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Textualidades Contemporâneas:
O realismo sedutor e sua
configuração na dramaturgia brasileira
Martha Ribeiro1
Resumo
Abstract
In this article we intend to talk about texts and not about plays, in
search for an identication of a certain contemporary textuality,
the Brazilian, its behavior facing what is called post-modernity. If
one of the great modern illusions was to present a theater without
theater in its autonomy and emancipation, what was followed
with post-modernism, was a jump into any kinds of hybridation
and mixed breeds, establishing a more “affective” kind of realism,
a theatricality we call “seductive realism”.
1 Diretora teatral e Professora Adjunta da Universidade Federal Fluminense, IACS - Departamento de Arte. Atuando também no Programa
de Pós-Graduaçao em Estudos Contemporâneos das Artes (PPGCA) da instituição. Com doutorado em Teoria e História Literária pela
Universidade Estadual de Campinas (2008), com período sanduiche na Università di Torino no DAMS. Desde 2008 vem anualmente
realizando pesquisa de campo nas seguintes universidades italianas: Università degli Studi di Torino e Università di Milano, a convite dos
professores Roberto Alonge e Paolo Bosisio respectivamente. Em 2013, a convite de Thomas Richards e Mario Biagini, irá acompanhar,
como observadora, as atividades do Workcenter de Grotowski e Thomas Richards durante o Summer Intensive Program, em Pontedera,
Itália.
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embriagando-se com diferentes suportes, é impossível, pois toda ação sempre estará
com novas combinações, arruinando enm envolvida com a repetição, não sendo pos-
com o projeto moderno de separação das sível a experiência da presença pura, não
artes e da conquista da forma pura, ou de mediada. Mas observa-se que Derrida não
uma essência própria ao teatro, que ao nal vai simplesmente substituir uma estética
do século XIX tanto inspiraram os reforma- da presença por uma estética da ausência, a
dores da cena, de Meyerhold a Artaud. rejeição à ideia de presença pura, instituin-
Essa rejeição à teatralidade se observa do a repetição (e portanto o teatro) é, no
ainda mais intensamente com a prática e projeto de Derrida, um jogo entre ausência
os estudos teóricos ligados a performance, e presença. Esse jogo recusa a estabilidade
mesmo nos anos oitenta, com uma clara da forma, operando na diferença, tratando
rejeição aos aspectos miméticos, discursi- termos como teatro e performance de for-
vos e narrativos do teatro tradicional, pri- ma radicalmente diferente, sugerindo um
vilegiando seu aspecto de evento. Marvin eterno jogo entre esses dois termos: um en-
Carlson no livro “Performance, uma intro- trelugar entre presença e ausência.
dução crítica”, analisa que a despeito de Critica ao sistema de representação,
caracterizar a arte da performance como mas recusa à esterilidade abstrata do mo-
um movimento pós-moderno, seu desen- dernismo; interrupção das estruturas co-
volvimento inicial e suas raízes estavam dicadas da representação, mas uso da
claramente ligadas ao formalismo da arte narrativa; é neste jogo de forças entre essas
moderna, e que “longe de ser um fenôme- duas realidades – códigos teatrais e uxos
no pós-moderno, estava, em sua insistência energéticos da performance – que identi-
na horizontalidade e na abstração, em dé- camos em Hirsch e Stoklos o realismo se-
bito profundo para com todo o movimen- dutor.
to de arte moderno” (Carlson apud Mehta, Interromper não é mesma coisa que
2010, p.145). Carlson continua sua análise destruir, ou fazer desaparecer; interromper
observando que a ênfase na presença, na é parar momentaneamente o progresso de
imanência, instituída pela abordagem fe- algo, é a pausa. E a pausa é a crítica, aqui-
nomenológica da performance, que procu- lo que deriva de algo, que perturba certa
rava transcender a história, torna-se pro- ordem anterior. E a perturbação só é pos-
blemática com o pós-estruturalismo, que sível porque a pausa, que é uma incisão,
vai aceitar a relação contingente e de cho- opera pela descontinuidade, rompendo
que entre a arte e o mundo. O que está em com a forma e instituindo a diferença. Se
jogo é a suspeita de que toda forma de pre- não é possível purgar a arte do “teatral”,
sença é já uma representação, ou seja, pre- promovendo experiências não contami-
senticação de uma ausência: “A presença, nadas, na ideia de interrupção, como dirá
para ser presença e presença a si, começou Lehmann, “os vários elementos, agora dis-
já sempre a representar-se” (Derrida, 1971, sociados, podem ser construídos de outra
p.174). maneira” (2008, p. 239). E é neste sentido
Derrida, em seus dois ensaios funda- que compreendemos a interrupção, como
mentais, “A palavra soprada” e “O teatro desconstrução dos códigos, das estruturas
da crueldade e o fechamento da representa- e do modo de fazer do dramático, uma não
ção”, vai refutar a ideia de teatro de Artaud, submissão à lógica representativa, sem, no
entendendo sua potência revolucionária, entanto, instituir a utopia de uma pureza
mas rejeitando sua tentativa de escapar à antirepresentativa. Interromper não é rom-
representação, na busca de um sentido ori- per denitivamente, é a pausa crítica para
ginal, não contaminado: “Artaud desejou reinterpretar, rearranjar, desobrigando a
também a impossibilidade do teatro, quis arte teatral de toda e qualquer regra, de
apagar ele próprio o palco” (Derrida, 1971, toda especialidade, instituindo a diferença
p.175) Derrida vai dizer que essa tentativa na embriaguez de diferentes textualidades.
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Théâtre du Soleil, no Grupo Ocina de Zé tomando como exemplo estas duas expe-
Celso, no teatro performativo de Robert riências cênicas, é a presença de uma nar-
Lepage, em alguns espetáculos de Felipe rativa sedutoramente desviante da lógica
Hirsch e nos últimos trabalhos de Denise representativa, mas que não nega sua po-
Stoklos; menos preocupados com o para- tência em criar a ilusão, ao contrário, que
digma modernista do que com a mistura se estabelece entre o real e o artifício, entre
de gêneros e de suporte, estas experiências o fantástico e o crível. Percebe-se, o registro
cênicas propõem uma concepção de arte de uma teatralidade consciente, que tanto
que busca diluir as fronteiras entre o tea- se afasta do cânone teatral (diálogos, per-
tro e a performance, valem-se de recursos sonagens, conito), para se deixar conta-
performativos, mas não veem problema al- minar pelos gestos de autorrepresentação
gum em usar da narrativa ou do testemu- do performer, como, ao mesmo tempo,
nho autobiográco, tornando a experiência realiza uma cena que coloca em jogo essa
cênica reconhecível. “presença real” no uso de procedimentos
Reetindo sobre os caminhos da cena artísticos, operando sedutoramente o real.
brasileira contemporânea, onde neste ar- Tal é o caso das duas peças aqui citadas.
tigo usamos como exemplo os espetácu- São espetáculos completamente diferentes,
los “Preferiria não?” e “Trilhas sonoras de mas que se aliam no sentido de relacionar,
amor perdidas”, respectivamente de De- em sua escritura, procedimentos teatrais e
nise Stoklos [DS] e de Felipe Hirsch [FH], de performance.
observa-se um retorno à narrativa, de reva- No caso de “Preferiria não?”, o texto
lorização da experiência vivencial, íntima, narrativo é interpretado e dirigido pela
da vida ordinária. Ambos os espetáculos atriz e performer Denise Stoklos, a partir
desenvolvem um tipo de realismo que não de sua adaptação do conto “Bartleby, o
é da ordem da semelhança, subvertendo Escriturário” do escritor norte-americano
as hierarquias do sistema representativo, Herman Melville. Neste espetáculo obser-
provocando desvios entre o real e o ccio- va-se que o impacto do real, a própria pre-
nal, entre o ordinário e o extraordinário. Os sença da performer, é atenuado por uma
textos, que mais parecem um “testemunho forte teatralidade, que mesclando aspectos
biográco”, mesclam as palavras à música, ccionais do conto a testemunhos biográ-
no caso de FH, e as palavras aos gestos, no cos da artista, embaralha ambos numa
caso da narrativa de DS, de tal forma que escritura que dá ao real um aspecto mais
seria impossível dissocia-los, separando o sedutor, na medida em que o desvia de
texto de sua representação cênica. Como sua identidade para destiná-lo ao jogo das
observa Josette Féral, a proposito do tex- estruturas simbólicas do teatro. Já no caso
to performativo, “se trata de un texto que do espetáculo “Trilhas sonoras de amor
muy a menudo no tiene autonomia pro- perdidas”, dirigido por Felipe Hirsch, com
pia, y cuyo sentido fraccionado raramente criação da Sutil Companhia2, observa-se
constituye una totalidade en sí. No tiene uma intensicação do real, a partir da in-
sentido sino atrapado en la red múltiple de tensicação da palavra e da presença física
los diferentes sistemas escénicos” (Féral, do ator, Guilherme Weber, que permanece
2004, p. 109). em cena três horas, ouvindo e discursan-
Esta demanda por uma expressão esté- do sobre trilhas sonoras dos anos 80 e 90.
tica do cotidiano privado, além de ser uma O texto, também narrativo, não se propõe
reação ao ceticismo moderno, que como já a estabelecer uma situação dramática ipsis
descrito isolava (ou acreditava isolar) o fato litteris, o que se passa no palco é uma cena
teatral de seu contexto mais amplo - histó- construída a partir de uma situação que se
rico, social, cultural e existencial -, coloca
em questão as relações estabelecidas entre 2 O espetáculo foi o resultado de um processo de pesquisa sobre as histórias de Thurs-
ton Moore, Kim Gordon, Lee Ranaldo, Steve Shelley, Dean Wareham, Dan Graham,
o real e o artifício. O que defendemos aqui, John Zorn, Jim O` Rourke, Elizabeth Peyton, Arthur Jones, Jason Bitner, Rob Shefeld,
Raymond Pettitbon, Greil Marcus, David Shields, Lou Reed, Giles Smith, entre outras.
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repete exaustivamente sobre ela mesma, de Stoklos, que o apresenta a partir do es-
mesclando palavras com músicas que estão tranhamento provocado pela inesperada
afetivamente ligadas à vida do interprete. negação de sua rotina diária. Se antes era
À diferença do espetáculo de DS, “Trilhas invisível, a partir do estranhamento pro-
sonoras de amores perdidos” não se pro- vocado pelo seu “preferiria não”, Bartle-
põe a atenuar o real, e sim a intensicá-lo, by ganha uma existência ccional onde é
usando da teatralidade, para sublinhar o possível especular algo sobre ele, isto é, ele
que o real tem de obsessivo, repetitivo, ver- ganha a possibilidade de ter uma história,
borrágico e instantâneo. O real é também que pode ser inventada ou não, não impor-
aqui desviado pelo jogo instável entre te- ta. O que é importante é que Bartleby para
atralidade e performatividade, alcançando sair do anonimato e da invisibilidade, pre-
essa dimensão sedutora que nos instiga a cisa ser construído, ccionalizado, pois só
pensar o contemporâneo. teatralizado, representado, é que Bartleby
Levando em conta o pressuposto de pode existir em cena, ter uma realidade, e
que ambos os espetáculos, em suas dife- nos causar algum efeito.
rentes textualidades, nos ajudam a com- O que se intensica na construção da
preender aquilo que denominamos como narrativa por Stoklos é a própria cciona-
realismo sedutor, que, por sua vez, é enten- lização de Bartleby que se confunde com
dido aqui como uma possível tendência de os gestos autorrepresentativos de seu nar-
teatralidade observada nas práticas cênicas rador. Trata-se em primeiro lugar da apre-
contemporâneas; nestes dois exemplos des- sentação e constituição do personagem no
tacados do teatro brasileiro, nos cabe ain- palco, na cena, por meio dos gestos e do
da descrever o modo como cada um deles discurso reexivo e autorreexivo da per-
opera em simultaneidade o real e o artifí- former, que se apresenta ao mesmo tempo
cio. Isto é, na interrupção do modo de pro- como autor, ator, performer, espectador
dução do dramático, esses dois espetáculos e encenador. O texto apresentado por DS
operam um tratamento crítico ou estético não é uma peça e sim um texto no sentido
do real, que os desviam da lógica represen- que destacamos neste artigo: “Preferiria
tacional, sem darem as costas à ilusão, ao não?” se conforma no ato consciente do
mistério, ao teatro, embriagando-se com performer que opera o real produzindo ou-
elementos de performatividade. Ambos tra realidade – um espaço de teatralidade;
os espetáculos se situam longe da negação ou como quer Pavis, postulando um trata-
obsessiva da representação, do discurso ou mento estético sobre o real; sem esquecer
da narrativa, ainda que estejam embriaga- que a operação realizada por DS não se
dos pelos gestos de autorrepresentação do quer prisioneira de uma estrutura narrati-
performer. va e representacional, pois seu texto realiza
Em “Preferiria não?”, a performer um jogo entre as estruturas de ccionaliza-
Stoklos se põe a tarefa de narrar um epi- ção e os uxos energéticos – vocais e ges-
sódio da vida de uma gura anônima e tuais – do ato performativo. Bartleby não é
insignicante, o escriturário Bartleby, um um personagem e DS não é a interprete de
homem-fantasma sem grandes ambições uma peça teatral, ambos se confundem e se
ou conitos existências. Não se pode dizer mesclam numa perspectiva sedutora que
que há uma situação dramática, o único nos impede de traçar uma nítida separa-
motor da narrativa é a inusitada resposta ção entre teatralidade e performatividade,
negativa do homenzinho à tarefa diária entre cção e movimentos autobiográcos
de copiar: “preferiria não”, diz o homen- performativos, conformando aquilo que
zinho sem maiores explicações. A simples denominamos conceitualmente como rea-
recusa da tarefa por Bartleby muda a rea- lismo sedutor.
lidade desta gura insignicante, que ga- Em “Trilhas sonoras de amor perdi-
nha importância dramática na narrativa das”, que está bem mais próxima de uma
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REFERÊNCIAS
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PAVIS, Patrice. “La théâtralité en Avignon”. In_ Voix et images de la scène. Vers une théorie
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TASSINARI, Alberto. O Espaço moderno. São Paulo: Cosac & Naify editores, 2001.
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