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Excelente introdução ao debate em torno da Teoria Queer, o presente livro é escrito dernos da Diversidade
com a precisão e a sen~ibilidade peculiares a Richard Miskolci, este jovem, inspirado e
talentoso pesquisador das temáticas do corpo, das identidades e das subjetivações. A
partir da narrativa pessoal de suas experiências escolares, marcadas pelo autoritarismo
e pela violência dos anos finais da ditadura militar, adentramos, por meio de uma leitu-
ra leve e aprofundada, numa reflexão balizada pelo desejo de transformar as relações
de poder presentes na escola heteronormativa, que desconhece as múltiplas facetas da
expressão humana e impõe padrões binários daquilo que se espera do "ser homem"
e do "ser mulher" .
Teoria Oueer:
A Teoria Queer, tal como vem sendo incorporada à cultura e às práticas da sociedade
brasileira, vem questionar os dispositivos de biopolítica que disciplinam e controlam
um aprendizado
corpos e desejos, causando sofrimento a quem ousa ser diferente. Evem, assim, propor
um novo olhar para a escola e para a educação, onde a ilusão da neutralidade quanto
pelas diferenças
à construção ideológica de uma hegemonia identitária deve ser vinculada a alguns
interesses - e não a outros.
Lidar com o diferente, na perspectiva de também se transformar e se colocar em ques-
tão: eis a provocação queer para uma escola que traz ao discurso as experiências do
Richard Miskolci
estigma e da humilhação, a fim de repensar a si própria em face do convívio humano e
das demandas da sociedade civil.

Keila Deslandes
Doutora em Psicologia Clínica pela Universidade de Paris
Coordenadora do Programa de Educação para a Diversidade - UFOP

autêntica ª~~~
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de Ouro Preto
Por entender a escola como um !ocus privile-
giado de socialização secundária e de cons-
trução de valores e conceitos fundamentais
no processo de educação para a cidadania,
o Programa de Educação para a Diversidade,
vinculado à Pró-Reitoria de Extensão da UFOP,
em parceria com a Cátedra UNESCO "Água, Teoria Oueer:
Mulheres e Desenvolvimento", oferece cursos
para a formação de professores e professoras um aprend izado
para as temáticas da diversidade, dos direitos
humanos, da equidade de gênero, das relações pelas diferenças
étnico-raciais e, ainda, da sustentabilidade
ambiental. A série Cadernos da Diversidade,
publicada com apoio da Secretaria de Educa-
ção Continuada, Alfabetização e Diversidade
(SECAD/MEC), tem como objetivo fornecer
argumentos teóricos e práticos - de ordem
pedagógica, histórica, sociológica, cultural,
jurídica, psicossociológica e econômica - para
provocar uma ruptura no ciclo perverso das
desigualdades e da destruição dos recursos
naturais, incentivando, assim, o amplo deba-
te e a criação de projetos de intervenção com
foco na promoção de um ambiente pedagógi-
co inclusivo e ecologicamente sustentável nas
escolas da rede pública de educação básica.
Keila Des/andes
Coordenadora da série
Teoria Oueer:
um aprendizado
pelas diferenças

Richard Miskolci
Copyright© 2012 Programa de Educação para a Diversidade - ProEx/UFOP

COORDENADORA DA StRIE CADERNOS DA DIVERSIDADE


Keila Deslandes

CONSELHO EDITORIAL
Adriano Nascimento - UFMG
Carla Cabral - UFRN
Érika Lourenço - UFMG
Keila Deslandes - UFOP
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i IV\ G&'j-;V. ·--·
Mônica Rahme - PUC Minas
Richard Miskolci - UFSCar
i V.
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Ed.
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;/ TOMBO BCI ~ I 8 ,f ';{ 6
PROJETO GRÁFICO
Tales Leon de Marco
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EDIT~RAÇÃO ELETRÔNICA, REVISÃO E PRODUÇÃO GRÁFI PR ~
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Autentica Editora ,,.., . '/ (
DATA <><"3 1OI ~.:>B._ 1
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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


Este livro é uma versão revisada e ampliada da Aula Mag-
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) na proferida na abertura do curso de Educação para Diversi-
Miskolci, Richard dade e Cidadania, em agosto de 2010, no Centro de Conven-
Teoria Queer : um aprendizado pelas diferenças I Richard Miskolci ... ções da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP).
Belo Horizonte : Autêntica Editora : UFOP · Universidade Federal de Ouro
Preto, 2012. -- (Série Cadernos da Diversidade; 6)
Agradeço à proposta de edição da aula feita por Keila
Bibliogra fia Deslandes, parceira em projetos e ideais. Também sou grato
ISBN 978-85-65381-28-4
a Moisés Mota por ter transcrito a fala original que serviu de
1. Controle social 2. Educação 3. Filosofia 4 . Identidade de gênero
5. Identidade sexual 6. Identidade social 7. Sexo - Diferenças (Educação)
base a este projeto. No processo de transformar a aula em livro
8. Teoria Queer 1. Título. li. Série. também contei com a leitura atenciosa e com as sugestões de
12-04100 CDD-306.43 Larissa Pelúcio.
Índices para catálogo sistemático:
1. Diferenças : Teoria Queer : Sociologia 306.43
Richard Miskolci
São Paulo, janeiro de 2012
,,

Sumário
1

i Introdução ... ........ ........ ... ..... ... ......... .. ..... ... ...... .. .... .. .... 9

Origens históricas da Teoria Oueer ... .. ..... ... .... .......... 21


l '
Estranhando a Educação ...... ................... .. ...... .... ...... 35
I\
Um aprendizado pelas diferenças .................... ....... . 51

Referências ... .. ... .... ... ........ .. .. ... ........... ........ ........ ... ... .. 65

Anexo
A guerra declarada contra o
menino afeminado - Giancarlo Cornejo ......... ......... 69

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Introdução

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I•

Ainda recordo como, ao acordar, colocava meu unifor-


me e seguia para a escola. Era o final da década de 1970, e
vivíamos sob a presidência do general Figueiredo, a última
do regime militar. No pátio, tínhamos que formar filas : duas
1 para cada sala de aula, uma de meninos e outra de meninas.
,., Começavam aí as "brincadeiras", nas quais os meninos mais
robustos empurravam os mais frágeis para a fila feminina,
H espaço desqualificado em si mesmo. Só sossegavam diante do
sinal para o hasteamento da bandeira cantando o Hino Na-
cional. Depois entrávamos na sala, de forma ordenada, mar-
chando feito soldados em miniatura. Por fim, levantávamos
em sinal de respeito, esperando pela entrada da professora,
uma senhora rabugenta e conservadora.
Na sala, as carteiras eram colocadas em ordem rígida e
a ninguém era permitido trocar de lugar. A professora não
titubeava em mostrar uma régua grande, feita de madei-

~
ra, com a qual dizia "colocar na linhà' os indisciplinados.
Nunca a vi utilizar a tal régua, mas a ameaça de usá-la era
suficiente para manter uma sombra temerosa sobre os es-
tudantes, como se uma punição estivesse sempre à espera.
Medo que se somava a outros, ainda maiores, como o de se
tornar a vítima das brincadeiras cruéis dos meninos mais
violentos, sempre à espreita para exercitarem sua "valentià'
• 1
: quando não havia nenhum funcionário por perto. Especial-
l mente perigosos eram o banheiro e a saída, espaços limina-
res daquela ordem disciplinar baseada na ameaça constante
1
de violência.

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9
Tinha apenas sete anos, daí não perceber que a minha deixado de ser carinhoso para adotar expressões de afetivi-
1~ 1

turma, a A, concentrava os estudantes mais privilegiados eco- dade que sempre terminavam em pequenas torturas, como se
nomicamente, e, não por acaso, era uma sala massivamente um abraço ou um carinho entre homens tivesse que resultar
branca. A única figura não branca era a da empregada negra em uma luta, um soco ou um machucado. Ele não era exceção,
na cartilha, uma personagem secundária na história protago- antes a regra em uma época em que meninos eram submeti-
nizada por uma família branca e estereotipada cuja vida seguí- dos a uma pedagogia da masculinidade até se tornarem adul-
amos em lições de alfabetização que se confundiam com um tos, alguns, como ele, para sempre traumatizados pela recusa
,•. aprendizado de como todos devíamos ser em um mundo ideal. da afetividade que lhes era imposta, por uma (de)formação
Se por ideal se compreendesse casais desiguais sob o poder que os tornava incapazes de compreender as mulheres como
masculino, no qual mulheres eram restritas à casa, à família iguais, tampouco de confiar em outros homens como confi-
e ao cuidado, e os filhos, sempre um casal, reproduziriam, no dentes de seus temores ou dores.
futuro, o modelo dos pais. Como um menino que, como eu, entrou na escola incerto
A despeito de estar em uma escola pública, vivia quase ao sobre seu lugar no mundo podia sair do segundo grau como
abrigo da realidade brasileira, em um ambiente homogêneo e ele? Por que eu, diferentemente, passei anos resistindo a ser
autoritário organizado para inculcar valores da Ditadura Mi- como esperavam que eu fosse até deixar o secundário e enca-
litar instaurada pelo Golpe de 1964, o qual estudávamos como rar o alistamento militar obrigatório como um momento de
tendo sido uma "revolução". Daqueles valores, destaco o culto terror? Nossas histórias correram paralelas, divididas por pou-
da ordem, da disciplina e da autoridade, frequentemente sub- cos anos de diferença etária, mas cindidas por um processo de
sumidos em alguma figura masculina como a do Presidente da abertura política que trouxe a sociedade brasileira de volta à
República, o General cujo nome estampava o cabeçalho diário democracia. Só pude conhecê-la no último ano do secundá-
de meu primeiro caderno escolar. rio, quando ocorreu a primeira eleição livre para presidente,
Sob regime ditatorial militar, vivia sob a sombra de uma 25 anos depois do Golpe Militar.
ordem política e social que girava em torno de um poder emi- Marcado por um processo educacional autoritário e vio-
nentemente masculino. A masculinidade se confundia com a lento, conheço suas marcas tanto naqueles que saem como es-
violência, em um jogo injusto e cruel para as meninas, mas perado quanto nos que resistem ou são expelidos. Essa memória
~ também para os meninos que, como eu, não gostavam de fute- sombria sobre minha geração me veio à mente enquanto pen-
bol, tampouco queriam emular o comportamento dos adoles- sava em como transformar a Aula Magna que proferi em Ouro
1
centes que, com 18 anos, adentravam na vida adulta vestidos Preto, em agosto de 2010, na abertura do curso Educação para

1 em seus uniformes do serviço militar obrigatório. Foi nele que a Diversidade e Cidadania, neste livro, que aspira ser uma breve
vi um de meus primos, antes amoroso, ser brutalizado até se e modesta contribuição para - quiçá - começar a transformar
tornar o que se compreendia como um homem de verdade: a realidade vivenciada por aquelas e aqueles que viveram um
aquele que dominava as mulheres e desprezava "bichas". longo e doloroso conflito com os objetivos educacionais.
Um "homem de verdade': hoje percebo, era o que impu- Sobreviventes das tecnologias sociais que buscam en-
nha seu poder aos outros e a si mesmo à custa de sua própria quadrar cada um em uma identidade, adequar cada corpo a
afetividade. Daí meu primo, desde o uso do uniforme, ter um único gênero, sabem como a educação auxilia a fazer da

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- - - - - -- - - - - - - -- -
':

infância e da adolescência fases dirigidas para a construção Iniciarei com as origens históricas do queer na década de
de homens e mulheres ideais; leia-se: pessoas "normais': "cor- 1980, mas é importante ter em mente que ele se insere em um
retas': como nossa sociedade nos faz crer que devemos ser. cenário aberto pelos novos movimentos sociais surgidos duas
Sabem também que entre o ideal e a realidade jaz uma história décadas antes, sobretudo o movimento pelos direitos civis nos
invisível de violências às quais alguns sucumbem. Estados Unidos, o movimento feminista e o movimento ho-
A maioria das crianças e adolescentes - em uma busca ' mossexual. Esses movimentos que ganham força e visibilidade
compreensível de aceitação e sobrevivência - aceita ou se dei- na época da contracultura costumam ser associados à emer-
xa moldar pelas demandas educacionais cujo conteúdo nor- gência de novos sujeitos históricos que passam a demandar di-
mativo violento - mais frequentemente do que gostaríamos de reitos e também a influenciar na produção do conhecimento. 1
constatar - não é reconhecido nem mesmo pelos educadores/as ' A partir da segunda metade da década de 1980, há um
como algo a ser discutido e questionado. Trata-se de um fe- processo de reavaliação desses movimentos, seus sujeitos e de-
, nômeno em que o pressuposto das boas intenções exime os
meios de uma análise mais detida e questionadora. O desafio
1 mandas priorizadas. É o momento em que feministas negras,
e do então chamado Terceiro Mundo, começam a criticar o
\ que encaro aqui é o de auxiliar a tornar visíveis essas violên - caráter branco, de classe média e ocidental do feminismo an -
das, descrevê-las e analisá-las de forma a torná-las também terior. Em movimento similar e articulado, o movimento ho-
objeto de crítica e reavaliação. Nesse sentido, encontro na Teoria mossexual e o feminista passam a ser questionados por aque-
Queer um conjunto de reflexões que considero salutares no les que viriam a ser conhecidos como queer.
desenvolvimento de um novo olhar para a educação. O segundo capítulo será sobre o que seria a incorpora-
O objetivo que guia esta obra é o de refletir sobre os laços ção de uma perspectiva não normativa na educação. Claro
profundos entre educação e normalização social, entre a es- que a Teoria Queer vai ser ressignificada na realidade brasi-
cola e os interesses biopolíticos, entre o sistema educacional leira, vai ser transformada e poderá virar outra coisa, mas me
e a imposição de modelos de como ser homem ou mulher, parece profícuo tentar refletir, mesmo que preliminarmente,
1
masculino ou feminino, hétero ou homossexual. Refletir para sobre quais as propostas iniciais do queer e como ele está flo-
1
questionar e propor algo distinto, não normalizador ou com- rescendo no Brasil. O que vejo nas iniciativas, lendo os livros
pulsório, um educar fincado não em modelos e conteúdos que produzidos, participando de eventos, é que, muito frequente-
o precedem, mas, antes na experiência mesma do aprender. mente, as pessoas tomam o queer como sinônimo de questões
Vejo o aprendizado como algo que se constrói incessan- de homossexualidade enquanto a proposta queer pode ser
temente em um diálogo com o que nos causa estranheza, ou vista como mais complexa e ampla do que isso. Tentarei dis-
seja, no contato com as diferenças. Com isso em mente, dividi cutir também sobre como está ocorrendo essa incorporação
o livro em três. No primeiro capítulo, buscarei apresentar um teórica e prática, cotejando com essa proposta de ir além da
panorama de como o queer surgiu como política e virou teo-
ria, depois buscarei esclarecer o foco dessa vertente de estudos 1
Sobre a emergência desses novos movimentos sociais e seu impacto na produção
nos regimes de normalização a partir da experiência escolar acadêmica, consulte o livro de Miriarn Adelman intitulado A voz e a escuta: encon-
tros e desencontros entre a teoria feminista e a sociologia contemporânea (2009), em
para, por fim, expor alguns dos desafios educacionais apresen- especial os dois primeiros capítulos, que lidam com a nova esquerda, a contracultura
tados por uma perspectiva inspirada pelas diferenças. e a gênese de novas perspectivas teóricas.

12 13

/
sexualidade ou da ideia de que apenas mencionar ou trazer A heteronormatividade seria a ordem sexual do presen-
para a discussão a respeitabilidade e o direito ao reconheci- te, na qual todo mundo é criado para ser heterossexual, ou
mento das pessoas LGBT seria queer. - mesmo que não venha a se relacionar com pessoas do sexo
Nesse segundo capítulo, espero apresentar como podemos 1
oposto - para que adote o modelo da heterossexualidade em
questionar o suposto olhar neutro no qual se baseou a educa - sua vida. Gays e lésbicas normalizados, que aderem a um pa-
ção até hoje como sendo uma perspectiva heterossexual. Infe- drão heterossexual, também podem ser agentes da heteronor-
lizmente, todo mundo é formado para acreditar que aprende matividade. Não por acaso, violências atualmente chamadas
a ser professora ou ser professor, a educar, de forma neutra. de homofobia não se dirigem igualmente a todos/as os/a ho-
Como se fosse possível entrar na sala de aula deixando do lado mossexuais, mas, antes,-muito mais frequentemente a quem
de fora toda a nossa história de socialização. Isso é impossível não segue esse padrão. Nesse sentido, quer sejam heterossexu-
porque todos/as trazemos uma bagagem cultural para nossas ais on homossexuais, todos podem ser normalizados e precon-
atividades profissionais, mas, sobretudo, porque educar nada 1
ceituosos com o Outro, aquele que vive, se comporta ou pensa
tem de neutro, seus métodos e seus conteúdos têm objetivos diferentemente. Muitos homossexuais também normalizados
interessados. Entre eles, destacarei aqui como essa ilusão de ajudam na estigmatização e na percepção negativa daqueles
neutralidade era, no fundo, cúmplice de um dos pressupostos que não cabem na heteronormatividade. Prometo explicar isso
fundamentais da vida social contemporânea, que é o de que mais detalhadamente no segundo capítulo.
todos são heterossexuais até prova em contrário. Essa suposta Nesse capítulo tocarei também na questão das diferenças
1
neutralidade da formação dos professores e da própria estru- e da diversidade. Tentarei problematizar um pouco a tendên-
tura da escola fazia dela uma das principais ferramentas para 1 cia a misturar essas duas perspectivas em nosso país. O termo
a construção da heterossexualidade não como opção, mas sim "diversidade" já se arraigou na sociedade brasileira. Quase to-
como algo compulsório. dos os programas governamentais e slogans dos movimentos
A pensadora feminista Adrienne Rich afirmou, em um fa- soei~vêm com esse termo,-mas o que buscamos expressar
moso artigo do início da década de 1980, que nossa sociedade \ uª-ando a palavra "diversidade" pode ser repensado e adquirir .
se assenta no que denominou de heterossexualidade compul- 1 outro significado, inclusive o de lidar com as diferenças. O ter-
sória.2 Fala-se tanto de orientação sexual, opção sexual, mas / mo "diversidade" é ligado à ideia de tolerância ou de convivên~

~
ninguém ainda pensa na heterossexualidade como algo opcio- eia, e o termo "diferençà' é mais ligado à ideia do reconheci-
nal. O queer traz esse tipo de provocação. Daí, nesse segundo mento como transformação social, transformação das relações
capítulo, eu procurarei refletir sobre um dos focos da Teoria de poder, do lugar que o Outro ocupa nelas. 3
Queer: a heteronormatividade. Quando você lida com o diferente, você também se trans-
forma, se coloca em questão. Diversidade é "cada um no seu
2
Refiro-me aqui ao seu artigo Compulsory Heterosexuality and Lesbian Experience
(A H_eterossexuahdade Compulsória e a Experiência Lésbica), publicado no início 3
Em artigo esclarecedor intitulado "A diferença e a diversidade na educaçãd; Abramo-
da decada de 1980 e reconhecido por muitos/as como a primeira discussão a ex- wicz, Rodrigues e Cruz afirmam: "As políticas sociais e educacionais do Brasil exaltam a
plicitar a heterossexualidade não como algo natural, mas, antes, o resultado de um nossa 'diversidade criadora: ao mesmo tempo em que há um silenciamento das diferen-
conjunto de práticas sociais que a impõem como a forma "corretá' de se relacionar ças no campo da educação e isto tem significado a construção da heteronormatividade
amorosa e sexualmente.
como norma e normalidade e a estética branca como modelo do belo" (2011, p. 93).

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/
quadrado': uma perspectiva que compreende o Outro como Uma perspectiva queer exigiria .repensar a educação a
incomensuravelmente distinto de nós e com o qual podemos partir das experiências que foram historicamente subalterni-
conviver, mas sem nos misturarmos a ele. Na perspectiva da zadas, até mesmo ignoradas, mas que podem ajudar a repen -
diferença, estamos todos implicados/as na criação desse Ou- sar nossa sociedade, buscar superar injustiças e desigualda-
tro, e quanto mais nos relacionamos com ele, o reconhecemos des. É um desafio, mas também algo muito promissor e que
como parte de nós mesmos, não apenas o toleramos, mas dia-
pode auxiliar na transformação social. Para que seja possível,
logamos com ele sabendo que essa relação nos transformará, é necessário superar o binário hetero-homo, a ideia poderosa
O último capítulo será uma breve reflexão sobre possibili- e altamente contestável de que a sociedade se divide apenas
dades diversas das-ainda existentes e predominantes de educar. em heterossexuais e homossexuais. É importante também ir
De uma forma muito simplificada, eu diria, a partir do pensa- além das meras tentativas de proteger aqueles que o movimen-
mento do filósofo francês Michel Foucault, que o dispositivo to social chama de pessoas LGBT (lésbicas, gays, bissexuais,
de sexualidade precisa ser compreendido e enfrentado. "Dis- travestis e transexuais), um termo que não dá conta do grande
positivo" é um termo que se refere ao conjunto de discursos e espectro de gente que não se enquadra no modelo heterosse-
práticas sociais que criam uma problemática social, uma pauta xual e que não cabe em nenhuma dessas letras.
para políticas governamentais, discussões teóricas e até mes- éons'idero que seria mais promissor tirar a própria he-
mo embates morais. A sexualidade é um desses dispositivos terossexualidade da sua zona de conforto, trazer ao discurso
históricos, e surgiu, aos poucos, a partir do século XVII, até
suas normas e a hegemonia cultural centrada nela, de forma a
adquirir os contornos presentes, que fazem com que as pes-
questionar até mesmo o que seria o normal. Nessa perspectiva
soas se compreendam a partir de sua sexualidade. Felizmente,,
queer, a ideia seria trazer ao discurso as experiências do estig-
esse reducionismo não pode mais ser aceito sem resistência. 4
ma e da humilhação social daquelas pessoas que são frequen-
A sexualidade, compreendida como um aparato, permi- temente xingadas, humilhadas por causa da sua não norma-
tiu que o Estado e as instituições nos controlassem por meio tividade de gênero. Isso tudo com o objetivo de modificar os
daquilo que Foucault denominou "pedagogização do sexo': aspectos da educação que ainda impõem, compulsoriamente,
Ou seja, um dos grandes investimentos biopolíticos do Estado as identidades.
sempre foi na educação, e a proposta queer é de justamente
Em 2009, como coordenador do curso Gênero e Diver-
superar a pedagogização do sexo e trcmsformar a posição da
sidade na Escola da UFSCar, eu via um grande interesse, em
educação não mais como subserviente aos interesses estatais e
todo o Brasil, por esses temas que pincelei aqui. O curso de
biopolíticos, mas muito mais comprometida com as demandas
lá foi para vários Estados, e era perceptível em São Paulo, no
da sociedade civil, organizada ou não. 5
interior do Mato Grosso, no extremo sul do país, no interior
da Bahia, uma preocupação e um interesse extremamente
4
Sobre a sexualidade como um dispositivo histórico do poder, consulte a História louváveis de educadoras em querer entender com quem es-
da sexualidade I: a vontade de saber, de Michel Foucault. Desenvolvi uma reflexão tavam lidando na sala de aula. Mas esse "incômodo" com as
didática desse dispositivo no capítulo "Sexualidade e orientação sexual" do livro
Marcas da diferença no ensino escolar (2010).
5
Biopolítica é a forma que o poder adquire na sociedade burguesa, ou seja, após a
O caráter bio da política reside na centralidade dos corpos e das populações na
queda do velho regime e da ascensão da moderna sociedade urbana e industrial.
organização dos Estados, suas instituições, como a medicina social, e a educação.

16
17
r ,
1

li ferramentas educacionais incapazes de fazer frente à realida -


de de pessoas fora da norma, essa vontade de acolhê-las ao
invés de julgá-las, frequentemente se expressa em questões
de criar pessoas "normais", leia-se, disciplinadas, controladas e
compulsoriamente levadas a serem como a sociedade as quer.
Em outras palavras, a escola pune e persegue aqueles e aque-
i 1 como: Como chamo tal pessoa? O que é tal aluno? Ele é tra-
vesti? Ele é transexual? E foi um desafio lidar com essas ques -
las que escapam ao controle, marca-os como estranhos, "anor-
mais': indesejáveis.
'
tões, foi muito difícil explicar que era justamente isso que a Além do violento processo acima descrito, a normali-
gente não queria, não queríamos embarcar no processo de zação identitária tem outro déficit: o fato de que se funda
,, criar um escaninho das espécies sexuais alocando cada uma em modelos aistóricos e fixos de como as pessoas são ou
r em uma caixa ou identidade. Evitar esse tipo de abordagem ' deveriam ser. Mas nenhuma identidade é fixa, e, durante a
n classificatória é uma forma de realmente transformar a expe- vida, as pessoas realmente mudam. Constatações como es-
riência educacional. sas são amplamente corroboradas por estudos sociológicos
A esfera da educação não precisa, e, na minha opinião, e antropológicos, os quais, especialmente quando analisam
'l nem deve, seguir essa lógica que busca trocar a formação he- '
questões de gênero e sexualidade, mostram uma instabilida-
I\ terossexista existente por outra simplesmente binária, como de crescente na forma como as pessoas se compreendem e se
a que opõe homem e mulher, masculino e feminino, hétero e relacionam na sociedade contemporânea.6 Disso resulta um
homo. Ou, ainda, por outra circunscrita aos termos de uma desafio extra, o de tentar superar a ideia de uma educação
sigla (LGBT), um número limitado de formas de identifica- sexual pensada como orientação, que acabava resultando em
ção. Em outras palavras, pouco adianta apenas trocar os si- uma normalização das identidades e das práticas. Orientar
nais: se antes se educava todo mundo para a heterossexualidade, 1
frequentemente se confunde com direcionar o desejo, indu-
punindo ou ignorando quem não a seguisse, passar a educar zi-lo e, talvez, até mesmo criá-lo segundo os interesses de
para o binário, para ser héteroou homo. Além de manter o uma época e sociedade.
impulso normalizador, apenas ampliando o número de pos- Além disso, esse tipo de educação sexual baseada no in-
sibilidades para um conjunto restrito de identidades disponí- tuito de orientar sexualmente acaba também gerando a ten-
veis no presente, essa forma de educar passa a exercer ainda dência a reforçar o pressuposto de que falar de sexualidade é
mais pressão social sobre crianças ou adolescentes, pessoas falar do biológico ou de prevenção de doenças sexualmente
~ em formação, para que se definam logo e adotem uma iden- transmissíveis. A proposta queer é pensar a sexualidade e ou-
tidade. Essa forma de pressão é, em si mesma, uma violência tras diferenças, como culturais e políticas, como parte da vida
1 que podemos evitar. cotidiana, e não afetando as pessoas apenas como assunto de

1 Na perspectiva queer, as identidades socialmente prescri-


tas são uma forma de disciplinamento social, de controle, de
normalização. Como mostra minha experiência pessoal du-
saúde pública.
De uma forma geral, o queer se associa a um certo movi-
mento contemporâneo na área de educação que busca repen-
1 rante a Ditadura Militar, a escola tenta, pelos mais diversos sar a sua forma de atuar e o seu papel social. O queer se alinha
meios pedagógicos, criar meninos masculinos e meninas femi-
ninas. Portanto, o ensino escolar participa e é um dos princi- 6
Sobre essa instabilidade das identidades e práticas sexuais, consultar Pelúcio (2009),
pais instrumentos de normalização, uma verdadeira tecnologia ' Duque (2011), e Leite Júnior (2011) ,
'

18 19

1
a uma questão que passou a ocupar a mente de educadores e Capítulo 1
educadoras: como transformar a educação escolar, algo que já
foi um dos aparatos estatais de controle do disciplinamento Origens históricas
das pessoas, em algo mais sintonizado com a sociedade civil, (

com as demandas de reavaliação não só dos meios de educar, da Teoria Oueer


mas também dos seus objetivos? Uma questão que se desdobra
em muitas outras, como: A gente vai educar para quê? Qual
forma de educar pode transformar as normas e convenções
culturais, flexibilizá-las ao invés de impô-las ferreamente e às
O que hoje chamamos de queer, em termos tanto políti-
custas da humilhação de alguns ou do sofrimento de todos/as?
cos quanto teóricos, surgiu como um impulso crítico em rela-
1 ção à ordem sexual contemporânea, possivelmente associado à
contracultura e às demandas daqueles que, na década de 1960,
1
eram chamados de novos movimentos sociais.
111 • Os três principais "novos" movimentos sociais foram o
I•
I•
1.
movimento pelos direitos civis da população negra no Sul dos
Estados Unidos, o movimento feminista da chamada segunda
onda e o então chamado movimento homossexual. Eles são
chamados de novos movimentos sociais porque teriam surgi-
do depois do conhecido movimento operário ou trabalhador, e
porque trouxeram ao espaço público demandas que iam além
das de redistribuição econômica. Na verdade, essa classifica-
ção foi feita a posteriori, tentando superar, com sucesso apenas
parcial, uma perspectiva "economicistà' que deixou de reco-
nhecer a importância do feminismo desde sua primeira onda,
na qual se constitui como movimento social muito antes, já
em sua luta pelo direito ao voto e à educação para as mulhe-
res ainda no século XIX. A visão de que esses movimentos
eram "novos" também trai um olhar "eurocêntrico': pois atri-

1 bui caráter de vanguarda apenas ao movimento operário das


sociedades industriais do Ocidente, ignorando o movimento
abolicionista que lutou pela libertação dos escravos um século
1 antes, sobretudo em países como o Brasil e os Estados Unidos.
O que havia de novo nos movimentos sociais da década
de 1960 era uma maior participação de camadas de classe mé-
dia e até populares em lutas já existentes, mas que passaram a

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21
/
,-

adotar um novo repertório de demandas em um cenário políti- cristaliza historicamente na segunda metade da década de
co em que as instituições tradicionais como o Estado e os par- 1980, nos Estados Unidos, quando o surgimento da epide-
tidos passavam a ver questionada sua representatividade e/ ou mia de aids gerou um dos maiores pânicos sexuais de todos
autoridade. De forma geral, esses movimentos afirmavam que os tempos, associado, no caso norte-americano, a uma recu-
o privado era político e que a desigualdade ia além do econô- sa estatal em reconhecer a emergência de saúde pública. Ao
mico. Alguns, mais ousados e de forma vanguardista, também contrário do Brasil, em que o enfrentamento da epidemia
começaram a apontar que o corpo, o desejo e a sexualidade, aproximou Estado e movimento social em meio ao processo
tópicos antes ignorados, eram alvo e veículo pelo qual se ex- de redemocratização vivido depois de 20 anos de governo
pressavam relações de poder. A luta feminista pela contracep- militar, lá nos Estados Unidos houve um verdadeiro choque
ção sob o controle das próprias mulheres, dos negros contra entre as demandas sociais e a recusa do governo conservador
os saberes e práticas racializadores e dos homossexuais contra de Ronald Reagan em adotar quaisquer medidas.
o aparato médico-legal que os classificava como perigo social A epidemia é tanto um fato biológico como uma constru-
e psiquiátrico tinham em comum demandas que colocavam ção social. A aids foi construída culturalmente e houve uma
em xeque padrões morais. Assim, em termos políticos, o queer decisão de delimitá-la como DST. Uma epidemia que surge
começa a surgir nesse espírito iconoclasta de alguns membros a partir de um vírus, que poderia ter sido pensada como a
dos movimentos sociais expresso na luta por desvincular a se- hepatite B, ou seja, uma doença viral, acabou sendo compre-
xualidade da reprodução, ressaltando a importância do prazer endida como uma doença sexualmente transmissível, qua-
e a ampliação das possibilidades relacionais. se como um castigo para aqueles que não seguiam a ordem
Intelectualmente, esse impulso crítico inicial originou sexual tradicional. 8 Então, a aids foi um choque, e da forma
obras acadêmicas dispersas em vários países, como o Brasil, a como foi compreendida· tornou-se uma resposta conservadora
França e os Estados Unidos. Dentre os precursores da Teoria à Revolução Sexual, a qual, no Brasil, foi vivenciada pela então
Queer, é importante citar Guy Hocquenghem, pensador fran- conhecida "geração do desbunde''. No mundo todo, essa reação
cês que, no início dos anos 1970, publicou Le désir homosse- teve consequências políticas jamais superadas e também na
xuel (O desejo homossexual), um livro sobre o papel do medo forma como as pessoas aprenderam sobre si próprias, sobre a
da homossexualidade na definição da ordem político-social do sexualidade, e na maneira como vivenciam seus afetos e suas
presente; alguns artigos da antropóloga feminista Gayle Rubin, vidas sexuais até hoje.
em especial seu ensaio Thinking Sex (Pensado sobre Sexo, Mas, nos Estados Unidos, o que se passou? A epidemia
1984), e a riquíssima obra do pesquisador argentino-brasileiro de aids mostrou que, na primeira oportunidade, os valores
Néstor Perlongher, particularmente O negócio do michê (2008) conservadores e os grupos sociais interessados em manter as
e O que é AIDS? (1987). 7 tradições se voltaram contra as vanguardas sociais. Daí parte
Apesar dessa origem dispersa, e ainda pouco explora- do movimento gay e lésbico ter se tornado muito mais radical
da, a política e a Teoria Queer como a conhecemos hoje se do que o anterior, criticando os próprios fundamentos de sua
(
7 8
Infelizmente, não há ainda uma tradução para o português do livro de Hocquenghem, Sobre esta questão, consultar meu artigo em coautoria com Larissa Pelúcio, "A pre-
e o artigo de Rubin circula há ao menos duas décadas em traduções não-autorizadas venção do desvio: o dispositivo da aids e a repatologização das sexualidades dissi-
pela autora, de modo que apenas a obra de Perlongher está disponível na íntegra. dentes" (2009), disponível online na revista Sexualidad, Salud y Sociedad.

22 23
luta política. A aids, portanto, foi um catalizador biopolítico parte, o movimento homossexual emerge marcado por valores
que gerou formas de resistência mais astutas e radicais, mate- de uma classe-média letrada e branca, ávida por aceitação e
rializadas no ACT UP, uma coalizão ligada à questão da aids até mesmo incorporação social. Algo muito diverso se passa
pra atacar o poder, e no Queer Nation, de onde vem a palavra quando surgem movimentos queer, se pautarão menos pela
queer, a nação anormal, a nação esquisita, a nação bicha. demanda de aceitação ou incorporação coletiva e focarão mais
Vale lembrar que queer é um xingamento, é um palavrão na crítica às exigências sociais, aos valores, às convenções cul-
em inglês. Em português, dá a impressão de algo inteiramen- turais como forças autoritárias e preconceituosas.
te respeitável, mas é importante compreender que realmente é Enquanto o movimento homossexual apontava para
um palavrão, um xingamento, uma injúria. A ideia por trás do adaptar os homossexuais às demandas sociais, para incorpo-
Queer Nation era a de que parte da nação foi rejeitada, foi hu- rá-los socialmente, os queer preferiram enfrentar o desafio de
milhada, considerara abjeta, motivo de desprezo e nojo, medo mudar a sociedade de forma que ela lhes seja aceitável. En-
de contaminação. É assim que surge o queer, como reação e re- quanto o movimento mais antigo defendia a homossexualida-
sistência a um novo momento biopolítico instaurado pela aids. de aceitando os valores hegemônicos, os queer criticam esses
Alguém atento percebe como a problemática queer não valores, mostrando como eles engendram as experiências da
é exatamente a da homossexualidade, mas a da abjeção. Esse abjeção, da vergonha, do estigma.
termo, "abjeção': se refere ao espaço a que a coletividade costu- Em resumo, o antigo movimento homossexual denuncia-
ma relegar aqueles e aquelas que considera uma ameaça ao seu va a heterossexualidade como sendo compulsória, o que podia
bom funcionamento, à ordem social e política. Segundo Julia ser também compreendido como uma defesa da homossexu-
Kristeva, o abjeto não é simplesmente o que ameaça a saúde alidade. O novo movimento queer voltava sua crítica à emer-
coletiva ou a visão de pureza que delineia o social, mas, antes, gente heteronormatividade, dentro da qual até gays e lésbicas
o que perturba a identidade, o sistema, a ordem (1982, p. 4). normalizados são aceitos, enquanto a linha vermelha da re-
A abjeção, em termos sociais, constitui a experiência de ser jeição social é pressionada contra outr@s, aquelas e aqueles
temido e recusado com repugnância, pois sua própria existên- considerados anormais ou estranhos por deslocarem o gênero
cia ameaça uma visão homogênea e estável do que é a comu- ou não enquadrarem suas vidas amorosas e sexuais no modelo
nidade. O "aidético': identidade do doente de aids na década heterorreprodutivo. O queer, portanto, não é uma defesa da
de 1980, encarnava esse fantasma ameaçador contra o qual a homossexualidade, é a recusa dos valores morais violentos que
coletividade expunha seu código moral. instituem e fazem valer a linha da abjeção, essa fronteira rígida
Se o movimento gay e lésbico tradicional tinha como pre- entre os que são socialmente aceitos e os que são relegados à
ocupação mostrar que homossexuais eram pessoas normais e humilhação e ao desprezo coletivo.
respeitáveis, o movimento queer vem para dizer: "olha, mesmo Em 1993, essa virada queer se torna perceptível, quando a
os gays e as lésbicas respeitáveis em certos momentos históri- Parada do Orgulho Gay de São Francisco, umas das principais
cos serão atacados e novamente transformados em abjetos': nos Estados Unidos, adota o queer como tema.9 Percebe-se o
\ A maior parte das pessoas; sobretudo as que estavam com o
HIV, não faziam parte desse grupo pelo qual o movimento
9
Este fato foi bem analisado pelo sociólogo Joshua Gamson em seu artigo "Os movi-
homossexual forjado na década de 1960 lutava. Em sua maior mentos identitários devem se auto destruir? Um estranho dilema".

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25
potencial desestabilizador do sentido político não só do mo-
os relegados à vergonha e à abjeção, sofrem mais e são os ~ue
vimento LGBT, mas de todos os movimentos sociais constitu-
denominamos esquisitos, mas não é tão raro, em nossos dias,
ídos a partir de identidades, quer fossem os LGBT, negros ou
encontrar pessoas que mesmo dentro dos mod~l~s so~ialmen­
feministas. Fica mais visível como o queer vai se contrapor às
te impostos reconheçam seu caráter compulsono, violento e
concepções que haviam marcado a ascensão dos novos movi-
injusto. De forma muito esquemática, ~a~, espe:?' esclarece-
mentos sociais da década de 1960. A começar pelo movimento
dora, essa reflexão busca distinguir o espmto poht1co queer da
homossexual e sua bandeira do "orgulho gay': uma palavra tle.
mera luta pró-homossexualidade:
ordem com origem em uma classe média branca letrada que,
provavelmente de forma inconsciente, parecia tentar criar uma
imagem limpa e aceitável da homossexualidade. 10
O contexto norte-americano, percebe-se, era muito pior Crítica aos
do que o nosso, e foi em reação à falta de ação coletiva em regimes de normalização
meio à crise da aids que emergiu a radicalidade política que-
Diferença
er. Assim, vai se constituir cada vez mais ligada às problemá- ······················ . ... .... Üi~~ipli~~;;~~~trole . .. .
ticas da vergonha, do estigma e da descriminação, e menos .......... ............ .............................................................................

com relação às demandas de assimilação identitária de gays Segu~do a filósofa norte-americana Judith Butler, o que-
e lésbicas. Muito da atração que o queer tem, inclusive na er é uma nova política de gênero. Alguns tendem a ver essa
sociedade brasileira, deriva do fato de que não são apenas realidade nos movimentos na entrada progressiva de traves-
homossexuais que se sentem em contradição com as normas, tis transexuais, não brancos, todos os outros que antes não
afinal, há muito mais pessoas em desacordo com as conven- er~m vistos como suficientemente dignos de participar da
ções culturais, com as obrigações que nos são impostas em luta. No entanto, um olhar mais atento reconhecerá que a
termos de comportamento. lógica identitária anterior é a que rege ess~ ~ntrad~ e plu-
O queer busca tornar visíveis as injustiças e violências ralização dos sujeitos dos movimentos soc1~1~, e naoA uma
implicadas na disseminação e na demanda do cumprimento revisão de sua forma de atuação. A nova poht1Ca de genero
das normas e das conversões culturais, violências e injustiças _ que também pode ser chamada de queer - ~e mate~i~liza
envolvidas tanto na criação dos "normais" quanto dos "anor- no questionamento das demandas feitas a partir dos SUJeitos;
mais''. Quer alguém seja completamente ajustado e reconhe- em outras palavras, chama a atenção para as normas que os
cido socialmente, quer seja alguém marcado, humilhado, as criam. Essa mudança de eixo na luta política se fundamenta
normas e convenções operaram sobre os dois e ambos são ca- em duas concepções distintas com relação à dinâmica das
pazes de reconhecê-las. Claro que os humilhados e ofendidos, relações de poder: uma que as compreende a partir da visão
do poder como algo que opera pela repressão, e outra que o
10
concebe como mecanismos sociais disciplinadores. Na pers-
O slogan gay do "orgulho" mal encobre seu par necessário, a vergonha. Trata-se de
pectiva do poder opressor, os sujeitos lutam contra o p~der
uma gramática moral conformista em que as experiências do estigma e da abjeção
-são ignoradas, mesmo porque atingem os mais pobres, os que deslocam os gêneros, por liberdade, enquanto na do poder disciplinar, a luta e por
os que não constituem família. Assim, as demandas gays revelam seu enquadramen- desconstruir as normas e as convenções culturais que nos
to de classe alta e branca. S615re estes aspectos, consultar Warner (1999).
constituem como sujeitos.

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1

A mudança de foco dos sujeitos para a cultura gerou rea-


Michel Foucault é o responsável por essa mudança de eixo
ções. Muitos diziam que o conceito de gênero despolitizaria os
nas reflexões sobre o poder. Em Vigiar e punir, o filósofo expli-
! movimentos e que não seria possível fazer política sem partir
ca cuidadosamente como a concepção do poder como locali-
dos sujeitos concretos, no caso do movimento feminista, as
zável e repressor não dá conta da realidade histórica contem -
mulheres. A história provou o contrário. Na nova política de
porânea, na qual o poder está em toda parte e opera também
gênero, seja lá nos Estados Unidos, quer seja aqui no Brasil,
por meio da incitação dos sujeitos a agirem de acordo com
ganharam espaço problemáticas trazidas por trabalha~ores do
os interesses hegemônicos. Nessa perspectiva, o poder deix;a
sexo, transexuais, travestis e mesmo por pessoas que as vezes
de ser algo facilmente associado a alguém ou a uma institui-
ção, o rei ou a presidência, por exemplo, e passa a ser visto estão dentro de relações com pessoas do sexo oposto, que po-
como uma situação estratégica em uma dada sociedade em deriam ser vistas como pessoas modelares socialmente, mas
certa época. Passamos, portanto, de uma teoria do poder para que não ~creditam nessas normas e acham que é uma violê~­
o desafio de lidar com ele como relacional, histórico e cultural- cia que elas, as normas, sejam impostas. Os hetero-queer sao
mente variável, ou seja, por meio de uma analítica. 11 muito numerosos, politicamente engajados com as pessoas
que sofrem estigma e são relegadas à abjeção. Em comum, essa
A maior parte do movimento feminista e do movimento
nova onda dos movil)lentos sociais problematiza a cultura e
homossexual das décadas de 1960 e 1970 era liberacionista,
a imp~sição social de normas e convenções culturais que, de
ou seja, via mulheres e homossexuais como sujeitos oprimi- 1
forma astuciosa e frequentemente invisível, nos formam como
dos que deveriam lutar pela liberdade. Eram movimentos que
concebiam o poder como repressivo e operando de cima para sujeitos, ou melhor, nos assujeitam.
baixo, por exemplo, pelas elites dominantes contra o povo. A Mas, afinal, o que aconteceu para que a nova política de
despeito das demandas inovadoras de reconhecimento das gênero originasse uma corrente teórica? Para compreen~er
diferenças, operavam com a inspiração teórica marxista que isso, é necessário recapitular a forma como as transformaçoes
marcara o antigo movimento operário. De forma muito sim - políticas e culturais da década de 1960 repercutiram na pro-
plificada, era como se a luta de trabalhadores contra o capital dução do conhecimento. Esse cenário foi fundamen,tal no qu,e
estivesse sendo apenas adaptada a um contexto em que novos toca às reflexões sobre a sexualidade como algo que e constrm-
sujeitos lutavam contra outras formas de opressão. A partir do socialmente, e não algo meramente biológico. Até por volta
do final da década de 1980, com a disseminação do conceito da década de 1960, tomava-se a sexualidade como uma área da
de gênero e a incorporação das ideias de Foucault sobre uma vida humana que era explicada pela Biologia, pela Medicina,
analítica do poder, a nova política de gênero começa a modifi- na melhor das hipóteses pela Psicanálise, até que, em 1968, há
car essa forma de conceber a luta política e a apontar como é a a publicação, na Inglaterra, do artigo "The Homossexual Role"
cultura e suas normas que nos criam como sujeitos. (O papel homossexual), escrito pela socióloga Mary Mclntosh.
Esse é 0 primeiro texto que vai dizer claramente que a homos-
11
A ideia de uma analítica do poder deriva de sua compreensão como uma situação sexualidade é algo socialmente forjado.
estratégica em uma certa época e sociedade. Assim, o poder não é localizável em Não por acaso, o artigo de Mclntosh foi publicado no pa-
uma instituição ou posse de alguém, sendo antes, reconhecível em sua dinâmica
sempre variável em termos históricos e culturais. Sobre essa transformação na forma radigmático ano das transformações estudantis na França, no
de compreender as relações de poder'<\onsulte também a excelente introdução de Brasil, no México, nos Estados Unidos. Já na década de 1970,
Roberto Machado ao citado livro de Foucault.

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/ 1
há um florescimento dos estudos gays e lésbicos com obras de entre diferentes formas de amar. As pessoas nunca couberam
pesquisadores/as como o sociólogo britânico Jeffrey Weeks. apenas em um número limitado de orientações do desejo.
No Brasil, isso se dará por meio das pesquisas de Michel Mis- O segundo aspecto é que foram feministas que criaram
se, Carmen Dora Guimarães, Peter Fry, Edward MacRae, entre a Teoria Queer, feministas mulheres e homens. Enquanto a
outros. 12 Havia uma tentativa de mostrar que a sexualidade maior parte dos estudos gays eram feitos por homens que nã.o
era construída, e que gays e lésbicas eram mais normais ou co- liam as feministas, a Teoria Queer é uma vertente do fem1 -
muns do que se pensava, mas, contra seu próprio interesse, os nismo. Verdade seja dita, é uma vertente que vem questionar
estudos gays e lésbicos corroboravam a ideia de que a maioria se 0 sujeito do feminismo é a mulher. Até hoje boa parte da
das pessoas eram heterossexuais e que a homossexualidade era produção feminista é feita com o pressuposto de que gênero é
algo restrito a uma minoria de pessoas diferentes que a socie- mulher. A Teoria Queer lida com o gênero como algo cultural,
dade precisava aprender a conhecer e respeitar. assim, o masculino e o feminino estão em homens e mulheres,
Os estudos queer vêm modificar isso, especialmente a nos dois. Cada um de nós - homem ou mulher - tem gestuais,
partir de 1990, quando são lançados três de seus l\vros inau- formas de fazer e pensar que a sociedade pode qualificar como
gurais: Problemas de gênero de Judith Butler, One Hundred masculinos ou femininos independentemente do nosso sexo
Years of Homosexualíty (Cem anos de homossexualidade) de biológico. No fundo, o gênero é relacionado a normas e con-
David M. Halperin e, sobretudo, o grande livro fundador da venções culturais que variam no tempo e de sociedade para
Teoria Queer, A epistemologia do armário, de Eve Kosofsky sociedade.
Sedgwick. O que esses primeiros estudos queer já vão modifi- Em outras palavras, a Teoria Queer tem um duplo efei-
car? Primeiro, o pressuposto de que a maioria é heterossexual to: ela vem enriquecer os estudos gays e lésbicos com sua
é altamente questionável porque se a homossexualidade é uma perspectiva feminista que lida com o conceito de gênero, e
construção social, a heterossexualidade também é. Então, o também sofistica o feminismo, ampliando seu alcance para
binário hetero-homo é uma construção histórica que a gente além das mulheres. Mas, como toda vertente teórica, ela reúne
tem que repensar. Até mesmo dados empíricos, como os que diferentes autores/as e perspectivas sob um mesmo rótulo cria-
surgiram a partir de pesquisas sócio-antropológicas durante a do a posteriori. Historicamente, o termo "Teoria Quee~" foi
epidemia de HIV/aids, mostravam que as pessoas transitavam cunhado por Teresa de Lauretis, em 1991, como um rotulo
que buscava encontrar o que há em comum em um co~junto
12
muitas vezes disperso e relativamente diverso de pesqmsas.
O primeiro estudo sociológico brasileiro sobre homossexualidade, orientado por
Florestan Fernandes, foi desenvolvido no final da década de 1950 e publicado por Uma vez, em Ann Arbor, quando fazia pós-doutorado na
José Fábio Barbosa da Silva como ''.Aspectos sociológicos no homossexualismo em Universidade de Michigan, vi um livro em uma loja cujo título
São Paulo" (1959), na revista Sociologia, da Esc~ de Sociologia e Política. Infeliz-
mente, a pesquisa não teve repercussão e o autor mudou-se para os Estados Unidos. jocoso ajuda a entender a distinção entre os estudos gays e a
Apenas na década de 1970 há uma re-emergência do tema, agora em outra chave, Teoria Queer. Não se trata de um livro importante, é apenas
em O estigma do passivo sexual (1979) de Michel Misse. A partir da década de 1980, de divulgação, mas seu título é ótimo, algo parecido "Como os
os trabalhos de Peter Fry, Edward MacRae, Carmen Dora Magalhães e Néstor Per-
longher marcaram o início de uma concentração dos estudos sobre sexualidade na estudos gays traíram o mariquinhà'. Os estudos gays, em sua
Antropologia Social. No início do século XXI, com a disseminação de fontes queer, maior parte, eram estudos sobre homens que adotavam uma
há uma considerável ampliação dos estudos sobre sexualidade em áreas como a
postura masculina, uma imagem de respeitabilidade social,
Sociologia, a Educação, a Psicologia, a História, a Linguística e até a Teologia.

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- - - - - ·- -"'----'---'-------- - - -
a qual, hoje em dia encontramos na mídia, especialmente na r lação à sexualidade de todo mundo, seja daquele que foi
voltada para este público, como um homem de classe média rejeitado e aprendeu que não era normal, seja de quem adotou
ou alta, branco, másculo. e que, quando musculoso, termina os normas e se inseriu socialmente de uma forma mais fácil,
por ser o que, em ambientes metropolitanos como o paulis- digamos assim, é a experiência da injúria.
tano e o carioca, chamamos de "barbie': Focando nesse perfil
As pessoas aprendem sobre sexualidade ouvindo injúrias
de homossexualidade ou criando estudos sob sua perspectiva, om relação a si próprias ou com relação aos outros. Na escola,
os estudos gays deixaram de lado aqueles que eram xingados .e quer você seja a pessoa que sofre a injúria, é xingada, é humi-
maltratados por romperem normas de gênero.
lhada; quer seja a que ouve ou vê alguém ser maltratado dessa
Como profissionais da educação costumam testemu- forma, é nessa situação da vergonha que descobre o que é a
nhar, são meninos femininos e meninas masculinas, pessoas sexualidade. É claro que, dessa forma, isso se transforma em
andróginas ou que adotam um gênero distinto do esperado um traumas, e tudo é pior pra quem é humilhado e maltrata-
socialmente, que costumam sofrer injúrias e outras formas de do, mas também não é nada agradável alguém que - mesmo
violência no ambiente escolar. Será mero acaso que homens e não sendo xingado - descobre que seu colega está sendo hu-
mulheres que constroem um perfil de gênero esperado e es- milhado e maltratado por causa disso. É assim que as normas
condem seu desejo por pessoas do mesmo sexo sofram menos se fazem valer.
perseguição? A sociedade incentiva essa forma "comportadà: Daí ser simplista resumir essas violências no termo "ho-
no fundo, reprimida e conformista, de lidar com o desejo, in- mofobia", à violência dirigida a homossexuais, pois essas vio-
clusive por meio da forma como persegue e maltrata aqueles lências se dirigem a todos e todas, apenas em graus diferentes.
que são cotidianamente humilhados sendo xingados de afemi- , Essas violências são expres"são do heterossexismo, da forma
nadas, bichas, viados, termos que lembram o sentido original orno somos socializados dentro de um regime de terrorismo
de queer na língua inglesa.
ultural. Uso esse termo forte, "terrorismo cultural", para res-
Um olhar queer sobre a cultura convida a uma perspec- saltar que se trata de algo coletivamente imposto e experien-
tiva crítica em relação às normas e convenções de gênero e iado; sobretudo, algo que vai além de atos isolados de violên-
sexualidade que permitem - e até mesmo exigem - que mui- ia. Em uma perspectiva sociológica, há uma lógica de impo-
tas pessoas sejam insultadas cotidianamente como esquisitas, sição de normas por trás de uma forma de violência sempre
estranhas, anormais, bichas, sapatões, afeminados, travestis, à espreita, pois quando sabemos que ela pode acontecer, mas
boiolas, baitolas, e por aí vai. Pensem sobre essas pessoas e não quando nem de onde ela virá, aprendemos a nos compor-
ficará um pouco mais claro, espero, por que queer não é ape- tar de forma "segura", ou seja, de umaforma que nos coloque
nas sinônimo de gay ou de homossexual. Também espero que ao abrigo de suas manifestações. O terrorismo cultural é um
percebam que nada, ou muito pouco, adianta buscar passar nome que busca ressaltar a maneira como opera socialmente
da injúria para uma tabela de identidades, de forma que fosse o heterossexismo, fazendo do medo da violência a forma mais
possível dizer assim: "eu vou respeitar fulano, porque fulano ficiente de imposição da heterossexualidade compulsória.
é tal coisà: A ideia não é apenas descobrir a forma correta de Na vida social, mas sobretudo na escola, aprendemos as
chamar alguém, mas, antes questionar esse processo de clas- formas coletivamente esperadas de ser por meio da persegui-
sificação que gera o xingamento: a primeira experiência com ção às maneiras de agir e ser rejeitadas socialmente. Na esfera

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:1. "~

do desejo e da sexualidade, a ameaça constante de retaliações e Capítu lo li


violências nos induz a adotar comportamentos heterossexuais.
Por isso, o que a mídia chama de homofobia atinge mais visi- Estranhando a Educação
velmente quem é xingado, humilhado ou sofre violência física,
mas também constitui um fenômeno que envolve a todos: a
vítima, o algoz e as testemunhas. Em um episódio de violên- 1

cia há aquele que é atacado injustamente, o que ataca fazendo '


valer uma norma social e quem testemunha a cena. Frequente-
mente, quem assiste não consegue agir e tende a ver na violên- No Brasil, um dos primeiros textos em português so-
cia um alerta para aceitar a norma, caso não queira se tornar bre o queer, de 2001, é o "Teoria Queer: uma política pós-
a próxima vítima. identitária para a educação", de Guacira Lopes Louro, pu-
Atos isolados de violência emergem quando formas an - blicado na Revista Estudos Feministas. Devem existir razões
teriores, invisíveis de violência, se revelaram ineficientes na que expliquem por que, no Brasil, a Teoria Queer teve essa
imposição de normas ou convenções culturais. Estes atos cha- acolhida a partir da Educação, assim como de outras áreas,
mam mais nossa atenção, mas não podem nos iludir como como a Comunicação, a Linguística e a Psicologia, as quais -
sendo as únicas formas de violência que se passam no con- historicamente - não eram marcadas pelas preocupações que
vívio social. Na verdade, ironias, piadas, injúrias e ameaças regem a teoria ou a política queer. Trata-se de uma caracte-
costumam preceder tapas, socos ou surras. A recusa violenta rística da nossa recepção e é algo positivo, pois ampliou o in-
'
de formas de expressão de gênero ou sexualidade em desacor- teresse por temas como sexualidade, normalização e controle
do com o padrão é antecedida e até apoiada por um proces- social para várias áreas do conhecimento, as quais podem vir
so educativo heterossexista, ou seja, por um currículo oculto a encontrar no queer uma linguagem comum para dialogar e
comprometido com a imposição da heterossexualidade com- pensar diferentemente.
pulsória. Um comprometimento em construir uma experiên- Historicamente, a emergência de uma corrente cultu-
cia educacional que tenha uma perspectiva queer exige lidar ralizada do marxismo conhecida como Estudos Culturais se
com a experiência da abjeção como algo concernente a todos deu inicialmente na Inglaterra, em Birmingham, e associou o
e que não deveria ser parte da experiência educacional. 1
trabalho de educação de adultos a uma maior atenção à expe-
1
riência social das classes populares. Isso enriqueceu a produ-
ção acadêmica de autores como Richard Hoggart, Raymond
Williams e E. P. Thompson, e repercutiu em áreas como a So-
ciologia, a História e a Educação no Brasil. 13 Nossa recepção se
r
deu por meio da ênfase dos pesquisadores ingleses na "experiên -
' eia'' das pessoas do povo, na valorização de empreendimentos

13 Uma das melhores introduções aos Estudos Culturais em português é a da dupla de


pesquisadores franceses Mattelart e Neveu (2004).

34 35

/
históricos e sociológicos que recontassem a história oficial sob t ar a diversidade. A proposta do queer é muito mais fazer um
sua perspectiva. diálogo com aqueles e aquelas que normalmente são desqua-
Por razões de circulação intelectual e do perfil do mar- 11rtcados do processo educacional e também do resto da ex-
xismo predominante em nosso país, menor atenção foi dada p riência de vida na sociedade, e é esse diálogo que pode se
às rupturas que as gerações seguintes dos Estudos Culturais tornar a própria educação, mudando o papel da escola. Não é
introduziram na pesquisa social. Assim, foi apenas no final da pouca coisa, é realmente ambicioso, um desafio a ser encarado
década de 1990 que as vertentes contemporâneas dos Estudos · acompanhado em tudo que tem de promissor e incerto.
Culturais que passaram a lidar com questões étnico-raciais e Historicamente, a escola foi durante muito tempo um lo-
sexuais, os Estudos Pós-Coloniais e a Teoria Queer, tiveram al de normalização, um grande veículo de normalização es-
recepção entre nós. Profissionais da educação como Tomaz Lutal. O processo de educar e a expansão do sistema de ensino
Tadeu da Silva foram fundamentais nesse processo de seleção, foram importantes pra criar as nações contemporâneas. Ha-
tradução e publicação de obras desses saberes que se desenvol- via interesse do Estado em utilizar o aprendizado e a cultura
veram em relação crítica com as disciplinas acadêmicas insti- para unificar politicamente as nações, criando um sentimento
tucionalizadas e que, por isso mesmo, são também conhecidos mum de pertença, aquilo que Benedict Anderson chama
como Saberes Subalternos.14 d "comunidades. imaginadas". Na França, na Alemanha, em
A acolhida brasileira da Teoria Queer na área de Educa- muitos países, já no final do século XIX todo mundo estava
ção pode estar ligada a uma compreensível sensibilidade crí- na escola. Reconheço que é um avanço respeitável que todos
tica de nossas educadoras e educadores com relação às forças 1ivessem acesso à educação básica, mas é importante perce-
sociais que impõem, desde muito cedo, modelos de compor- er que isso se deu lá em um contexto que também envolvia
tamento, padrões de identidade e gramáticas morais aos estu- 1nteresse político. Era importante educar as pessoas para elas
dantes, sobretudo crianças e jovens. Trata-se, portanto, de uma tl rem cidadãs de um Estado-nação. Havia interesse político
acolhida positiva e louvável, pois é bom saber que o público n Estado em ter pessoas para governar.
da área de educação tem esse interesse e está fazendo algo que, i
A observação acima visa a mostrar que a educação foi,
em outros países, permanece como uma especulação desvin- nos termos de Foucault, um meio da biopolítica, uma forma
culada da prática e, por isso mesmo, menos apta a interferir e p derasa de normalização coletiva. Isso já havia sido percebi-
~ impulsionar a mudança social. 1
d em parte, até mesmo por Durkheim, um dos fundadores da
Mas ainda permanece a questão: como incorporar o queer Sociologia, em fins do século XIX. Em meados do século XX,
1 na educação? A primeira coisa seria ter um diálogo crítico e T\rving Goffman, um sociólogo da Escola de Chicago, já oh-
não assimilacionista dentro do espaço escolar, porque isso não $ rva que era na escola - justamente dentro desse processo de

apenas tende a tornar a escola melhor, quer dizer, não esta n rmalização - que as pessoas entrariam em contato pela pri-
retórica de falar: vamos \fazer a escola mais agradável, respei- meira vez com a sociedade e suas demandas. Isso porque, mui-
l frequentemente, nas famílias é claro que você está inserido
na sociedade, mas você tem um certo cordão de proteção com
14
Saberes que até recentemente não tinham reconhecida sua cientificidade, por serem
relação a muitas demandas exteriores ao círculo do parentes-
localizados e construídos a partir da experiência, o que os colocava em desacordo
com a suposta imparcialidade e generalidade da ciência (FOUCAULT, 2000).
1
º· Na escola, tal cordão desaparece, e é aí que descobrimos
!

36 37
que somos acima do peso, ou magros demais, feios, baixos, As ordens arquitetônicas são tecnologias de construção de
gagos, negros, afeminados. Em suma, é no ambiente escolar gênero, de discriminação. Mas já somos capazes de perceber
que os ideais coletivos sobre como deveríamos ser começam que são estúpidas também, porque ficar preso nunca fila com
a aparecer como demandas e até mesmo como imposições, em pessoas enquanto o outro banheiro ficar vazio porque é
muitas vezes de uma forma muito violenta. para homem se torna absurdo. Percebi e incentivei que as pes-
Hoje em dia, a gente acabou criando um nome para o soas começassem a entrar. Então as mulheres começaram a
caráter violento da socialização escolar: bullying. Alguns entrar no banheiro masculino, de forma que foi bom constatar
imaginam se tratar de um fenômeno novo, mas, no fundo, que também emerge uma nova sensibilidade para o absurdo
o assédio moral sempre foi parte do processo educacional. de certas normas que se impunham de forma tão poderosa por
O bullying não foi inventado nos últimos anos, o que mudou meio de uma placa na porta. Verdade seja dita, na porta de um
foi nossa sensibilidade com relação às formas de violência cômodo no qual as pessoas lidam com sua intimidade, com
que ele expressa. A escola era partícipe do assédio moral de seus corpos sexuadas.
tal forma que, normalmente, a educação era bullying: você Como disse antes, o queer é relacionado a tudo que é so-
entrava e se enquadrava. Havia um currículo oculto, um pro- cialmente chamado de estranho, anormal e, sobretudo, abjeto.
cesso não dito, não explicitado, não colocado nos textos, mas A abjeção pode ser de diversas formas: você ser classificado
que estava na própria estrutura do aprendizado, nas relações de negro em uma sociedade que já foi escravista é uma ma-
interpessoais, até na própria estrutura arquitetônica, que
neira de ser subalternizado e te relegar a uma posição com
continua a ser normalizadora.
menos direitos ou reconhecimento. Mas, não por acaso, a ab-
Recordo-me que, antes de subir ao palco para a Aula jeção costuma lidar com o que há de mais íntimo em nós, daí
Magna, no intervalo para o café, observei algo interessante no ser compreensível que ela passe muito pela sexualidade. Infe-
teatro da UFOP. Fui ao banheiro e havia uma fila inacreditável lizmente, muitas vezes, ao usarem a palavra "sexualidade': as
de mulheres para entrarem no banheiro feminino, não tinha pessoas tendem a pensar apenas em relações sexuais, mas a
quase ninguém para entrar no banheiro masculino. Parem sexualidade vai muito além disso.
para pensar em como essa distinção arquitetônica nos obriga
A sexualidade envolve desejo, afeto, autocompreensão e
a descobrir toda hora o nosso gênero e a nossa sexualidade. Na
até a imagem que os outros têm de nós. A sexualidade tende
hora de lidar com tudo de mais íntimo somos levados a nos
a ser vista, por cada um de nós, como nossa própria intimi-
separar em duas filas, duas portas, dois compartimentos arqui-
dade, a parte mais reservada, às vezes até secreta, de nosso
teturais. O banheiro público, como a escola, é uma tecnologia
eu. Assim, não surpreende que a sociedade tenha encontrado
de gênero que merece ser repensada. Divisões arquitetônicas
nela um meio de normalizar as pessoas. Foi a partir de uma
são algumas das formas que a sociedade encontra de colocar
maneira de tornar essa sensação mais íntima, mais preciosa e
cada um no seu quadrado e, sobretudo, no caso do banheiro,
1 pessoal em algo que é motivo de chacota, xingamento e de hu-
no seu lugar dentro do bináifio masculino e feminino. 15
milhação. A abjeção acaba sendo maior via sexualidade por-
15
que ali se unem esses sentimentos mais profundos, em que a
A partir do conceito de tecnologia de gênero de Teresa de Lauretis, a teórica queer
Beatriz Preciado analisa a ordem arquitetural como criadora de gênero e sexualida-
pessoa mais se sente em confronto com a ordem social. Quer
de. Sobre os banheiros, consultar seu artigo online "Basura y género''. você esteja apaixonado por uma pessoa do mesmo sexo ou do

38 39
sexo oposto, não importa, toda pessoa que está envolvida na 11 1111 1 Y l1 ~1.11cia
e repúdio. A partir da ideia de abjeção, compreen-
questão da afetividade e do amor se vê necessariamente num d1 •1nos a dinâmica coletiva que gera a injúria e a violência
particular, num pessoal, e aí qualquer espécie de norma social 1 ontra aqueles e aquelas que explicitam a instabilidade dos
que venha mexer com isso acaba sendo violenta. 1 n •ros e, das formas as mais diversas, encarnam a diferença,
A abjeção é, portanto, facilmente associada à sexualidade. o qu não se anula na familiaridade do óbvio ou na reconfor-
Mas, afinal, o que seria abjeção? Esse termo tão usado pelos 111111 ' mesmice em que descansa o olhar cotidiano.
teóricos queer, sobretudo por Judith Butler, tem origem na A partir da experiência histórica recente da aids, a ab-
Psicanálise, mas foi repensado por feministas como Julia Kris- 1\· o ganhou maior relevância na forma como passamos a
teva e antropólogas como Mary Douglas. O abjeto é algo pelo IH' ll Sar as relações sociais. Em nossa sociedade, o desejo por
que alguém sente horror ou repulsa como se fosse poluidor ou p ·ss as do mesmo sexo tende a ser visto como algo abjeto,
impuro, a ponto de ser o contato com isso temido como conta- 1• ·ss triste fato ajudou a caracterizar a eclosão da epidemia
minador e nauseante. Acho que isso ajuda a entender de onde d • 1CIV/aids na década de oitenta como um pânico sexual,
brota a violência de um xingamento, de uma injúria. Quando 11 ma reação contra a homossexualidade, entendida como
alguém xinga alguém de algo, por exemplo, quando chama 11111 0 espécie de ameaça coletiva. Se isso já se passava antes,
essa pessoa de "sapatão" ou "bichà: não está apenas dando um l partir da epidemia essa noção foi reforçada e dissemina-
"nome" para esse outro, está julgando essa pessoa e a classifi- da, de maneira que, até hoje, ser chamado de homossexual
cando como objeto de nojo. A injúria classifica alguém como qu ase sempre equivale a ser xingado, um chamado a se auto-
"poluidorà: como alguém de quem você quer distância por 1 ompreender e, ao mesmo tempo, a constatar a condenação
temer ser contaminado. o ial do que se é.
Mary Douglas, em Purity and Danger: an Analysis of the A experiência da abjeção deriva do julgamento negativo
Concept f Pollution and Taboo, seu famoso livro da década de ol r o desejo homoerótico, mas sobretudo quando ele leva ao
1960, explica como a dinâmica da abjeção opera de maneira rompimento de padrões normativos como a demanda social
que as pessoas sejam induzidas socialmente a "extirparem" d •que gays e lésbicas sejam "discretos': leia-se, não pareçam
de si mesmas, em geral de formas dolorosas, o que é consi- (' I' rays ou lésbicas, ou, ainda, de que não se desloque os gê-
derado pela coletividade como "impuro': incorreto ou, em 11 •r sou se modifique os corpos, o que, frequentemente, torna
termos atuais, anormal. Socializar-se, portanto, costuma ser 111 •ninos femininos, meninas masculinas e, sobretudo, traves-
um processo marcado por formas muito violentas de recusa, 1I, transexuais vítimas de violência. Esses exemplos que mos-
em si mesmo, do que a sociedade quer evitar como "conta- 1r 11n como a sociedade reage mais violentamente com relação
minante': seja uma identidade de gênero diferente das mais lO rompimento das normas ou convenções de gênero do que
conhecidas ou formas de des~o fora do modelo em voga. oin relação à orientação sexual. Por isso, homens gays que
Julia Kristeva, em Pouvoirs de l'horreur, enfatiza como nossa 1dotam uma estética masculina e um estilo de vida hegemô-
sociedade compreende como abjeto o que, na visão hegemô- 11 I o sofrem menos violência e, de certa maneira, até mesmo
nica, não deveria ser visível. Abjeto e obsceno (que significa ·ontribuem para corroborar a heteronormatividade.
fora de cena) se aproximam, revelando o que a sociedade A heteronormatividade é um regime de visibilidade, ou
preferia não ver e que, ao adentrar o espaço público, causa , cja, um modelo social regulador das formas como as pessoas

40 41
!

se relacionam. Em nossos dias, a sociedade até permite, mi- 11 ormas e convenções sociais, elegendo algozes e vítimas em
nimamente, por sinal, que as pessoas se relacionem com pes- ll lll \1 concepção simplista do que é a vida social.

soas do mesmo sexo; portanto, ao menos para alguns estratos As normas sociais não escolhem sujeitos, elas se impõem
1

sociais privilegiados, já não vivemos mais em pleno domínio '' 1 todos e todas, mesmo àqueles e àquelas que jamais consegui-
da heterossexualidade compulsória. Nas classes médias e al- I' 0 atendê-las, daí, nessa perspectiva, se dissolver o paradoxo
'
tas urbanas, sobretudo metropolitanas, ganhou clara visibi- ., li parente de mulheres machistas, gays homofóbicos ou negros
lidade a existência de pessoas que se interessam por outras 1· 1 istas. Afinal, ideais coletivos moldam todos nós, e eles se
do mesmo sexo. Nesse contexto, não é possível dizer que se fniem valer por normas e convenções culturais que deveriam
nega a elas a homossexualidade, mas a sociedade ainda exige H 'f nosso alvo crítico em busca da construção de uma socieda-
o cumprimento das expectativas com relação ao gênero e a j
d mais justa e igualitária. Em uma perspectiva queer, a edu-
um estilo de vida que mantêm a heterossexualidade como ·oção pode evitar, ou pelo menos contribuir, para que tod~s,
um modelo inquestionável para todos/as. tiuaisquer que sejam as suas decisões sobre as suas relaç?es
Assim, é compreensível que haja tantos casais gays que morosas e sexuais, não adotem irrefletidamente preconceitos
buscam, com grande dificuldade, adotar um padrão héteroem p r meio da adesão a modelos comportamentais.
seus relacionamentos. Isso é clara expressão da vigência da he- 1 Não por acaso, a heteronormatividade é o grande alvo
teronormatividade, dentro da qual uma relação só é reconhe- queer, pois ela não é apenas restrita aos heterossexuais. A he-
1
cida socialmente se seguir o antigo modelo do casal heteros- l ronormatividade é um problema inclusive entre homosse-
sexual reprodutivo. A demanda recente pelo casamento gay, imais. De uma forma simplificada, vou apresentar definições
adoção de crianças e reconhecimento dessas relações como 1 d três conceitos que estão frequentemente nos textos, nos
modelo familiar corroboram esse novo momento histórico l lvros, nos sites, mas que vêm sendo utilizados sem nenhum
marcado mais pela heteronormatividade do que pela heteros- j
rigor teórico, tampouco acurácia históri~a. Refiro-me ~~s
sexualidade compulsória. 16 nceitos de heterossexismo, heterossexualidade compulsona
Infelizmente, há uma cumplicidade por parte também ' heteronormatividade.
da maioria de gays e lésbicas com essa expressão mor de Heterossexismo é a pressuposição de que todos são, ou
violência que é uma fobia do rompimento heteronormati- 1 1 veriam ser, heterossexuais. Um exemplo de-neterossexis-
vo. Não estou falando isso para culpabilizar gays e lésbicas mo está. nos máteriais didáticos que mostram apenas casais
por uma forma de violência simbólica criada socialmente. É 1
1 formados por um homem e uma mulher. A heterossexuali-
sempre perigoso cair naquela retórica reacionária que tende 1
dade compulsória é a imposição como modelo dessas r_e!a.:: ..
a jogar a culpa pelo preconceito na própria vítima. Meu obje- ões amorosas ou sexuais entre pessoas do sexo oposto. Ela
tivo aqui é atentar para como tod9-8 nós estamos implicados se expressa; fteqúentemente, de forma indireta', por e~e.~~lo,
em regimes de normalização e compreender isso exige não por meio da disseminação escolar, mas t~mbem midia~1~a,
nos apegarmos a uma forma vitimizadora de compreender as apenas de imagens de casais heterossexuais. Isso relega a m-
visibilidade os casais fo,rmados por dois homens ou duas mu-
i heres. A heteronormatividade é a ordem se ual do presente,
16
Sobre o caráter normalizante de certas demandas políticas, em especial a de direitos
por meio do casamento, consultar Miskolci (2007) e Raup-Rios e Oliveira (2012).
fundada no modelo heterossexual, familiar e reprodutivo. Ela

43
42

/
se impõe por meio de violências simbólicas e físicas dirigidas 111 xi mo, tolerado. Comentei desde o início que, nos últimos
principalmente a quem rompe normas de gênero. Em outras 1111os, o termo "diversidade" entrou em voga no Brasil. Pro-
palavras, heterossexismo, heterossexualidade compulsória v 1v ·!mente, isso se deu por meio de políticas internacionais,
e heteronormatividade são três coisas diferentes, conceitos 1111 s pensemos um pouco sobre isso, porque vale a pena par-
importantes que nos auxiliam a compreender a hegemonia i 1 dos termos que nos são dados pelos órgãos de fomento e
cultural héteroem diferentes dimensões.
d1•s ·onstruí-los para criar a nossa abordagem.
Infelizmente, quase toda educação e produção de co- ual o problema do termo "diversidade"? f'.. ideia de di-
nhecimento ainda é feita em uma perspectiva heterossexista. vt•rsidade surge da preocupação com conflitos étnico-raciais,
Quando algo se apresenta como neutro, como "científico': 1• 111 smo culturais, na Europa e na América do Norte, entre as
de~e-se desconfiar de que foi feito em uma perspectiva mas- dt'•·1das de 1980 e 1990. Nesse período, havia, por exemplo,
culma, branca, ocidental, cristã e heterossexual. Um olhar d •sdc conflitos culturais entre diferentes comunidades de imi-
a partir das diferenças na educação implica tentar perceber 11" 1ntes de ex-colônias na Inglaterra, na França e na Holanda
os modelos, os padrões; em outras palavras, as normas e as 11 1\ na América do Norte, a rivalidade entre as partes de fala
convenções culturais que buscam se impor de forma indireta 11' 111 esa e inglesa no Canadá, que levou até a uma tentativa de
por meio, por exemplo, do material didático ou das discus- l r msformar o Quebec em um outro país. Nos Estados Unidos,
sões correntes na mídia.
llO 1ní.cio da década de 1990, entraram para a história episó-
De certa maneira, um olhar queer é um olhar insubor- tliol) de conflitos raciais entre negros e brancos, como os que
dinado. É uma perspectiva menos afeita ao poder, ao domi- 1 pn saram em Los Angeles. É nesse contexto histórico de
nante, ao hegemônico, e mais comprometida com os sem I'." rnde preocupação social que surge a demanda por reflexões
poder, dominados, ou melhor, subalternizados. Na esfera da 1 1d micas e políticas apaziguadoras e conciliatórias.
sexualidade e do desejo, a maior parte do que é reconhecido Assim, em 1990, é lançado um texto fundamental sobre
socialmente como discurso autorizado a falar é produzido 11 tema, The Politics of Recognition (A política do reconheci-
dentro de uma epistemologia dominante, criada sob essa su- 1111•nt·o), do filósofo canadense Charles Taylor. Nesse artigo,
posta "cientificidade': que pouco difer~ de um compromis- 1t uma reflexão que serve de base para boa parte do que foi
so com a ordem e o poder. Daí o caráter normalizador nas pmduzido daí em diante sobre diversidade, tanto em termos
abordagens pedagógicas que adotam a perspectiva da saúde ll td micos como na forma de políticas sociais. A noção de
pública para falar de sexualidade. Infelizmente, na maioria , 11v •r idade bu_sça compJ.~!.~~r ~ d~iiâ§S por r~910, /
dos casos, essa abordagem tende a associar sexualidade com 11or n esso SLdir_~~tqs_ pgr p m;~_de.p.ess.o--ªs ue hi~ica.me.nt~
doença, com ameaça coletiva, o que reforça padrões morais 11 o tiveram esses direit~_!;!.fQ!!,h~ç_L~, como negros, po-
antiquados, mas poderosos.
vo • indígenas, homÓg;~~uais, mas de forma que esses direi-
Padrões morais costumam ser a via de entrada de nor- los particulares sejam reconhecidos dentro de um contexto
mas e convenções na experiência educacional. Distinguir entre 11 1-1 tit ll ional universalista.
c~ncepções de educar voltadas para a diversidade ou para a sociedades democráticas como a francesa, por
11111
diferença pode ser um meio profícuo de evitar que 0 aprendi- 1 1•mplo, o universalismo se choca com demandas de reco-
zado redunde na manutenção da diferença corno algo a ser, no 1ti H d rnento vindas de grupos historicamente considerados

44
45
minoritários. Em uma ordem republicana universal, não há na mesma sala, mas você não interfere na minha vida e eu nã<-0
espaço para demandar particularidade, diferença, daí os con- interfiro na sua e não interferiremos na de fulano. Além de serr
flitos que medidas como a proibição do uso do véu, por parte impossível ocupar o mesmo espaço sem se relacionar e inter-_
de mulheres muçulmanas, provocaram e ainda provocam por ferir, a retórica da diversidade parece buscar manter intocadaa
lá. A rationale que guia o princípio do Estado laico exige que a cultura dominante, criando apenas condições de tolerânciaa
todos/as, sem exceção, deixem de usar qualquer símbolo reli- para os diferentes, os estranhos, os outros.
gioso dentro de prédios públicos como as escolas.
Não por acaso, a Teoria Queer e os Estudos Pós-Colo-,_
Em países como os Estados Unidos ou o Canadá, a con- niais surgem articulados a uma reação crítica a essa retóricaa
cepção política de nação é mais permeável a demandas dife- da diversidade, também conhecida como multiculturalismo».
renciadas, por isso o Estado adota medidas de reconhecimento Em 1993, por exemplo, ela é ironizada por Michael Warnerr,
e/ou políticas como as ações afirmativas que visam, por exem- na primeira compilação de estudos queer, intitulada Fear O)j
plo, a ampliar o acesso de negros e mulheres às universidades, a Queer Planet (Medo de um mundo queer) como "a polític2a
e mesmo a postos de trabalho.
do arco-íris': a utopia de uma sociedade em que as diferença~s
No Brasil, em que a República foi criada em fins do XIX conviveriam em harmonia, assim como apresenta a bandein'a
de forma a preservar os privilégios das classes dominantes do movimento homossexual, criada na década de 1970.
brancas, ricas e letradas, em fins do século XX começamos No mesmo ano, Homi Bhabha publicou um artigo intitula1-
a ver a emergência - com muita polêmica - de demandas do ''A outra questão': no qual coloca em xeque a ideia de diver~­
de reconhecimento e ações afirmativas. As políticas gover- sidade, por que as pessoas não estão demandando tolerância1,
namentais criadas sob o rótulo da diversidade buscam fa- mas sem reconhecimento, passa pela transformação da cultun:a
zer frente a esse novo cenário cultural e político tão recente hegemônica. Ou seja, não adianta dizer: "vivemos numa socie~­
quanto imprevisível.
dade universalista, a cultura é para todos"; pois aí tem espaçeo
Creio que a razão histórica das políticas públicas voltadas para cada um, desde que a cultura continue sendo o que ela ~­
para a diversidade fica clara, mas mais difícil é compreender A proposta dos pós-coloniais, dos queer, em suma, dos sabere~s
o que há de problemático na perspectiva da diversidade. Na subalternos, é a de uma política da diferença, o reconhecimen1-
\ minha visão, as demandas socjais são de reconhecimento da to de quem é diferente pra transformar a cultura hegemônicai.
\ d,ifer_ença, ~as~ filtro político as trad{lz na linguagem d~ Em resumo, uma política da diferença emerge como crítica dco
'-- E_ancia da d1vers1dad~. TQle~ ~ui~iferente de reconhecer multiculturalismo e da retórica da diversidade, afirmando a ne~­
o Outro, de valorizá-lo em sua especificidãdê;' e conVi~rcom cessidade de ir além da tolerância e da inclusão mudando a cul[-
a cli~sid~~ambém não quer dizer aceit~-la._ Em term~~ ~ó~ tura como um todo por meio da incorporação da diferença, dco
ricos, diversidade é uma noção derivada de u~a concepção reconhecimento do Outro como parte de todos nós.
muito problemática, estática, de cultura. É uma concepção de A diversidade trabalha com uma ideia de poder horizontal!,
cultura muito fraca, na qual se pensa: há pessoas que destoam por isso eu gosto do mote popular que define o multiculturalis,_
da média e devemos tolerá-las, mas cada um se mantém no mo como "cada um no seu quadrado': porque ele traduz, ironii-
seu quadrado e a cultura dominante permanece intocada por amente, como isso visa a manter as relações de poder intocai-
esse Outro. Na escola, seria como se disséssemos: estaremos das. Ao contrário, na perspectiva da diferença, reside a propostta

46
4 .7
de mudar as relações de poder. Veja-se, por exemplo, a propos-
feminismo, a Teoria Queer e os Estudos Pós-Coloniais - , de-
ta queer de repensar o aprendizado a partir da experiência da
vem os colocar em xeque a forma de criação do conhecimento
humilhação e do xingamento. Quer dizer, é você tomar o que
não era ~em considerado passível de ser feito como ponto de atual, a epistemologia vigente, de forma a mostrar c~m~ seu
partida. E ressignificar como fundamental o que antes não era poder e autoridade derivam não de sua neutralidade cientifica,
mas sim de seu comprometimento com o poder.
trazido ao discurso como questão: a normalização pela injúria
e pela humilhação. Em uma perspectiva das diferenças, queer, Na esfera das práticas sociais, em particular na educação,
não normativa, ao invés de permitir que o processo educacional uma perspectiva subalterna exige essa atenção ao que os .pro-
continue a usar essas ferramentas para forçar as pessoas a "en- cessos educacionais antigos mais temiam: a diferença, o mes-
trarem nos eixos': pode-se pensar na possibilidade de usá-las perado, o criativo, o novo, o que realmente p?de ~udar ~ or-
para modificar o processo educacional. dem do poder. Distinguir entre diferença e diversidade aJuda
a compreender mais claramente a proposta queer. ~-­
Estamos diante de uma proposta de lidar com as diferen-
ças que eu chamaria de uma proposta "subalternà'. Sintonizados pectiva não normativa pode causar !IlU_danças mesi:io d~ntro
com a definição que a feminista Joan W Scott atribui a diferença e programás que fêJE ~ t~tulo_j.e div~.rsid~ Se a ~iversidade
como a "designação do outro, que distingue categorias de pessoas apela paTa-ilmaêÜncepção horizontalizada de relaçoes, ~~ ~ue
a partir de uma norma presumida (muitas vezes não explicita- se afasta -o conflito e a divergência em nome ~rnj 1.'.1fªº'
da)" (SCOTT, 1998, p. 297), é possível pensar em um exercício lidar ~om a diferença é in<:QDJ.ensuráve!. Mas as diferenças têm
0 po~~ld~ m~dificar hierarquias, colocar en: ~iálogo os
transformador de trazer ao discurso, e questionar, esta norma
presumida que, por tanto tempo dirigiu o aprendizado a favoi: subalternizados com o hegemônico, de forma, qmça, a mudar
do poder hegemônico. Desconstruir as normas e, sobretudo, as a ordem hegemônica, a mudar' a nós mesmos. A dife:ença nos
convenções culturais impostas por uma tradição que se imiscui convida ao contato e à transformação; ela nos convida a des-
em nosso cotidiano violentando nossos desejos e mesmo nossa cobrir 0 Outro como uma parte de nós mesmos.
humanidade seria um primeiro passo insuoordinado no cami- Daí a perspectiva não normativa de educação mostrar qu~
nho da transformação da cultura. . a experiência da abjeção não diz respeito apenas a quem f~i
qualificado de anormal, estranho, mas constituiu quem nos
Na visão das correntes teóricas e políticas inspiradas
pelas diferenças, é necessário compreender o processo de su- somos e muito frequentemente Cf' que a sociedade nos fez crer
balternização pra mudar a ordem hegemônica. Em outras pa- que é 0 que há de pior em nós. A educ~çã.o, infelizmente, até
lavras, elas releem e reatualizam o marxismo na vertente cul- hoje se constituiu em um conjunto de tecmcas que busca fa~er
0 Outro ser do jeito que a gente quer. E isso é realmente mmto
turalizada do pensador italiano Antonio Gramsci. De forma
geral, segundo Gramsci, a cultura hegemônica não é resultado triste, algo autoritário, normativo, violento. A gente ap~ende a
de uma dominação coercitiva direta, mas, antes, o resultado ensinar como se ensinar fosse um processo bem-sucedido em
de um contexto em que os próprios subalternizados apoiam que no final, todo mundo pensa como você, age como você e
os dominantes. A hegemonia é resultado da cumplicidade dos vive como você. Talvez, espero, tenhamos começado a reava-
dominados com os valores que os subalternizam. Na perspec- liar isso, e, ao invés de educar para homogeneizar ou alocar
tiva dos saberes subalternos - aqui compreendidos como confortavelmente cada um em uma gaveta, estejamos come-
0 çando a aprender a nos transformar por meio das diferenças.
48
49
Capítulo Ili

Um aprendizado
pelas diferenças

Chegamos, por fim, aos desafios de uma educação não


normalizadora, ou, como eu preferiria pensar, um aprendiza-
do pelas diferenças. Serei mais breve nessa parte porque ela se
refere a uma possibilidade e só o tempo dirá se ela se tornará
algo concreto. Também porque não é nenhum segredo que
sou apenas um sociólogo em diálogo com a área de educação,
alguém treinado mais teórica e metodologicamente do que
para o difícil exercício de articular conhecimento e prática.
O grande desafio na educação talvez permaneça o mes-
mo: o de repensar o que é educar, como educar e para que
educar. Em uma perspectiva não normalizadora, educar seria
uma atividade dialógica em que as experiências até hoje invisi-
bilizadas, não-reconhecidas ou, mais comumente, violentadas,
passassem a ser incorporadas no cotidiano escolar, modifican -
do a hierarquia entre quem educa e quem é educado e buscan-
do estabelecer mais simetria entre eles de forma a se passar
da educação para um aprendizado relacional e transformador
para ambos.
O título deste livro, Teoria Queer: um aprendizado pelas
diferenças, surgiu dessa ideia de uma educação que não impu-
sesse modelos preestabelecidos de ser, de se compreender e de
classificar de uns aos outros. Isso para que a educação buscasse
deixar de ser um dos braços de normalização biopolítica para
o Estado e passasse a ser um veículo social de desconstrução
de uma ordem histórica de desigualdades e injustiças. De certa
maneira, isso se configura como a compreensão da educação
para muito além da escola, em suas relações profundas - apesar

51
de frequentemente pouco exploradas - com os interesses co- educacional sob o controle do Estado, o que se passou nos pa-
letivos, sociais e políticos. Nas palavras da também socióloga íses centrais ainda no século XIX. Vale a pena pensar como
Berenice Bento: aqui, no Brasil, em que a democratização do acesso à educação
Para se compreenderem os motivos que fazem da escola básica se deu tão tardiamente e se aprofundou recentemente,
um espaço destinado, fundamentalmente, a reproduzir os após a redemocratização, em meados dos anos 1980, isso já se
valores hegemônicos, é necessário sair desse espaço, am- deu dentro de uma relação menos submissa entre a sociedade
pliar nosso olhar para a própria forma como a socieda-
de produz as verdades sobre o que deve ser reproduzido,
civil e os interesses estatais. Sugiro que a recepção e o interesse
quais os comportamentos de gênero sancionados e por que atual da área da Educação brasileira nas questões das diferen-
outros são silenciados e invisibilizados, qual a sexualidade ças de gênero, raciais e sexuais têm relação com o momento
construída como "normal" e como gênero e sexualidade se histórico em que a expansão do sistema de ensino se deu em
articulam na reprodução social. Essas questões não podem
nosso país. Em outras palavras, nós, tanto acadêmicos quan-
ser respondidas exclusivamente nos limites da escola. Há
um projeto social, uma engenharia de produção de corpos to educadores/as, estamos criando diálogos antes incipientes
normais, que extrapola os muros da escola, mas que en - graças a uma recente democratização da sociedade brasileira,
contrará nesse espaço um terreno fértil de disseminação os quais, espero, possamos aprofundar ainda mais.
(BENTO, 2011 , p. 555-556).
Nesse contexto, não é mero acaso que tanto se fale sobre
O primeiro passo nessa direção me parece ser o de iden - os conteúdos usados em sala de aula, já que apenas em socie-
tificar e desconstruir os pressupostos de neutralidade sob os dades democráticas se pode discutir e reavaliar o que se con-
quais se assentaram durante tanto tempo o processo educati- sidera como relevante de ser aprendido, ao invés de tomar os
vo e o espaço escolar, ambos associados ao que Bento chama livros, por exemplo, como portadores de saberes obrigatórios.
de "engenharia de produção de corpos normais''. Algo apenas Considero interessante a proposta de criar outros materiais
viável quando educadoras, mesmo mantendo seus pés na sala escolares ou mesmo lidar com o material disponível de outra
de aula, ampliam seu olhar para o que vincula o cotidiano ali forma. Ao invés de encarar o material como conteúdo a ser
dentro com o espaço mais amplo das interações além dos mu- assimilado e decorado, seria inteiramente pensar nele como
ros da escola. Nesse sentido, posso dar meu testemunho de base para refletir e questionar. Diante de uma imagem familiar
que foi essa constatação que me fez compreender o que tem branca, heterossexual e de classe média estampada nas páginas
vinculado meu trabalho como sociólogo com o de profissio- de um livro de alfabetização, caberia um exercício de desenhar
nais área de educação: nossos esforços se encontram na per- a mais próxima de cada um dos estudantes em todas as suas
cepção de como o processo educativo e a reprodução social particularidades no que toca a diferenças socioeconômicas,
estão intrinsecamente ligados. Uma reprodução que, infeliz- número de pessoas sob o mesmo teto, raça, religião, identida-
1 mente, tende a inculcar e disseminar valores preconceituosos
que engendram formas diversas de desigualdade social.
de de gênero, configurações amorosas.
Durante a maior parte da história, as referências cultu-
Historicamente, nenhum outro espaço institucional foi rais em torno das quais se desenvolveu o aprendizado cons-
tão claramente usado como uma tecnologia de normalização tituíam modelos e padrões educativos vinculados ao que o
quanto a escola. Como já comentei, a expansão do modelo Estado queria impor como ideal. No Brasil, por exemplo, a
de nação ainda hegemônico dependeu da expansão do aparato chamada "ideologia do branqueamento" de fins do século XIX

52 53
\
\
e começo do século XX foi sucedida, a partir da década de imaginar, e conhecer nossas origens culturais para além de um
trinta, pela de democracia racial. Estes ideais de nação se ex -
imaginário ocidental e europeu ainda é um desafio.
press~ram e se disseminaram por meio de textos, imagens e
Nesse sentido, é revelador como até recentemente não
demais mensagens culturais inculcadas desde a infância na
tínhamos acesso a bom material em português sobre História
população educada. A crença altamente contestável de que
da África, criado também por pesquisadores africanos e sob
não há racismo no Brasil, ou de que não se deve discutir
uma perspectiva que não insere a cultura africana dentro de
questões raciais ou implementar políticas de ação afirmativa,
uma ordem mundial moldada pelos interesses e padrões eu-
deriva muito desse ideal de nação fundado em uma imagem
ropeus.17 Abordar criticamente as dinâmicas em que contri-
de harmonia social, a ordem, como condição imprescindível
para alcançarmos o progresso. buições culturais africanas e indígenas são reconhecidas em
sua incorporação subalternizada em nosso país é um exer-
Historiadores e sociólogos mostram como toda nação é cício promissor no desenvolvimento de uma nova ideia de
imaginada como uma comunidade com fronteiras que defi- nação brasileira, mais próxima das experiências concretas do
nem quem dela participa e quem é dela excluída, ou seja, a povo e positivamente mais distante dos velhos ideais de nos-
nossa imagem de nação também comporta discriminações e sas elites. Ao contrário do que afirmam os defensores atuais
exclusões. Encará-las é reconhecer a existência de diferenças, da manutenção da teoria da democracia racial, a verdadeira
dissonâncias e dissidências na sociedade em relação ao que 0 d~mocracia só surgirá quando interpretações do que somos
Estado tentou construir como ideal. Trata-se de um exercício dialogarem com as experiências concretas e diversas de nos-
intelectual .e político de mirar a sociedade como algo distinto sa população distribuída por um território tão vasto quanto
e mais rico do que os modelos querem aceitar. A educação, marcada por experiências e especificidades culturais diversas
e a escola em particular, tendeu a ser usada como um meca - e pouco reconhecidas.
nismo de socialização que era também de normalização das
Não por acaso, a concepção dominante de nação tendia
diferenças, seu apagamento ou enquadramento nos modelos
a minimizar o papel das mulheres, vistas apenas como mães e
que interessavam aos interesses políticos do alto.
esposas, restritas ao espaço doméstico, portanto, confinadas à
No Brasil, esses interesses foram marcados por um ideal reprodução e ao cuidado dos homens, apresentados como os
de nossas elites políticas, intelectuais e econômicas de criar verdadeiros cidadãos nacionais, senhores do espaço público e
uma "civilização nos trópicos': umq nação à semelhança dos da política. A historiadora Margareth Rago mostrou como até
modelos europeus ou norte-americanos. Um ideal que igno- meados do século XX mulher pública era sinônimo de pros-
rou ou deu menos relevância à influência da cultura africana tituta, o que desqualificava a mulher para a esfera do poder e
e da indígena para o que somos hoje em dia. A ideia ainda associava a sexualidade feminina ao crime e ao rompimento
corrente de miscigenação como sinônimo de brasilidade, por da m~ral. Se, desde a década de 1960, as feministas nos ensi-
exemplo, deixa de explicitar que essa hibridez é sempre apre- naram que o privado é político, ainda enfrentamos a dificuldade
sentada de forma a priorizar o que nos aproxima do Ocidente
branco usando ou reconhecendo a influência de outras cultu-
ras apenas para nos singularizar nesse Ocidente. Mas o Brasil 17
Refiro-me aqui à importante tradução da História geral da África para o português,
coordenada por meu colega de departamento, Valter Roberto Silvério, e disponível
é mais diverso do que o ideal de nossas elites jamais conseguiu
para download livre no site da UNESCO: <www.unesco.org>.

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55
de reconhecer e mudar os termos em que as relações de poder forma de preconceito que só recentemente começamos a reco-
se dão na esfera da sexualidade e do desejo. nhecer como digna de recusa. O que quero dizer é que as de-
mandas de normalidade atingem as pessoas para muito além
A esfera da sexualidade e do desejo, mais presente no
chamado "currículo oculto': ainda aguarda por ser trazida ao do binário hetero-homo.
discurso e ao debate como parte constitutiva do que apren- De forma muito parcial e provisória, vou destacar só dois
demos a compreender como mais íntimo, pessoal e, muitas aspectos do que seria interessante pensar em uma educação
vezes, o que nos é mais caro. Assim, valeria começar retirando queer. Primeiro, superar de vez, isso é fundamental, qualquer
a heterossexualidade da posição de sujeito universal neutro, visão da sexualidade apenas como algo biológico como, um
perceber que os programas educacionais, as escolas, as ordens tópico para lidar com DSTs, gravidez na adolescência, todo
arquitetônicas são construídas numa perspectiva heterossexis- esse discurso que no final é normalizante. Também é neces-
ta, a qual faz valer a heterossexualidade compulsória e/ou a sário superar essa ideia da orientação sexual como a maneira
heteronormatividade por meios antes invisíveis de violências, correta de ensinar a quem amar. Temos que encarar o desafio
das quais as mais óbvias e mortais têm sido progressivamente possível de lidar com a sexualidade como algo cultural e que
identificadas como homofobia. influencia todos os aspectos da nossa vida em sociedade. Pre-
dsamos repensar nossos modelos de recusa, mas também os
Mas é importante não "trocar seis por meia dúzia" apenas
de aceitação. Nesse sentido, temos que olhar mais criticamen-
buscando "incluir" as diferentes expressões da (homos)sexua-
te para as representações culturais com as quais vivemos, nos
lidade. Podemos fazer mais e melhor questionando o próprio
divertimos e também aprendemos. Poderíamos tentar inserir
binário hetero-homossexual (ou mesmo a tríade hetero-
homo-bi) como um esquema rígido e restrito que jamais abar- ruído, inserir dúvida sobre coisas que antes ainda eram vistas
cou toda a variedade de expressões afetivas e sexuais humanas. como naturais ou indiscutíveis.
Se somos capazes de perceber que as pessoas cada vez menos De certa maneira, as diferenças que ressaltei anteriormen -
cabem em binários como homem-mulher, masculino-femini- te se relacionam e se misturam na vida social, daí termos que
no, hetero-homo, é porque mal começamos a compreender pensar nelas como interseccionais. Ao invés de refletir sepa-
como as pessoas transitam entre esses pólos, ou se situam en- radamente sobre raça, gênero ou sexualidade, podemos ver
tre eles de formas complexas, criativas e inesperadas. esses eixos de diferenciação social como marcas da diferença,
A pirâmide da respeitabilidade se:x:ual mudou e não pode daquele rompimento normativo que coloca em xeque os ideais
mais ser compreendida de forma fácil, esquemática ou biná- que uma sociedade cria sobre si mesma. A educação costuma-
ria.18 Vejamos, por exemplo, quem é mais respeitada: uma lés- va ser parte da engenharia social voltada para concretizar essa
bica dentro de uma relação estável e talvez até com filhos, ou imagem ideal ou modelar por mecanismos normalizadores
uma mulher solteira de 50 anos? Muitas vezes, essa mulher sol- que confundíamos como educativos, mas que agora começa-
teira de meia idade sofre tanto, mais, ou ao menos uma outra mos a reconhecer em seu caráter autoritário e interessado. Em
outras palavras, a educação era fundamental na disseminação
de um ideal hegemônico da sociedade, mas parece ter desper-
18
Refiro-me aqui à ideia de Gayle Rubin de como nossa sociedade tem uma pirâmide tado para seu potencial político de transformação do ideal em
da respeitabilidade sexual, inicialmente apresentada em seu artigo Pensando sobre
Sexo (1984).
algo mais democrático e afeito às experiências subalternizadas.

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56
O ponto de contato da educação escolar com a sociedade, O conflito injusto e desigual entre um menino e a institui-
não por acaso, se dá por meio de um diálogo cotidiano com ção escolar me fez pensar em como a educação ainda é despre-
a realidade familiar dos estudantes. Ao contrário do que se parada para lidar com as diferenças. Também me levou a re-
pensa, essa proximidade mais visível com a esfera do privado fletir sobre o desafio que seria transformá-la em algo diverso,
não restringe seu papel social e político, pois, historicamen - pautada menos pelo objetivo de inculcar valores dominantes e
te, a família foi criada como uma instituição-chave na con- conteúdos previamente definidos e mais pelo questionamento
solidação da ordem social em que vivemos. Da afirmação de das injustiças e do diálogo com os anseios dos/as estudantes.
que a família é a "célula mater da sociedade': que disseminou Desejos silenciados antes mesmo de chegarem às palavras, já
o mito da família burguesa como base de uma coletividade que lhes falta vocabulário para expressá-los, tanto pela tenra
segura, percorremos um longo caminho para chegar - talvez idade quanto pela forma como a educação tende a restringir
ainda timidamente demais - às problemáticas atuais em que seus horizontes, ao invés de expandi-los.
reconhecemos as violências e desigualdades presentes nesse Giancarlo e sua família se descobriram na linha de fogo,
arranjo doméstico, como o abuso sexual infantil ou a violência pressionados e demandados pelas educadoras a fazer fren-
contra a mulher. Passamos de uma idealização da família para te a demandas sociais de enquadramento a um modelo he-
a contestação de que ela seria necessariamente local de aco- gem.ô nico de família. Ele era visto pelas educadoras como
lhimento, mas ainda temos dificuldade de pensar além dela. um "menino afeminado", para o que buscaram solução de
Constatei isso de forma mais clara quando li um ensaio do diversas formas até chegarem a um diálogo com seu pai e,
jovem sociólogo peruano Giancarlo Cornejo, no qual ele ana- principalmente, com sua mãe. Sinceramente preocupadas
lisa sua própria experiência na escola. 19 Em "A guerra declara- com o bem-estar e o acolhimento desse menino "diferente"
da contra o menino afeminado" (2010), Cornejo relata que sua na escola, professores e psicólogas tentaram compreender
vida escolar foi marcada pela maneira como educadores o viam sua diferença, mas - baseados nas visões hegemônicas sobre
como estranho, delicado, em suma, um menino feminino. Ele gênero e sexualidade - terminaram por reduzir sua diferença
era um ótimo aluno, cumpria com todas as suas tarefas de estu- a algo a ser "sanado". O diálogo com a mãe revelou que ela o
dante, mas não se encaixava na imagem hegemônica de mascu- criara como uma criança inteligente e bem-comportada, mas
linidade. Assim, na perspectiva da escola, mesmo ele não sen- - curiosamente - essas qualidades o tornaram um problema
do "um garoto problemà: terminou sendo rotulado como um de gênero na visão dos outros.
"problema de gênero''. Seu relato analisa em detalhes as agruras Nessa forma rara e sensível de autoetnografia, Cornejo
pelas quais passou dentro da instituição educacional, na qual, parte de sua experiência escolar para discutir e criticar as con-
mesmo com as melhores intenções, as pessoas tentavam mudá- cepções dominantes do que é ser homem, mulher, masculino
lo, adaptá-lo, fazer dele o que não era, tampouco desejava ser. ou feminino. Ao terminar a leitura, percebi como o enfrenta-
mento da "inadaptação" do menino foi feito de forma que se
19
O texto completo foi publicado no número da revista Íconos dedicado à Teoria
reforçaram os valores e ideais sociais que o marcavam como
Queer na América Latina, e Larissa Pelúcio traduziu para o português a versão sin- diferente. Ao invés de problematizar o preconceito e as reações
tetizada do ensaio, apresentado originalmente no Seminário Internacional Fazendo dos colegas ao menino, os profissionais transformaram "a víti-
Gênero de 2010. Agradeço a Giancarlo Cornejo por autorizar sua republicação do
ensaio neste livro, como anexo. mà' no problema. No diálogo com a mãe, nota-se como toda

59
58
\ a sua dedicação ao filho foi desqualificada, pois ela gerou um !
A pessoa com quem alguém se casa é realmente a pessoa
"menino afeminado':
mais importante da sua vida? Na luta pelo casamento gay, Ju-
Sem perceber, as educadoras permitiram que a escola dith Butler recentemente ousou perguntar: por que a pessoa
policiasse tanto o menino quanto a mãe, investigando sua com quem você tem uma relação amorosa e sexual é justa-
unidade familiar e a classificando como uma aberração. To- mente aquela da qual você vai exigir um contrato com garan-
das as lutas e as duras vitórias dessa mulher que era o cabeça tias sobre bens, dinheiro, direitos? Muito frequentemente você
do casal terminam desqualificadas, e a feminilidade do filho é tem um amigo, ou uma amiga, que vai te acompanhar para o
apresentada como a prova de seu fracasso. O real interesse em resto da vida, e não esse companheiro ou companheira. Assim,
ajudar foi gerando sucessivos embaraços e violências simbó- quais são as relações que o Estado deveria conhecer como legí-
licas contra o estudante: a começar pela problematização da
feminilidade em um menino, passando pela investigação se o r timas? O casamento, a amizade, qual? Vejam, há questões mais
profundas que um olhar queer pode trazer sobre nossa vida
modelo de família era adequado até chegar à culpabilização da j em sociedade, como: Os pais precisam se casar para terem fi-
mãe, o cabeça do casal, esposa, portanto, de um homem que lhos? Uma mulher pode decidir não ser mãe?
não atendia completamente às demandas de enquadramento Em outras palavras, aprender a olhar para o mundo de
em um ideal de masculinidade que prescreve ser sempre ele o uma·maneira não normalizadora exige mais do que pensar em
"provedor': Esse episódio nos ajuda a compreender como as famílias diversas, em inclusão, em mais do mesmo. É possível
diferenças tendem a ser reforçadas pela escola, mas também
questionar a própria pressuposição de que é necessário repro-
pode ser pensado como exemplo de como ela se baseia em um duzir o existente quando podemos começar a transformá-lo.
ideal familiar poderoso e injusto.
A gente, hoje em dia, pode questionar o que existe, estranhar
Vou dar um último exemplo para tentar esclarecer esse o que nos propõem. Talvez se aprendermos a encarar nossos
limite que ainda enfrentamos quando lidamos com o ideal fantasmas naquele estudante esquecido ou acuado num canto
normativo de família como base da sociedade. No final do da sala, feito um corpo estranho, motivo de chacota, piadas,
curso Gênero e Diversidade na Escola da UFSCar em 2009, risinhos e, fora da sala, de empurrões, xingamentos e outras
pedimos que as educadoras fizessem um projeto de aplicação violências. Por que ele ou ela está ali neste local do incômodo,
do que tinham aprendido no curso em suas escolas. A maioria do que precisa ser exorcizado pela indiferença ou pela estig-
fez trabalhos sobre como respeitar as dif~renças. Vira e mexe matização, senão porque a sociedade teme algo nele/a? Isso
surgia um trabalho sobre famílias diversas em que propunham exige exorcizar não esse corpo estranho na sala de aula, mas o
atividades que mostravam que há famílias com dois pais, famí- medo que constrói a gramática educativa atual, ainda voltada
lias com duas mães e por aí vai. Mas uma educação não nor- para guardar esqueletos no armário.
mativa pode ir além disso. Pode questionar se realmente todos O que aconteceria se o estudante que incomoda pudesse
se casarão e/ou constituirão famílias. Todos deveriam se casar? falar em suas próprias palavras, ou melhor ainda, se a educa-
E quem não se casa? O casamento é necessário para constituir dora lhe fornecesse um novo vocabulário para se compreender
uma família? E as famílias fora do casamento são menos famí- e uma nova gramática? Nos termos de Gayatri Spivak, o su-
lia? Afinal, o casamento é obrigatório? Viver sozinho é proi- balterno não pode falar não apenas porque sua voz é inaudí-
bido? Alguém sem par deve ser socialmente desqualificado? vel no sistema capitalista, mas também porque ele ou ela não

60
61

/
A base da pirâmide da respeitabilidade social nos assom-
li
encontram palavras disponíveis para as formas de opressão 11
e desigualdade em que se encontram. Na visão da feminista bra com suas denúncias de maltratos, a descrição de formas
de sofrimento antes silenciadas e, por isso mesmo, longe de
pós-colonial, o silêncio e a invisibilidade em que se encon-
nossa capacidade de entendimento. Esses fatos e sensibilida- 1
tram muitas pessoas não será rompido apenas com a melhora
des demandam que uma das áreas historicamente mais usadas
de suas condições econômicas, mas apenas quando nós, inte- 1
pra inculcar normas e fazer valer o controle do Estado sobre a
lectuais, repensarmos nosso papel quando criamos conheci-
população mude para fazer frente às demandas daqueles que
mento, de modo a não reproduzirmos formas de pensar que
antes eram depreciados, vigiados e punidos e que agora po-
relegam boa parte da humanidade ao inarticulado ou "sem
dem ser reconhecidos em suas singularidades.
importâncià: Essa proposta crítica de Spivak pode ser expan-
dida para a esfera da educação, agora já compreendida como A demanda queer é a do reconhecimento sem assimila -
esse espaço dialógico que vincula reflexões sociológicas como ção, é o desejo que resiste às imposições culturais dominantes.
a minha com as experiências inovadoras e provocativas com A resistência à norma pode ser encarada como um sinal de
as quais educadores e educadoras se defrontam no dia a dia. 2º desvio, de anormalidade, de estranheza, mas também como a
própria base com a qual a escola pode trabalhar. Ao invés de
É compreensível que educadoras e educadores se vejam
punir" vigiar ou controlar aqueles e aquelas que rompem as
diante de uma demanda assustadora. Afinal, por que lhes cabe
normas que buscam enquadrá-los, o educador e a educado-
trazer a experiência desse Outro para o centro da sala? Ares-
ra podem se inspirar nessas expressões de dissidência para o
posta é tão simples quanto difícil: porque o medo e a vergonha
próprio educar. Em síntese, ao invés de ensinar e reproduzir
do Outro também têm eco neles. Não é nada fácil lidar com
a experiência da abjeção, o processo de aprendizado pode ser
o estigma e a abjeção, pois o que faz do Outro motivo de es-
de ressignificação do estranho, do anormal como veículo de
cárnio coletivo se transfere para quem ousa torná-lo visível,
mudança social e abertura para o futuro.
abrir-lhe espaço, deixá-lo falar. Há um vínculo moral com a
alteridade do qual não se pode fugir, por piores que sejam as
consequências para nós mesmos. Às vezes, salvar alguém se
impõe ao nosso próprio direito de autopreservação. 21 Se as
sensibilidades mudaram e formas ocultas de violência hoje
são visíveis e têm até nome é porque novas responsabilidades
se instalam em nossos corações.

20
Para se aprofundar nessas questões consulte o famoso texto de Spivak já traduzido
para o português como Pode o subalterno falar? (2010). Segundo ela, o papel dos in-
telectuais é o de criticar os fundamentos de uma maneira de conhecer que torna cer-
tas ex~eriências sociais, invisíveis ou irrelevantes. Em outros termos, ela atenta para
as v10len.cias ep1stemolog1cas que marcam a ciência oficial e hegemônica, apontando
a necessidade de construir outros saberes, mais afeitos à realidade daquelas e da-
ll
queles cujas vidas - e mortes - não são nem mesmo reconhecidas como existentes •
Sobre esse vínculo moral com a alteridade sob ameaça, consultar "Vida precárià'
(2011), de Judith Butler.

63
62
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homossexualidade. De fato, a psicóloga que mencionei decla-
rou que eu tinha um transtorno de identidade de gênero. Esse
tipo de teorias de gênero foram propostas inicialmente por psi-
cólogos como Richard C. Friedman, para quem "o homossexual
saudável é aquele que já é um adulto e age masculinamente"
(SEDGWICK, 1993, p. 156). Sedgwick, além disso, lembra que:
O movimento gay nunca foi a fundo para atender aos as-
suntos relativos aos meninos afeminados. Há uma razão

~ ,
22
Tradução de Larissa Pelúcio.
23
Sociólogo peruano, atualmente doutorando em Retórica na Unversidade da Califór-
nia, Berkeley.

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desonrosa para essa posição marginal ou estigmatizada à infância". Não obstante, ou talvez por isso mesmo, minha
qual, inclusive, os homens gays adultos que são afemina- intenção seja resgatar essas conexões e vínculos entre a
dos têm sido relegados no movimento social. Uma razão transgeneridade e a homossexualidade. Vale ressaltar que
mais compreensível que a "afeminofobia" é a necessidade
esses limites ou fronteiras tem sido amplamente proble-
conceitua! do movimento gay de interromper uma longa
matizados no caso das lésbicas masculinizadas (butch) e de
tradição de ver o gênero e a sexualidade como categorias
contínuas e coladas - uma tradição de assumir que qual- transgêneros masculinos, como os trabalhos de Judith Hal-
quer pessoa, homem ou mulher, que deseja um homem berstam (1998 e 2005) mostram. No entanto, no caso das
deve por definição ser feminina, e que qualquer pessoa, ho- feminilidades masculinas estas não parecem ser disputadas
mem ou mulher, que deseje uma mulher deve, pela mesma por gays (BRYANT 2008, VALENTINE 2007). No que escrevo
razão, ser masculina. Que uma mulher, como uma mulher, a seguir só poderei dar pistas de como a patologização da
possa desejar outra; que um homem, como um homem, figura do menino afeminado cria um tropo 24 discursivo que
possa desejar outro: a necessidade indispensável de fazer torna impossível desassociar a transgeneridade da homosse-
essas poderosas e subversivas afirmações pareceu, talvez,
xualidade (masculina).
requerer que se diminuísse a ênfase relativa dos vínculos
entre os gays adultos e aqueles meninos em desacordo com , Quase todos os meus professores me adoravam, mas me
o gênero (normativo) . .. Existe o perigo, no entanto, que lembro que os que lecionavam Educação Física eram parti-
esse avanço possa deixar o menino afeminado mais uma cularmente hostis a mim. Um desses professores falou com
vez na posição do abjeto inquietante - dessa vez o abjeto meu pai, porque estava preocupado comigo, e disse a ele que
inquietante do próprio pensamento gay ... o eclipse do me- eu era muito afeminado, e que todos meus colegas zomba-
nino afeminado no discurso gay adulto representaria mais vam de mim. Meu pai, ao chegar em casa, me repreendeu, e
que um vazio teórico prejudicial; representaria um nó de
não hesitou em me culpar pela hostilização sistemática pela
ódio homofóbico, ginecofóbico e pedofóbico internalizado
qual eu passava no colégio. Quando este professor chamou
e aniquilante e um elemento central para a uma análise gay
afirmativa. O menino afeminado viria a funcionar como o
meu pai para falar sobre o meu afeminamento, tornou-se
segredo das vozes desautorizadoras de muitos homens gays inevitável e óbvia a patologização do meu corpo, como das
adultos politizados" (p. 157-158). minhas performances de gênero. O que não era tão óbvio é
que, naquele momento, este jovem e atlético professor estava
O menino afeminado é um segredo nas vozes e pensa- reconhecendo a sua própria impotência para modificar meu
mento gay, e isso, pelos motivos apontados por Sedgwick, afeminamento, sua impotência para me fazer o homem que
talvez se deva a um terror à indeterminação de gênero. Final- se supunha que eu deveria ser, e sua impotência para mar-
mente, dissociar a homossexualidade da (menos respeitável) car claramente os limites entre ele e eu. Lembro-me de que
transgeneridade provavelmente tem sido uma das formas este não era um professor particularmente hostil a mim. De
pela qual a homossexualidade tem aparecido como menos fato, sempre me convidava para jogar futebol, ou para correr
ameaçadora, e foi certamente, uma das formas pelas quais com ele e seu grupo, para fazer longas caminhadas, para fa-
ela foi retirada da lista de patologias do Manual Diagnóstico e zer abdominais. Na verdade, era bem atencioso comigo. No
Estatístico dosTranstornos Mentais (DSM-III). Basta recordar
que o DSM-IV, publicado em 1980, foi o primeiro a incluir 24 Tropo é uma figura de linguagem em que ocorre uma mudança de significado, seja
uma nova entrada: "o transtorno de identidade de gênero na interna (no nível do pensamento) ou externa (no nível da palavra).

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entanto, eu recusava todos aqueles convites, não me deixava apagamento que aniquilava qualquer possibilidade de futuro .
impressionar por todos os seus esforços, e certamente não lhe Esse apagamento fazia com que o amor (de qualquer tipo) fos-
dava muita atenção.
se impossível para mim.
Como Sedgwick afirma, e meu pai nunca pode sequer Não posso negar que compartilhar o segredo me causou
considerar: "Para um menino afeminado protogay, identificar- algum tipo de alívio. Provavelmente, se não o houvesse feito
se com o 'masculino' pode implicar seu próprio apagamento" naquele momento teria integrado a lista de adolescentes gays
(SEDGWICK, 1993, p. 161). O que a cultura me demandava era que se suicidam. Mas, em que consistia o alívio? Esse cenário
que me desvanecesse.
não questiona (necessariamente) a privatização da homosse-
Halberstam cita uma potente -pergunta retirada da obra xualidade nem sua paródica espetacularização como segre-
de Gertrude Stein intitulada Autobiografia de todo o mundo do. Estou mais inclinado a pensar, seguindo Mario Pecheny
(de 1937): "De que te serve ser um menino se vais crescer para (2005), que cita o trabalho de Andras Zempleni, que não é a
ser um homem?" (HALBERSTAM, 2008, p. 23). De que me ser- revelação de uma verdade interna o que mais alivia, mas, ao
via ser um menino se minha infância era pensada como uma compartilhar um segredo (e talvez esse em particular), com-
transição a um espaço e a um nome que me parecia inabitá- partilha-se também a angústia e a dor que encarna a demanda
veis? Por que esse menino não podia ter outros futuros? de ocultá-lo/exibi-lo.
Por muitos meses sentia demasiada angústia, tinha insô- Essa pode ser vista como a cena em que saio do armário,
nia, me doía a cabeça e o corpo, chorava antes de dormir, me mas me recuso a chamá-la e pensá-la assim. Nenhum armário
encontrava querendo dizer coisas que não sabia o que eram foi destruído, nem os monstros que o habitavam foram doma-
exatamente, mas que tinha de dizer. Era Natal de 1996, tinha dos e aniquilados. O pedido ou súplica que fiz à minha mãe
onze anos, e estava só com minha mãe e meu irmão menor. não foi que me ajudasse a sair do armário, mas que o fizesse
E comecei a chorar, a chorar, a chorar com gemidos muito mais habitável para mim. Eu não saí do armário. Na verdade,
fortes. Então disse para minha mãe que tinha algo para dizer a ela entrou nele.
ela, e o que balbuciei foi: "Mãe, acho que eu tenho atração por Neste ponto se faz mais que necessária a seguinte pergun-
homens". Minha mãe também começou a chorar, porque ela ta: Por que uma guerra é declarada contra uma criança? Há
entendeu o que eu quis dizer. Logo, ela nos levou ao cinema uma potente citação de Sedgwick que pode nos dar algumas
para ver uma estúpida comédia de Arnold Schwarzenegger, pistas nesse sentido:
um suposto símbolo de masculinidade heterossexual branca.
A capacidade do corpo de um menino de representar, entre
Mas será que por acaso minha mãe suspeitava que ele também
outras coisas, os medos, fúrias, apetites, e perdas das pessoas
podia ser um ícone homoerótico?
ao redor [ .. . ] é aterrorizante, quem sabe, em primeiro lugar
Se esse menino (que eu fui) viveu meses e anos de dor, para elas, mas com um terror que o menino já aprendeu
angustia, pânico (homossexual), foi porque a díade segredo/ com grande facilidade e, de todos modos, com muita ajuda
revelação é constitutiva do que chamamos hoje de homos- (SEDGWICK, 1993 p. 199).

sexualidade (SEDGWICK, 1998). Esse segredo em questão me Toda essa dor, toda a angústia que senti nessa época d~
ameaçava com meu próprio apagamento, mas não apenas minha vida, podem também ser pensadas como melancolia. E
da materialidade que eu havia sido, como também com um aqui gostaria de fazer uma contribuição à teoria da melancolia

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de gênero de Butler (2001). Uma diferença entre a melancolia verdade interior, uma verdade que era eminentemente sexual.
heterossexual e a homossexual é que, como eu na minha in - Mas essa "verdade interna" não era tão minha. Nos termos de
fância, e a maioria de sujeitos não heterossexuais que conhe- Foucault: "aquele que escuta não será só o dono do perdão, o
ço, temos chorado (ou choramos) por não sermos heterosse- juíz que condena ou absolve; será o dono da verdade" (Fou-
xuais. Alguém poderia argumentar que não é que choremos CAULT, 2007, p. 84). Essa era a "verdade" de uma cultura hete-
ou tenhamos chorado por não sermos heterossexuais (e por ronormativa, não a minha. E como Halperin (2000) argumen-
não podermos amar e desejar sexualmente mulheres no caso ta, a homofobia é uma pretensão de conhecimento. Isso faria
de "sermos" homens), mas que choramos por não termos os visível que a homofobia tem um fundamento essencialmente
privilégios que a heterossexualidade implica. Mas estas duas prazeroso também, um prazer novo da modernidade sobre o
posições são (tão) diferentes uma da outra? qual Foucault comenta:
Aqueles "tratamentos psicológicos" procuravam, suposta- Frequentemente se diz que temos sido capazes de imaginar
mente, fazer com que minha homossexualidade fosse impro- prazeres novos. Ao menos inventamos um prazer diferente:
nunciável, mas faziam, na verdade, com que ela proliferasse e o prazer na verdade do prazer, prazer em sabê-la, em expô-la,
que tudo tivesse a ver com ela. Como Butler (2004) argumen- em descobri-la, em nos fascinar ao vê-la, ao dizê-la, ao cati-
ta, a homossexualidade em certos contextos pode constituir-se var e capturar os outros com ela, ao confiná-la secretamente,
como uma palavra contagiosa. ao desmascará-la com astúcia; prazer específico no discurso
verdadeiro sobre o prazer (FouCAULT, 2007, p. 89).
De fato, em nenhuma parte deste ensaio seria mais per-
tinente fazer referência à seguinte (e muito citada) passagem Não fui o único patologizado por esses professores, psicó-
de Michel Foucault: logas e psiquiatras; o foram também meus pais, especialmente
A sodomia[ .. .] era um tipo de ato interdito e o autor não minha mãe. Figuras como as do "pai ausente" ou "mãe super
era mais que seu sujeito jurídico. O homossexual do século protetora" não tardaram a aparecer como explicações de (pois
XIX torna-se um personagem: um passado, uma história e teria que ser explicado) meu afeminamento. Esther Newton
uma infância, um caráter, uma forma de vida; assim mesmo cita a obra de Robert Stoller, para quem a figura do menino
uma morfologia, com uma anatomia indiscreta e, quem sabe, afeminado é produto da grande proximidade e presença da
uma misteriosa fisiologia. Nada daquilo que ele é escapa a mãe e pouca do pai. Assim, "a verdadeira vilã é a mãe que se
sua sexualidade. Ela está presente em todo seu ser: subjacente
'gratifica' muito com seu filho" (NEWTON, 2000, p. 191). De
em todas suas condutas, posto que constitui seu principio
insidioso e indefinidamente ativo; inscrita sem pudor em seu
fato, quem me acompanhava às sessões com diferentes psicó-
rosto e seu corpo porque consiste em um segredo que sem- logas era minha mãe. A ela se dirigiam, e sobre ela recaíam as
pre se trai [... ] A homossexualidade apareceu como uma das atribuições de culpa e responsabilidade. E de que a culpavam
figuras da sexualidade quando foi rebaixada da prática da so- realmente? Talvez por atribuírem a ela aquele que é conside-
domia a uma sorte de androginia interior, de hermafroditis- rado o pior dos crimes: matar seu próprio filho. Nas palavras
mo da alma. O sodomita era um reincidente, o homossexual de Edelman, "[Se] representa a homossexualidade masculina
é, agora, uma espécie (FoucAULT, 2007, p. 56-57).
através da figura de uma mãe que mata seu filho, e quem por-
As inumeráveis psicólogas às quais fui levado por meus tanto, participa na destruição da continuidade familiar (pa-
pais esperavam de mim uma confissão, a confissão de minha triarcal)" (EDELMAN, 1994, p. 167).

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Como a homossexualidade de uma criança se transfigu- Referências
ra em seu assassinato? Creio que Stockton acerta ao postular
que "a frase 'menino gay' é uma lápide para marcar o lugar e
o momento em que a vida heterossexual de alguém morre"
(STOCKTON, 2009, p. 7). Em outras palavras, o berço de um
menino mariquinha é a lápide de um menino heterossexual.
A categoria "mulher" é reiterada uma e outra vez nestas
intervenções disciplinares sobre meu corpo de uma maneira
heteronormativa e misógina, que já Guy Hocquenghem su- BRYANT, Karl. ln Defense of Gay Children? 'Progay' Ho-
blinhou: "A 'mulher', que por outro lado não tem como tal mophobia and the Production of Homonormativity. Sexuali-
nenhum lugar na sociedade, designada como o único objeto ties, v. 11, n. 4, p. 455-475, 2008.
sexual social, é também a falta atribuída à relação homossexu- BUTLER, Judith. Lenguaje, poder e identidad. Madrid: Sín-
al" (HoCQUENGHEM, 2009, p. 54). tesis, 2004.
Minhá mãe era, assim, patologizada por seu generoso BUTLER, Judith. Mecanismos psíquicos del poder - Teorías so-
afeto, que por esses "profissionais da saúde" será chamado su- bre la sujeción. Madrid: Ediciones Cátedra, 2001.
perproteção e excessiva arrogância, e que geraria (em mim)
EDELMAN, Lee. Homographesis: Essays in Gay Literary and
um quadro de neuroses que estaria associado a um ódio em
Cultural Theory. New York; London: Routledge, 1994.
relação às mulheres, que seria no fundo uma projeção de um
ódio fecundo em relação a minha mãe. Minha mãe seria es- FOUCAULT, Michel. Historia de la sexualidad 1: la voluntad
sencialmente patologizada também por um outro excesso: de saber. México, DF: Sigla Veintiuno, 2007.
por um excesso de masculinidade, que se expressava em sua HALBERSTAM, Judith. Female Masculinity. Durham; Lon-
relativa independência, em sua voz, em suas atitudes (ou na don: Duke University Press, 1998.
ausência delas), e em ser a principal provedora econômica da HALBERSTAM, Judith. In a Queer Time and Place - Trans-
minha casa. Não era só meu gênero aquele a ser disciplinado, gender Bodies, Subcultura[ Lives. New York; London: New York
o dela também o era. University Press, 2005.
Na sua míope vontade de saber, o que nenhuma des- HALBERSTAM, Judith. Masculinidad femenina. Barcelona;
sas psicólogas pôde nem por um segundo considerar, e que Madrid: Egales, 2008.
Sedgwick sabia, e no que eu quero acreditar, é que "estas mis- HALPERlN, David. San Foucault: para una hagiografía gay.
teriosas habilidades para [que um menino afeminado possa] Córdoba: Ediciones Literales, 2000.
sobreviver, de filiação e de resistência podem derivar de uma
HALPERIN, David. How to Do the History of Homosexuality.
firme identificação com a abundância de recursos de uma
Chicago; London: The University of Chicago Press, 2004.
mãe" (SEDGWICK, 1993, p. 160).
HOCQUENGHEM, Guy. El deseo homosexual. ln: HOC-
QUENGHEM, Guy. El deseo homosexual - Con "Terror anal'',
de Beatriz Preciado. Espafi.a: Melusina, 2009. p. 21-131.

76 77
NEWTON, Esther. Margaret Mead Made me Gay: Personal Es-
says, Public Ideas. Durham; London: Duke University Press, 2000.
PECHENY, Mario. Identidades discretas. ln: ARFUCH, Leo-
nor (Comp.). Identidades, sujetos y subjetividades. Buenos Ai-
res: Prometeo Libros, 2005. p. 131-153.
SEDGWICK, Eve. Epistemología dei armario. Barcelona: Edi-
ciones de la Tempestad, 1998.
SEDGWICK, Eve. How to Bring Your Kids up Gay. ln: WAR-
NER, Michael (Ed.). Fear of a Queer Planet: Queer Politics and
Social Theory. Minneapolis; London: University of Minnesota
Press, 2007. p. 69-81.
SEDGWICK, Eve. Tendencies. Durham: Duke University
Press, 1993.
STOCKTON, Kathryn Bond. The Queer Child, or Growing
Sideways in the Twentieth Century. Durham; London: Duke
University Press, 2009.
VALENTINE, David. Imagining Transgender: An Ethnography
of a Category. Durham; London: Duke University Press, 2007.

78
EMPRÉSTIMO DE Richard Miskolci é
PUBLJCAÇÃO professor do Progra-
ma de Pós-Gradua-
Esta publicação deverá ser ção em Sociologia da
devolvida na última data indicada. Universidade Federal
de São Carlos. Coor-
• ~ "l.-!l!ti.!1.--J. ( 1 /o 'T:::1 _ . . _ _- - - - - j
r-u-g;~~
1
tl_!_L denou, na UFSCar, o
. 1 " curso Gênero e Diver-

~ffi!f »JJ]
sidade, oferecido na
modalidade a distância para mais de mil educado-
res/as em todo o país. A partir dessa experiência,
-frlljjEtjj ·- organizou o livro Marcas da diferença no ensino
escolar (201 O). Autor de diversos artigos sobre
1 ZO JUN 2013
~41~.:
1
_ ________-___- __-__] 1 sexualidade, gênero e Teoria Queer, coordena o
grupo de pesquisa Corpo, Identidades e Subjetiva-
ções (www.ufscar.br/cis), é pesquisador associado
ao Núcleo de Estudos de Gênero Pagu (UNICAMP)
r11-t{ \ . --
~
e membro do comitê editorial dos periódicos Ca-
1 --- - " - - -- - - - -- ----' dernos Pague Contemporânea - Revista de Socío-
i 1a~o EZ zm3 logia da UFSCar. Atualmente, finaliza seu livro O
:--. @~g -·-- desejo da nação, sobre as relações entre a política
e o desejo no Brasil de fins do século XIX, e desen-
- ~- __
·--·_.....,.. ..,,.,_,.... _ _ _ ___________ ·--- __ _ __,
.. ,, volve, com bolsa Produtividade em Pesquisa do
CNPq, investigação sobre o uso de mídias digitais
·---------~~-------· ·- ·-·- ·------- - - -! na sociedade brasileira contemporânea .

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1010918146
(,,. IFCH

306.43 M687t

Em LIVRO FOI COMPOSTO COM TIPOGRAFIA M INION PRO


E IMPRESSO EM PAPEL 0 FF-SET 75G PELA PAULI NELLI SERVIÇOS GRAFICOS.

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