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SOBRE DIFERENÇA SEM SEPARABILIDADE

Denise Ferreira da Silva

ESTRANGEIROS

O OUTRO PERIGOSO

Acompanhando as reações dos países europeus à “crise dos refugia¬ ]Ler, por utmpln, os
dos" resultante das últimas guerras do Capital Global - isto é, conflitos comentários cie SEavoj
2. ii.ct disponíveis em

DENISE FERREIRA DA SILVA focais e regionais pelo controle de recursos naturais é evidente como
a gramática e o léxico raciais efeiivamente funcionam como descritores
i mrhcseri mii.com/
articlWiS
mropean-refogpe-crists-
éricos. Sem as declarações dos cidadãos europeus amedrontados diante
and-global-capitalLsm.
da onda de “estrangeiros", seria mats difícil para eles justificar a Acruq cm 201Í.
construção de muros e programas de deportação para conter centenas
de miihares de pessoas fugindo de conflitos armados no Oriente Médio 2 Ver pia no da
Q

Comissão Europeia
e por iodo o continente africano.' Pois, segundo a falsa narrativa sobre
pura Lidar com a crise
o “Ou iro11 perigoso e indigno - o “terrorista muçulmano" disfarçado divulgado em ienembm
de refugiado (sírio) e o “africano faminto", de candidato a asilo as de loiÿ. t>t5pnníveJ
em eunopa.-tu/rapid/
diferenças culturais sustentam declarações de incerteza que rea ímente
press-re!ease_l I*-í 5 -
dificultam reivindicações de proteção dentro da esfera dos direitos i7QO.enMc.him. Acesso
humanos, apoiando assim o emprego do aparato de segurança da cm loiíi.

União Europeia/
Medo e incerteza, sem dúvida, têm sido os pilares da gramática MEDO E INCERTEZA
racial da modernidade. Desde o início do século zo, articulações
da diferença cultural no texto moderno agregaram um signíficante
científico social projetado para delimitar o alcance da noçào ética de
humanidade. As ferramentas críticas disponíveis, precisamente por
também serem construções do pensamento moderno, não suportam
a ideia de uma intervenção ético-política que reduza a capacidade da
diferença cultural de produzir uma separação ética intransponível.
Isro é, elas não são capazes de efetivamente interromper o emprego
de uma violência total que em outro contexto seria inaceitável contra

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3 ESíO c inspirado na aqueles que estão do “Ouiro11 lado {cultural} da humanidade. Por quê? sugerindo que os componentes fundamentais de todas as coisas, de 4 O eteiLvo (nível
noção dt plenum dc atjõmko e supra-
Porque das também participam da construção da imagem do texto tudo, poderiam ser* simplesmente, o virtual {as partículas subatõmicas)
Leibniz. Ver, por fvcmpk), aDÕmko) eo viriual
G. W. F. Leibniz, moderno d10 Mundo como um todo composto de partes separadas* tornando-se real (no espaçotempo), o que é também uma recomposi¬ {luhaiomicn) se reFcrcm
Discourse on Metaphysics rdacionadas através da mediação de unidades de medida constantes d ção de todas as outras coisas/1 Hã décadas os resultados con ira intui Ií- 3. dtferemes momenios

anã Other Es says. ou de uma força violenta limitadora. Quando empregada para pensar vos dos experimentos da física quântica vêm superando as descrições - respecuvamcrne,
Indianapolis: Hockcii, anõmko e itipra-ainmico
199] fed. bras.: Orsfurso
o social, essa imagem faz da socialização uma contingência do habitar d' O Mundo com aspectos - incerteza* e não localidade* - que violam e suhatomico - Je iudo
Je metafísica e ciutrai as mesmas panes [jurídicas, espaciais ou temporais) do mundo. os parâmetros da certeza. Experimentos que* proponho* nos convidam aqutln que existe.
tritei. Trad. MartEena
Um programa ético-político que não reproduza a violência do a imaginar o social sem as distinções mortíferas do Entendimento e
Cham CE al. São E'aulo:
{ O principio da
.Vt a reins Tonnes, ZOQ4]. pensamento moderno exige repensar a socialização por fora do texto seus letais dispositivos de (re) ordenamento.
incerteza -de Heisenberg
moderno. Porque apenas o fim do mundo tal como o conhecemos y O que está em jogo aqui? Do que precisaremos abrir mão para se refere a experiments
estou convencida, será capaz de dissolver a ideia de coletividades liberar a radical capacidade criativa da imaginação e dela obtermos o qut L'onrranam a opinião
de que as medidas
humanas como *estrangeiras" com os atributos morais fixos e que for necessário para a tarefa de pensar O Mundo de outra maneira? das propriedades
irreconciliáveis que as diferenças culturais engendram. Isso exige Nada menos que unia mudança radical no modo como abordamos correspondem a
que libertemos o pensamento das amarras da certeza e abracemos matéria e forma. Dos primórdios da filosofia natural (Gaíileu, 1564- acontecimentos na
realidade que não
o poder da imaginação para criar a partir de impressões vagas e O INCERTO 164a e Descartes* 1596-1650) e da física clássica {Newton, 1643- poetem ser atterados peta
confusas, ou incertas, que Kant ( 17Z4-1S04) postulou serem inferiores 1717) herdamos uma visão da matéria da Antiguidade - com a noção intervenção humana.
MUDANÇA RADICAL DE COMO Ver Werner Heisenberg
ãs produzidas pelas ferramentas formais do Entendimento. Uma ABORDAMOS MATÉRIA E que compreende o corpo a partir de conceitos absiratos que estariam
Physics anã Philosophy.
configuração dT0 Mundo alimentada pela imaginação nos inspiraria FORMA presentes no pensamento, como solidez, exrensâo* peso* gravidade* e Amherst: Mromerbcus
a repensar a socialização sem as imutabilidades abstraias produzidas movimento no espaço e 110 tempo. De todo modo, a alegação de que Eithftks, 1999 fed. bras.:
pelo Entendimento e a violência parcial e total que eias autorizam a mente humana seria capaz de conhecer as propriedades dos corpos Pistea e filosofia, 4' ed.
Trad, .forçc Leal Ferre Lra.
- contra os “Outros1" culturais [não brancos/ não europeus) e físicos com certeza, sem a mediação do regente divino e autor do Livro da Eirasiha: Hdirora L nli.
( mais-q ue-h u ma nos). Naiureza, se basearia em duas rupturas com a filosofia escolástica. '9991-
Em primeiro lugar, os filósofos do século 17 que se autodenominavam
6 O principio eta não
“modernos’" criaram um programa do conhecimenio preocupado
Jocal idade se refere
PENSAR O MUNDO IMAGINAÇÃO E REARRANJO como o que chamavam de “causas secundárias (eficientes)" do a medidas de Lima
movimento - que geram transformações na aparência das coisas na propriedade de uma
parrkula (como a posição)
Depois de romper os muros vítreos* formais e fixos do Entendi memo, narureza -e não com as “causas primordiais (finais)’" das coisas* ou
que instant a neamenic
O MUNDO COMO UM TODO liberada do jugo da certeza* a imaginação pode conceber um rearranjo com o propósito (finalidade) de sua existência. Em segundo, em vez fornecem a medLda de uma
COMPLEXO SEM ORDEM dos componentes fundamentais de tudo para refigurar O Mundo como de se basearem na necessidade lógica de Arisióteles (3S4-3Z1 a. CL) propriedade relacionada
foonio o momentum)
um todo complexo sem ordem. Consideremos uma possibilidade: e se, para garantir a correção de suas descobertas, filósofos como GaLileu de outra partícula,
em vez de O Mundo Ordenado, pudéssemos imaginar O Mundo como se apoiaram na necessidade característica da matemática, mats pre¬ 1 ndependcntemcnie d a

uma Plenitude, uma composição infinita1 em que cada singularidade cisa mente nas demonstrações geométricas como base para a certeza. distancia entre as duas.
Ver Kohcn Nadeau e
existente está sujeita a se tornar uma expressão possível de todos os Indiscutivelmente, esses filósofos são herdeiros dos primeiros escriíos
Menas Kafatos, The Non-
outros existentes, com os quais ela está emaranhada para além do sobre a excepcionalidade do Homem - sua alma, seu livre arbítrio, sua Local Universe. Oxford:
espaço e do tempo. Hã décadas os experimentos da física quântica capacidade de raciocínio etc. O que Descarres introduziu no século Oxford Lÿmverstry Press,
'999
surpreendem os cientistas do espaçotempo e os leigos com descobertas 17 foi uma separação entre a mente e o corpo segundo a qual a mente

MUNDO COMO COMPOSIÇÃO INFINITA

SOBRE DIFERENÇA SEM SEPARABILIDADE 59


7 Ver LmminucL fcjnr, humana, devido ã sua natureza formai, também adquire a capacidade cujo ápice seria representado peias configurações sociais europeias
Crilique of t'ure Reasati. de determinar tanto a verdade sobre o corpo do homem, quanto sobre pós-iluministas.
Cambridjíc: Cambridge
UciLverHiiy tÿress. 1998
tudo aquilo que compartilha de seus atributos formais, como solidez,
fed. pon.: Criticada extensão e peso,
razão pura, /.td Trad.
Essa separação é justamente o que será consolidado no modelo PENSAR A DIFERENÇA CULTURAL
Manuela Plmo dos
e Alexandre Fradiquc do sistema filosófico de Kant, feito a partir do programa de Newton,
.Vlorufãn. Liihoa: especial mente a ideia de que o conhecimento consiste na identificação Desde a consolidação do programa kantiano no contexto pós-
Fundação CaÊOLisre
das forças limita ntes, ou leis que determinam o que ocorre às coisas -lluminista, a física forneceu modelos para estudos científicos das
Gulbenkban. IDID).
observadas e aos acontecimentos (fenômenos)," A realização de Kant, condições humanas - uma tarefa facilitada pela ideia de Hegel do
o desenho de um sistema que se baseava fundamenta Imente na capa¬ tempo como força produtiva e teatro do conhecimento e da morali¬
cidade determinante da razão e não em um criador divino, perturbou dade. infeliz mente, esses modelos foram bem-sucedidos justamente
seus contemporâneos, que viram aí a possibilidade de uma determi¬ porque esses escritos sobre o humano como euce social se baseiam nas
nação forma] também se tornar um descritor das condições humanas, mesmas rupturas em relação à filosofia medieval que fundamentaram
constituindo uma ameaça mortal ao ideai da liberdade humana. No a reivindicação dos filósofos modernos por um conhecimento com
entanto, dois elementos inter-relacionados do programa kantiano con¬ certeza, isto é,com causas eficientes e demonstrações matemáticas,
tinuam a influenciar projetos epistemológicos e éticos contemporâneos: que são a base do texto moderno. A gramática racial ativada nas
(a) separabilidade, isto é, a ideia de que tudo o que pode ser conhecido reações ao fluxo de refugiados na Europa é apenas uma repetição do
sobre as coisas do mundo está compreendido pelas formas (espaço e texto moderno. Ela não apenas persiste nessa reivindicação da certeza,
tempo) da intuição e as categorias do Entendimento (quantidade, qua¬ como sua reclamação da verdade se assenta sobre os mesmos pilares -
lidade, relação, modalidade) - tudo o mais a respeito delas permanece separabilidade, deíerntinabilidade e sequenáalidade - que os filósofos
inacessível e é irrelevante para o conhecimento; e consequentemente modernos reuniram para sustentar seu programa de conhecimento,
(b) determinabilidadei a ideia de que o conhecimento resulta da Quando se observa de perto a gramática racial, é possível
capacidade do Entendimento de produzir constructos formais, que ele identificar dois momentos distintos. Primeiro, a ciência da vida, tal
pode usar para determinar (isto é, decidir) a verdadeira natureza das como definida iniciafmente por George Cuvier (1769-1832), embora
impressões sensíveis compreendidas pelas formas da intuição. modelada a partir da filosofia natural de Newton, ainda se baseava
Algumas décadas depois da publicação das principais obras de no modo descritivo dos primórdios da história natural, e introduzia
Kant, Hegel (1777-1831) tratou dessa ameaça à liberdade em um a Vida como causa eficiente e final das coisas vivas, Mais tarde, no
sistema filosófico que inverte o programa kantiano com um método século 19, depois que Darwin (1809-1882} divulgou suas descrições
dialético. Esse método empreende dois feitos: (a) a noção de realiza¬ da Natureza viva - em que a diferenciação emerge como resultado do
çãoÿ na qual corpo e mente, espaço e tempo, Natureza e Razão, são princípio racional, uma causa eficiente, que opera no tempo através
duas manifestações de uma mesma entidade, o Espírito, ou a Razão da força, nomeada men te a seleção natural, ou como resultado de uma
como Liberdade e (b) a noção de &equetuiiaitdades que descreve o luta pela sobrevivência -, a ciência da vida conduziria um programa
Espírito como movimento no tempo, um processo de autodesenvolvi- para o conhecimento da existência humana, a saber, a antropologia do
mento, e a História como a trajetória do Espírito. Com esses passos, século 39, ou a ciência do homem. Além dos traços externos usados
ele introduz uma conformação temporal da diferença cultural como no mapea mento da história natural, os autodenominados cientistas
realização de momentos distintos do desenvolvimento do Espírito, do homem desenvolveram as próprias ferramentas formais, como o

SOBRE QIFEREN ÇA S EM S EPARAfilUD ADE 63


S Alfred Kítieber, índice facial para medir corpos humanos, que se tornaria a base da de microfísica do poder, que atua basicamente através da linguagem, 9 Ver, por exemplo,
Anthropology. Nova descrição e da classificação dos atributos tanto mentais quanto morais do discurso e das instituições.? A segunda per speed va descreve o Michel Fauciuli,
York: Harccun and Discipline and Punish.
31 race, 194JL p.i.
e intelectuais dos homens, em uma escala que suposta mente registraria poder/ conhecimento como produtor dos próprios sujeitos e objetos, Nova York: Vi tirade
o grau de desenvolvimento cultural, que ao agir no nível do desejo - assim como os experimentos da mec⬠Books. 1977 |ed.
Segundo, no século io, como era de se esperar, o médico conver¬ nica quântica, que inspiraram o princípio da incerteza de Heisenberg bras.: Vigiar e punir -
Naiíii menta Jj prisão,
tido em antropólogo Franz Boas (1Ã5 8-1941) realiza uma mudança mostram como o aparato determina os atributos das partículas em 40'. ctl. Trad. Raquel
importante no conhecimento da condição humana ao alegar que observação. Kama Lhere . íerrópnEis:
Vozes, zoi 1].
aspectos sociais, não biológicos* explicam a variação de conteúdos Durante séculos, como esses exemplos indicam, desenvolvimentos
mentais (morais e intelectuais). Com isso, ele formula uma noção de na física pós-dãssica - na relatividade e na mecânica quântica - foram
■o Os novos maierialisras
diferença cultural que tem tanto um aspecto Temporal quanto espacial. cruciais para criar abordagens reóricas e metodológicas no estudo das dc hoje lamhêm se valem
Segundo Boas, o estudo dos conteúdos mentais deveria tratar das questões económicas, jurídicas, éticas e políticas que tanto produziram dc imujçõcs da flstca de
parnculas. Ver Dtana
"formas culturais", ou "padrões de pensamento" que surgiram nos como reafirmaram as diferenças humanas/0 infelizmente, no entanto, Cook e hamanrha Frasr,
primeiros momentos da existência coletiva e foram expressos nas cren¬ não foram o suficiente para inspirar imagens da diferença sem sepa¬ hleu> Materialisms:
ças e práticas de seus membros. Ào emergir e se consolidar no tempo, rabilidade, seja espaçotemporal, como nos coletivos culturais, ou for¬ Ontology, Agency,
Politics. Durham: JUuke
ele defende, as "formas culturais”, não físicas, explicam diferenças mais, de Boas, seja no sujeito produzido discursivamente de Foucault. Universny Press, íQIQ.
mentais perceptíveis (morais e intelectuais). A escola inaugurada por Como era de se esperar, eles reforçaram ainda mais a ideia de cultura e
ele, a antropologia cultural, marcou uma mudança metodológica, isto de conteúdos mentais como expressão de uma separação fundamental
ê, uma ruptura com as visões emocêntricas de diferença humana, que entre grupos humanos, em termos de nacionalidade, etnícidade e de
repercutem uma mudança importante 11a física, a saber, o princípio da identidade social (degenero, sexual e racial).
relatividade de Einstein. Para Alfred Louis Kroeber, aluno de Boas,
À panir daí det começaram a vislumbrar aquilo como uma roral idade,
O MUNDO EMARANHADO
como nenhum historiador de um único período ou de um union povo
provavelmente conseguir ia, tampouco nenhum anaíisca dedicado
Ao acompanhar as reações europeias recentes à "crise dos refugiados",
apenas a seu próprio tipo de civilização. Eles tomaram consciência da
vemos como as diferenças culturais descrevem um presente global
cultura como um “universo1’, ou um vasio tampo no qual nos e a nossa
atolado no medo e na incerteza: a identidade étnica faz isso por meio
civilização aiualmenre só ocupamos um lugar euire muitos. O resuEtado
de declarações que definem um "Outro" ameaçador, isto é, aqueles que
foi uma ampliação de um ponto de vista fundamental, uma ruptura com o
buscam na Europa um refúgio contra as guerras no Oriente Médio,
etnocentrismo inconsciente em direção i relatividade/
a instabilidade política no Leste e no Norte da África, e os conflitos
Na segunda metade do século AO, mais precisa mente em meados da estimulados pela exploração dos recursos naturais no Oeste da África.
década de 1970, encontramos a física de partículas, no trabalho do No Brasil, isso se manifesta através daqueles que tentam o impeach¬
filósofo francês Michel Foucault ( 1916-1984), abrindo novas pers- ment da pre si denta Diima Rousseff lançando ataques morais contra os
pectivas para o pensamento crítico. Foucault estabelece, por exemplo, que apenas recentemente tiveram seus direitos reconhecidos com base
uma distinção entre um modo de operação do poder jurídico-político na identidade social (de género, sexual, racial e religiosa). Em ambos
que se assemelha aos acontecimentos envolvendo corpos maiores - tal os casos, a diferejiça cultural sustenta um discurso morai baseado no
como expresso nas leis do movimento de Newton - e o que ele chama princípio da separabilidade. Esse princípio considera o social como

SOBRE DEFEREM ÇA SEM SEPARABILIDADE 63


um todo composto de panes formalmente independentes. Cada uma consiste em um retrato limitado dT0 Mundo, porque se refere apenas
dessas partes, por sua vez, constitui tanto uma forma social como aos fenômenos, em outras palavras, às coisas tal como são acessíveis
unidades separadas geográfica e historicamente que, como tal, ocupam aos sentidos no espaçotempo. D que a não localidade expõe é uma
posições diferentes diante da noção ética de humanidade, identificada realidade mais complexa na qual tudo possui existência efetiva
com as particularidades dos coletivos brancos europeus. (espaçotempo) e virtual (não local). Sendo assim, por que então
E se, em vez d'O Mundo Ordenado, imaginássemos cada existente não conceber a existência humana da mesma maneira? Por que não
(humano e mais-que-humano) constituído não de formas separadas, considerar que além de suas condições físicas (corporais e geográficas}
associadas pela mediação de forças, mas como expressão singular de de existência, em sua constituição fundamental, no nível subarômico,
cada um dos outros existentes, e também do todo emaranhado em que os humanos existam emaranhados com todas as coisas (animadas e
elas existem? E se, em vez de procurar na física de partículas os mode¬ inanimadas) do universo? Por que não levar em conta as diferenças
los para análises mats científicas e críticas do social, nós nos concen¬ entre os homens - aquelas que os antropólogos e sociólogos dos
trássemos em suas descobertas mais perturbadoras - por exemplo, a séculos e 10 selecionaram como descritores humanos fundamentais
não localidade (como princípio epistemológico) e a virtualidade (como - como efeitos das condições do espaçotempo e de um programa de
descritor ontológico} - como descritores poéticos, isto é, indicadores conhecimento modelado a partir da física newtoniana (a antropologia
da impossibilidade de se compreender a existência com as ferramentas do século 19) e einsteiniana (o conhecimento científico do século zo),
do pensamento que só fazem reproduzir a separabilidade e suas no qual a separabilidade é um princípio ontológico privilegiado? iem
assistentes, a sabei; a de term inabilidade e a sequencial idade? Encerro a separabilidade, a diferença entre grupos humanos e entre entidades
este ensaio com uma contemplação daquilo que pode vir a se tornar humanas e não humanas possui muito pouco poder de explicação
acessível à imaginação, um tipo de abertura ética a ser vislumbrada e significado ético. Pois, como a não localidade considera, além das
com a dissolução do jugo do Entendimento e a liberação dXJ Mundo superfícies sobre as quais a noção dominante de diferença está inscrita,
para a imaginação. tudo no universo coexiste taí como Leibniz (1646-1716) descreve,
Para reimaginar a socialização, o princípio da não localidade isto é, como expressão singular de todas as coisas no universo. Sem
defende um tipo de pensamento que não reproduzas bases metodo¬ a separabilidade, conhecer e pensar não podem mais ser reduzidos
lógicas e ontológicas do sufeito moderno, a saber, a temporalidade à determinação na distinção cartesiana mente/corpo (na qual o
linear e a separação espacial Porque rompe esses limites de tempo e segundo tem o poder de determinar) e à redução formal kantiana do
espaço, a não localidade nos permite imaginar a socialização de tal conhecimento a um tipo de causalidade eficiente. Sem a separabilidade,
maneira que atentar para a diferença não pressupõe separabilidade, a sequeneialidade (o pilar ontoepistemoíógico de Hegel} já não
dete rmmabt!idade e sequendalidade, os três pilares ontológicos que pode explicar as muitas maneiras como os humanos coexistem no
sustentam o pensamento moderno. No universo não local, nem o mundo, porque a autodeterminação possui uma área muito limitada
deslocamento (movimento no espaço} nem a relação (conexão entre (espaçotempo) de operação. Quando a não localidade orienta nossa
coisas espacialmente separadas) descreve o que acontece, porque as imaginação do universo, a diferença não é uma manifestação de um
partículas emaranhadas (isto é, todas as partículas que existem} exis¬ estranhamento irresolvíveí, mas a expressão de um emaranhamento
tem umas com as outras, sem espaçotempo. Embora os comentários elementar. Isto é, quando o social reflete O Mundo Emaranhado, a
de Kant sobre aquilo que na Coisa é irrelevante para o conhecimento socialização não é mais nem causa nem efeito das relações envolvendo
dispensem preocupações metafísicas, também sugerem que a realidade existentes separados, mas a condição incerta sob a qual tudo aquilo
descrita na física de Newton (e mais tarde na de Einstein, 1879-1955) que existe é uma expressão singular de cada um e de todos os outros
existentes efetivos ou virtuais do universo.

SOBRE DIFEREM ÇA SEM SE PARABILIDADE 65

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