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A rubrica como literatura da teatralidade: modelos textuais e poéticas da cena

A rubrica como literatura da teatralidade:


modelos textuais & poéticas da cena

L uiz Fernando Ramos

A
rubrica projeta, no plano literário, uma didascálias como pertinentes na análise teatral.
certa materialidade cênica. É um território O que se pretende aqui é contra-argumentar em
privilegiado de convívio entre duas dimen- favor da hipótese de que o exame das rubricas
sões do fenômeno teatral em princípio in- revela um modelo textual no qual se reflete um
comunicáveis: a cena imaginária, virtual, estilo pessoal de lidar com a materialidade cêni-
projetada pelo autor, e a cena concreta, matéria ca. A intenção é, tomando como exemplo um
tridimensional que ocupará espaço físico e de- autor latino-americano, o encenador e drama-
senvolver-se-á temporalmente diante de espec- turgo brasileiro José Celso Martinez Correa,
tadores em um espetáculo. Mesmo reconhe- comparar a forma como ele rubrica seus textos
cendo-se que esta intersecção é improvável, com a utilizada por um autor europeu como
procura-se aqui explorar o potencial do texto Samuel Beckett.
didascálico como literatura que faz do espetá- José Celso, na peça Cacilda!, dialoga di-
culo, ao mesmo tempo, seu tema e sua finalida- retamente com Beckett no nível temático e dra-
de, e que reflete a autoria de poéticas cênicas es- mático. Mas quando se comparam as textua-
pecíficas. Será aí, nessa narrativa dos aspectos lidades didascálicas dos dois autores revelam-se
materiais do espetáculo, que se encontrará a ver- marcas pessoais e intransferíveis de cada um, e
são mais aproximada de uma cena imaginada. características ímpares de suas respectivas tea-
O modo de encenar de cada autor repercutirá tralidades. Antes, porém, de detalhar as di-
neste texto cristalizando-se como literatura. Uma dascálicas de Beckett e de José Celso será im-
literatura muito peculiar, que remete a um es- portante situar histórica e conceitulmente a
petáculo ausente e inalcançável, mas que pode, rubrica como um modelo textual, avaliando-a
idealmente, vir a participar dele. como parte independente da literatura dramá-
Este entendimento da rubrica como um tica e explicitando uma hipótese que justifique,
modelo textual específico, capaz de informar contra as restrições mencionadas, sua eficácia
sobre a teatralidade intrínseca do texto dramá- como índice confiável na análise teatral, ou,
tico, contorna uma série de objeções que os es- mais especificamente, na análise da dramaturgia
tudiosos de teatro têm feito à consideração das contemporânea.

Luiz Fernando Ramos é professor do Departamento de Artes Cênicas da ECA-USP, dramaturgo e


encenador.

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A rubrica como índice Michael Issacharoff distinguiu-se por va-


do espetáculo? lorizar a didascália dentro de uma perspectiva
semiótica da literatura dramática (Issacharoff, p.
A rubrica, ou didascália, como a conhecemos 93). Ele defende que o texto escrito é “o único
hoje, é uma forma de textualidade literária mui- elemento constante no que acontece em nome
to recente. Na idade média, surge nos textos do teatro” e que a rubrica será sempre vital na
dramáticos religiosos apresentando os aspectos eventualidade de uma encenação imaginária
materiais e simbólicos do rito, e, na Renascen- desta dramaturgia. De acordo com Issacharoff,
ça, já aparece exercendo a função de indicar aos o texto dramático é estereofônico, desde que
operadores da montagem aspectos funcionais da tem dois canais: o destinado a ser dito pelos ato-
sua articulação, como o momento exato das en- res (os diálogos), que participa da ficção; e aque-
tradas e saídas, a lista de personagens e, princi- le que expressa a voz do dramaturgo endereçada
palmente, a distribuição das falas entre eles. No aos operadores da montagem (as rubricas) e que
final do século XIX a rubrica consolidou-se como pode correr paralelo à ficção. A rubrica seria o
elemento inseparável do texto dramático, mas que ele chama de componente não ficcional do
só em meados do século XX desenvolveram-se drama e aquilo que definiria a sua especificidade
abordagens teóricas sobre suas especificidades. como literatura. Nenhum outro gênero literá-
Roman Ingarden definiu as didascálias rio possuiria este estatuto excepcional, de com-
como “secundárias”, por serem textos cujo des- portar um canal suplementar que serve de ma-
tino era desaparecer na realização do espetácu- nual de uso.
lo, frente aos diálogos que seriam “primários”, Esta idéia de um duplo canal ou de uma
por serem pronunciados na encenação (Ingar- dupla enunciação já tinha sido formulada por
den, p. 71). Eli Rozik reavaliou recentemente Anne Ubersfeld (Ubersfeld, p. 77). Ela apon-
aquela contribuição à luz da atual, e hegemô- tou a rubrica como espaço de enunciação ime-
nica, perspectiva semiótica na análise do teatro diata do autor, enquanto no diálogo há a medi-
(Rozik, p. 91). Segundo ele, a matéria que esta- ação do personagem entre o autor e o especta-
ria em exame – o teatro como linguagem – não dor. Mesmo reconhecendo que as rubricas são
inclui entre as suas partes as didascálias, pois esta portadoras deste “discurso sem sujeito”, Ubers-
“linguagem” só existe enquanto espetáculo. feld as vê como meras partes acessórias do texto
Nessa medida, se fosse possível estabelecer as teatral, podendo ser reduzidas a quase nada
“funções da linguagem” no teatro, como Ingar- numa encenação efetiva. Talvez por isso, Ubers-
den quis, elas não incluiriam as rubricas. Rozik feld não se preocupe em analisar as rubricas e
critica a hipótese de Ingarden quanto às rubri- concorde com a classificação de Ingarden quan-
cas serem transformadas, com o espetáculo, em to ao seu caráter secundário. Para Ubersfeld,
“um outro meio de representação que as substi- mesmo revelando a teatralidade de um texto
tui”. Seria esta condição mutante das rubricas, dramático, elas não alcançam o “status” de serem
de quando encenadas deixarem de ser verbais, lidas como os diálogos, funcionando apenas
que as tornaria “secundárias”, enquanto os diá- como complementares a eles (Ubersfeld, p. 83).
logos, no espetáculo, não seriam transformados. Patrice Pavis concorda com Ubersfeld e
Rozik nega esta dicotomia entre verbal e não- interpreta a posição de Issacharoff como influ-
verbal e defende a visão de que a linguagem do enciada pela Speech Act Theory e fundada na di-
teatro envolve um método unitário e não ver- ferenciação estabelecida por Searle entre falas
bal de representação icônica. Ele não quer ba- “sérias”, que têm efeitos concretos sobre seus des-
nir a palavra, mas apenas enfatizar o aspecto não tinatários, e as falas ficcionais, que afetam apenas
verbal da linguagem do teatro. Por isso as di- às personagens (Pavis, p. 92). Mesmo reconhe-
dascálias não têm função na linguagem teatral. cendo a contribuição deste enfoque para dife-

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renciar a literatura da linguagem ordinária, Pavis tantas variantes, que se torna arbitrária, numa
vê nesta dicotomia entre o real e o ficcional “um espécie de visualização tão subjetiva quanto o
resíduo metafísico”. Ele se pergunta se seria pos- sonho. Esse espetáculo virtual não tem um re-
sível separar, seja na literatura dramática, seja no ferente externo que permita um consenso a res-
espetáculo, as referências ficcionais das “sérias”. peito de sua existência. Para Alter o discurso crí-
Ao contrário, propõe um enfoque que torne a tico deveria restringir-se aos referentes literários
dimensão ficcional o mínimo denominador co- – entenda-se a “história”, pois o referente “tea-
mum entre dramaturgia e espetáculo. tral” tornar-se-ia necessariamente literário quan-
Marvin Carlson também rebateu as posi- do fosse formulado por escrito. A única manei-
ções de Issacharoff (Carlson, p. 90). Como Pa- ra de se discutir um texto dramático seria, en-
vis, ele identificou a raiz do raciocínio de Issa- tão, assumindo essa condição literária, evitar a
charoff na Speech Act Theory de Searle, mas foi virtualidade incerta e ater-se aos limites da fic-
mais longe ao apontar que a rubrica, mesmo ção, possíveis de serem compartilhados para
existindo à parte do diálogo ficcional, poderia além de divagações subjetivas.
ser lida apropriadamente como integrante da Em primeiro lugar, é discutível a idéia de
ficção da peça. Nesse sentido criticou o fato de que a rubrica esteja, inexoravelmente, prisionei-
Issacharoff tratar a divisão entre os modos ra de uma “ficção literária”. É verdade que a ru-
diegético (narrativo) e mimético (dramático) de brica, em geral, só existe enquanto literatura, a
um ponto de vista estritamente verbal. Ou seja, forma literária é sua condição de existência. Por
no caso das rubricas, o fato delas não resulta- outro lado, não é exatamente verdadeiro que
rem em falas no espetáculo não as livraria de esta forma literária expresse, necessariamente,
participarem do modo diegético. Carlson lem- uma “ficção” ou “história”, à qual os operadores
bra o exemplo de Ato Sem Palavras I, de Beckett da rubrica teriam que se remeter para garantir
– citado por Issacharoff para defender a idéia uma interpretação consistente dos referentes
de que, como não há texto falado, prevalece o apresentados. Além da “ficção”, a quem inega-
modo mimético e inexiste narrativa –, para pro- velmente servem e muitas vezes se submetem,
var exatamente o oposto. Carlson rejeita com- as rubricas referem-se ainda a uma outra dimen-
pletamente a idéia de uma encenação virtual ou são, não literária, que é a da materialidade e do
da possibilidade de um discurso sobre o espetá- corpo tridimensional do cênico. Enquanto an-
culo a partir das rubricas. tecipação imaginária de uma futura cena con-
Admitir que uma análise através das ru- creta, têm uma relativa independência da fic-
bricas seja estritamente literária excluiria a possi- ção, ou da “história” que haja para contar. É
bilidade de relação entre aquele texto, que trata incorreto, portanto, reduzir as rubricas, neces-
de uma cena futura, ou passada, e a cena con- sariamente, a meros suportes da ficção literária
creta à qual corresponderá a sua efetiva realiza- e deixar de reconhecer esta outra dimensão, de
ção? Seria possível assegurar que, em nenhuma uma narrativa relativa ao cênico, que não tem a
hipótese, o texto didascálico remeterá ao espe- princípio nenhuma subordinação à história que
táculo que projeta? Jean Alter acredita que sim. a ficção literária quer contar e se constitui como
Abordando a questão pelo prisma da literatura, uma esfera independente. Na verdade, em ca-
ele descarta a rubrica como assunto que deveria sos limites como o da dramaturgia de Beckett,
ser evitado pelo discurso crítico (Alter, p. 90). onde o próprio desenvolvimento da ficção está
Para ele, a idéia do espetáculo virtual, ou da en- abalado, nem diálogos nem rubricas estão, exa-
cenação imaginária, não oferece um referente tamente, a serviço de uma história. Assim, para
estável para que se possa discutir sobre ele. A montar Esperando Godot não é preciso definir
projeção pelo operador desta virtualidade de uma história que articulará falas e rubricas de-
uma cena concreta é tão complexa, envolvendo baixo de um referente estável. Como não há,

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com certeza, uma história, ou a que existe é uma cena e, assim, não só articulam a encenação no
história incerta, o que se pode fazer é lançar mão plano imaginário, como garantem a sua consis-
dos indicadores espaço-temporais das rubricas tência enquanto ficção.
para auxiliar nesse desenvolvimento. O recurso A questão que se coloca aqui é, pois, in-
à “história”, que seria adotado por um leitor que troduzir nesse debate teórico a perspectiva da
lesse o texto querendo encontrar um sentido, rubrica como indicadora de uma certa mate-
seria dispensado por quem se preocupasse, ex- rialidade cênica e como reflexo de uma poética
clusivamente, com os aspectos materiais de uma específica. Acredita-se que as rubricas refletem
montagem – tais como tornar compatíveis os uma primeira encenação virtual do autor que
momentos de entradas e saídas do espaço cêni- expressa aproximadamente sua visão da cena
co com o número de personagens previstos e o montada. Admite-se que muitas outras encena-
de atores disponíveis. No caso deste hipotético ções virtuais do próprio autor e de todos os seus
encenador pouco sofisticado, o que realmente leitores serão ainda possíveis, e que algumas ou-
não importaria seria o conteúdo das falas ou da tras leituras, mais pragmáticas, de diretores, ato-
história que Beckett estivesse, por ventura, que- res, e de todo o tipo de artesãos que influem
rendo contar. numa produção, resultarão em espetáculos con-
Este exemplo demonstra, de maneira cla- cretos diferenciados. Reconhece-se, também,
ra, o que se está querendo dizer com esfera in- que a cena revelada a cada tentativa de leitura
dependente, que lida com a “materialidade” da será sempre subjetiva, ou pertinente apenas a
cena. Sugere também uma contraposição ao ra- cada um que se permita o devaneio de encenar
ciocínio de Alter. Ele sustenta que Esperando um espetáculo com a própria imaginação e que,
Godot é uma peça muito teatral, que teve sem- numa espécie de hipertrofia referencial, tornar-
pre encenações mais ou menos semelhantes, se-á impossível delinear uma versão definitiva
graças à força da ficção, que teria compensado a dessa cena potencial. Cada leitura corresponderá
generalidade das rubricas (Alter, p. 87). Na ver- a um espetáculo diferente e, mais crucial, pres-
dade, parece exatamente o contrário, já que, suporá sempre um relato numa forma literária
como será demonstrado, as rubricas em Beckett e já distanciada do espetáculo em si.
têm uma precisão e uma condição de dispositi- Foram, exatamente, essas dificuldades de
vos essenciais à articulação cênica da peça. As- se estabelecer um discurso comum a partir da
sim, as montagens de Esperando Godot são mui- leitura das rubricas que provocaram o desinte-
to semelhantes, não porque na ausência de resse pelo estudo do texto didascálico. É inegá-
referentes cênicos consistentes os encenadores vel, no entanto, que, quando se trata de explo-
tivessem que se remeter à ficção literária, mas rar imaginariamente a materialidade projetada
porque Beckett construiu o texto para funcio- por quem construiu uma obra dramatúrgica, as
nar em cena como um mecanismo preciso, cri- rubricas podem ser muito úteis. Não importa
ando através das rubricas travas de segurança se serão obedecidas à risca ou simplesmente
que evitassem alterações substanciais na mate- relegadas, se serão lidas como receita de bolo ou
rialidade cênica por ele proposta. Em vez de se- ignoradas como bula de remédio incompreen-
guir a história para dar conta da cena, os ence- sível. Enquanto registro estável daquela primei-
nadores de Esperando Godot seguiram as rubricas ra encenação imaginária, as rubricas oferecerão
e com isso encontraram um porto estável para ao pesquisador um ponto privilegiado de ob-
contar alguma história. As rubricas, de fato, são servação. Serão tanto o último vestígio de uma
uma referência mais concreta que qualquer his- encenação passada (real ou imaginária), quanto
tória a ser deduzida pelos eventuais leitores da a raiz potencial de todas as encenações futuras.
peça como literatura. Elas inscrevem no plano Mesmo referindo-se a algo que não existe ain-
literário a dimensão física e tridimensional da da, ou que já não existe mais – um espetáculo

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efetivo –, refletirão potencialmente, como nar- A textualidade didascálica


rativa literária, a cena desejada pelo seu autor. em Beckett
Essa perspectiva de análise confirma-se na
dramaturgia de Samuel Beckett quando se en- Desde Eleuthéria, a primeira peça, até Catas-
fatiza o papel das rubricas na construção de seu trophe, uma das últimas, a dramaturgia de Beckett
teatro. As didascálias refletem, muito mais do é um constante desvendar dos mecanismos de
que os diálogos que amalgamam, o projeto apresentação dramática. As personagens são re-
teatral daquele autor e seus procedimentos es- veladas enquanto partes de uma engrenagem e
pecíficos no que diz respeito à materialidade suas ações, se alguma finalidade possuem, é a
cênica. Se é verdade que Beckett, de algum mo- de cumprir este desvendamento. É como se suas
do, fundou uma teatralidade específica, essa peças, e os espetáculos decorrentes, funcionas-
“poética cênica” transparece verdadeiramente em sem como um relógio invertido, que em vez de
suas rubricas. Elas são um espelho da evolução mostrar a face com as horas e os ponteiros que
do escritor da condição de dramaturgo à de as indicam, revelasse suas costas, cheias de pe-
encenador, e da integração dessas duas funções quenas engrenagens articuladas. Ao invés das
no seu exercício como autor de uma linguagem horas indicadas, estão expostos, na sua insigni-
cênica própria (Pountney, p. 88). ficância, os mecanismos que as engendram. A
Será partindo desta evidência em Beckett hipótese aqui é que nesta inversão – que cria
que se apresentará, também, a dramaturgia de uma identidade e permite falar num estilo bec-
José Celso Martinez Correa, cuja textualidade kettiano, ou num novo paradigma de teatra-
didascálica reflete uma poética da cena muito lidade – a rubrica desempenha um papel crucial.
particular. No caso de José Celso, o movimento Ela não só articula e opera este mecanismo que
é inverso ao de Beckett, no sentido de que ele é se revela, como fixa esta inversão, garante-a e
um encenador que se faz dramaturgo, e que, torna-a perene. Na verdade, em Beckett a ru-
diante da necessidade de construir seu espetá- brica será tão importante na leitura que o es-
culo desde o texto, faz da narrativa de cenas vi- pectador venha a fazer do espetáculo, se ali ela
sualizadas subjetivamente um de seus principais for concretizada, quanto naquela feita por quem
instrumentos. Além disso, José Celso escreve de a lê como literatura dramática, nas páginas do
um ponto de vista latino-americano, terceiro- livro. Ela estabelece uma ocupação física do pal-
mundista, de colonizado que constrói sua lite- co que não pode ser desconsiderada pelo even-
ratura dramática a partir da devoração da dra- tual operador daquelas instruções, sob pena de
maturgia do colonizador. E ele não devora perder-se totalmente a consistência da ficção
apenas uma dramaturgia. José Celso absorve cri- proposta.
ticamente, também, toda uma estética cênica O controle sobre a transformação das in-
européia e norte-americana que tomou conta do dicações cênicas em cena efetiva é tal, que não
teatro brasileiro durante os anos oitenta, déca- obedecê-las equivale a modificar ou omitir as
da em que ele esteve parado, concentrado em falas das personagens. Como já acontece no pla-
fazer cinema. Ao escrever Cacilda!, processa o no literário em geral, onde a rubrica é, incon-
Beckett dramaturgo, de quem empresta diálo- testavelmente, indispensável para articular a fic-
gos inteiros, mas intui também o Beckett ence- ção, em Beckett ela será também imprescindível
nador, latente nas rubricas do autor irlandês. na formalização cênica dessa ficção. Quando,
por exemplo, a direção do movimento das per-
sonagens no palco é apontada na rubrica, im-
plica num desenho previsto pelo autor, que re-
mete a uma situação concreta, a presença física
e significante das personagens indo nesta ou

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naquela direção. Se na maior parte dos autores muito claro em todas as instruções que oferece
uma indicação como esta – a direção na qual em vários níveis didascálicos. A rubrica inicial
uma personagem se movimenta – é, de fato, se- apresenta as informações básicas sobre o cená-
cundária, em Beckett ela será vital. Mesmo com rio, as luzes, e a forma como são introduzidas
uma infinita variedade de modos de se executá- as falas iniciais e simultâneas das três persona-
la, não cumpri-la é não só trair o autor como gens-urnas – w1, w2 e w3. As rubricas internas
alterar completamente o curso da ação dramá- às falas vão determinando a direção dos refleto-
tica:“Estragon – Allons-y (Ils ne bougent pas)” res e, nessa medida, definindo a sintaxe do dis-
(Beckett, 1952, p. 52). curso verbal. Finalmente, há as notas inde-
Os movimentos de Estragon e Vladimir, pendentes, que lembrando as notas explicativas
principalmente os deles, são ações que, mesmo de Eleutheria – exercícios precursores dessa es-
podendo variar muito de montagem para mon- critura de cenas –, proporcionam esclarecimen-
tagem e dependendo dos atores que as fizerem, tos adicionais. Três delas, as referentes às urnas,
têm um contorno mínimo e indicam ações fun- à luz e ao coro do início da peça, são remissivas
damentais para que se consume o arco de ação à rubrica inicial. A quarta nota explicativa exce-
desenhado pelo dramaturgo. Em meio a um de- dente refere-se à solicitada repetição ao final do
serto de referências torna-se natural que as ações texto.
físicas realizadas por Vladimir e Estragon sejam
“The repeat may be an exact replica of first
vitais para que o drama avance e possa levar a
statement or it may present an element of
cabo a sua insolubilidade.
variation. In other words, the light may
A partir de Esperando Godot, a ambigüi-
operate the second time exactly as it did the
dade e a indeterminação dos temas e tramas só
first (exact replica) or it may try a different
aumentou, ao mesmo tempo em que as ações
method (variation). The London production
físicas e as rubricas que as descrevem foram se
(and in a lesser degree the Paris production)
tornando cada vez mais exatas. Isto começa a
opted for the variation with following
ficar mesmo claro na peça escrita logo depois
deviations from first statement” (Beckett,
de Dias Felizes, no final de 1962, chamada Play.
1990, p. 90).
Ela marca – já no nome, que sugere um teatro
substantivo, concreto, mas também, e principal- Segue-se a enumeração detalhada das modifica-
mente, no tratamento da luz – o início de uma ções da produção londrina, em que se destaca a
nova fase de Beckett na sua experimentação com especificação da intensidade da luz em oito mo-
o espaço cênico. Em Play, Beckett decide trans- mentos particulares. Esta nota explicativa de
formar a luz num elemento contracenador tão Play revela um Beckett encenador emergente,
ou mais significativo que as falas. As persona- que escreve depois da produção, analisando a
gens, cabeças saídas de urnas – numa variação alternativa adotada e incorporando esta contri-
do tema da supressão do corpo de Dias Felizes – buição ao texto original. Ao mesmo tempo, ain-
dependem crucialmente do foco de um refletor da resta uma hesitação do dramaturgo quanto
para existirem, como presenças físicas e como às potenciais revisões que outros encenadores
falas. É a luz que as autoriza a falar e que as su- farão, o que o obriga, além de indicar a repeti-
prime. Ao longo da peça, oito blackouts criam ção no meio da última aparição do coro, em
intervalos de cinco segundos que secionam a detalhá-la nesta nota. Beckett talvez imaginasse
peça em partes ou mecanismos independentes. que havia uma grande margem de variação o
Toda esta coordenação de aparições e desa- que o fez considerar mesmo a referência da pro-
parições é operada através das rubricas que, em dução de estréia, em Londres, como uma possi-
Play, tornam-se, definitivamente, o eixo da dra- bilidade entre tantas. Por outro lado, o contro-
maturgia deste encenador potencial. Beckett é le que exerce através das rubricas sobre o ritmo

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e andamento é quase total, não havendo muita O diretor ocupado em dar os últimos retoques
margem de variação no que diz a respeito à luz na montagem é uma personagem diversa das
e a que fala ela deve iluminar, ou das quais deve personagens de Eleuthéria, que mesmo envolvi-
se ausentar. Mais do que isso não importava das num processo cênico (o “ponto”, o “membro
mais a compreensão do que era dito pelas cabe- do público”) estão ainda submersas na ficção so-
ças nas urnas. Beckett insistiu, a contragosto dos bre o triste destino de Victor Krap – o jovem
atores e produtores, que eles falassem rápido a que desistiu de agir. A personagem diretor de
ponto de se tornarem incompreensíveis, suas Catastrophe é fria e calculista e esculpe uma
falas articulando apenas sons e ritmo. cena, um “tableau”. Ela está distante do plano
Um último exemplo que vale mencionar ficcional, ou de qualquer coisa que transcenda
é Catastrophe. Incluída entre as peças da fase fi- a materialidade da cena que constrói. Não há
nal do dramaturgo, ela parece concluir o ciclo nenhuma angústia – com exceção da que é ca-
iniciado com Eleuthéria. Além do nome, deri- racterística de sua assistente – em montar uma
vado do grego, Catastrophe tem também em cena em que a personagem não faz nada e nem
comum com a primeira peça de Beckett ter sido mostra a face. A personagem P é um filho de
escrita em francês, e ter como tema explícito a Victor Krap que, em vez de ser instado a fazer
criação teatral. As diferenças também são ex- alguma coisa, vê-se-lhe imposta a tortura da
pressivas, na medida em que revelam as mudan- imobilidade e da inação. Ele é desenhado como
ças que trinta e cinco anos de prática no teatro elemento de um quadro do diretor, que quer
lhe proporcionaram. A esta altura Beckett já ti- expressar algo – “Aí está nossa catástrofe” – mas
nha uma consciência aguda, quando escrevia em si mesmo, enquanto personagem, é inex-
uma cena, que cada movimento dos atores, tan- pressivo. Não chega nem a ser a representação
to quanto suas falas, precisavam ser muito bem de um mecanismo do teatro, como as persona-
indicados a fim de efetivar-se o espetáculo pre- gens de Eleuthéria. É, apenas, um suporte para
tendido. Nesse sentido, se as rubricas em Eleu- o discurso cênico do diretor. Da mesma manei-
théria tinham uma certa flexibilidade, em Catas- ra que em sua primeira peça Beckett fazia uma
trophe elas são quase exatas, revelando-se im- espécie de acerto de contas com a tradição
prescindíveis não só à compreensão da trama, dramatúrgica, em Catastrophe ele está acertan-
mas à própria efetivação do espetáculo. Desde a do contas com a tradição do encenador moder-
rubrica inicial, comprova-se a implicação inevi- no como voz dominante no teatro. Está tam-
tável entre diálogo e rubrica consolidada como bém acertando os ponteiros com sua própria
marca da dramaturgia de Beckett. condição de diretor, constituída já, nesse mo-
mento, há quinze anos. Neste contexto, a ru-
“Rehearsal. Final touches to the last scene. brica sofisticou-se como instrumento de controle
Bare stage. A and L have just set the lighting. e operação, já que ele passou a escrever pen-
D has just arrived. D in an armchair sando na encenação, sem intermediários. Atra-
downstair audience left. Fur coat. Fur toque vés dela lê-se não só o comentário distanciado
to match. Age and physique unimportant. A do autor sobre a trama, como se revela um re-
standing beside him. White overall. Bare conhecimento que define esta trama.
head. Pencil on ear. Age and physique
“Pause. Distant storm of applause. P raises
unimportant. P midstage standing on a black
his head, fixes the audience. The applause
block 18 inches high. Black wide-brimmed
falters, dies. Long pause. Fade-out of light on
hat. Black dressing-gown to ankles. Barefoot.
face.”
Head bowed. Hands in pockets. Age and
physique unimportant. D and A contemplate Catastrophe comenta também, ironicamente,
P. Long pause” (Beckett, 1986, p. 90). a perspectiva inglória da didascália no teatro

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quando insiste sete vezes com a rubrica – apa- lidade, e, para alcançar isto, baniram a palavra,
nha um bloquinho, apanha uma caneta e toma Beckett alcança esta mesma dimensão, alterna-
nota – sempre seguida da fala – “tomarei nota”. tivamente, através da palavra, ou de uma litera-
O caderno de anotações do diretor, no caso des- tura dramática muito específica. Seja na forma
te diretor, é escrito pela assistente. Síntese de se- mais óbvia, a articulação da cena pelas falas sem-
cretária e contra-regra, ela submete-se à tirania pre acompanhadas de precisas indicações sobre
do encenador que dita as especificações da cena, o movimento e o ritmo dos atores no contexto
para que ela as transforme em texto didascálico. de um plano mais abrangente e visual de obser-
Outra rubrica – meio perdida. Irritadamente – vação, seja única e exclusivamente nas rubricas,
repete-se quatro vezes durante a peça, sempre quando não existem mais falas.
que, depois de uma orientação de D sobre o que Nestes casos seu teatro já não guarda ne-
deveria ser modificado em P, A remete-se a P nhuma proximidade com a dimensão do logos,
sem muita paciência. Estas constantes rubricas atuando sobre o público apenas como physis,
idênticas que, se considerarmos as indicações de através da visualidade e dos outros sentidos cuja
pausa, já apareciam em profusão nas primeiras percepção passa longe do plano da racionali-
peças, só confirmam que para Beckett a rubri- dade. Ao contrário de Brecht, que mesmo se
ca, tanto quanto o texto dialogado, possui uma pretendendo anti-aristotélico (Brecht, p. 93),
importância estrutural na forma dramática que reproduz exatamente a idéia aristotélica de que
ele constrói. o teatro só se realiza quando é compreendido
Para concluir essas observações sobre a racionalmente, Beckett caminha como ence-
rubrica na dramaturgia de Beckett vale ainda nador, e contando para isso com as rubricas,
enfatizar o processo de transformação do dra- para um teatro cuja realização transcende o pla-
maturgo em encenador, tanto frente à tradição no racional de compreensão e se propõe como
dramática que o antecede, quanto às tendênci- poema espacial, enquanto gramática dos ele-
as contemporâneas do teatro que o sucedem. O mentos físicos no espaço cênico. É certo que,
teatro de Beckett sugere uma ruptura com o tanto quanto em sua literatura, o tema central é
paradigma da representação dramática realista. a dúvida sobre a possibilidade de representação
Segundo Aristóteles, a arte do poeta dramático da realidade. Mas a forma como se articula
é relativa a uma teknê específica, diferente da como teatro, linguagem cênica, prescinde já das
teknê relativa à arte do cenógrafo ou do “fazedor articulações lógicas e dos pressupostos de
de máscaras” (Haliwell, p. 87). Beckett realiza, racionalidade intrínsecos na idéia do drama
em sua prática criativa como autor dramático, clássico e se mostra como matéria bruta, escul-
uma inversão em termos da teknê habitualmen- tural e pictórica, que fala através dos movimen-
te atribuída ao dramaturgo – constituir primor- tos, ou da paralisia total, ou ainda do silêncio,
dialmente uma trama – aproximando-a da teknê constituídos cada um destes enquanto forma
identificada com as atribuições do “fazedor de tridimensional.
máscaras” – cuidar da visualidade e dos elemen- Estas características do último Beckett, já
tos externos à trama, entre os quais “o menos abertamente um encenador, homem de teatro
importante”, o espetáculo. Beckett escreve já de completo – que como seus maiores antecessores
um ponto de vista novo, o do “fazedor de más- não distingue as funções de escritor de textos
caras”, mas utiliza ainda os instrumentos do dra- no papel e a de executor de cenas no palco – o
maturgo tradicional, as palavras. Ao contrário aproximam surpreendentemente de criadores
das correntes simbolistas que no início do sécu- que, à primeira vista seriam alinhados bem lon-
lo, através, por exemplo, de Gordon Craig, pro- ge dele, como é o caso de Robert Wilson. O
puseram um teatro como arte autônoma, com paradigma do teatro de Wilson é descentrar
leis próprias na constituição de sua materia- completamente o teatro do eixo da fábula, in-

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A rubrica como literatura da teatralidade: modelos textuais e poéticas da cena

vertendo radicalmente a perspectiva aristotélica vitória no certame. O processo de criação trans-


e, mesmo quando utilizando a literatura dramá- correu ao longo do segundo semestre de 1990,
tica, fazendo-o de forma não hierarquizada e período em que o autor pesquisou documentos
aleatória. Beckett ainda tem como principal su- sobre a vida e as realizações artísticas de Cacilda
porte a literatura dramática, mas o drama que Becker (1921-1969), atriz brasileira célebre nos
constrói edifica-se na dimensão física do palco, anos 50 e 60. Além de examinar a correspon-
tanto quanto os espetáculos de Wilson. A prin- dência de Cacilda, o autor colheu depoimentos
cipal diferença está na forma de cifrar esta di- de familiares e amigos íntimos, cruzando infor-
mensão cênica. No caso de Wilson, um “fazedor mações e selecionando fatos significativos. Ao
de máscaras” por excelência, essa forma é a de lado desta pesquisa biográfica, José Celso reviu
“croquis” e desenhos, plantas e esboços que ante- também a trajetória da atriz do ponto de vista
cipam visualmente uma cena antevista e ainda das personagens que ela representou, lendo to-
não realizada. No caso de Beckett, principal- das as peças em cujas montagens tivesse atuado,
mente o último Beckett, na narrativa detalhista em busca de situações dramáticas que colabo-
e minuciosa de movimentos e ações em pala- rassem na narrativa. Isso fez com que a drama-
vras indicadoras, rubricas que descrevem uma turgia de autores tão variados como Schiller e
cena, também, apenas imaginada. Tennesse Williams reverberasse no texto, bem
como que os estilos das rubricas desses diversos
Cacilda!: a didascália como autores repercutissem nas rubricas do próprio
texto do encenador José Celso.
No caso específico de Samuel Beckett, a
José Celso Martinez Corrêa iniciou sua carreira sua presença em Cacilda! é marcante. Cacilda
como dramaturgo, transformando-se, em mea- Becker morreu a partir de um derrame, sofrido
dos dos anos 60, em um dos mais importantes durante uma apresentação de Esperando Godot,
encenadores brasileiros. Depois de um longo em São Paulo, em 1969. A peça de José Celso
afastamento do teatro (1978-1985), recomeçou começa reproduzindo literalmente o diálogo de
adaptando Bacantes de Eurípides e, prosseguin- Vladimir e Estragon no início da peça de
do na experiência literária, escreveu, em 1990, Beckett. Mas, à diferença da trama enigmática
Cacilda!. Hoje ele pode ser identificado como de Beckett, em Cacilda! Godot chega. Ele vem
um encenador e dramaturgo que não hierar- encarnado na personagem Jovem Atriz, que re-
quiza essas duas funções e as sintetiza, respon- presenta não só o renascimento de Cacilda
dendo pelo texto dramático e pela encenação. Becker como do próprio teatro brasileiro, opri-
Ao contrário do que se verificou em Beckett, mido por quase vinte anos de ditadura militar
no entanto, essa fusão não se reflete necessaria- (1964-1985).
mente em um texto cada vez mais detalhista na Para além das diferenças ficcionais entre
determinação das ações físicas e da materia- as duas peças, interessa perceber em que medi-
lidade cênica. Não porque José Celso não use e da, do ponto de vista da rubrica e da escritura
abuse das didascálias, mas porque o faz de ou- que remete à materialidade cênica, Beckett se
tra maneira. Se suas rubricas incorporam algo intersecta com José Celso. Certamente, em am-
da precisão material indicada pelo texto da ru- bos os casos têm-se rubricas que carregam nos
brica de Beckett, deixam-se contaminar pelas ombros a ação dramática, e este seria um ponto
suas próprias idiossincrasias pessoais, além de em comum. Por outro lado, em José Celso não
refletirem formas teatrais exclusivamente brasi- se percebe tão nitidamente uma escritura como
leiras como a dos desfiles carnavalescos. a das rubricas de Beckett, que cada vez mais pro-
Cacilda! foi escrita para concorrer em um jetam uma cena, eliminando a participação dos
concurso de dramaturgia e valeu a José Celso a diálogos, ou que, mesmo quando contando

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sala preta

com eles, controla-os ao máximo, submetendo- Uma parte importante do espaço cênico foi de-
os a uma composição que já é tridimensional, e finida tanto em termos da ficção, ligando-se
concebida enquanto materialidade. Mas, mes- lugares com situações dramáticas que irão se ar-
mo sendo menos preciso e mais prolixo, José mar – “é lá que Cacilda vai ser parida vinda
Celso também carrega suas rubricas com inten- da terra, pras primaveras, ao mesmo tempo em
ções bem concretas e com cenas bem materiali- que se encontra com Cacilda sendo enTERRA-
záveis. Várias das rubricas de Cacilda! poderi- da” –, quanto em termos funcionais de ocupa-
am, por exemplo, ser classificadas como topo- ção do espaço físico – “A parede da mãe será
gráficas, por assinalarem o lugar onde se passarão depois o camarim de Cacilda, e o lado do pai o
as cenas e delimitarem o espaço físico que estas trono de Creonte, do Governador, do General”.
ocuparão. São rubricas importantes não só por É, ao mesmo tempo, uma rubrica que não pres-
atenderem à ficção, mas porque guiam os ope- creve com exatidão milimétrica o cenário e dei-
radores na construção material da cena. xa uma grande margem de variação para o ce-
O espaço em que José Celso imagina sua nógrafo e o diretor que forem concretizá-la. O
peça encenada é o do teatro Oficina de São Pau- que a caracteriza, mais propriamente, é o esta-
lo – à ocasião em que escreveu a peça, sendo belecimento de uma correspondência inequívo-
reformado para se transformar numa “rua”, ou ca entre alguns lugares específicos da cena pro-
em um grande corredor com arquibancadas sus- jetada e os significados a eles atribuídos pelo
pensas nas paredes laterais. As rubricas topográ- autor. As fotos reunidas de Dona Alzira-Rhea
ficas definem tanto os espaços da ficção como formam um dos campos de força que será acio-
pressupõem esse novo formato do Oficina, que nado ao longo de toda peça de maneiras distin-
lembra um “sambódromo” – estádio construído tas, pouco importando que fotos e de que modo
especialmente para as Escolas de Samba desfila- constituirão este “altar de estrela dos anos 20”.
rem no carnaval brasileiro. A rubrica que des- A “Caixa de Pandora” – um nome a mais para o
creve o Jardim de Pirassununga, espaço mítico espaço do “ponto”, tão acionado ao longo de
da infância da atriz Cacilda Becker, ilustra essa toda a peça –, também assumirá diversos for-
ocupação em dois níveis: o espaço físico, estri- matos, mas estará sempre ocupando uma região
tamente, e o do espaço da ficção. específica do espaço cênico, que depois de defi-
“A casa dos pais – Um retrato imenso tama- nida pelos operadores, seja onde e em que cir-
nho natural do seu Iáconis-Cronos, ao lado cunstâncias for, permanecerá estável cumprin-
de uma janela que dá para o quartel. Numa do sua função dramática. Os significantes que
extremidade oposta, muitas fotos de Dona cada leitor imprimir sobre estes signos anteci-
Alzira-Rheia: A Matriz, como um altar de pados pelo autor vão variar e serão fluídos, mas
uma estrela dos anos 20 da UFA. A cama é o o lugar que lhes couber no espaço cênico, uma
chão, num buraco como o do ponto que será a vez que este esteja definido, terá sido instaura-
caixa de Pandora. É lá que Cacilda vai ser do de forma definitiva. As rubricas em Cacilda!,
parida, vindo da terra, pras primaveras, ao portanto, além de criarem o espaço da ficção,
mesmo tempo que se encontra com Cacilda deixam as características deste encenador inscre-
entrando sendo enTERRAda. Deste lado uma verem-se no projetado espaço físico da cena. É
garrafa enorme de Pinga Pirassununga, hoje o caso, por exemplo, da rubrica que descreve o
51. No desenrolar do fio da intriga, essa casa mar, na chegada da personagem Cacilda, de suas
se divide como todo cenário, sempre, na sepa- irmãs e de sua mãe, à cidade Santos.
ração do casal. A parede da mãe será depois o
camarim de Cacilda, e o lado do pai o trono “Os rochedos são elevações de cimento. O chão
de Creonte, do Governador, do General. Em vai se cobrindo de areias que elas mesmas tra-
pose de Álbum de Família”. zem e a água salgada, das ondas, virá em um

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A rubrica como literatura da teatralidade: modelos textuais e poéticas da cena

filó verde claro, Boracéia, ou cinza chumbo, tual em cena concreta, a rubrica aqui sugere
Santos real, poluído, trazido por entidades do uma imagem poética autônoma, que se afirma
mar. É a capa de uma Nossa Senhora que apa- literariamente e, de certa forma, independe de
rece de Oxum, no meio dos panos, que vão se qualquer cena futura para efetivar-se. O esbor-
desdobrando em camadas de ondas azuis e rifar de “respingos pontilhistas” pode ser no
verde claro de muitos metros, tiras presas em imaginário do leitor, ao mesmo tempo, simples-
tyrsos, com estrelas marinhas prateadas, as mente uma cena imprecisa ou o vislumbrar de
ondas mais fortes são plumas, respingos de um efeito deslumbrante. Tem a não determina-
confetis, refletores vermelho amarelos, como ção referencial típica da poesia e como tal de-
sóis, papagaios, gaivotas, agitadas por contra- penderá sempre da subjetividade do leitor para
regras neutros. Uma escola de samba que evo- se delinear como significante. Neste caso, a con-
lui em sentido de engolir as quatro persona- dição poética da rubrica de José Celso remete-
gens em suas ondas”. ria basicamente ao literário.
Por mais complexa que seja a execução desta Mas é possível localizar, em Cacilda!, al-
rubrica, e por mais em aberto que seja o resul- gumas rubricas que além de implicarem em
tado concreto que um encenador obtenha dela, movimentos físicos indispensáveis – como é o
caso das rubricas de Beckett –, projetam uma
não há como negar que, em si mesma, ela pro-
cena cujos conteúdos espetaculares são, em si
põe uma cena potencial cuja plasticidade é in-
mesmos, poéticos. Um exemplo seria a cena
tensamente poética. Enquanto literatura esta
rubrica combina momentos líricos – “refletores Parto Enterro do terceiro ato. Nela a persona-
vermelho amarelos, como sóis” – com a habitual gem Cacilda é paramentada como uma mistura
descrição pragmática das rubricas – “agitadas por de Marguerite Gauthier, de Dama das Camélias
de Dumas Filho e Maria Stuart – a heroína da
contra-regras neutros”. Como possível espetácu-
peça de mesmo nome de Schiller. Depois de ser
lo, deixa antever a utilização de materiais sim-
vestida “com uma saia rodada com uma arma-
ples, com economia de artifícios e objetividade
ção hemisférica com mapa antigo do hemisfé-
só comparáveis às adotadas pelas Escolas de
Samba brasileiras no preparo de seus desfiles de rio norte com coloração parda”, em que “os
carnaval. Se a rubrica ‘O Mar’ não pode ser vis- anéis da armação aparecem como se fossem os
trópicos do globo terrestre”, a heroína é coloca-
ta como um poema, a cena a que ela remete se
da na carroça de “Pozzo-Mãe Coragem cega
apresenta como tal em sua fantasmagórica con-
guiando”, e levada até o cemitério “como uma
dição de cena imaginária. Isto fica mais claro
santa num andor”. Cacilda anuncia a chegada
numa cena posterior também inteiramente de-
finida pelas rubricas. de Godot, conversa com Ana Kennedy, delira e
termina acusando: “Isto é uma decapitação!”. É
“Como se chamassem o mar e todos os santos a senha para que o coro coloque a “santa”,
para si, vão dançando sem saber, nos roche- paramentada como Maria Stuart, de cabeça para
dos, derramando as areias coloridas de am- baixo no buraco de ponto. Como conseqüên-
pulhetas do tempo, fazendo praias, ou rim- cia, desencadeia-se uma cena muda, tecida só
baudianamente, tirando um paralelepípedo com adereços e elementos cenográficos.
e encontrando A PRAIA. Se deixando bati-
“o corpo mergulha no buraco do ponto (...) Se
zar pelo mar... mergulhadas por ele... recep-
vê o hemisfério virado: o hemisfério sul. A
tivas... O mar pode ser cria da luz, esborri-
saia mapa do hemisfério norte como um ta-
fando respingos pontilhistas”.
pete no chão do palco, um primeiro círculo
Mais que um desafio ao futuro encenador, que branco do continente Ártico, depois a seqüên-
terá de transformar esta imaterialidade concei- cia do trópico de câncer. Na armação se vê o

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sala preta

hemisfério sul, como uma taça aberta para o rouca e pálida que é a didascália, uma materia-
céu”. lidade singular, da mesma forma que um arqui-
A descrição nem é tão exata quanto intensa a teto pode fazê-lo quando projeta um espaço.
carga de significados que encerra. O que José A referência à matéria cênica nas didas-
Celso quer descrever é a transformação de uma cálias de José Celso revela algo que não é perti-
saia rodada com imagem pálida do hemisfério nente apenas à literatura dramática deste ence-
norte, em seu avesso, tornado tapete, com uma nador, mas também aos seus espetáculos. Há
imagem colorida e viva do mesmo hemisfério um intercâmbio inevitável entre o plano literário
norte. Ao mesmo tempo, a armação que estava e o plano cênico que pode, por exemplo, reper-
encoberta pela saia rodada no início da cena, cutir no espetáculo com rubricas sendo expli-
com o mergulho da atriz no buraco do ponto, citadas verbalmente em cena, e, no plano lite-
torna-se uma taça cuja superfície externa traz o rário, aqui em exame, na contaminação da
hemisfério sul impresso. É uma cena relativa- didascálias pelo discurso do encenador. Isto fica
mente simples de executar, mas que ganha uma claro na última rubrica do terceiro ato, que an-
dimensão simbólica extraordinária: a decapita- tecede o diálogo final de Walmor Wladimir e
ção de um teatro europeu e sua transformação Cacilda Estragon.
num novo teatro brasileiro, cuja encarnação é a “No teatro do teatro uma constelação é acesa,
Jovem Atriz, ou a “nova” Cacilda que por ali, em cima do buraco do ponto. O Arco Riso de
pelo buraco do ponto, nascerá. Flávio do Caralho: Plantio de Estrelas no chão
Na verdade, não é uma cena bem escrita, do Céu. Silêncio. Os palcos estão calados como
ou bem descrita, como, foi observado, as cenas cemitérios. Saem todos, correndo atrás de Go-
mudas de Beckett o são. Mas do ponto de vista dot. O cemitério fica entregue a si mesmo, só
teatral, não é preciso muita imaginação do lei- Walmor. Cacilda está debaixo do palco (...)
tor para vislumbrar um grande impacto plásti- O público pode até ver Cacilda Estragon, mas
co. Ao mesmo tempo, enquanto dramaturgia, é supõe-se que Walmor Wladimir não veja”.
um possível clímax da trama, a partir do qual a
ação se encaminha para um desfecho. É o par- Esta combinação de indicação cênica objetiva –
teiro invisível, Godot, quem devora a antiga Ca- “Cacilda está debaixo do palco”; lirismo – “plan-
cilda – “com coroa de bobs dourados de Floripes” tio de estrelas no chão do céu”; trocadilhos – “O
e “luvas duras de Velha Senhora” e dá à luz uma Arco Riso de Flávio do Caralho”; e narrativa fic-
“menininha”. Como um poema carregado de cional – “Saem todos correndo atrás de Godot” –
sentidos, o corpo de Cacilda de ponta cabeça, expressa bem a condição de José Celso de ence-
com o hemisfério sul ereto e o hemisfério norte nador dramaturgo: os procedimentos tradicio-
a seus pés, sintetiza fisicamente a cena de José nalmente literários são tensionados por indica-
Celso, é um ícone do seu teatro, ou da sua lin- ções que afirmam uma materialidade cênica que
guagem de teatro, aqui apenas cifrado em ru- lhe é familiar. De outro lado, a prescrição di-
brica e empalidecido. De alguma forma, a Ma- dascálica, que numa dramaturgia como a de
ria Stuart de cabeça para baixo, que dá à luz um Beckett, mesmo com influência crescente na
Godot tropical, é emblemática da idéia de que constituição do drama, mantém-se impermeá-
seja possível estudar a linguagem cênica de um vel à subjetividade autoral, em José Celso será
autor (encenador ou dramaturgo) não apenas invadida por manifestações idiossincráticas do
nos seus espetáculos, mas também na sua dra- autor, que vão relativizar a tradicional objetivi-
maturgia, principalmente em suas rubricas. Sem dade da didascália.
ser formalista como Beckett, José Celso esculpe Na verdade, a rubrica, com o tempo pre-
sua cena numa tridimensionalidade que lhe é sente radical que lhe é característico, torna-se
típica. Ele enuncia, mesmo que nesta forma uma ferramenta necessária e muito útil para que

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A rubrica como literatura da teatralidade: modelos textuais e poéticas da cena

se opere este tipo de confusão ou de superpo- memória ou esse sonho de um espetáculo vir-
sição do literário e do cênico. É um fenômeno tual. Um que talvez nunca aconteça ou nunca
que se manifestou, por exemplo, na dramatur- tenha acontecido. As rubricas, enfim, projeta-
gia de outro encenador e dramaturgo contem- rão um antes ou um depois, um além ou um
porâneo, Tadeusz Kantor. Ele trabalhava numa aquém, oferecendo uma possibilidade de se ler
linha muito diferente da de José Celso, mas ti- o cênico no literário.
nha em comum fazer de uma relação idios- A escritura no teatro contemporâneo vem
sincrática com o processo de trabalho o eixo crescentemente sendo realizada pelo “fazedor de
temático de seu teatro. Um autor como José máscaras”, que ocupa o lugar do poeta dramáti-
Celso vai ter expressos em suas rubricas tanto o co como rubricador. Seja no escrever de cenas –
olhar plástico do “fazedor de máscaras”, como a de “textos cênicos” como a semiótica conven-
perspectiva do poeta dramático que compõe cionou –, seja no escrever de literaturas, anteri-
ações e está restrito nos limites da ficção. Um ores, simultâneas ou posteriores aos espetácu-
autor como Kantor, operando na contramão da los, quem vem operando hegemonicamente é o
tradição dramática, vai projetar nas didascálias “fazedor de máscaras”. Não importa se os auto-
uma cena que ele cria diretamente no processo res desta cena contemporânea são dramaturgos
de montagem. As rubricas narram esse processo ou encenadores, o que prevalece é que a fôrma
criativo a posteriori. É uma cena que já não ne- adequada ao poeta dramático na descrição de
cessita de trama e que transforma o “fazedor de Aristóteles, se ainda serve à ficção no cinema,
máscaras” num escritor. Em qualquer um dos na televisão e no próprio teatro, já não atende à
casos, as rubricas não servirão para reconstituir eloqüência plástica e pictórica que certos cria-
um espetáculo já transcorrido, nem tampouco dores ambicionam. A estes novos dramaturgos,
serão condição suficiente para converter em afilhados espirituais do “fazedor de máscaras”, a
cena concreta um imaginado projeto de espetá- rubrica surge como uma forma intermediária
culo. De tão pessoais, os comentários didas- entre um modelo de drama que já não serve ao
cálicos de ambos serão matéria exclusiva para teatro que se quer fazer, e um novo modo de
suas próprias versões espetaculares daqueles tex- escritura para um teatro que ainda não se fez.
tos Mas guardarão sempre, num vislumbre, essa

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