.
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Caçadora – em contraposição ao caçador da segunda estrofe, essa mulher
caçadora seminua é a negra Diana selvagem, mulher de beijo puro e de nobre amor,
não a caçadora por dinheiro ou glória. Caçadora companheira e cúmplice. Caçadora que
também é Amazona guerreira. Mulher e natureza se confundem para cantar a resistência
e a luta.

Torna-se difícil separar, na obra alvesiana, o aspecto lírico do épico, uma vez
que toda ela se constitui do reflexo de uma natureza sensível ao amor, em toda a
sua gama: do amor à mulher ao da natureza e ao do seu semelhante, quando
defende as causas da justiça e da liberdade, pregando igualdade entre os
homens. (HILL, 1978: 34-35)

Finalmente, para encerrar o canto, o poema retoma seus primeiros versos.


Inverte a ordem e conserva o sentido, até mesmo, ampliando-o:

Nos altos cerros erguido Salve! – nos cerros erguido –


Ninho d’águias atrevido. Ninho, onde em sonho atrevido,
Salve! – País do bandido! Dorme o condor... e o bandido!...
Salve! – Pátria do jaguar! A liberdade... e o jaguar!
4 – CONCLUSÃO I

A obra de arte responde ao seu tempo e à sua história, e a história é feita de luta
de classes (MARX, 1998: 135), portanto, a obra de arte está inserida no seio da luta de
classes. Cabe ao artista engajar-se nessa luta.

Na palavra está a manifestação dos sistemas de valores, da ideologia, constituída e em


constituição. Numa sociedade de classes, as práticas lingüísticas estão plenas das
relações de classe. (...) a história está na língua. (BACCEGA, 2007: 32)

Castro Alves e Pagú, embora tão distantes no tempo, no espaço e nas propostas
estéticas, lançaram mão da palavra e dela fizeram instrumento de luta em favor daquilo
que julgavam justo e correto: a defesa dos oprimidos e explorados. Os dois se
comprometeram com a luta de classes, cada um no seu tempo e em seu espaço enfrentou
a burguesia e estabeleceu um discurso que não deixa dúvidas em relação à posição
assumida: Castro, os escravos; Pagú, o proletário.

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Antônio de Castro Alves (1847-1871)

não foi apenas um poeta, foi um figurizador. Enfocando a escravização do


negro, denunciou o estado de sujeição do homem quando escravo de interesses
e circunstâncias: mais aviltante do que a subjugação física é a escravidão das
ideias da qual o homem tem de se livrar. (HILL, 1978: 11)

Patrícia Rehder Galvão (1910-1962)

foi a militante do ideal. Por toda sua vida, colocou-se a serviço de ideias,
ideologias e do progresso cultural, corporificando a noção de engajamento e
envolvimento a um grau máximo. (FERRAZ, 2006: 7)

Romantismo e modernismo, dois discursos distintos tornados próximos por dois


artistas militantes; dois artistas que não aceitaram a ordem das coisas como definitivas;
dois artistas que se indignaram e transformaram o seu discurso em arma e veículo de
conscientização e luta; dois artistas para quem a obra de arte não existe apenas em si,
mas se completa na relação com o outro, se do outro faz objeto de seu discurso para
tornar sua vida menos dura. Parafraseando Bertolt Brecht, acreditaram que “a única
finalidade da [arte] está em aliviar a canseira da existência humana” (1)
(BRECHT,
1991:165). Seu discurso foi o discurso da classe oprimida, pois “todo discurso está
inscrito nas relações ideológicas de classe. (BACCEGA, 2007: 52).

Castro Alves e Pagú assumiram um compromisso com seu tempo e sua história e
fizeram da palavra “a arena privilegiada onde se desenvolve a luta de classes”
(BAKHTIN, 1988: 32), e criaram, ambos, obras, embora distintas em sua forma,
bastante próximas em seu conteúdo, pois trazem a marca da denúncia de uma realidade
social injusta e cruel. E com essa obra lutaram por um tempo melhor.

5 - CONCLUSÃO II

Os quilombos foram o principal espaço de resistência para os escravos fugidos.


Ali se refugiaram, se organizaram e resistiram aos ataques, lutando e morrendo por sua
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liberdade. Ao abandonarem as fazendas nas quais eram submetidos ao cativeiro escravo,
os negros abandonaram, também, aquela relação de trabalho. E, uma vez rompida,
estabeleceram, dentro do quilombo, novas relações de sobrevivência. Surgiram novas
necessidades e uma nova forma de organização foi estabelecida. O rompimento com a
relação senhor/escravo abriu caminho rumo ao comunismo primitivo. A destruição total,
não só do quilombo de Palmares, como também de todos os outros, encerra uma
experiência e com o fim da escravidão esgota-se aquela forma de luta. O negro é jogado
no mundo para enfrentar uma nova condição de vida para a qual não estava preparado.
Agora, transformado em mão de obra barata, já nos primeiros anos do século vinte,
encontra no movimento sindical uma nova forma de organização, e nele se filia, e nele
se organiza.

Quando os trabalhadores se organizam em sindicatos de classe, não abandonam


a relação de exploração - capital/trabalho - a que estão submetidos. Sua organização
visa à união de forças e conscientização para conquista de melhores condições de
trabalho e salário. As conquistas dos operários, através de seu sindicato, são o resultado
de lutas constantes, de acúmulo e aprimoramento político e ideológico. A organização
sindical estabelece-se, portanto, num estágio mais avançado no que diz respeito às
reivindicações e conquistas dos trabalhadores. Através de cursos, palestras, conferências
e, sobretudo, o aprendizado adquirido no calor da luta diária, o trabalhador sindicalizado
aprimora suas condições, não só de trabalho, mas também conquista um aprimoramento
do seu nível cultural, político e ideológico. A luta forja o surgimento de um novo
homem, e este novo homem luta para forjar o surgimento de uma nova sociedade. Sem
exploração.

NOTA
(1)
A frase, que pertence ao personagem Galileu, na peça Vida de Galileu, de Bertolt Brecht, é a seguinte:
“Eu sustento que a única finalidade da ciência está em aliviar a canseira da existência humana”.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALVES, Castro. Os escravos. Belo Horizonte: Editora Vega, 1977.


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AUERBACH, Erich. Mimesis, 2. ed. revisada. São Paulo: Editora Perspectiva, 1976.

BACCEGA, Maria Aparecida. Palavra e discurso – história e literatura. São Paulo: Editora Ática, 2007

BAKHITIN, Mikhail. Questões de literatura e estética. São Paulo: Unesp/Hucitec, 1988.

BRECHT, Bertolt. Teatro completo 6. São Paulo: Paz e Terra, 1991.

FERRAZ, Geraldo Galvão. Apresentação. In: GALVÃO, Patrícia. Parque industrial. Rio de Janeiro: José
Olympio Editora, 2006.

GALVÃO, Patrícia. Parque industrial. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 2006.

HILL, Telenia. Castro Alves e o poema lírico. Brasília: Edições Tempo Brasileiro, 1978.

ENGELS, Friedrich. Sobre o papel do trabalho na transformação do macaco em homem, in MARX, Karl
e ENGELS, Friedrich. Textos I. São Paulo: Edições Sociais Ltda, 1975.

MARX, Karl, ENGELS, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista. Rio de Janeiro: Inverta, 1998

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