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N° 20 | Setembro de 2013 U rdimento

Textualidades Contemporâneas:
O realismo sedutor e sua
configuração na dramaturgia brasileira
Martha Ribeiro1

Resumo

Neste artigo trataremos de falar de textos e não de peças, buscando


identicar em certas textualidades contemporâneas, neste caso a
brasileira, seu comportamento diante daquilo que se nomeia como
pós-moderno. Se uma das grandes ilusões modernas foi apresentar
o teatro sem o teatro, em sua autonomia e emancipação, o que
se seguiu, com o pós-moderno, foi o mergulho em todo tipo de
hibridações e mestiçagem instituindo um tipo de realismo mais
“afetivo”; uma teatralidade que denominamos “realismo sedutor”.

Palavras-chave: Textualidades brasileiras;


Teatro Pós-Moderno; Realismo sedutor

Abstract

In this article we intend to talk about texts and not about plays, in
search for an identication of a certain contemporary textuality,
the Brazilian, its behavior facing what is called post-modernity. If
one of the great modern illusions was to present a theater without
theater in its autonomy and emancipation, what was followed
with post-modernism, was a jump into any kinds of hybridation
and mixed breeds, establishing a more “affective” kind of realism,
a theatricality we call “seductive realism”.

Key-words: Brazilian textualities; Post-Modern


Theater; Seductive Realism

1 Diretora teatral e Professora Adjunta da Universidade Federal Fluminense, IACS - Departamento de Arte. Atuando também no Programa
de Pós-Graduaçao em Estudos Contemporâneos das Artes (PPGCA) da instituição. Com doutorado em Teoria e História Literária pela
Universidade Estadual de Campinas (2008), com período sanduiche na Università di Torino no DAMS. Desde 2008 vem anualmente
realizando pesquisa de campo nas seguintes universidades italianas: Università degli Studi di Torino e Università di Milano, a convite dos
professores Roberto Alonge e Paolo Bosisio respectivamente. Em 2013, a convite de Thomas Richards e Mario Biagini, irá acompanhar,
como observadora, as atividades do Workcenter de Grotowski e Thomas Richards durante o Summer Intensive Program, em Pontedera,
Itália.

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Que as palavras deixem de fazer “texto”... cam a impossibilidade de uma denição


unívoca do termo, que se presta muito bem
Gilles Deleuze a descrever de forma pragmática diferen-
Um manifesto de menos, 1978 tes aspectos do teatro contemporâneo hoje.
Neste sentido, enquanto um conceito ope-
Em seu “Manifesto de menos”, Deleu- ratório, teatralidade indica a negação de
ze se debruça sobre a obra teatral de Car- uma teatralidade em si, mas também insti-
melo Bene (1937-2002), ator, dramaturgo, tui sua presença tangível, onipresente, em
cineasta e encenador italiano, para dali ex- diferentes espetáculos. Neste ponto, Pavis
trair alguns princípios, notadamente na via faz uma restrição do termo no que tange
de interrupção da representação, que irão as experiências de “performances cultu-
particularmente nos interessar neste ensaio rais”, opondo a esta teatralidade da vida
que tem por objetivo reetir sobre certas cotidiana a teatralidade de procedimentos
tendências na dramaturgia nacional (brasi- artísticos. Tomando partido do conceito
leira) em seu confronto com o pós-moderno. de “teatralidade de efeitos e de procedi-
Não se trata aqui de realizar uma antologia mentos artísticos” de Pavis, iremos anali-
de obras de dramaturgia, selecionadas por sar duas experiências cênicas brasileiras, a
algum dispositivo de poder, separando au- peça radiofônica “Trilhas sonoras de amor
tores e produções, bem ou mal sucedidas, perdidas” da Sutil Companhia, com dire-
ao contrário. Nossa intenção é escapar do ção de Felipe Hirsch e “Preferiria não?” de
posicionamento histórico-ideológico de se- Denise Stoklos; espetáculos completamen-
leção, que rearma as estruturas de um te- te distintos no uso da teatralidade, mas que
atro consolidado, ocialmente constituído, realizam sua experiência cênica a partir de
ou da moda, para investigar certas textuali- “um modo estético no tratamento do real”,
dades apresentadas em certas cenas mais isto é, a partir de critérios estéticos que dis-
atuais do teatro brasileiro que corrobora tinguem seus procedimentos da vida coti-
com nosso pensamento a propósito de um diana, sem, no entanto, romper com a rea-
realismo sedutor (estado que identicamos lidade que se conhece, criando uma zona
na arte teatral contemporânea enquanto intermediária, um espaço de passagem
resposta ao projeto moderno mais radical para duas diferentes congurações, o real e
de emancipação da arte). Sem negar o real, o imaginário. Esse tipo de tratamento dado
e sem ser seu contrário, essa nova cena se à cena, denominamos Realismo Sedutor.
institui colocando o real em jogo; e o jogo é Tratemos primeiro de compreender o
um dos domínios da sedução. que identicamos como “textualidades”,
Em seu artigo “La théâtralité en Avig- ou mais resumidamente, “texto”, confron-
non” (1998), Patrice Pavis revisita o con- tado com a ideia de peça. E aqui entra uma
ceito de teatralidade em seu “Dicionário provocação com a citação em epígrafe,
de Teatro” (1996), questionando o termo pois, ao contrário do que poderia parecer
na sua designação genérica de uma “es- a uma leitura desatenta, entendemos que
pecicidade” meio mística do teatro. A o pensamento de Deleuze dialoga com o
pluralidade de experiências, de teatralida- nosso, na exata medida em que nossos es-
des, observadas em Avignon, fez o teórico forços se direcionam ao entendimento do
concluir que o termo, afastado de seu uso texto contemporâneo como um texto que
abstrato, permite, a partir de um método subtrai de seu organismo a hierarquia da
de análise que privilegie procedimentos literalidade dramática (internalizada no
cênicos, diagnosticar diferentes exemplos conceito de peça teatral). Propondo, na sua
de teatralidade segundo o uso material das conformação, o uso de diferentes textos,
textualidades espetaculares (corpo, espaço, que podem ser corporais, midiáticos, visu-
texto, visualidade). As muitas denições ais, documentais, biográcos, etc., a textua-
de teatralidade elencadas por Pavis indi- lidade contemporânea em seu viés sedutor

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não se quer representativa de um real uní- em detrimento da ideia de peça, produto e


voco, não se quer prisioneira de uma lógi- modo de fazer especíco da arte dramáti-
ca representativa, mas também não se quer ca, corresponde a uma mudança de para-
abismada do real, negando a representação digma nas artes da cena, como identicado
para fundar um “próprio da arte”. Proble- por Hans Thies-Lehmann em seu “Teatro
matizando a relação do teatro com o real, pós-dramático” (2007), que também signi-
estabelecendo uma relação que não proce- ca uma mudança de regime da arte, como
de nem por transparência, de adequação a identicado por Rancière em “A partilha
uma referência unívoca, e nem por opaci- do sensível”: se no regime representativo,
dade total, de não-referencialidade a algo a arte estava sujeita a critérios poéticos e de
externo a ela, mas de jogo, o texto que nos fabricação que deniam a imitação, no re-
interessa discutir aqui se realiza nas cama- gime estético o que dene a arte não será o
das do entre: entre a linguagem e o mundo, seu modo de fazer, sua especicidade, mas
entre o ccional e o real. o modo de ser sensível.
Como alerta Josette Féral em seu “Tea-
tro, teoria y práctica: más allá de las fron- O regime estético das artes é aquele
teras” (2004), falar da relação do teatro que propriamente identifica a arte no
com o real pode parecer problemático, na singular e desobriga essa arte de toda
e qualquer regra específica, de toda
medida em que insinua a existência de um
hierarquia de temas, gêneros e artes.
real unívoco, cognoscível e portanto repre- Mas, ao fazê-lo, ele implode a barrei-
sentável, no entanto, desde os três mestres ra mimética que distinguia as manei-
da suspeita – Marx, Freud, Nietzsche – en- ras de fazer arte das outras maneiras
tende-se que o real é, ele mesmo, o resul- de fazer e separava suas regras da or-
tado de uma observação problemática, de dem das ocupações sociais. Ele afir-
uma construção, e de que sempre haverá ma a absoluta singularidade da arte e
um resto que nos escapa, pois, o real, já se- destrói ao mesmo tempo todo critério
ria, ele mesmo, uma representação; o que pragmático dessa singularidade. Fun-
não signica que compartilhamos a tese da, a uma só vez, a autonomia da arte
e a identidade de suas formas com as
da “morte” do sujeito, ao contrário, o su-
formas pelas quais a vida se forma a
jeito em seu confronto com o mundo, não si mesma (Rancière, 2009, p. 33-34).
é senhor do sentido, mas também não está
ausente desse mundo, a representação c- Esse estado de interrupção da repre-
cional, como a representação histórica, dirá sentação, no sentido paradigmático da
Rancière, constroem “cções”, isto é, “rear- equação teatro=drama, construção linear
ranjos materiais dos signos e das imagens, da fábula “pela necessidade e verossimi-
das relações entre o que se vê e o que se diz, lhança”, não signica, conforme atestado
entre o que se faz e o que se pode fazer”, e por Rancière, o abandono do realismo (-
acrescenta: “O real precisa ser ccionado gurativo), ao contrário, mas também não
para ser pensado” (2009, p. 58-59). Corro- signica a “valorização da semelhança,
borando com essa ideia, destaca Tassinari: mas a destruição dos limites dentro dos
“A obra não imita uma visão nem imita em quais ela funcionava” (2009: 35). Todas as
conformidade com uma visão, mas se co- hierarquias do sistema representativo, em
munica com o espectador numa espécie de sua organização de pares opositivos (co-
face a face que tem no mundo em comum o média/tragédia; alto/baixo; drama/épi-
seu solo e sua garantia. O que por sua vez, co; antigo/moderno), serão subvertidas,
não abole a subjetividade do espectador. interrompidas, suprimidas, com o objetivo
Sem ela não há obra, porque não haveria de reinterpretar, de escavar, de fazer uma
destino da obra” (2001, p.148). releitura do passado, imprimindo uma re-
A ideia de textualidades como indicati- lação muito mais branda com as heranças
vo de um processo construtivo de sentido, clássicas, misturando as artes, os gêneros,

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embriagando-se com diferentes suportes, é impossível, pois toda ação sempre estará
com novas combinações, arruinando enm envolvida com a repetição, não sendo pos-
com o projeto moderno de separação das sível a experiência da presença pura, não
artes e da conquista da forma pura, ou de mediada. Mas observa-se que Derrida não
uma essência própria ao teatro, que ao nal vai simplesmente substituir uma estética
do século XIX tanto inspiraram os reforma- da presença por uma estética da ausência, a
dores da cena, de Meyerhold a Artaud. rejeição à ideia de presença pura, instituin-
Essa rejeição à teatralidade se observa do a repetição (e portanto o teatro) é, no
ainda mais intensamente com a prática e projeto de Derrida, um jogo entre ausência
os estudos teóricos ligados a performance, e presença. Esse jogo recusa a estabilidade
mesmo nos anos oitenta, com uma clara da forma, operando na diferença, tratando
rejeição aos aspectos miméticos, discursi- termos como teatro e performance de for-
vos e narrativos do teatro tradicional, pri- ma radicalmente diferente, sugerindo um
vilegiando seu aspecto de evento. Marvin eterno jogo entre esses dois termos: um en-
Carlson no livro “Performance, uma intro- trelugar entre presença e ausência.
dução crítica”, analisa que a despeito de Critica ao sistema de representação,
caracterizar a arte da performance como mas recusa à esterilidade abstrata do mo-
um movimento pós-moderno, seu desen- dernismo; interrupção das estruturas co-
volvimento inicial e suas raízes estavam dicadas da representação, mas uso da
claramente ligadas ao formalismo da arte narrativa; é neste jogo de forças entre essas
moderna, e que “longe de ser um fenôme- duas realidades – códigos teatrais e uxos
no pós-moderno, estava, em sua insistência energéticos da performance – que identi-
na horizontalidade e na abstração, em dé- camos em Hirsch e Stoklos o realismo se-
bito profundo para com todo o movimen- dutor.
to de arte moderno” (Carlson apud Mehta, Interromper não é mesma coisa que
2010, p.145). Carlson continua sua análise destruir, ou fazer desaparecer; interromper
observando que a ênfase na presença, na é parar momentaneamente o progresso de
imanência, instituída pela abordagem fe- algo, é a pausa. E a pausa é a crítica, aqui-
nomenológica da performance, que procu- lo que deriva de algo, que perturba certa
rava transcender a história, torna-se pro- ordem anterior. E a perturbação só é pos-
blemática com o pós-estruturalismo, que sível porque a pausa, que é uma incisão,
vai aceitar a relação contingente e de cho- opera pela descontinuidade, rompendo
que entre a arte e o mundo. O que está em com a forma e instituindo a diferença. Se
jogo é a suspeita de que toda forma de pre- não é possível purgar a arte do “teatral”,
sença é já uma representação, ou seja, pre- promovendo experiências não contami-
senticação de uma ausência: “A presença, nadas, na ideia de interrupção, como dirá
para ser presença e presença a si, começou Lehmann, “os vários elementos, agora dis-
já sempre a representar-se” (Derrida, 1971, sociados, podem ser construídos de outra
p.174). maneira” (2008, p. 239). E é neste sentido
Derrida, em seus dois ensaios funda- que compreendemos a interrupção, como
mentais, “A palavra soprada” e “O teatro desconstrução dos códigos, das estruturas
da crueldade e o fechamento da representa- e do modo de fazer do dramático, uma não
ção”, vai refutar a ideia de teatro de Artaud, submissão à lógica representativa, sem, no
entendendo sua potência revolucionária, entanto, instituir a utopia de uma pureza
mas rejeitando sua tentativa de escapar à antirepresentativa. Interromper não é rom-
representação, na busca de um sentido ori- per denitivamente, é a pausa crítica para
ginal, não contaminado: “Artaud desejou reinterpretar, rearranjar, desobrigando a
também a impossibilidade do teatro, quis arte teatral de toda e qualquer regra, de
apagar ele próprio o palco” (Derrida, 1971, toda especialidade, instituindo a diferença
p.175) Derrida vai dizer que essa tentativa na embriaguez de diferentes textualidades.

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A análise da interrupção no trabalho observa Deleuze, substituindo a represen-


de Carmelo Bene, por Deleuze, aponta na tação do conito (pois como bem observa
direção da produção de algo novo, a partir o lósofo, todo conito já está normalizado
da repetição e não da representação – insis- e codicado, como um produto), não é um
te o lósofo -, a partir de certas operações psicodrama, ou um teatro esteta, abstrato,
de subtração e de amputação executadas ou místico, o projeto de Bene é escapar do
pelo homem de teatro Bene em peças ori- padrão majoritário, isto é, da representa-
ginais. Na leitura de Deleuze o teatro de ção-padrão, do modelo, constituindo “uma
Carmelo Bene não é um teatro da repre- gura da consciência minoritária”, isto é,
sentação, e sim um teatro da repetição, isto “desde que a minoria não represente nada
é, da transgressão, de reversão da maneira de regionalista; mas também nada de aris-
de fazer, que se institui contra a lei: “Se CB tocrático, de abstrato, nem de místico” (De-
[Carmelo Bene] tem frequentemente neces- leuze, 2010, p. 64). Isto é, guras que a his-
sidade de uma peça originária, não é para tória não levou em conta.
fazer dela uma paródia, seguindo a moda, Essa interrupção da estrutura formal
nem para acrescentar literatura à literatura. do drama estabelece um novo regime das
Pelo contrário, é para subtrair a literatura, artes, como identicado por Rancière em
por exemplo subtrair o texto, uma parte do seu “A partilha do sensível”, o regime esté-
texto, e ver o que acontece” (Deleuze, 2010: tico, onde não é mais possível falar da arte
29). Na peça “um Hamlet de menos”, Car- enquanto ordenadora de ações, devedora
melo Bene irá subtrair Romeu, construindo de uma racionalidade dramática. Desobri-
uma nova peça, onde Mercúcio se torna o gada de toda doutrina, inclusive do radica-
protagonista. O que se assiste no palco é a lismo antimimético dos arautos da moder-
construção deste personagem que na peça nidade artística, mas destituindo as regras
de Shakespeare morre cedo. No caso de de funcionamento das hierarquias da re-
Bene, toda a peça é a constituição (fabrica- presentação, ela nega qualquer ideia de
ção) deste personagem, “a peça acaba com unicidade ou de pureza, preferindo os en-
a constituição do personagem, ela só tem trelaçamentos textuais: “a noção de moder-
como objeto o processo dessa constituição nidade parece, assim, como inventada de
[...] Ela para com o nascimento [do perso- propósito para confundir a inteligência das
nagem], enquanto habitualmente é na mor- transformações da arte e de suas relações
te que se para”. (2009, p. 31). com as outras esferas da experiência cole-
O que gostaríamos de chamar atenção tiva” (Rancière, 2009, p. 37). Desta feita, a
neste ponto, na abordagem deleuziana so- arte teatral, no regime estético, será enten-
bre a obra de Bene, é que nas operações de dida aqui enquanto combinação entre per-
amputação em suas peças [“um Hamlet formatividade e teatralidade. Ao mesmo
de menos”, “S.A.D.E.”; “Ricardo III”], o tempo autônoma e heterônoma, ela realiza
artista CB, nos três casos, irá proceder por sua autonomia a partir de uma experiên-
interrupção da própria forma dramática, cia de heteronomia, de relação entre pro-
se afastando do sistema representacional cedimentos teatrais e de performance, ela é
normativo. Ao interromper com o domínio arte e também não-arte; ao mesmo tempo
de uma prática organizativa de produção, em que realiza uma cisão, uma interrupção
ele renega a ideia de estrutura dramáti- na estrutura representacional, em provei-
ca, de representação da forma instituída, to do instantâneo e da ação real, isto é, da
constituindo uma nova potencia teatral performatividade, ela não irá abandonar
(identicada por Deleuze como não-repre- procedimentos de teatralidade - uma certa
sentativa). É importante dizer que no tea- “artisticidade” que a torna distinta da vida
tro de Bene não há diálogos, ou conitos, cotidiana.
são vozes simultâneas que se sobrepõe no Aqui se pode pensar no Living The-
palco; o que o artista propõe em seu lugar, atre, na dança teatro de Pina Bausch, no

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Théâtre du Soleil, no Grupo Ocina de Zé tomando como exemplo estas duas expe-
Celso, no teatro performativo de Robert riências cênicas, é a presença de uma nar-
Lepage, em alguns espetáculos de Felipe rativa sedutoramente desviante da lógica
Hirsch e nos últimos trabalhos de Denise representativa, mas que não nega sua po-
Stoklos; menos preocupados com o para- tência em criar a ilusão, ao contrário, que
digma modernista do que com a mistura se estabelece entre o real e o artifício, entre
de gêneros e de suporte, estas experiências o fantástico e o crível. Percebe-se, o registro
cênicas propõem uma concepção de arte de uma teatralidade consciente, que tanto
que busca diluir as fronteiras entre o tea- se afasta do cânone teatral (diálogos, per-
tro e a performance, valem-se de recursos sonagens, conito), para se deixar conta-
performativos, mas não veem problema al- minar pelos gestos de autorrepresentação
gum em usar da narrativa ou do testemu- do performer, como, ao mesmo tempo,
nho autobiográco, tornando a experiência realiza uma cena que coloca em jogo essa
cênica reconhecível. “presença real” no uso de procedimentos
Reetindo sobre os caminhos da cena artísticos, operando sedutoramente o real.
brasileira contemporânea, onde neste ar- Tal é o caso das duas peças aqui citadas.
tigo usamos como exemplo os espetácu- São espetáculos completamente diferentes,
los “Preferiria não?” e “Trilhas sonoras de mas que se aliam no sentido de relacionar,
amor perdidas”, respectivamente de De- em sua escritura, procedimentos teatrais e
nise Stoklos [DS] e de Felipe Hirsch [FH], de performance.
observa-se um retorno à narrativa, de reva- No caso de “Preferiria não?”, o texto
lorização da experiência vivencial, íntima, narrativo é interpretado e dirigido pela
da vida ordinária. Ambos os espetáculos atriz e performer Denise Stoklos, a partir
desenvolvem um tipo de realismo que não de sua adaptação do conto “Bartleby, o
é da ordem da semelhança, subvertendo Escriturário” do escritor norte-americano
as hierarquias do sistema representativo, Herman Melville. Neste espetáculo obser-
provocando desvios entre o real e o ccio- va-se que o impacto do real, a própria pre-
nal, entre o ordinário e o extraordinário. Os sença da performer, é atenuado por uma
textos, que mais parecem um “testemunho forte teatralidade, que mesclando aspectos
biográco”, mesclam as palavras à música, ccionais do conto a testemunhos biográ-
no caso de FH, e as palavras aos gestos, no cos da artista, embaralha ambos numa
caso da narrativa de DS, de tal forma que escritura que dá ao real um aspecto mais
seria impossível dissocia-los, separando o sedutor, na medida em que o desvia de
texto de sua representação cênica. Como sua identidade para destiná-lo ao jogo das
observa Josette Féral, a proposito do tex- estruturas simbólicas do teatro. Já no caso
to performativo, “se trata de un texto que do espetáculo “Trilhas sonoras de amor
muy a menudo no tiene autonomia pro- perdidas”, dirigido por Felipe Hirsch, com
pia, y cuyo sentido fraccionado raramente criação da Sutil Companhia2, observa-se
constituye una totalidade en sí. No tiene uma intensicação do real, a partir da in-
sentido sino atrapado en la red múltiple de tensicação da palavra e da presença física
los diferentes sistemas escénicos” (Féral, do ator, Guilherme Weber, que permanece
2004, p. 109). em cena três horas, ouvindo e discursan-
Esta demanda por uma expressão esté- do sobre trilhas sonoras dos anos 80 e 90.
tica do cotidiano privado, além de ser uma O texto, também narrativo, não se propõe
reação ao ceticismo moderno, que como já a estabelecer uma situação dramática ipsis
descrito isolava (ou acreditava isolar) o fato litteris, o que se passa no palco é uma cena
teatral de seu contexto mais amplo - histó- construída a partir de uma situação que se
rico, social, cultural e existencial -, coloca
em questão as relações estabelecidas entre 2 O espetáculo foi o resultado de um processo de pesquisa sobre as histórias de Thurs-
ton Moore, Kim Gordon, Lee Ranaldo, Steve Shelley, Dean Wareham, Dan Graham,
o real e o artifício. O que defendemos aqui, John Zorn, Jim O` Rourke, Elizabeth Peyton, Arthur Jones, Jason Bitner, Rob Shefeld,
Raymond Pettitbon, Greil Marcus, David Shields, Lou Reed, Giles Smith, entre outras.

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repete exaustivamente sobre ela mesma, de Stoklos, que o apresenta a partir do es-
mesclando palavras com músicas que estão tranhamento provocado pela inesperada
afetivamente ligadas à vida do interprete. negação de sua rotina diária. Se antes era
À diferença do espetáculo de DS, “Trilhas invisível, a partir do estranhamento pro-
sonoras de amores perdidos” não se pro- vocado pelo seu “preferiria não”, Bartle-
põe a atenuar o real, e sim a intensicá-lo, by ganha uma existência ccional onde é
usando da teatralidade, para sublinhar o possível especular algo sobre ele, isto é, ele
que o real tem de obsessivo, repetitivo, ver- ganha a possibilidade de ter uma história,
borrágico e instantâneo. O real é também que pode ser inventada ou não, não impor-
aqui desviado pelo jogo instável entre te- ta. O que é importante é que Bartleby para
atralidade e performatividade, alcançando sair do anonimato e da invisibilidade, pre-
essa dimensão sedutora que nos instiga a cisa ser construído, ccionalizado, pois só
pensar o contemporâneo. teatralizado, representado, é que Bartleby
Levando em conta o pressuposto de pode existir em cena, ter uma realidade, e
que ambos os espetáculos, em suas dife- nos causar algum efeito.
rentes textualidades, nos ajudam a com- O que se intensica na construção da
preender aquilo que denominamos como narrativa por Stoklos é a própria cciona-
realismo sedutor, que, por sua vez, é enten- lização de Bartleby que se confunde com
dido aqui como uma possível tendência de os gestos autorrepresentativos de seu nar-
teatralidade observada nas práticas cênicas rador. Trata-se em primeiro lugar da apre-
contemporâneas; nestes dois exemplos des- sentação e constituição do personagem no
tacados do teatro brasileiro, nos cabe ain- palco, na cena, por meio dos gestos e do
da descrever o modo como cada um deles discurso reexivo e autorreexivo da per-
opera em simultaneidade o real e o artifí- former, que se apresenta ao mesmo tempo
cio. Isto é, na interrupção do modo de pro- como autor, ator, performer, espectador
dução do dramático, esses dois espetáculos e encenador. O texto apresentado por DS
operam um tratamento crítico ou estético não é uma peça e sim um texto no sentido
do real, que os desviam da lógica represen- que destacamos neste artigo: “Preferiria
tacional, sem darem as costas à ilusão, ao não?” se conforma no ato consciente do
mistério, ao teatro, embriagando-se com performer que opera o real produzindo ou-
elementos de performatividade. Ambos tra realidade – um espaço de teatralidade;
os espetáculos se situam longe da negação ou como quer Pavis, postulando um trata-
obsessiva da representação, do discurso ou mento estético sobre o real; sem esquecer
da narrativa, ainda que estejam embriaga- que a operação realizada por DS não se
dos pelos gestos de autorrepresentação do quer prisioneira de uma estrutura narrati-
performer. va e representacional, pois seu texto realiza
Em “Preferiria não?”, a performer um jogo entre as estruturas de ccionaliza-
Stoklos se põe a tarefa de narrar um epi- ção e os uxos energéticos – vocais e ges-
sódio da vida de uma gura anônima e tuais – do ato performativo. Bartleby não é
insignicante, o escriturário Bartleby, um um personagem e DS não é a interprete de
homem-fantasma sem grandes ambições uma peça teatral, ambos se confundem e se
ou conitos existências. Não se pode dizer mesclam numa perspectiva sedutora que
que há uma situação dramática, o único nos impede de traçar uma nítida separa-
motor da narrativa é a inusitada resposta ção entre teatralidade e performatividade,
negativa do homenzinho à tarefa diária entre cção e movimentos autobiográcos
de copiar: “preferiria não”, diz o homen- performativos, conformando aquilo que
zinho sem maiores explicações. A simples denominamos conceitualmente como rea-
recusa da tarefa por Bartleby muda a rea- lismo sedutor.
lidade desta gura insignicante, que ga- Em “Trilhas sonoras de amor perdi-
nha importância dramática na narrativa das”, que está bem mais próxima de uma

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estrutura teatral, no sentido de que se co- no do real na cena contemporânea, em sua


munica por uma espacialidade ccional conguração sedutora, terreno instável do
mais elaborada e estraticada – cenário, entrecruzamento entre o real e artifício,
gurino, interprete, encenador -, verica- entre o teatral e a performatividade. O re-
se a tentativa do teatro em orientar suas alismo sedutor nos embriaga de realidade,
ações a partir de uxos energéticos pró- nos desviando do choque obsceno e sem
prios à performatividade, promovendo encanto do real, nos seduzindo por aquilo
assim a interrupção da lógica representa- que ele esconde, ou teatraliza. A cena do
cional, da síntese dramática, devedora da realismo sedutor reage contra toda forma
necessidade e verossimilhança. A verbor- imediata, sem distância, sem encanto, ele é
ragia sem pausas do texto, orientado pelos a antítese da cena obscena. Para concluir-
uxos energéticos das trilhas sonoras, sua mos, sem nos alongarmos demais, numa
temporalidade estendida, repetindo ob- tentativa de tornar um pouco mais clara
sessivamente a situação sobre ela mesma, a perspectiva do realismo sedutor, convo-
de forma autista, sem obter uma solução, camos o lósofo Baudrillard que no livro
promovem uxos de pensamento, desejo e “Senhas” (2001) analisa a sedução enquan-
memória, que incidem na teatralidade, sem to uma operação oposta a toda tentativa
rompê-la denitivamente, mas que enfati- de positivar o mundo e as coisas. Como
zam no texto seu caráter de performativi- arma o pensador, pela sedução não que-
dade. Ou seja, desprezando, ou deixando remos dominar ou expor a verdade, que-
em segundo plano, o valor racional da remos coloca-la em jogo. Cobrir o real com
síntese dramática, a partir desta intensi- um véu, arma, é dar a ver sua potência.
cação do real na cena teatral, o espetáculo Para o lósofo, o questionamento radical
da Sutil Companhia experimenta no teatral da realidade pelo projeto antimimético
o instantâneo e o não repetível das expe- modernista, “expulsando do real a ilusão e
riências sensoriais e energéticas. Como já a utopia”, teve como consequência a “desa-
destacado por Josette Féral, este tipo de parição do real” (Baudrillard, 1997, p. 92).
espetáculo, que se deixa embriagar pela Este “assassinato do real”, engendrado por
arte da performance, recebeu a nomencla- uma espécie de sobre-exposição do real,
tura de “teatro performativo”. Porém o que aniquiladora de todo mistério, enigma, ilu-
nos instiga a pensar esses espetáculos é a são e alteridade, é assim denido por Bau-
possibilidade de abertura de uma via de drillard: “o espetáculo tem ligação com a
confronto ao desencanto produzido pelas cena. Em compensação, quando se está na
tentativas de apagamento da teatralidade, obscenidade, não há mais cena, jogo, o dis-
que, por uma estética do choque, da reali- tanciamento do olhar se extingue. [...] a de-
zação do real, ou pela obsessão de autono- nição de obscenidade seria, pois, a de tor-
mia antimimética da obra, eliminou tanto nar real, absolutamente real, alguma coisa
o que havia de mistério no mundo, como que até então era metafórica ou tinha uma
eliminou a comunicação, o sentido, a tro- dimensão metafórica” (2001, p. 29). A ten-
ca simbólica: instituindo o que Baudrillard tativa de eliminar a teatralidade, em prol
vai chamar de “apagamento do real”. de uma acentuação super-realista do real,
Nos dois espetáculos analisados aqui, eliminando a cena, o teatro, constituindo
nos propomos a reconhecê-los como exem- a experiência da presença pura, ocasionou
plos, no caso brasileiro, de diferentes tex- aquilo que Baudrillard vai chamar de si-
tualidades, e modos de tratamento do real, mulação desencantada. O pornô ou o obs-
que propõe um pensamento na arte a par- ceno é aquilo que descarta todo jogo, toda
tir de um retorno do real na cena contem- alteridade, todo segredo, em prol de uma
porânea, na conformação de um realismo realização.
mais afetivo. Pensar o real a partir de sua Essa maximização da realidade elimi-
ccionalização é a condição para o retor- na todo discurso que envolve o real e nos

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apresenta objetos e guras sem referên-


cias, sem fundo, instituindo a presença, a
pura aparência, nos intoxicando com um
excesso de realidade, que, ao contrário de
aprisionar o real, o faz desaparecer. Num
mundo onde tudo é “imediatamente exis-
tente como realidade concreta [...] há, não
uma comunicação, e sim uma “contamina-
ção de tipo virótico, tudo passa de um para
o outro de maneira imediata” - isto é, sem
mediação, sem encanto, sem troca -; e con-
tinua o pensador: “Há, por um lado, uma
arte capaz de inventar uma outra cena, que
não a real, uma outra regra do jogo e, por
outro lado, uma arte realista, que caiu em
uma espécie de obscenidade, tornando-se
descritiva, objetiva ou simples reexo da
decomposição – da fractalização do mun-
do” (2001, p. 31). A sedução, segundo Bau-
drillard, “é um desao, uma forma que ten-
de sempre a perturbar as pessoas no que
se refere à sua identidade, ao sentido que
esta pode assumir para elas. Elas aí reen-
contram a possibilidade de uma alteridade
radical” (2001, p. 25).
Baudrillard corrobora com nosso
pensamento, ao sustentar que: “no desfa-
lecimento súbito da realidade e na verti-
gem de nela perder-se” (1997, p. 17) é que
acontece o milagre. O milagre, momento
em que o real se mostra, é quando o teatro
assume uma posição intermediária, entre:
onde o real e o convencional, a realidade e
o artifício se encontram; um lugar de fron-
teira entre as margens do real e da fantasia.
É nesse desvio do artefato, do signo puro,
que o real pode retornar; é na sedução, no
véu que encobre o real e que não o deixa
aparecer demais, que ele se mostra em todo
seu esplendor.

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REFERÊNCIAS

BAUDRILLARD, Jean. Senhas. Rio de Janeiro: Difel, 2007.

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CARLSON, Marvin. Performance, uma introdução crítica. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2009.

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esgotado. Roberto Machado (ORG). Rio de Janeiro: Zahar, 2010.

DERRIDA, Jacques. A escritura e a diferença. São Paulo: Perspectiva, 1971.

FÉRAL, Josette. Teatro, teoría y práctica: más allá de las fronteras. Buenos Aires, Galerna:
2004.

LEHMANN, Hans-Thies. Teatro Pós-Dramático. São Paulo: Cosac Naify, 2007.

________. “Teatro pós-dramático e teatro político”. In_ O Pós-Dramático. J. Guinsburg


(ORG). São Paulo: Perspectiva, 2008.

PAVIS, Patrice. “La théâtralité en Avignon”. In_ Voix et images de la scène. Vers une théorie
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________. Dicionário de Teatro. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1996.

RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível. São Paulo: Editora 34, 2009.

TASSINARI, Alberto. O Espaço moderno. São Paulo: Cosac & Naify editores, 2001.

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