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Corpos em aliança e
a política dasruás
Notas para uma teoria performativa de
assembleia

Tradução de
Fernanda Siqueira Miguens

Revisão técnica de
Cada Rodrigues

I'edição

g
CIVILIZAÇÃO l)RASILEIRA

Rio de Janeiro
2018
2. Corpos em aliança e a política das ruas

No Capítulo 1, sugeri que a política de gênero deve fazer alianças


com outras populações amplamente caracterizadas como precárias.
Apontei certas formas de mobilização de gênero que buscam esta-
beleceros direitos das minorias de gênero ou de pessoasfora da
conformidade de gênero a andar nas ruas livremente, a manter o
emprego e a combater o assédio, a patologização e a criminalização.
Para que a luta pelos direitos das minorias sexuais e de gênero seja
uma luta por )ustiça social, isto é, para que ela sejacaracterizada
como um projeto democrático radical, é necessárioperceberque so-
mos apenasuma das populações que têm sido, e continuam sendo,
expostas a condições precárias e de perda de direitos. Além disso, os
direitos pelos quais lutamos são direitos plurais, e essapluralidade
não está circunscrita, de antemão, pela identidade; isto é, não cons-
titui uma luta apenasde determinadas identidades, e certamente é
uma luta que procura expandir aquilo a que nos referimos quando
falamos de "nós". Assim, o exercício público do gênero, dos direitos
ao gênero, pode-se dizer, já é um movimento social, que depende
mais fortemente das ligações entre as pessoasdo que de qualquer
noção de individualismo. O seu objetivo é se opor às forças e aos

7S
CORPOSEM ALIANÇA E A POLITICA DAS RUAS CORPOSEM ALIANÇA E A POLÍTICA DA.SRUAS

regimes militares, disciplinadores e reguladores que nos exporiam que têm se formado para exercer os direitos das minorias sexuais e
à condição precária. E, embora as vidas possam ser precárias em de gênero devem, na minha visão, formar ligações, por mais difícil
decõrrência de uma variedade de doençase desastresnaturais, ainda que seja,com a diversidade da sua própria população e todas as li-
assim é verdade -- como vimos tão dramaticamente em New Orleans gações que isso implica com outras populações sujeitas a condições
durante e depois do furacão Katrina, em 2005 -- que as doenças po- de condição precária induzida no nosso tempo. E esseprocesso de
dem ou não ser tratadas pelas instituições existentes, que os desas- ligação, não importa quão difícil seja, é necessário, pois a população
tres naturais podem ser prevenidos em certas áreas e para algumas das minorias sexuais e de gênero é ela mesma diversa -- uma palavra
populações, enquanto não o são para outras, e tudo isso conduz a que não é precisa o suficiente para expressar o que eu gostaria de di-
uma distribuição demográfica da condição precária. E essaverdade zer; essegrupo secompõe de pessoasoriundas de diversos contextos
tem um sentido mais amplo para os pobres e para as pessoasem de classe,raça e religião, atravessandocomunidades de formação
situação de rua, assim como para aquelesque são expostos à insegu- linguística e cultural.
rança devastadora e à noção de um futuro destruído na medida em O que estou chamando de aliança não é apenas uma forma social
que as condições de infraestrutura desmoronam ou que o neolibera- futura; algumas vezesela está latente ou, outras vezes,é efetivamen-
lismo substitui as instituições de sustentaçãoda social-democracia te a estrutura da nossa própria formação subjetiva, como quando a
por uma ética empreendedora que exorta até mesmo os mais impo- aliança acontecedentro de um único sujeito, quando é possíveldi-
tentes a assumir a responsabilidade pela própria vida, sem depender zer: "Eu mesmosou uma aliança, ou eu me alinho comigo mesmoe
de mais ninguém ou de mais nada. É como se, sob as condições con- com as minhas várias vicissitudesculturais." O que significa apenas
temporâneas,estejasendo travada uma guerra contra a ideia de que o "eu" em questão se recusa a tornar secundário um estatuto de
interdependência, contra o que chamei, em outros momentos, de uma minoria ou lugar de condiçãoprecária vivido em favor de qualquer
rede social de mãos que busca minimizar a impossibilidade de viver outro; é uma maneira de dizer: "Eu sou a complexidade que sou, e
uma vida vivível. Assim, essesconjuntos plurais de direitos, direitos isso significa que me relaciono com os outros de maneiras essenciais
que devemos encarar como coletivos e corporificados, não são mo- para qualquer invocação desse'eu'." Uma visão como essa,que im-
dos de afirmar o tipo de mundo onde cada um de nós deveria ser plica uma relacionalidade social no pronome de primeira pessoa,
capaz de viver; em vez disso, elesemergemde um entendimento de nos desafia a compreender a insuficiência das ontologias identitárias
que a condição de precariedade é diferencialmente distribuída, e que para pensar o problema das alianças. Porque a questão não é que eu
tanto a luta contra quanto a resistência à precariedade têm que estar sou uma coieção de identidades, mas sim que já sou uma unidade,
baseadasna reivindicação de que as vidas sejam tratadas igualmente ou uma montagem,conforme o termo que Jasbir Puar adaptou de
e que sejam igualmente vivíveis. Isso também significa qual forma de Gilles Deleuze.' Mas talvez o mais importante sejam as formas de mo-
resistência em si, isto é, a maneira como as comunidades são organi- bilização animadas por uma consciência cada vez maior do grupo
zadas para resistir à condição precária, exemplifica, idealmente,os de pessoasque correm o risco de perder o emprego e ter sua casa
próprios valores pelos quais essascomunidades lutam. As alianças tomada pelo banco; do número de pessoasque correm um risco di-

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ferencial de sofrer assédio nas ruas, criminalização, encarceramento caso da campanha de p//zémasb/ng* em lsrael, que desvia a atenção
da grande criminalidade da sua ocupação, do confisco de terras
ou patologização; dos contextos raciais e religiosos específicosdes-
e das políticas de remoçõesforçadas)?Por mais que queiramos que
sas pessoas cujas vidas são consideradas dispensáveis por aqueles
os nossosdireitos sejam reconhecidos,devemosnos opor ao uso
que promovem a guerra. Na minha visão, essaperspectiva implica
dessereconhecimentopúblico dos nossosdireitos a fim de encobrir
a necessidadede uma luta mais generalizadacontra a precariedade,
ou desviar a atenção da privação massiva de direitos para outros,
uma luta que surja de uma sensaçãoexperimentada de precarieda- incluindo mulheres, qweerse minorias sexuais e de gênero que vivem
de, vivida como uma morte lenta, uma noção danificada de tempo ou sem os direitos básicos de cidadania na Palestina. Retomarei a esse
uma exposição não administrável à perda, ao prejuízo e à indigência assuntono Capítulo 3, no qual faço consideraçõesnão apenassobre
arbitral.ios -- essaé uma sensaçãoexperimentada ao mesmo tempo o que significa nos aliarmos uns aos outros, mas sobre o que signi-
singular e plural. A questão não é se reunir por modos de igualdade fica vivermos uns com os outros. Como tentarei demonstrar. uma
que nos mergulhariam a todos em condições igualmente não vivíveis. política de alianças se baseia eQ:.E.!çqyq11:uma ética de coabitação.
Ao contrário, a ideia é exigir uma vida igualmente possívelde ser vivi- Mas, por ora, deixem-me dizer que se a atribuição de direitos para
da, que também seja posta em prática por aquelesque fazem a reivin- um grupo é instrumentalizada para privar outro grupo de prerro-
dicação, e isso requer a distribuição igualitária dos bens públicos. O gativas básicas, então o grupo que tem essasprerrogativas está cer-
oposto da precariedadenão é a segurança,mas luta por uma ordem tamente obrigado a recusar os termos nos quais o reconhecimento
político e legal e os direitos estão sendo dados. Isso não significa que
social e política igualitária na qual uma interdependênciapossívelde
nenhum de nós deva abrir mão dos direitos existentes, mas apenas
ser vivida se torne possível -- esta seria, ao mesmo tempo, a condição
que devemos reconhecer que os direitos só são significativos no âm-
do nosso autogoverno como uma democracia, e a sua forma sustentada
bito de uma !uta mais ampla por justiça social, e que, se os direitos
seria um dos objetivos obrigatórios dessegoverno.
são distribuídos diferencialmente, então a desigualdadeestá sendo
Se pareço ter me afastado do gênero, asseguro que o gênero ainda instituída por meio do emprego e da justificação táticos dos direitos
está aqui. Porque uma das questõesque qualquer grupo que repre- para gays e lésbicas. Como consequência, proponho nos lembrar-
senteos direitos das mulheres e das minorias sexuais ou de gênero mos de que o termo q eer não designa identidade, mas aliança,
deve considerar é a seguinte: o que fazemos quando governos de e é um bom termo para ser invocado quando fazemosalianças difí-
Estado e organizações internacionais procuram defender os nossos ceise imprevisíveisna luta por justiça social, política e económica.
direitos a fim de conduzir campanhasanta-imigraçãode modo ex-
+

plícito jcomo temos visto na França e na Holanda), ou quando os


Estados chamam atenção para os próprios históricos de direitos hu-
manos relativamente progressistas no que diz respeito às mulheres, ' Lit., "lavar de rosa". O termo identificava campanhas contra o câncer de mama,
visando a melhorar a imagem de determinada marca. Passou a se referir a estraté-
às lésbicas,aos gays e às pessoastransgênerocom o objetivo de gias que, objetivando ao lucro, constroem uma imagem gay-friendly. No contexto
desviar a atençãode um registro atroz dos direitos humanos no que israelense,trata-se da promoçãode imagemde "paraíso LGBTQ" para encobrir
violações de direitos de palestinos, afirmando "um imaginário no qual as socieda-
diz respeito às populações cujos direitos básicos à autodetermina- des árabes e/ou muçulmanas seriam retrógradas e tirânicas." Cf. Gabriel Semere-
ne, "lsrael lava mais rosa", <revistageni.org/08/israe]-tava-mais-rosa/>. [N. da E .]
ção, ao movimento e às assembleias são negados (como acontece no

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REPETIDAS VEZES OCORREM manifestações de massa nas ruas e fato, nos espaçosvirtuais que estão igualmente livres da arquitetura
nas praças e, embora muitas vezes elas se)am motivadas por propó- da casae da praça. Então, quando pensamos sobre o que significa se
unir em assembleia em uma multidão -- uma multidão crescente --, e
sitos políticos diferentes, alguma coisa semelhante, não obstante,
sobre o que significa se mover pelo espaço público de maneira a con-
acontece: os corpos congregam, eles se movem e falam juntos e
testar a distinção entre o público e o privado, vemos algumas ma-
reivindicam um determinadoespaçocomo público. Em um pri-
neiras por meio das quais os corpos, na sua pluralidade, reivindicam
meiro momento, seria mais fácil dizer que essasmanifestações ou,
o público, encontrando-o e produzindo-o por meio da apreensãoe
na verdade, que essesmovimentos são caracterizados por corpos
da reconfiguração da questão dos ambientes materiais. Ao mesmo
que se unem para fazer uma reivindicação em um espaçopúblico, tempo, essesambientesmateriais são parte da ação, e eles mesmos
mas essaformulação presume que o espaçopúblico estejadado,
agem quando se tornam a base para a ação. Da mesma maneira,
que já é público e reconhecido como tal. Deixamos de lado par- quando tanques ou caminhões se tornam inoperantes e, de repen-
te do objetivo dessasmanifestações públicas se deixamos de ver te, oradores sobem neles para se dirigir à multidão, o instrumento
que o próprio caráter público do espaçoestá sendoquestionado, militar setorna uma base,ou plataforma,para umaresistêncianão
ou até mesmo disputado, quando essasmultidões se reúnem. En- militar, quando não para uma resistênciaaos próprios militares.
tão, embora essesmovimentos dependessemda existência anterior Nessesmomentos, o ambiente material é ativamente reconfigurado
de calçadas, ruas e praças, e que tenham muitas vezesse reunido e refuncionalizado, para usar o termo brechtiano. E as nossas ideias
em praças como a Praça Tahrir, cuja história política é potente, é sobre ação precisam então ser repensadas.
igualmente verdadeiro que as açõescoletivas agregaram o próprio Em primeiro lugar, ninguém mobiliza uma reivindicação para
se movimentar e se reunir livremente em assembleia sem se mover
espaço,congregam a calçada, organizam e animam a arquitetura.
Do mesmo modo que devemos insistir na existência de condições e se reunir em assembleiacom outras pessoas.Em segundo lugar,
materiais para a assembleiae a fala públicas, também temos que as praças e as ruas não são apenas o suporte material para a ação,

nos perguntar de que maneira as assembleias e a fala reconfiguram mas são, em si mesmos, parte de qualquer consideração sobre uma

a materialidade do espaço público e produzem, ou reproduzem, o ação pública corporal que possamos propor. A ação .humana de-
pende de todos g$ tipos de apçljg -- ela é sempre uma ação apoiada.
caráter público desseambiente material. E quando as multidões se
;àbemos, pelos estudos sobre as deficiências, que a capacidade
movem no entorno das praças, pela rua lateral ou pelo beco, pelos
de se mover depende de instrumentos e superfícies que tornem o
bairros onde as ruas ainda não são pavimentadas,então alguma
movimento possível, e essemovimento corporal é apoiado e fa-
coisa mais acontece.
cilitado por objetos não humanos e sua capacidade particular de
Nesse momento, a política não se define por tomar lugar exclu-
atuação. No caso das assembleiaspúblicas, vemos com bastante
sivamente na esfera pública, distinta da esfera privada, mas atraves- clareza a luta sobre o que vai ser o espaço público, mas também
sa essaslinhas repetidas vezes,chamando atenção para a maneira uma luta, igualmente fundamental, sobre como os corpos vão ser
como a política já está nas casas,nas ruas, na vizinhança ou, de suportados no mundo -- uma luta por emprego e educação, por

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uma distribuição equitativa de alimento, por moradias habitáveis aqui é claramente verdadeira. O espaço e a !pç31izaçêgsão criadgg
e pela liberdade de movimento e expressão, para nomear apenas pela ação plural. Ainda assim, na visão dela, a ação, em sua liber-
algumas coisas. dade e seu poder, tem a capacidade exclusiva de criar localização.
É claro que isso produz um dilema. Não podemos agir sem su- Essavisão esqueceou nega que a ação é sempre apoiada e de que é
portes, contudo, precisamoslutar pelos suportes que nos permitem invariavelmente corporal, até mesmo, como argumentarei, em suas
agir ou, na verdade, que são componentes essenciais da nossa ação. formas virtuais. Os suportes materiais para a ação não são apenas
Foi a ideia romana de praça pública que formou o contexto para o parte da ação, mas são também aquilo pelo que lutamos, especial-
entendimento de Hannah Arendt sobre os direitos de assembleiae mente nos casos em que a luta política é por al.imento, empregabili-
de liberdade de fala, da ação e do exercício dos direitos. Hannah dade, mobilidade e acesso às instituições. Para repensar o espaço de
Arendt certamentetinha tanto a po/is gregaclássicaquanto o fórum aparecimento a fim de entender o poder e o efeito das manifestações
romano em mente quando afirmou que toda ação política requer o públicas do nosso tempo, precisamos considerar mais de perto as
dimensõescglporais da ação, o que o corpo requer, e o que o corpo
propriamente dita, não é a cidade-Estado em sua localização física; pode faze,s especialmentequan s
é a organização das pessoas,conforme ela surge da ação e da fala juntos em um espaço histórico que sofre uma transformação históri-
conjuntas, e o seu verdadeiro espaçoestá entre as pessoasque vi- ca em virtude de sua ação coletiva: O que os mantém unidos ali? E
vem juntas com essepropósito, não importa onde elas estejam".: O quais são as suas condições de persistência e de poder em relação à
"verdadeiro" espaço está, então, "entre as pessoas", o que significa sua condição precária e exposição?
que assim como qualquer ação acontece em um lugar localizado, ela Gostaria de pensar sobre esseitinerário por meio do qual viaja-
também estabeleceum espaçoque pertence à aliança propriamente mos do espaço de aparecimento para a política contemporânea das
dita. Para Arendt, essaaliança não está amarrada à sua localização. ruas. Mesmo no momento em que digo isso, não posso esperar reu-
Na verdade, a aliança faz surgir essaprópria localização, altamente nir todas as formas de manifestação que vimos, algumas das quais
# transponível.Ela escreve:"ação e fala criam um espaçoentre os foram episódicas,algumas das quais fazem parte de movimentos
$ participantes que podem encontrar a sua localização adequadapra- sociais e políticos correntes e recorrentes, e algumas das quais são
{ ticamente em qualquer lugar e a qualquer tempo".3 revolucionárias. Desejo pensar sobre o que pode congregar essasreu-
f Então, como podemos entender essa altamente, se não infinita- niões, essasmanifestações públicas. Durante o inverno de 2011, elas
d'' mente transponível, noção de espaço político? Enquanto sustenta incluíram as manifestaçõescontra os regimestirânicas no Norte da
g que a política exige o espaçode aparecimento,Arendt também afia África e no Oriente Médio, mas também contra a precarizaçãocres-
}\ iãã que o espaçomz sulg!!.!.PS1lígc?: "trata-se do espaçode apare- cente dos trabalhadores na Europa e no Hemisfério Sul, assim como
K cimento, no mais amplo sentido da palavra, ou seja, o espaçoonde as lutas pela educaçãopública nos Estados Unidos e na Europa e,
: l apareço para os outros e onde os outros aparecem para mim; onde o mais recentemente,no Chile, e as lutas para tornar as ruas seguras
\. l homem existe não apenascomo outras coisas vivas ou inanimadas, para mulheres e para as minorias sexuais e de gênero, incluindo as
...f l mas assumeuma aparência explícita".' Alguma coisa do que ela diz pessoastrans, cujo aparecimentopúblico é, muitas vezes,passívelde

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punição por meio de violência legal e.ilegal. Nas assembleiaspúbli- cursospara esclarecera minha própria posição.O trabalho dela
cas de pessoastrans ou qnee6 com frequência se reivindica que as apoia a minha ação aqui, mas também o recuso de certas maneiras.
ruas precisam estar a salvo dos policiais que são cúmplices da cri- A visãode Arendt é embaçadapela sua própria política de gênero,
minalidade; especialmente nas ocasiões em que a polícia apoia regi- uma vez que ela depende de uma distinção entre os domínios público
mescriminosos ou quando, por exemplo, a polícia cometecontra as e privado que deixa a esfera do político para os homens e o trabalho
minorias sexuais e de gênero os mesmos crimes que deveriam coibia. reprodutivo para as mulheres. Seexiste um corpo na esfera pública,
As manifestações são uma das poucas maneiras de superar o poder presume-seque seja masculino e que não esteja apoiado êm nada,
da polícia, especialmente quando essas assembleias se tornam, ao sendo,presumivelmente,livre para criar, mas gêmter sido criado. E
mesmo tempo, muito grandes e muito móveis, muito condensadas e o corpo na esferaprivada é feminino, envelhecido,estrangeiroou in-
muito difusas para serem contidas pelo poder policial e quando têm fantil, e semprepré-político. Embora ela fosse uma filósofo da nata-
os recursospara se regenerarno próprio local. lidade,' como sabemospor meio do importante trabalho de Adriana
Talvez essessejam momentos anarquistas, ou passagensanar- Cavarero, Arendt entendia essacapacidade de trazer alguma coisa à
quistas, quando a legitimidade de um regime ou das suas leis é colo- vida como uma função da fala e da ação políticas. De fato, quando
cada em questão, mas enquanto ainda não há nenhum outro regime os cidadãos do sexo masculino adentram a praça pública para deba-
para ocupar o seu lugar. Essemomento de intervalo é um momento ter questõesde justiça, vingança, guerra e emancipação,elestomam
em que os corpos reunidos em assembleiaarticulam um novo tempo a praça iluminada naturalmente como o teatro arquitetonicamente
e um novo espaço para a vontade popular, não uma única vonta- delimitado de sua fala. E a sua fala se torna a forma paradigmática
de idêntica, nem uma vontade unitária, mas uma que se caracteri- da ação, fisicamente isolada do domicílio privado, que é, por sua
za como uma aliança de corpos distintos e adjacentes,cuja ação e vez, envolto em escuridão e reproduzido por meio de atividades que
cuja mação reivindicam um futuro diferente. Juntos elesexercem o não constituem propriamente açõesnos sentidos próprio e público.
poder performativo de reivindicar o público de uma maneira que Os hímen!..bZç!!! g..pê!!agemdessaescuridão privada para a lumi-
ainda não foi codificada em lei e que nunca poderá ser completa- nosidaf+!p1ll211ç&ç, uma vez iluminados, elesfalam, e a sua fala in-
mente codificada em lei. E essa performatividade não é apenas a terroga sobre os princípios de justiça que articula, tornando-se uma
fala, mas também as reivindicaçõesda ação corporal, do gesto, do forma de investigação crítica e de participação democrática. Para
movimento, da congregação, da persistência e da exposição à possí- Arç!!d!, ' repensando essa cena clássica na modernidade política, a
..,........---- ' ' 'Ç'--

vel violência. Como entendemos essa ação conjunta que abre tempo fala é entendida como o exercício corporal e linguístico dos direitos.
e espaço fora e contra a arquitetura e a temporalidade estabelecidas Corporal e linguístico -- como vamos reconceber esses termos e seus
pelo regime, uma ação que reivindica a materialidade, apoia-senos entrelaçamentosaqui contra e para além da presunção de uma divi-
seus suportes e recorre às suas dimensões materiais e técnicas para são detrabalho generificada?
retrabalhar suas funções? Essas ações reconfiguram o que vai ser Para Arendt, a ação polÍçlç&3contece na condição de apareci-
público e o que vai ser o espaçoda política. mento do corpo. Eu apareço para os outros e elesaparecempara
Questiono Hannah Arendt mesmo quando me sirvo dos seusre- mim, o que significa que algum espaço entre nós nos permite apare-

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cer. Pode-sechegar à conclusão de que aparecemosem um espaço ou público e as vária.sformas de governo, isto é, as várias formas pos-
que somos apoiados pela organização material do espaço. Mas esse síveis de organizar o domínio público".7 Em outras palavras, esse
não é o argumento dela. A esfera de aparecimento não é simples, espaçode aparecimentonão é um local que pode ser separadoda
uma vez que parece surgir apenasna condição de um certo enfren- ação plural que leva a ele; não está fora da ação que o invoca e o
tamento subjetivo. Não somos simplesmentefenómenosvisuais uns constitui. Ainda assim, se aceitarmos essavisão, temos que entender
para os outros -- nossas vozes precisam ser registradas e, então, pre- como a pluralidade que age é constituída. Como uma pluralidade
cisamos ser ouvidos; ou melhor, quem somos, corporalmente, já. é se forma, e quais são os suportes materiais necessáriospara essa
uma maneira de ser "para" o outro, aparecendo de formas diversas, formação? Quem cntra nessapluralidade, e quem não entra, e como
que não podemos ver nem ouvir; isto é, nos tornamos disponíveis, essasquestões são decididas?
corporalmente, para um outro cujas perspectivasnão podemos an- Como descrevemos a ação e o estatuto dos seres desagregados do
tecipar nem controlar completamente. Dessa maneira, eu sou, como plural? Que linguagem política temos reservadapara descreveressa
um corpo, e nao apenaspara mim mesma, e nem mesmoprimaria- exclusão e as formas de resistência que revelam a esfera de apare-
mente para mim mesma, mas eu me encontro, se me encontrar de cimento conforme ela é anualmentedelimitada? Aqueles que vivem
todo, constituída e desalojadapela perspectivados outros. Então, fora da esfera de aparecimento são os "dados" destituídos de vida
para a ação política, devo aparecerdiante dos outros de modos que da vida política? Eles são a vida genuína ou a vida nua? Devemos di-
não posso conhecer, e, desse modo, meu corpo é estabelecido por zer que aquelesque são excluídos são simplesmente irreais, que estão
perspectivasque não possoviver, mas que, certamente,vivem em desaparecidosou que não têm existência -- que devem ser abando-
mim. Esseé um ponto importante porque não se trata do caso de o nados, teoricamente, como os socialmente mortos e os meramente
corpo estabelecer apenas a minha própria perspectiva, ele é também espectrais?Se fazemos isso, não apenas adoramos a posição de um
o que desloca essa perspectiva e transforma esse deslocamento em regime específico de aparecimento, mas ratificamos essaperspecti-
uma necessidade.Isso acontece mais claramente quando pensamos va, mesmo que o nosso desejo seja coloca-la em xeque. Essas for-
sobrecorpos que agemjuntos. Nenhum corpo estabeleceo espaço mulações descrevem o estado de ter se tornado desamparado por
de aparecimento, mas essaação, esseexercício performativo, acon- meio de arranjos políticos existentes ou essedesamparo é involunta-
tece apenas"entre" corpos, em um espaçoque constitui o hiato riamente ratificado por uma teoria que adota a perspectivados que
entre o meu próprio corpo e o do outro. Na realidade, a ação emerge regulam e policiam a esfera do aparecimento?
do "entre", uma figura espacial para uma relação que tanto vincula O que está em jogo é a questão sobre se os desamparadoses-
quanto diferencia. tão fora da política e do poder ou se,na verdade,estãovivendo uma
É ao mesmo tempo interessante e problemático que, para Arendt, forma específica de desamparo político junto com formas especí-
o espaçode aparecimento não seja apenasum dado adquirido pela ficas de ação e resistência política que expõem o policiamento das
arquitetura: "o espaço do aparecimento surge", ela escreve, "sem- fronteiras da esfera do aparecimento em si. Se afirmamos que os
pre que os homens se reúnem na modalidade da fala e da ação, e, desamparadosestão fora da esfera da política -- reduzidos a formas
portanto, precedetoda e qualquerconstituição formal do domínio de ser despolitizadas - então aceitamos implicitamente como cer-

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tas as maneiras dominantes de estabeleceros limites do político. então não será possível dizer que, uma vez excluídos, essesseres per-

De algumas formas, isso deriva da posição de Arendt que adota o dem aparência ou "realidade" em termos políticos, que eles não têm
posiçãosocial ou política ou foram expulsos e reduzidosa meros
ponto de vista interno da Po/fs grega a respeitodo que a política
deveria ser, quem deveria ter acessoà praça pública e quem deve- seres(formas de "ser dado" excluídas da esfera da ação). Nada tão
metafisicamente extravagante tem que acontecer se concordarmos
ria permanecer na esfera privada. Essa visão ignora e desvaloriza
formas de ação política que emergem precisamente nessesdomí- que uma razão peia qual a esfera do político não pode ser definida
nios consideradospré-políticos ou extrapolíticos e que irrompem pela concepção clássica da po/is é que dessemodo ficamos privados
na esferado aparecimentovindo do lado de fora, como o lado de ter e usar uma linguagem para essasformas de atuação e resis-
de fora dela, confundindo a distinção entre dentro e fora. Pois tência empreendidas pelos desamparados. Aqueles que se encontram
em momentos revolucionários ou insurrecionais, não temos mais em posição de exposição radical à violência, sem as proteções políti-

certeza sobre o que opera como o espaçopolítico, assim como cas básicasna forma da lei, não estãopor essarazão fora da política
muitas vezesnão temos certeza sobre em que tempo estamosviven- ou privados de todas as formas de atuação. É claro que precisamos
do exatamente, uma vez que os regimes estabelecidos de espaço e de uma linguagem para descrever esse estatuto de exposição ina-
tempo são subvertidos de diferentes maneiras, que expõem a sua ceitável, mas temos que ser cuidadosos para que a linguagem que
violência e os seus limites contingentes.Vemos isso, como men- utilizarmos não destitua ainda mais essaspopulações de todas as
cionado anteriormente, quando trabalhadores sem documentos se formas de ação e resistência, todas as maneiras de se importar uns
reúnem na cidade de Los Angeles para reivindicar os seusdireitos com os outros ou de estabelecerredes de suporte.
de se reunir em assembleia e de ter cidadania sem serem cidadãos, Embora Agamben recorra a Foucault para articular uma con-
sem/ter nenhum direito legal de fazê-lo. O seu trabalho deve per- cepção do biopolítico, a tese de uma "vida nua" permanece intoca-
manecer necessário e longe das vistas, então quando essescorpos da por essaconcepção. O resultado é que não podemos descrever
trabalhadores surgem nas ruas, agindo como cidadãos, eles fazem dentro dessevocabulário os modos de atuação e de ação empreen-
uma reivindicação mimética por cidadania que altera não apenas didos pelos apátridas, pelos que participam de ocupações e pelos
como elesaparecem,mas como a esfera do aparecimento funciona. privados de direitos, uma vez que mesmo a vida destituída de direi-
Na realidade, a esfera do aparecimento é tanto mobilizada quanta) tos ainda está dentro da esferado político e, portanto, não está
incapacitada quando uma classetrabalhadora e explorada surge reduzida à mera existência, mas está, com frequência, enraivecida,
nas ruas para se anunciar e expressara sua oposição a constituir a indignada, revoltada e opondo resistência. Estar do lado de fora de
condição não vista do que aparececomo político. estruturas políticas legítimas e estabelecidasé ainda estar saturado
C) impulso para o conceito de Giorgio Agamben de "vida nua"l nas relações de poder, e essasaturação é o ponto de partida para
deriva dessaconcepção de po/ís na filosofia política de Hannah uma teoria do político que inclui formas dominantes e subjugadas,
Arendt e, como eu sugeriria, corre o risco de incorrer no mesmo modos de inclusão e de legitimação, bem como modos de deslegiti-
problema: se buscarmosdar conta da exclusãopropriamente dita mação e de supressão.
como um problema político, como uma parte da própria política, Por sorte, penso que Arendt não seguiu de maneira consistente

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esse modelo de .A co?adição bnmczna, motivo pelo qual, por exem- em público, assim como o encobrimento da face, busca estabelecer
plo, no início da década de 1960, ela se voltou mais uma vez para o uma esferapública na qual a vestimentacontinue a ser um signi-
destino dos refugiados e dos apátridas, e acabou afirmando de um ficante do secularismo e a exposição da face se torne uma norma
modo novo o direito de ter direitos.PO direito de ter direitosnão pública. A proibição contra o velamento da face servea uma deter-
dependede nenhuma organização política particular para a sua le- minada versão do direito de aparecer, entendido como o direito das
gitimação. Como o espaço de aparecimento,o direito a ter direitos mulheres de aparecerem sem véu. Ao mesmo tempo, nega o direito
antecede e precede qualquer instituição política que possa codificar de aparecer a um grupo de mulheres, exigindo que elas descum-
ou buscar garantir essedireito. Ao mesmo tempo, ele não deriva de pram as normas religiosas em favor das normas públicas. Esse ato
nenhum conjunto de leis naturais. O direito passaa existir quando é de desâliação religiosa exigido se torna obrigatório quando a esfera
exercido, e exercido por aquelesque agem unidos em aliança. Aque- pública é entendida como uma esfera que subjuga ou nega formas
les que estão excluídos dos regimes existentes, que não pertencem religiosasde pertencimento. A ideia, preponderante no debate fran-
\
a um Estado nacional ou a outra forma contemporânea de Estado, cês, de que as mulheres que usam o véu não podem fazê-lo com
só podem ser considerados "irreais" pelos que buscam monopolizar baseem nenhuma noção de escolha, opera, no debate, no sentido de
os termos da realidade. Ainda assim, mesmo depois que a esfera velar, por assim dizer, os fitos flagrantes de discriminação contra as
pública foi definida por meio da suaexclusão, elesagem. Seeles são minorias religiosas que a lei decreta. Pois uma escolha claramente
relegadosà precariedade ou deixados para morrer pela negligência feita entre aquelasque usam o véu é a de não compactuar com essas
sistemática, a ação concertada ainda emergeda sua açãoconjunta. formas de desfiliação compulsória que condicionam a entrada na
E isso é o que vemos, por exemplo, quando trabalhadores sem docu- esfera pública. Aqui, como em outros lugares, a esfera do apareci-
mentos se juntam nas ruas sem ter o direito legal de fazê-lo; quando mento é altamente regulada. Que essasmulheres devam se vestir de
ocupantes reivindicam prédios na Argentina como uma maneira de uma maneira e não de outra constitui uma política de indumentária
exercer o direito a uma moradia habitável; quando populações recla- da esfera pública, mas o mesmo se dá com o "desvelamento" com-
mam para si uma praça pública que pertenceu aos militares; quando pulsório, que é um sinal de pertencimento em primeiro lugar à esfera
refugiados participam de revoltas coletivas por habitação, alimento pública e apenasde forma secundária, ou privada, à comunidade
e direito a asilo; quando populaçõesse unem, sema proteçãoda lei e religiosa. Isso é especialmentepronunciado em relação às mulheres
sempermissãopara semanifestar, com o objetivo de derrubar um muçulmanas cujas afinaçõesa várias versõesdos domínios público,
regime legal injusto ou criminoso, ou para protestar contra medidas secular e religioso podem muito bem ser limítrofes ou se sobrepor. E
de austeridade que destroem a possibilidade de emprego e de edu- isso mostra, com bastante clareza, que o que é chamado de "a esfera
cação para muitos. Ou quando aquelesGuioaparecimento público é pública" nessescasos é construído por meio de exclusões constituti-
criminoso -- pessoastransgênero na 'hlrquia ou mulheres que usam vas e formas compulsórias de negação. Paradoxalmente, o ato de se
o véu na França -- aparecempara contestar esseestatuto criminoso submetera uma lei que exige a retirada do véu é o modo pelo qual
e reafirmar o seu direito de aparecer. uma "liberdade de aparecer" altamente comprometida, e até mesmo
A lei francesa que proíbe a exibição "ostensiva" da religiosidade violenta, é estabelecida.

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De fato, nas manifestações públicas que frequentemente se se- existente, mesmo que algumas vezes encontre suporte precisamente
guem aos aros públicos de luto - como aconteceumuitas vezesna aí. Trata-se,na verdade,do direito de ter direitos, não como uma
Síria antes de metade da sua população se tornar refugiada, onde lei natural ou estipulaçãometafísica, mas como a persistênciado
multidões de enlutados se transformaram em alvos da destruição corpo contra as forças que buscam a sua debilitação ou erradicação.
militar --, podemos ver como o espaço público existente é toma- Essa persistência exige que se invada o regime de espaço estabeleci-
do por aquelesque não têm nenhum direito existentede se reunir do com um conjunto de suportes materiais que sejam tanto mobili-
nele, indivíduos que emergem das zonas de desaparecimento para se zados quanto mobilizadores.
transformar em corpos expostos à violência e à morte enquanto se Apenas para ser clara: não estou me referindo a um vitalismo ou
reúnem e persistem como fazem. Na realidade, eles têm o direito de a um direito à vida como tal. Na verdade, estou sugerindo que as rei-
sereunir, livres da intimidação e das ameaçasde violência, direito vindicações políticas são feitas pelos corpos quando eles aparecem
que é sistematicamente atacado pela polícia, pelo exército, por gan- e agem, quando recusam e persistem, em condições nas quais esse
gues contratadas ou por mercenários. Atacar essescorpos é atacar o fato por si só ameaça o Estado com a deslegitimação. Da mesma
próprio direito, uma vez que quando essescorpos aparecem e agem, maneira que os corpos estão expostos aos poderes políticos, eles
elesestão exercendo um direito que está fora do regime, contra ele também respondem a essaexposição, exceto nos casos em que as
e em face dele. próprias condições para a capacidade de resposta foram dizimadas.
Embora os corpos na rua estejamvocalizando a sua oposição Ainda que eu não duvide de maneira nenhuma de que seja possível
à legitimidade do Estado, eles também estão, por ocuparem esse assassinar a capacidade de resposta em outra pessoa, eu alertada
espaço e persistirem nele sem proteção, colocando o seu desafio em sobre tomar a figura da dizimação completa como uma maneira de
termos corporais, o que significa que quando o corpo "fala" poli- descrever a luta dos desamparados. Ainda que sempre seja possível
ticamente não é apenasna linguagem vocal ou escrita. A persistên- desviar para a outra direção, aârmando que onde existe poder exis-
cia do corpo na sua exposição coloca essalegitimidade em questão, te resistência, seria um erro recusar a possibilidade de que o poder
e o faz precisamentepor meio de uma performatividade específica nem sempretrabalhe de acordo com os seusobjetivos, e que formas
do corpo.'o Tonto a ação quanto o gesto significam e falam, tanto viscerais de rejeição irrompem em formas coletivas consequentes.
como ação quanto como reivindicação; um não pode ser finalmente Nesses exemplos, os corpos são eles mesmos vetores de poder por
separado do outro. Onde a legitimidade do Estado é colocada em meio dos quais o direcionamento da força pode ser revertido. Eles
questão precisamentepor essa maneira de aparecer em público, o são interpretações corporificadas, engajadasem uma ação aliada,
próprio corpo exerceum direito que não é um direito. Em outras para combater a força com outro tipo e outra qualidade de força.
palavras, ele exerce um direito que está sendo ativamente contestado Por um lado, essescorpos são produtivos e performativos. Por ou-
e destruído pela força militar e que, na sua resistênciaa essaforça, tro, eles só podem persistir e agir quando estão apoiados, pelos am-
articula a sua maneira de viver, mostrando tanto a sua precariedade bientes, pela nutrição, pelo trabalho, por modos de sociabilidade e
quanto o seu direito de persistir. Essedireito não está codiâcado em de pertencimento. E quando essesapoios desmoronam e são expos-
lugar nenhum. Ele não é garantido de outro lugar ou por uma lei tos à precariedade,elessão mobilizadosde outra maneira,apro-

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veitando os suportes que existem para afirmar que não pode haver no meio dos seus mais concretos e sedimentados artifícios. Trata-se
vida corporificada sem suporte social e institucional, sem empregos de atires subjugadose empoderadosque buscamtirar a legitimi-
permanentes, sem redes de interdependência e cuidado, sem direitos dade de um aparato estatal existente que depende da regulação do
coletivos a abrigo e mobilidade. Eles não apenaslutam pela ideia espaçopúblico de aparecimento para a sua autoconstituição teatral.
de apoio social e emancipação política, mas a sua luta constituiu Ao tirar essepoder, um novo espaçoé criado, um novo "entre" cor-
a sua própria forma social. Assim, nos exemplos mais ideais, uma pos, por assimdizer, que reivindica o espaçoexistente por meio da
aliança começa a representar a ordem social que busca fazer surgir ação de uma nova aliança, e essescorpos são tomados e animados
ao estabelecerseus próprios modos de sociabilidade. Ainda assim, por essesespaçosexistentesnos próprios ates por meio dos quais
essaaliança não pode ser reduzida a uma coleção de indivíduos, e reivindicam e reconstituem seus significados.
não são, estritamente falando, os indivíduos que agem. Além disso, Uma luta como essaintervém na organização espacialdo poder,
a ação em aliança acontece precisamenteentre aquelesque partici- que inclui a alocação e a restrição de localizações espaciais nas quais
pam, e essenão é um espaçovazio ou ideal. Esseintervalo é o espaço - e por meio das quais -- qualquer população pode aparecer, o que
de sociabilidade e de apoio, de ser constituído em uma sociabilidade implica uma regulação espacial de quando e como a "vontade po-
que nunca pode ser reduzida à perspectiva de alguém nem à depen- pular" pode aparecer. Essa visão da restrição e da alocação espacial
dência em relação às estruturas sem as quais não existe vida durável de quem pode aparecer -- na realidade, de quem pode se tornar um
ou possível de ser vivida. objeto de aparecimento -- sugere uma operação de poder que opera
Muitas das manifestações maciças e dos modos de resistência que tanto por meio de embargos e de alocações diferenciadas.
vimos nos últimos mesesnão se limitam a produzir um espaçode O que significa, então, aparecer na política contemporânea? E
aparecimento. Eles se apoderam de um espaçojá estabelecidoper- podemos considerar essaquestão de alguma forma sem recorrer à
meado pelo poder existente, buscandoromper com as relaçõesentre mídia? Quando fazemos uma consideração sobre o que é aparecer,
o espaçopúblico, a praça pública e o regime existente.Assim, os concluímos que aparecemospara alguém e que o nosso aparecimen-
limites do político são expostos e a ligação entre o teatro da legitimi- to tem que ser registrado pelos sentidos, não apenasos nossos,mas
dade e o espaço público é rompida. Esse teatro não é mais abrigado os de alguém mais. Se aparecemos, devemos ser vistos, o que signi-
no espaço público de forma não problemática, uma vez que agora fica que nosso corpo deve ser enxergado, e seu som vocalizado deve
o espaçopúblico aconteceno meio de outra ação,uma açãoque tira o ser ouvido: o corpo deveentrar no campo visual e audível. Mas este
poder afirmador do lugar da legitimidade precisamenteao assumir não é, necessariamente,um corpo que trabalha e um corpo sexual,
o controle do campo dos seusefeitos. Colocando de forma simples, assimcomo um corpo generificado e racializado de alguma forma?
os corpos nas ruas transferem o espaço de aparecimento a fim de A visão de Arendt claramente encontra seuslimites aqui, porque o
contestar e negar as formas existentes de legitimidade política -- e próprio corpo é dividido entre um que aparece publicamente para
assim como algumas vezes preenchem ou assumem o controle do falar e agir e outro, sexual, pulsante, feminino, estrangeiro e mudo,
espaçopúblico, a história material dessasestruturas também agua que geralmente é relegado à esfera do privado e do pré-político. Essa
sobre elas, tornando-se parte da sua ação, refazendo uma história divisão de trabalho é precisamente que sequestiona quando as vidas

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precárias se reúnem nas ruas na forma de alianças que precisam mida semaparecercorporalmente no mundo, e não há como escapar
lutar para alcançar um espaçode aparecimento.Quando algum da vulnerabilidade e da mobilidade que aparecer no mundo implica,
domínio da vida corporal opera como a condição sequestradaou o que explica as formas de camuflagem e autoproteção no mundo
repudiada para a esfera do aparecimento, ele se torna a ausência animal. Em outras palavras, o aparecimentonão é um momento
estruturante que governa e torna possível a esfera pública. necessariamentemorfológico quando o corpo se arrisca a aparecer
Sesomos organismos vivos que falam e agem, então estamos cla- não apenaspara falar e para agir, mas também para sofrer e como-
ramente relacionados com um vasto contínuo ou rede de seresvivos; ver, para enganaroutros corpos, para negociar um ambiente do qual
não apenasvivemos entre eles, mas a nossa persistênciaenquanto se depende,para estabeleceruma organização social com o objetivo
de satisfazer as necessidades?Na verdade, o corpo pode aparecer
organismos vivos depende dessa matriz de relações interdependen-
e significar de maneiras que contestam a maneira como ele fala ou
tes sustentáveis.Entretanto, a nossa fala e a nossa ação nos distin-
mesmo contestam a fala coma seu exemplo paradigmático. Será que
guem como alguma coisa apartada dos outros seresvivos. De fato,
ainda poderíamos entender a ação, o gesto, a permanência, o toque
não precisamos saber o que é distintivamente humano sobre a ação
e a movimentação em conjunto caso fossem redutíveis à vocalização
política, mas apenasfinalmente ver como a entrada do corpo repu'
do pensamento por meio da fala?
diado na esferapública estabelece,ao mesmotempo, a ligação entre
Esse ato de falar em público, mesmo dentro dessa problemática
os humanose os outros seresvivos. O corpo privado condiciona,
divisão de trabalho, dependede uma dimensãode vida corporal
assim,o corpo público, não apenasem teorias como a de Arendt,
que é dada, passiva, opaca e, portanto, excluída da definição con-
mas também em organizações políticas do espaço que continuam de
vencional do político. Consequentemente, podemos perguntar: Que
muitas formas (e que são, em algum sentido, naturalizadas em sua
regulação impede que o corpo dado ou passivo invada o corpo ati-
teoria). E apesar de o corpo público e o corpo privado não serem vo? Trata-se de corpos diferentes? Em caso afirmativo, qual política
completamente distintos (corpos privados algumas vezes "se mos- é necessária para mantê-los separados? Trata-se de duas dimensões
tram" em público, e cada corpo exposto publicamente tem os seus diferentes do mesmo corpo, ou, na verdade, do efeito de uma de-
momentosprivados), a bifurcação é crucial para manter a distinção terminada regulação do aparecimento corporal que é ativamente
entre o público e o privado e os seusmodos de repúdio e de privação contestadapelos novos movimentos sociais, pelas lutas contra a
de direitos. violência sexual, pela liberdade reprodutiva, contra a precariedade,
Talvez seja um tipo de fantasia que uma dimensão da vida corpo' pela liberdade de mobilidade? Aqui podemos ver que uma certa re-
ral possa e deva permanecer longe da vista ao mesmo tempo que ou- gulação topográfica ou mesmo arquitetõnica do corpo acontece no
tra, completamente distinta, apareceem público. Não existe nenhum nível da teoria. De maneira significativa, é precisamente essa opera-
traço do biológico na esferado aparecimento?Não poderíamos ar- ção de poder -- o embargo e a alocação diferencial sobre se e como
gumentar, com Bruno Latour e lsabelle Stengers,que negociar a o corpo pode aparecer -- que é excluída da consideração explícita
esfera de aparecimento é, na verdade, uma coisa biológica a se fazer, de Arendt sobre o político. Na verdade, sua consideração explícita
uma das capacidades investigativas do organismo? Afinal de contas, sobre o político depende da própria operação de poder que deixa de
não existe maneira de navegar por um ambiente ou conseguir co- considerar como parte da política.

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Então, o que aceito de Arendt é o seguinte: A liberdade não vem regime e a classetrabalhadora. Assim a forma social da resistência
de mim ou de você. Ela pode acontecer, e acontece, como uma rela- começou a incorporar princípios de igualdade que governavam não

ção entre nós ou, na verdade,misturada conosco. Então, a questão apenascomo e quando as pessoasfalavam e agiam para a mídia e
não é encontrar a dignidade humana em cada pessoa, mas sim en- contra o regime, mas como as pessoascuidavam dos seusvários
tender o humano como um ser relacional e social, um ser cuja ação alojamentos na praça, as camas no calçamento, os postos médicos e
os banheiros improvisados, os lugares onde as pessoas comiam, e os
dependeda igualdadee um serque articula o princípio da igual-
dade. Na verdade, não existe humano, na visão dela, se não existe lugares onde estavam expostas à violência que vinha de fora. Não
igualdade. Nenhum humano pode ser humano sozinho. E nenhum estamos falando apenas de açõesheroicas que exigiram uma enorme
força física e o exercício de uma retórica política atraente. Algumas
humano pode ser humano semagir junto com outros e em condições
vezes,o simples ato de dormir ali, na praça, foi a mais eloquente de-
de igualdade. Eu acrescentariao seguinte: A reivindicação da igual-
claração política -- e deve até mesmo contar como uma ação. Essas
dade não é apenas falada ou escrita, mas é feita precisamente quan-
açõesforam todas políticas no sentido simples de estaremderruban-
do os corpos aparecemjuntos, ou melhor, quando por meio da sua
do uma distinção convencional entre o público e o privado a fim de
ação eles fazem o espaço de aparecimento surgir. Esse espaço é uma
estabelecer novas relações de igualdade. Nesse sentido, elas estavam
parte essenciale um efeito da ação e opera, de acordo com Arendt,
incorporando à própria forma social de resistênciaos princípios
apenas quando as relações de igualdade são mantidas.
que estavamlutando para realizar dentro de formas políticas
É claro que há muitas razõespara suspeitar dos momentos idea-
mais amplas.
lizados, mas também há razões para desconfiar de qualquer análise Em segundolugar, diante de ataquesviolentos ou ameaçasex-
que evite completamente a idealização. Há dois aspectos das mani- tremas, muitas pessoas,durante a primeira revolução egípcia de
festações revolucionárias na Praça Tãhrir que gostaria de destacar. 2009, entoaram a palavra sf/mfyya, que vem do verbo raiz scz/ima,
O primeiro tem a ver com a maneira como certa sociabilidadefoi
que significa "estar são e salvo", "ileso", "intacto" e "seguro"; mas
estabelecida dentro da praça, uma divisão de trabalho que derrubou também "ser irrepreensível", "inocente", "sem faltas"; e ainda "es-
a diferença de gênero, que envolveu um rodízio de quem iria falar tar certo", "estabelecido", "claramente provado".'' O termo vem do
e quem iria limpar as áreas onde as pessoasdormiam e comiam, substantivo s//m, que significa "paz" e também, de modo intercam-
desenvolvendoum planejamento de trabalho para que todos man- biável e significativo, "a religião do lslã". Uma variação do termo é
tivessem o ambiente e limpassem os banheiros. Em resumo, o que ó bb as-si/m, que significa "pacifismo" em árabe. De maneira geral,
alguns chamariam de "relações horizontais" entre os manifestantes a entoação da sl/mlyya soa como uma exortação suave: "pacífica,
seformou de maneira fácil e metódica,aliançaslutando para incor- pacífica". Embora a revolução tenha sido, em sua maior parte, não
porar a igualdade, o que incluiu uma divisão igualitária de trabalho violenta, ela não foi necessariamenteconduzida por um princípio de
entre os sexos -- que setornou parte da própria resistência ao regime oposição à violência. Na verdade, a entoação coletiva era uma ma-
de Mubarak e às suas hierarquias arraigadas, incluindo a diferença neira de encorajar as pessoasa resistir à atração mimética da agres-
notável de riqueza entre militares e patrocinadores corporativos do são militar -- e da agressãodas gangues -- ao manter em mente o

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objetivo maior: uma mudança democrática radical. Servarrido para do -- e se -- temos uma versão visual e audível da cena comunicada
uma mudança violenta do momento era perder a paciência necessá- ao vivo ou em tempo imediato, de modo que a mídia não apenas
ria para realizar a revolução. O que me interessa aqui é a entoação, reporta a cena, mas é parte da cena e da ação; na verdade,a mídia
a maneira como a linguagem trabalhou não para incitar uma ação, é a cena ou o espaço em suas dimensões visuais e audíveis esten-
mas para conter uma ação: uma contenção em nome de uma comu- didas e replicáveis. Uma maneira de dizer isso é simplesmenteque
nidade emergentede iguais cuja maneira primária de fazer política a mídia estendea cena visual e audivelmente, participando da sua
não seria a violência. delimitação e transponibilidade. Colocando de forma diferente, a
Está claro que todas as assembleiase manifestações que produzi- mídia constitui a cena em um tempo e em um lugar que incluem e
ram uma mudança de regime no Egito contaram com a mídia para excedem a sua instanciação local. Apesar de a cena ser segura e en-
produzir um sentido de praça pública e do espaço de aparecimen- faticamente local, aqueles que estão em outro lugar têm a sensação
to. Qualquer exemplo provisório da "praça pública" é localizado de que estão obtendo algum aS:essadireto por meio das imagens e
e transponível: na verdade, parecia ser transponível desdeo início, dos sons que recebem.Isso é verdade, mas eles não sabemcomo a
embora nunca completamente. E é claro que não podemos pensar na edição acontece, qual cena comunica e é transmitida e quais cenas
transponibilidade dessescorpos na praça sema mídia. De algumas permanecem inexoravelmente fora do enquadramento. Quando a
maneiras, as imagens da mídia na 'hinísia prepararam o caminho cenaé transmitida,está ao mesmotempo lá e aqui, e senão es-
para os eventosiniciais da mídia na Tahrir e em seguidados que tivesse abrangendo ambas as localizações -- na verdade, múltiplas
aconteceramno lêmen, no Bahrein,na Síria e na Líbia, todos os localizações -- não seria a cena que é. A sua localidade não é negada
quais tomaram, e ainda tomam, trajetórias diferentes.Muitas das pelo fato de que a cena é comunicada para além de si mesmae as-
manifestações públicas dos últimos anos não foram direcionadas sim constituída em mídia global; ela dependedessamediação para
contra ditaduras militares ou regimes tirânicos, e muitas delas pro- acontecer como o evento que é. Isso significa que o local tem que ser
duziram novasformações de Estado ou condiçõesde guerra que reformulado para fora de si mesmo a fim de ser estabelecidocomo
certamente são tão problemáticas quanto as que substituíram. Mas local, o que significa que é apenas por meio da mídia globalizante
em algumas das manifestações que se seguiram a esseslevantes, es- que o local pode ser estabelecido e que alguma coisa pode realmente
pecialmente aquelas que tinham como alvo formas de precariedade acontecer ali. É claro que muitas coisas acontecem fora do enqua-
induzida, os participantes se opuseram de maneira explícita ao ca- dramento da câmera ou de outros dispositivos de mídia digital, e
pitalismo monopolista, ao neoliberalismo e à supressãodos direitos que a mídia pode implantar a censura tão facilmente quanto se opõe
políticos, e o fizeram em nome daquelesque são abandonados por a ela. Há muitos eventos locais nunca registrados ou transmitidos,
reformas neoliberais cujo objetivo é desmantelar as formas da so- e algumas importantes razões que explicam o porquê. Mas quando
cial-democracia e do socialismo, erradicar empregos,expor popula- o evento viaja e consegue convocar e sustentar indignação e pressão
ções à pobreza e minar os direitos básicos à educação e à habitação globais, o que inclui o poder de parar mercados ou de romper rela-
públicas. ções diplomáticas, então o local terá que ser estabelecido, repetidas
As cenas das ruas se tornam politicamente potentes apenas quan- vezes,em um circuito que o ultrapassa a cada instante.

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Ainda assim, resta algo localizado que não pode ser e não é liberdade e justiça de diversas maneiras; os meios de comunicação
transportado dessamaneira; e a cena não poderia ser a cena se não também estão exercendo uma dessasliberdades pelas quais os mo-
entendêssemos que algumas pessoas estão em risco, e que quem cor- vimentos sociais lutam. Não quero sugerir com esta afirmação que
re risco são precisamenteessescorpos na rua. Seelessão trans- toda a mídia esteja envolvida na luta pela liberdade política e pela
portados de alguma maneira, certamente são deixados no lugar de justiça social (nós sabemos,obviamente, que não é assim). É claro
outra, segurando a câmera ou o telefone celular, cara a cara com que importa qual mídia global faz a reportagem, e como. Meu argu-
aqueles a quem se opõem, desprotegidos, expostos a lesões, lesiona- mento é que algumas vezes dispositivos de mídia privada se tornam
dos, persistentes, quando não insurgentes. Importa que essescorpos globais precisamenteno momento em que superam modos de cen-
carreguem telefones celulares, transmitindo mensagense imagens, e sura para relatar os protestos, tornando-se, dessa maneira, parte do
então, quando são atacados,isso acontece com frequência devido a propno protesto.
algo relacionado com a câmera ou com o gravador de vídeo. Pode O que os corpos estão fazendo nas ruas quando estão se mani-
ser um esforço destruir a câmera e o seu usuário, ou pode ser um festando está fundamentalmente ligado ao que os dispositivos e as
espetáculopara a mídia, produzido como um aviso ou uma ameaça. tecnologias de comunicação estão fazendo ao "relatar" o que está
Ou pode ser uma maneira de impedir qualquer organização além. acontecendonas ruas. São ações diferentes, mas ambas exigem o
A ação do corpo é separávelde sua tecnologia? E a tecnologia não corpo. Um exercício de liberdade está ligado ao outro, o que signifi-
está ajudando a estabelecer novas formas de açãó política? E quando ca que ambos são maneiras de exercer direitos e que, em conjunto,
a censura ou a violência são dirigidas contra essescorpos, também fazem surgir um espaçode aparecimento, assegurandoa sua trans-
não estão sendo dirigidas também ao seu acessoa mídias, a fim de ponibilidade. Embora alguns possam apostar que o exercício dos di-
estabelecer um controle hegemónico sobre quais imagens são trans- reitos agora se dá à custa dos corpos na rua, afirmando que o T:wit-
mitidas e quais não são? ter e outras tecnologias virtuais levaram a uma desincorporação da
É claro que a mídia dominante é controlada por grandescorpora- esfera pública, eu discordaria em parte. 'lemos que pensar sobre a
ções, que exercitam os seus próprios tipos de censura e incitamento. importância da mídia que é "portátil" ou dos telefonescelularesque
No entanto, ainda parece importante assegurarque a liberdade dos são "erguidos", produzindo uma espéciede contravigilância da ação
meios de comunicação para transmitir a partir destes locais é por militar e policial. A mídia precisadesses
corposna rua para ter um
si só um exercício de liberdade e, portanto, um modo de exercer evento precisamente quando esses corpos na rua precisam da mí-
direitos, especialmentequando se trata de uma mídia independente, dia para existir em uma arena global. Mas em condições nas quais
das ruas, que foge do censor, em que a ativação do instrumento é aqueles que têm câmeras ou acesso à internet são presos, torturados
parte da ação corporificadaem si. Foi por isso,semdúvida, que ou deportados, o uso da tecnologia implica efetivamente o corpo.
tanto Hosni Mubarak quanto David Cameron, com oito mesesde Não apenasa mão de alguém deve teclar e enviar, mas o corpo de
intervalo, defenderam a censura das redes de mídias sociais. Pelo alguém passaa estar em risco quando essamensageme esseenvio
menos em alguns casos, os meios de comunicação não apenas infor- são rastreados.Em outras palavras, a localização dificilmente é su-
mam sobre movimentos sociais e políticos que estão reivindicando perada pelo uso da mídia que tem a capacidade de transmitir glo-

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balmente. E se essacombinação de rua e mídia constitui uma versão vindicando performativamente a educaçãopública, insistindo no
muito contemporânea da esfera pública, então corpos que estãoem acessoliteral aos prédios da educação pública precisamente no mo-
risco devem ser pensados como estando tanto lá quanto aqui, agora mento histórico em que esseacessovem sendo minado. Em outras
e depois, transportados e estacionários, com consequênciaspolíticas palavras, nenhuma lei positiva justifica essasações que se opõem
muito diferentes se seguindo a essasduas modalidades de espaço e à institucionalização de formas injustas ou excludentes de poder.
tempo. Podemos dizer então que essasações são, não obstante, o exercício
Importa quando as praças públicas estão cheias até o limite, de um direito, um exercício sem lei que ocorre precisamente quando
quando as pessoascomem e dormem ali, cantam e se recusam a a lei estáerradaou quandoa lei falhou?
abandonar aquele espaço, como vimos nas primeiras reuniões na O corpo nas ruas persiste, mas também busca encontrar as con-
Praça Tahrir e continuamos a ver em outras partes do mundo. dições de sua própria preservação. Invariavelmente, essascondições
Importa, do mesmo modo, que os prédios ocupadosem Atenas, são sociais e exigem uma reorganização radical da vida social para
Londres e Berkeley tenham sido os da educaçãopública. No cam- aquelesque experimentam sua existência em perigo. Se estamos
pus de Berkeley, prédios foram ocupados, e houve sançõeslegais pensando bem, e nosso pensamento nos compromete com a pre-
em resposta. Em alguns casos, os estudantes foram acusados de servação da vida de alguma forma, então a vida a ser preservada
destruir propriedade privada. Mas essas alegações levantaram a toma uma forma corporal. Por sua vez, isso significa que a vida do
questão sobre se a universidade é pública ou privada. O objetivo corpo -- sua fome, sua necessidadede abrigo e proteçãocontra a
declarado do protesto -- para que os estudantes ocupassem o pré- violência - se torna uma importante questão de política. Mesmo os
dio e ficassempresos ali -- era uma forma de ganhar uma plata- aspectos mais determinados ou não escolhidos da nossa vida não
forma, na verdade, uma forma de garantir as condições materiais são simplesmentedeterminados. Eles são determinados na história
para aparecer em público. Essasaçõesem geral não ocorrem quan- e na linguagem, por meio de vetores de poder que nenhum de nós
do plataformas eficazes já estão disponíveis. Os estudantes de lá, escolheu.Do mesmo modo é verdadeiro que uma determinada pro-
e mais recentementetambém do Reino Unido, ocuparam prédios priedadedo corpo ou um conjunto de característicasdefinidoras de-
como uma forma de reivindicar prédiosque por direito, agora e no pendemda persistênciacontínua do corpo. As categoriassociaisque
futuro, deveriam pertencer à educaçãopública. Isso não significa nunca escolhemos atravessam essecorpo determinado de algumas
que todas as vezesque essesprédios são ocupados se justifiquem, maneiras mais do que de outras, e o gênero, por exemplo, nomeia
mas vamos prestar atenção ao que está em jogo aqui: o significado esseatravessamento, bem como as suas transformações. Nesse sen-
simbólico de ocupar essesprédios é que eles pertencem ao público, tido, as dimensões mais urgentes e em grande parte involuntárias da
à educaçãopública, e é precisamenteo acessoà educaçãopública nossavida, que incluem a fome e a necessidadede abrigo, cuidados
que está sendo minado pelo aumento das taxas e anuidades e pe- médicose proteção contra a violência, tanto a natural quanto a hu-
los cortes no orçamento. Não deveríamos nos surpreender que os mana, são cruciais para a política. Não podemos presumir o espa-
protestos tenham tomado a forma de ocupação dos prédios, rei- ço fechado e bem alimentado da po//s, onde todas as necessidades

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materiais estão sendo de alguma forma supridas, em outro lugar, NAS MANIFESTAÇÕESNAS QUAIS as pessoascantam e l:ajam, mas
por seres cujo gênero, raça ou classe social os tornam inelegíveis ao também providenciam assistência médica e prestam serviços sociais
reconhecimento público. Em vez disso, temos não apenas que levar de forma provisória, podemos distinguir as vocalizações que ema-
as urgênciasmateriais do corpo para a praça, mas torna-las centrais nam do corpo das outras expressõesdas necessidades
e urgências
para asexigências da política. materiais? Nos casos em que as manifestações consistiam, no fim
No meu modo de ver, uma condição compartilhada de precarie- das contas, em dormir e comer na praça pública, construindo ba-
dade situa nossa vida política, precisamente quando a precariedade nheiros e vários sistemas de compartilhamento do espaço, as pesso-
é diferencialmente distribuída. E alguns de nós, como Ruth Gilmore as não estavam apenas se recusando a desaparecer, a ir para casa ou
deixou bastante claro, estamos desproporcionalmente mais expos- ficar em casa,e não estavam apenasreivindicando o espaçopúblico
tos a danos e à morte precoce do que outros.'2 A diferença racial para si mesmas-- agindo juntos e em condições de igualdade--, mas
pode ser rastreada precisamente ao examinarmos as estatísticas so- também se mantendo como corpos persistentes com necessidades,
bre mortalidade infantil, por exemplo.Isso signiâca, em resumo, desejos e exigências: arendtianos e contra-arendtianos, com certeza,
que a precariedadeé distribuída de maneira desigual e que as vidas uma vez que essescorpos que estavam organizando as suas neces-
não são consideradas igualmente passíveisde luto ou igualmente va- sidadesbásicasem público também estavam exigindo que o mundo
liosas. Se,como Adriana Cavarero argumentou, a exposição do nos- registrasse o que estava acontecendo ali, fizesse o seu apoio conhe-
so corpo no espaçopúblico nos constitui fundamentalmente, estabe- cido e, dessamaneira, entrassena ação revolucionária propriamente
lecendo nosso pensamentocomo social e corporificado, vulnerável dita. Os corpos agiam juntos, mas também dormiam em público, e
e passional, então o nosso pensamento não chega a lugar nenhum em ambas essasmodalidades estavam tanto vulneráveis quanto fa-
sem o pressuposto dessa interdependência e desse entrelaçamento zendo exigências, conferindo uma organização política e espacial a
corpóreos. O corpo é constit]4Í4o por meio 4ç perspçç11ya:s.gue
não necessidadescorporais elementares. Nesse sentido, elesse formavam
poda..bêbjgr. Outra pessoavê o nossorosto de uma maneira que como imagens a serem projetadas para todos os que assistiam, exi-
não podemos ver e ouve a nossa voz de uma maneira que não po- gindo de nós que as recebêssemos e reagíssemos, assegurando assim
demos ouvir. Estamos nessesentido -- corporalmente -- sempre lá, e uma cobertura de mídia que se recusassea deixar que o evento fos-
ao mesmo tempo aqui, e essadespossessãomarca a sociabilidade à se encoberto ou eclipsado. Dormir sobre a calçada não era apenas
qual pertencemos. Mesmo como sereslocalizados, estamos sempre uma maneira de reivindicar o público, contestando a legitimidade
em outro lugar, constituídos em uma sociabilidade que vai além de do Estado, mas era também, e muito claramente, uma maneira de
nós. Isso estabelecea nossa exposição e a nossa precariedade, as colocar o corpo em risco em sua insistência, obstinação e preca-
maneiras pelas quais dependemos das instituições políticas e sociais riedade, superando a distinção entre público e privado durante o
para persistir. tempo de revolução. Em outras palavras, foi somentequando essas
necessidadesque supostamente devem permanecer privadas foram
+

expostasno dia e na noite da praça, na forma de imagem e discurso

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CORPOSEM ALIANÇA E A POLÍTICA DAS RUAS CORPOSEM ALIANÇA E A POLfTtCA DAS RUAS

9 A primeira especulaçãode Arendt sobre o direito a ter direitos no contexto


para a mídia, que finalmente se tornou possívelestendero espaçoe
dos refugiados foi em 1943, quando escreveu "Nós, refugiados" no Tbe Me-
o tempo do evento com uma tenacidade capaz de derrubar o regime.
lzorab/onr za/.Ver também o brevecomentário feito por Giorgio Agamben
Afinal de contas, as câmeras nunca paravam; os corpos estavam lá neste ensaio: <http://roundta ble. Kein.org/nade/399>.
e aqui; eles nunca paravam de falar, nem mesmo enquanto dormiam e, 10 Zeynep Gambetti, "Occupy Gezi as Politica of the Body", in T&e ÀÍa&/fzgo/a

por isso, não podiam ser silenciados, sequestrados ou negados -- a Profesf Mouemenf /n 'rbr&ey, org. de Umut ózkirimli(Houndmills, Basing-
stoke, Palgrave Pivot, 2014).
revolução algumas vezesacontece porque todo mundo se recusa a ir
Hans Wehr, Díct/onary o/ Modem Wrfffen Áraólc, 4. ed., org. de J. Milton
para casa, aderindo às ruas como o lugar de sua coabitação tempo- Cowan (Ithaca, NY, Spoken Language Services,1994), s.v. "salima".
rária e convergente. 12 Ruth Wilson Gilmore, Go/den Gu/ag: Pr/sfofz,Surf/us, Crlsfs, and Oppo-

slflofz /n G/oóa/lzlfzg Ca/l/brnla (Berkeley, University of California Press,


2007)
Notas

l Jasbir Puas, 'Tbrrorlsf Assemó/ages: Homonaf/ona/ísm /n Q eer Tomes (Dur-


mam,NC, Duke University Press,2007).
2 Hannah Arendt, Tüe HwmalzCondiflon (Chicago,University of Chicago
Press, 1958), p. 198 [ed. bus.: A condição bwmana, São Paulo, ForenseUni-
versitária, 2016].
3 Ibid
4 Ibid., P. 199.
5 "0 ponto de vista de uma ética é: entre aquilo do que você é capaz, o que
você pode fazer? Daí um retorno a essetipo de clamor em Spinoza: o que um
corpo pode fazer? Nunca sabemos,de antemão, o que um corpo pode fazer.
Nunca sabemos como estamos organizados e como os modos de existência
se desenvolvem em alguém." Gilles Deleuze, ExPressfofzlsm in Pbí/osopby:
Spf/ioga,trad. de Martin Joughin (Nova York, Zune Books, 1992),p. 217
234. Essaconsideraçãodifere das dele em vários aspectos,principalmente em
virtude da sua consideração sobre os corpos em sua pluralidade, mas também
por perguntar quais são as condiçõesnas quais um corpo pode realmente
fazer de tudo.
6 Adriana Cavarero, For More fbafz One \bica: 'lbward a Pbl/osopby o/' Vaca/
ExPression, trad. de Paul Kottman (Paio Alto, CA, Stanford University Press,
2005) [ed. bus.: VozesP/orais. Ff/oso/ia da exPress'ioz,oca/,Belo Horizonte,
Editora UFMG, 2011].
7. Arendt, Hzlman CondÍfíon, p. 199.
8 Giorgio Agamben, Homo Sacar:Soz,erelgnPoder and Bate Li&, trad. de Daniel
Heller-Roazen(PaioAlto, CA, Stanford University Press,1998) [ed. liras.: Homo
sacar.O poder soberanoe a z/]danua ], Be]o Horizonte, Editora UFMG, 2010].

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