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••• História & Luta de Classes, N° 17 - Março 2014 (11-21) - 11

o Golpe de 1964 e meio século de controvérsias:


o estado atual da questão
1
Demian Bezerra de Melo

aniversário de meio século do golpe de 1964 samente novas, na verdade, revelaram um notório empo-
nos oferece uma oportunidade de visitar as principais brecimento conceitual e a marca do conservadorismo
interpretações sobre o evento a partir do qual se iniciam político. O pioneiro na crítica a essa "nova" vertente,
mais de duas décadas de ditadura. Ainda mais nesse ano Caio Navarro de Toledo, em artigo na revista Crítica Mar-
de 2014, quando o tema ultrapassa o âmbito meramente xista3 , publicado ainda no segundo semestre de 2004,
acadêmico e novamente invade a arena pública, especial- havia chamado atenção para a impertinência desta "no-
mente desde a instalação da Comissão Nacional da Ver- va" interpretação, tanto por sua natureza ideologicamente
dade em maio de 2012, e a constituição de uma série de conservadora, quanto sua fragilidade empírica. Afinal,
comissões em âmbito estadual, municipal, de vários escreveu: ''passados 40 anos, nem mesmo um simulacro
legislativos e na sociedade civil, como em sindicatos, de Plano Cohen foi descoberto (ou forjado) pela dura
universidades e algumas seções estaduais da OAB. Desse repressão que se abateu sobre os 'subversivos'. ,,4 O deslo-
modo, o presente balanço da bibliografia não visa apenas camento de sentido foi significativo, não faltando críticos
a sistematização da produção acadêmica, mas também denunciando a reabilitação da versão dos vencedores", e
5
problematizar o uso público do conhecimento histórico o epíteto de revisionista tem sido largamente utilizado ,
entendido como parte das disputas pela hegemonia. inclusive no texto de abertura ao primeiro dossiê desta
6
Há dez anos, quando dos eventos relacionados à revista História & Luta de Classes •
efeméride, um pesquisador notou ironicamente "a quase Pesquisas de fôlego, como o clássico de Moniz
completa ausência dos trabalhadores e seus sindicatos Bandeira, O governo João Goulart e as lutas sociais no
como tema dos debates ", tanto dentro como fora das uni- Brasif, e, mais importante, o fartamente documentado
2
versidades • E isso não é um problema lateral, pois, antes 1964, a conquista do Estado, do cientista político urugua-
de tudo, o governo derrubado pelo golpe era chefiado por io René Armand DreifussS. desvendaram a trama que
um personagem político fortemente ligado à estrutura envolveu diversos setores da sociedade brasileira, nota-
sindical brasileira. Nomeado Ministro do Trabalho em damente suas classes dominantes, tanto na desestabiliza-
1953, durante a segunda passagem de Vargas pelo Catete ção do governo Goulart, quanto na formulação do projeto
(1951-1954), João Goulart recebeu da direita udenista a de classe que tomou o aparelho de Estado em abril de
pecha de ''fomentador da luta de classes". Em seu contur- 1964. Não menos importante, a participação dos EUA
bado governo (1961-1964), Goulart conviveu com gre- naquele processo, especialmente a hoje célebre "Opera-
ves econômicas e políticas (algumas gerais), passeatas e ção Brother Sam", ganhou notoriedade nos anos 1970 a
comícios organizados pela esquerda sindical, eventos que partir do trabalho de Phyl1is R. Parker (publicado antes
tiravam o sono das classes dominantes, temerosas tanto
de uma suposta "ameaça comunista", quanto de uma
também suposta "República sindicalista" a la Peron.
3 TOLEDO, Caio Navarro de. 1964: Golpismo e democracia. As
Essa "grande ausência" é de certo modo sintomá- falácias do revisionismo. Crítica Marxista, São Paulo, n. 19, p.27-48,
tica daquilo que foi apresentado naquela ocasião como a 2004.
"mais moderna interpretação sobre o golpe", que, grosso 4Idem,p.37.
5 Nossa primeira intervenção neste debate foi publicada em MELO,
modo, se resumia a três teses: 1) "esquerda e direita foram
Demian. A miséria da historiografia. Outubro, São Paulo, n.14, p.111-
igualmente responsáveis"; 2) na verdade, "havia dois 130,2006. Um esclarecimento conceitual pode ser lido em MELO, D.
golpes em curso" nos idos de 1964; 3) a resistência à dita- Revisão e revisionismo historio gráfico: embates sobre o passado e as
dura não passou de um mito. Visões como essa predomi- disputas políticas contemporâneas. Marx e Marxismo, Niterói (RJ),
naram na imprensa há dez anos atrás, mas j á eram comuns v.1, n.l, p.49-74,jul/dez 2013.
6 MATTOS, Marcelo Badaró. Os trabalhadores e o golpe de 1964.
bem antes disso. Todavia, a divulgação das mesmas foi História & Luta de Classes, n. 1, p.7-18, abril de 2005. Do mesmo
muito mais significativa e, mais importante, não faltaram autor, um balanço mais amplo, e igualmente crítico: MATTOS, M. B.
vozes do meio acadêmico para dar-lhes chancela "cientí- ° governo João Goulart: novos rumos da produção historiográfica.
Revista Brasileira de História, São Paulo, v.28, n.55, p.245-263,
fica".
2008.
Além de mistificação, tais interpretações preten- 7 BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. O governo João Goulart e as lutas

sociais no Brasil, 1961-1964. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,


IDoutor em História pela UFF. 1977. Em 2001 saiu a 7' edição revista e ampliada (Rio de Janeiro:
2SANTANA, Marco Aurélio. Trabalhadores, sindicatos e ditadura Revan; Brasília: UNB, 2001) e em 2010 a lO' edição pela editora da
militar: o 1968 operário no Brasil. In. FICO, Carlos; ARAUJO, Maria UNESP, também revista e ampliada.
8 DREIFUSS, René Armand. 1964, a conquista do Estado. Ação
Paula. 1968 40 anos depois: história e memória. Rio de Janeiro:
7Letras,2009,p.150. política, poder e golpe de classe. Petrópolis: Vozes, 1981.
12 -O golpe de 1964 e meio século de controvérsias o estado atual da questão •••

aqui do que nos EUA, em 1977Y, e divulgado no Brasil empresarial"f. Não se tratou de uma mera intervenção
antes mesmo da publicação, pelo jornalista Marcos Sá estrangeira (tal como na Guatemala em 1954), nem sim-
10
Corrêa • plesmente o resultado de uma sórdida conspiração, ainda
Parker ficou surpreendida com o fato das princi- que estes dois elementos estivessem presentes na atuação
pais obras escritas por brasilianistas sobre o golpe de 64 da principal organização da sociedade civil atuante
naquela altura, Politics in Brasit, de Thomas Skidmore e naquele processo: o Instituto de Pesquisas e Estudos Soci-
Unrest in Brazil12 , de John Foster Dulles, não terem men- ais (IPES), formado em fins de 1961 por empresários,
cionado essa operação articulada diretamente pelo emba- oficiais militares e fortemente apoiados por recursos ori-
ixador Lincoln Gordon, o secretário de Estado, Dean undos dos EUA, e que funcionou como um partido (no
Rusk, e o adido militar estadunidense, coronel Vernon sentido gramsciano) desses novos interesses que em abril
Walters, amigo do marechal Castelo Branco 13. Mesmo o de 1964 conquistaram o Estado. Dreifuss elaborou sua
importante estudo do cientista político Alfred Stepan, tese com base em farta documentação do IPES depositada
também uma tese de doutorado apresentada a Universi- no Arquivo Nacional, no Rio de Janeiro, respectivamente
1
dade de Columbia, em 1969 \ e centrada na mudança no em dois fundos - "IPES" e "Paulo Assis Ribeiro" - cons-
padrão de intervenção dos militares no processo político tituindo a principal base empírica de sua tese que, entre
brasileiro, não mencionava a Operação Brother Sam. outras coisas, foi o primeiro a insistir na natureza "civil-
Conforme revelam as correspondências entre os agentes militar" ou, mais precisamente, "empresarial-militar" do
estadunidenses envolvidos na operação, o deslocamento golpe e da ditadura que se seguiu.
da Quarta Frota estacionada no Caribe para a Costa brasi- Uma primeira crítica à leitura do golpe de classe
18
leira não deveria ser uma operação secreta, mas algo que partiu da cientista política Maria Vitória Benevides , por
deveria servir para, em primeiro lugar, dar confiança aos ocasião do lançamento de 1964, a conquista do Estado
conspiradores que estavam dispostos até a seccionar o em 1981. Contudo, foi com o trabalho de outra cientista
país e permitir o desembarque de tropas em solo nacional. política que se esboçou pela primeira vez a operação revi-
Embora o uso destas não tenha sido necessário, o episó- sionista que em 2004 se apresenta como dominante no
dio revelou uma das virtualidades existentes nos momen- mainstream acadêmico brasileiro. Democracia ou refor-
19
tos decisivos do golpe de 1964. E embora Skidmore, Dul- mas? de Argelina Figueiredo pretendeu oferecer uma
les e Stepan não pudessem ter tido acesso à documenta- leitura alternativa à de Dreifuss, claramente se opondo a
ção descoberta por Parker, nenhum deles havia dado a este último a partir de um conjunto de hipóteses contra-
menor atenção à participação dos EUA no processo, factuais centrada na ideia de "nem a esquerda nem a direi-
ainda que a questão tivesse sido levantada desde aquela ta possuíam apego ao regime democrático" vigente no
época, tanto pela esquerda, quanto pela literatura 15. Brasil no início dos anos 1960. Para esta autora, as opções
É certamente no trabalho de Dreifuss, tese de dos "atores políticos relevantes", especialmente o próprio
PhD em Ciência Política defendida em 1980 na Universi- Goulart, ao adotarem o tom radical, limitaram a possibili-
16
dade de Glasgow , que a ingerência estadunidense ganha dade de realização de reformas dentro do arcabouço insti-
significado mais preciso. Na base de todo o processo polí- tucional então vigente. Em suma, Figueiredo desloca o
tico estava uma articulação de interesses do capital multi- foco de sua explicação da direita civil e militar, do IPES,
nacional e associado, implantado no Brasil desde os anos da Embaixada dos EUA etc., para responsabilizar aqueles
JK, e que se tornou a fração das classes dominantes mais que em 1964 foram apeados do poder. Ao mesmo tempo,
beneficiada pela ditadura, conformando aquilo que o acusa a tese de Dreifuss de tomar o golpe como algo "ine-
autor denominou de "entrepreneurial arder" ["ordem vitável",já que "os conspiradores são vistos como onipo-
tentes. Conseqüentemente a ação empreendida por eles
não é analisada em relação a outros grupos, nem vista
como sendo limitada por quaisquer constrangimentos
9 PARKER, Phyllis R. 1964: o papel dos Estados Unidos no golpe de
externos ,,20.
Estado de 31 de março. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977. Por fim, chega ao ponto de dizer que Dreifuss não
10 Em reportagens sobre os documentos encontrados por Parker,

publicadas no Jornal do Brasil em 1976, depois condensadas em livro.


CORRÊA, Marcos Sá. 1964, visto e comentado da Casa Branca.
Porto Alegre: LP&M, 1977.
I1 SKIDMORE, Thomas. Politics in Brazil, 1930-1964: an experiment 17 Não a única beneficiada, pois sob o regime dos generais temos a

in Democracy. Oxford: Oxford University Press, NY, 1968, publicado construção de alguns outros impérios empresariais nacionais como: na
no Brasil com o título de Brasil: de Getúlio à Castelo (Rio de Janeiro: construção civil, os grupos Camargo Corrêa, Andrade Gutierrez,
Paz e Terra, 1969). Mendes Júnior e Odebrecht; na indústria pesada, Gerdau, Votorantim,
12 DULLES, John W. Foster. Unrest in Brazil. Political-Military crises Villares, entre outros; sem esquecer o sistema bancário, de que são
1955-1964. Austin: UniversityTexas Press, 1970. exemplares os grupos Moreira Salles, Bradesco e Itaú; e no ramo das
13 Cf. GREEN, James; JONES, Abigail. Reinventando a história: telecomunicações as empresas do Grupo Marinho (Globo).
Lincoln Gordon e as suas múltiplas versões de 1964. Revista 18 Ver a resenha BENEVIDES, M. V. 64, um golpe de classe? (sobre um

Brasileira de História, São Paulo, v.29, no 57, p.67 -89,2009, p.68-69. livro de RenéDreifuss). Lua Nova, v. 58, p. 255-261, 2003. Publicado
14 Publicada no Brasil em STEPAN, Alfred. Os militares na política. originalmente em 1981 em Leia Livros, por ocasião do lançamento da
Rio de Janeiro: Artenova, 1975. obra, e republicada em 2003 em razão do falecimento do autor naquele
15 Cf. MOREL, Edmar. O golpe começou em Washington. Rio de ano.
Janeiro: Civilização Brasileira, 1965. 19 FIGUEIREDO, Argelina C. Democracia ou reformas? Alternativas

16 DREIFUSS, René Armand. State, class and the organic elite: the democráticas à crise política, 1961-1964. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
formation ofthe entrepreneurial order in Brazil, 1961-1965. Glasgow, 1993.
20 Idem, p.28.
1980.
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tomaria em consideração "a situação econômica do país" dicalismo", praticamente uma vítima daquelas circuns-
como fator que facilitaria os objetivos dos conspirado- tâncias. Por exemplo, quando comenta a formação da
21
res , quando, ao contrário, qualquer um que se dê ao tra- Rede da Democracia, um pool de empresários da impren-
balho de conferir a estrutura de 1964, a conquista do Esta- sa que reuniu Roberto Marinho, Nascimento Brito e João
do encontrará um capítulo totalmente dedicado a discutir Calmon, unificando as rádios Globo, Jornal do Brasil e
a natureza da crise dos anos 196022 . Tupi, que de acordo com toda a pesquisa desenvolvida
29
Por sua vez, a ausência de qualquer aporte signi- sobre o assunt0 , articulou-se com o dispositivo golpista
ficativo quanto à pesquisa (ao contrário, um grande retro- do IPES, é apresentada por Ferreira como uma reação de
cesso nesse quesito), não impediu que o clima ideológico empresários "assustados" com os discursos radicais de
23 30
Brizola na Rádio Mayrink Veiga • Daí para considerar
pautado pela hegemonia global do neoliberalism0 e pela
crise do pensamento de esquerda nos anos 1990 contribu- que esquerda e direita deveriam ser co-responsabilizadas
ísse para que Democracia ou reformas? tivesse boa aco- pelo golpe não era um passo muito grande.
lhida, iniciando uma influente trajetória na reflexão aca- As teses de Figueiredo também ganham acolhida
dêmica sobre o golpe. A sintonia com este ambiente inter- na pena de autores que, não obstante sejam mais pruden-
nacional aparecia não só na tese relativista sobre as res- tes em considerar a riqueza de informações na pesquisa
ponsabilidades comuns nos dois pólos do espectro políti- de Dreifuss, como Daniel Aarão Reis, avaliam que no
co-ideológico para o golpe, como também se expressa no trabalho do uruguaio, "o autor pareça superestimar o
problema a partir do qual a autora construiu sua pesquisa. controle e o domínio que as instituições que investiga,
Afinal, opor democracia a reformas não era exatamente o sobretudo o IPES, tivesse do processo histórico em cur-
que pode sintetizar o espírito contrarreformista da Época SO,,3l, opinião similar a de que "os conspiradores são vis-
Neoliberalt4 tos [por Dreifuss] como onipotentes,,32. Do mesmo modo
Entre os historiadores, as proposições de Argeli- que Ferreira, também no trabalho desse historiador a
na Figueiredo seriam respaldadas nos trabalhos do histo- direita figura quase sempre como uma força reativa à
riador Jorge Ferreira. Considerado um dos mais influen- radicalização da esquerda, enquanto as alas radicais desta
tes estudiosos da cultura política trabalhista, e conhecido são acusadas de terem uma visão instrumental da demo-
por sua crítica contundente ao paradigma interpretativo cracia, e mesmo o moderado Partido Comunista Brasilei-
25 ro (PCB), imóvel diante do golpe em 1964, é cobrado por
da Era Vargas calcado no conceito de populism0 , F errei-
ra conclui diversos de seus trabalhos26 com a assertiva não abrir mão em seu programa de um "enfrentamento
segundo a qual, no início de 1964: "Entre a radicalização violento" e da revolução. Cito:
da esquerda e da direita, uma parcela ampla da popula- Para as correntes radicais, a democracia real-
ção apenas assistia aos conflitos silenciosa"z7, Enquanto mente existente, considerada burguesa, valia
isso, algumas lideranças políticas da esquerda, como apenas como campo de manobras e acúmulo de
Leonel Brizola, são retratadas em seus trabalhos a partir forças. O próprio PCB, que optara por fonnula-
ções moderadas, desde 1958, e que fizera da luta
de ideias tais como: "Se ele era radical, sectário, intole-
pela conquista da legalidade, perdida em 1947,
rante, fazia pregações revolucionárias e defendia a rup- uma de suas bandeiras mais importantes, viu-se
tura institucional, era porque as esquerdas eram igual- envolvido no roldão. De um lado, porque tam-
mente radicais, sectárias, intolerantes, pregavam a revo- bém fazia parte de sua cultura política um grande
lução e defendiam a ruptura institucionaf,28. Por outro desprezo pela democracia burguesa. De outro,
lado, a direita é retratada sempre como "reagindo" à radi- porque, em certos momentos, para manter a
calização da esquerda, ou mesmo "assustada" com o "ra- influência em setores populares radicalizados, e
não perdê-los para correntes extremistas, era
necessário acompanhar os passos da dança.
21 Idem,p.173. Finalmente, mas não menos importante, porque
22 Ver seu capítulo IV DREIFUSS, 1964, a conquista do Estado, op. a proposta política aprovada no V Congresso,
cit.,p.125-l60. realizado em 1960, comportava não poucas
23 Cf. ANDERSON, Perry. Ideias e ação política na mudança histórica. ambigüidades, entre as quais acenos à hipótese
Margem Esquerda, São Paulo, n.l, p.79-92, maio de 2003. de um enfrentamento violento para solver as
24 Cf. COUTINHO, Carlos Nelson. A Época Neoliberal: revolução contradições da então chamada revolução brasi-
passiva ou contra-reforma? Novos Rumos, Marília (SP), v.49, n.l, leira".
p.117-l26,jan-jun,20l2.
25 Cf. FERREIRA, Jorge (org.). O populismo e sua história: debate e

crítica. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.


26 FERREIRA, Jorge. O governo Goulart e o f;olpe civil-militar de 29 Além de Dreifuss, outros pesquisadores escreveram trabalhos

1964. In: FERREIRA, Jorge e DELGADO, Lucilia de Almeida Neves importantes sobre a Rede da Democracia, entre os quais destacamos a
(Orgs). O Brasil republicano: o tempo da experiência democrática- dissertação de mestrado em História de Eduardo Gomes Silva. SILVA,
da democratização de 1945 ao golpe civil-militar de 1964. Rio de Eduardo Gomes. A Rede da Democracia e o golpe de 1964.
Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, Livro 3, p.343-404. Dissertação de mestrado em História. Niterói: Universidade Federal
FERREIRA, Jorge. A estratégia do confronto: a Frente de Mobilização Fluminense, 2008.
30 FERREIRA, João Goulart: uma biografia, op. cit., p.3 72.
Popular. Revista Brasileira de História, v. 24, n. 47, 2004. Em sua
31 AARÃO REIS, Daniel. O colapso do colapso do populismo ou a
biografia do ex-presidente, João Goulart: uma biografia (Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2011) que retoma diversos trabalhos propósito de uma herança maldita. In. FERREIRA, O populismo e sua
que o autor vem desenvolvendo ao longo dos últimos anos, o trecho história, op. cit., p.332.
32 FIGUEIREDO, Democracia ou reformas?, op. cit., p.28.
em questão não aparece.
27 FERREIRA, O governo Goulart ... , op. cit., p. 400.
JJ AARÃO REIS, O colilPSO do colapso do populismo ... , op. cit.,

28 I dem,p.356. p.334-335. Grifos no original.


14 -O golpe de 1964 e meio século de controvérsias o estado atual da questão •••

Reverberando a mesma linha revi sionista estão rando do Embaixador Lincoln Gordon, onde este relatou
os livros do jornalista Elio Gaspari, que, lançados no iní- à Washington os intentos de Jango em "conseguir poderes
41
cio dos anos 2000, alcançaram grande repercussão. Espe- ditatoriais,,40. Uma "prova" nada convincente.
cificamente sobre o golpe, em sua Ditadura envergonha-
da, Gaspari afirma, como se fosse auto-evidente, que em Ditadura
março de 1964: "Havia dois golpes em marcha. O de
Enquanto isso, no âmbito dos estudos dedicados
Jango viria amparado no 'dispositivo militar' e nas bases
à ditadura propriamente, grande parte dos historiadores
sindicais, que cairiam sobre o Congresso, obrigando-o a
têm insistido na natureza "civil-militar" desta, todavia
aprovar um pacote de reformas e a mudança das regras
do jogo da sucessão presidenciar'34. numa chave bem distante do sentido dado a este termo no
42
citado trabalho de Dreifuss • É preciso lembrar que, em
E quais as evidências para esta afirmação? A Dreifuss, o elemento "civil" aparece com um evidente
carta de um coronel, o livro pró-golpistas de Glauco Car- recorte de classe, como fica explícito nessa passagem:
neiro (História das revoluções brasileiras) e a opinião do "Um exame mais cuidadoso desses civis indica que a
Embaixador Lincoln Gordon. Mais uma vez, nenhum maioria esmagadora dos principais técnicos em cargos
35
tipo de evidência minimamente confiáve1 • burocráticos deveria (em decorrência de suas fortes liga-
Essa mesma proposição, de que Goulart preten- ções industriais e bancárias) ser chamada mais precisa-
dia um golpe, aparece na biografia Jango, um perfil de mente de empresários, ou, na melhor das hipóteses, de
Marco Antonio Villa, lançado em 2004, um apanhado dos r·
tecno-empreSarlOS .
,,43

estereótipos produzidos pela direita em relação ao ex- Entretanto, em vez de o termo "civil" se ligar à
36
presidente • Logo na introdução, Villa deixa claro que o participação de fortes interesses classistas tanto na articu-
propósito do livro tem a ver com um "acerto de contas" de lação golpista quanto no caráter do regime ditatorial,
sua geração em relação à imagem de Jango como um parte da historiografia vem defendendo a mistificação
"presidente jovem e valente que foi deposto quando quis calcada na ideia de algo como uma cumplicidade da "so-
fazer as reformas de base,,37. Segundo o autor, a própria ciedade brasileira" com a ditadura, como se fosse possí-
ditadura, com seu conservadorismo, repressão política e vel a existência de uma tal "sociedade", como uma coisa
censura teria acabado por reforçar essa imagem "heróica" homogênea. Essa reificação da sociedade, capaz de "as-
do ex-presidente. No entanto, o objetivo de Villa não é sumir responsabilidades" ou "esquecer" (talvez até, "ar-
outro, senão desqualificá-lo: rependida", colocar-se "em frente ao espelho") nada mais
Contudo, quando nos aproximamos historica- faz que reabilitar a mitologia criada por aqueles que assal-
mente de Jango, da sua carreira política, especi- taram o poder em 1964, segundo a qual a intervenção
almente dos 31 meses de governo, a imagem fica
militar se fez por "exigência do povo brasileiro".
borrada. O destemido é substituído pelo fraco; o 44
defensor das reformas, pelo conciliador; o presi- Em recente intervenção nesse debate , Daniel
dente realizador, pelo incapaz de administrar a Aarão Reis elencou três argumentos com os quais queria
res publica. O político hábil aparece como um provar o tal "apoio da sociedade brasileira" à ditadura:
presidente inconsequente, e o favorito de Getú- 1)as Marchas com Deus, pela Pátria e Família,
lio Vargas, como fruto da fortuna e não da virtu-
organizadas antes (em São Paulo) e depois
de, pensando como Nicolau Maquiavel. 38
do golpe de Estado (no Rio de Janeiro, capi-
tais e muitas cidades do país);
E em seguida, após apresentar o conteúdo do seu
2)as votações expressivas no partido de apoio à
livro, anota:
ditadura - Aliança Renovadora Nacional
O leitor observará que Jango ameaçou com a (Arena);
possibilidade de dar um golpe de Estado - isso,
evidentemente, quando tinha o controle da maior 3)e a suposta popularidade do presidente general
parte das Forças Armadas. O golpe de Estado Emílio Médici (1969-1974).
acabou ocorrendo, só que contra ele e, principal- Vejamos a consistência desses elementos. Em
mente, contra a democracia e o desenvolvimento primeiro lugar, sim as marchas em apoio ao golpe e à dita-
econômico-social do Brasil. 39
dura já instalada foram massivas, afinal, ao contrário do
que afirma parte dessa historiografia revisionista, o povo
Todavia, não nos oferece nenhuma prova do gol-
pismo de Jango, a não ser quando apresenta um memo-
40 Idem, p.191.
41 ApudTOLEDO,As falácias do revisionismo, op. cit., p.38.
34 GASPARI, Elio. A ditadura envergonhada. São Paulo: Companhia 42 Sobre a re-significação do termo "civil-militar" na historiografia

das Letras, 2002, p.51. recente, desenvolvi a questão em MELO, Demian B. Ditadura "civil-
35 Ver MAESTRI, Mário & JAKOBSKIND, Mário Augusto. A militar"?: controvérsias historiográficas sobre o processo político
historiografia envergonhada Revista História & Luta de Classes. Ano brasileiro no pós-1964 e os desafios do tempo presente. Espaço
1,n° 1,p.125-131,2005. Plural, Marechal Cândido Rondon (PR), v.27, p.39-53, 2012. Retomo
36 VILLA, Marco Antonio. Jango, um perfil (1945-1964). São Paulo: aqui parte das ideias arroladas nesse artigo.
Globo, 2004. 43 DREIFUSS, 1964, a conquista do Estado, op. cit.,p.417.

37 Idem, p.7. 44 Ver esse argumento em REIS, Daniel Aarão. Ditadura, anistia e
38 Idem, p.7. reconciliação. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vo1.23, n.45, p.171-
39 Idem ,p.9. 186,jan./jun.201O.
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"não assistiu bestializado" ao golpe de Estado, pois uma mudança na Constituição que lhe permitisse concorrer a
parte dele certamente o apoiou com algum grau de ativis- mais um mandato. Não é possível discordar de Moniz
mo. Narrativas justificadoras do golpe, como o panfleto Bandeira quando este escreve que "o golpe de Estado,
"A Nação que se salvou a si mesma", publicado na revista instigado e sustentado pela comunidade de homens de
Seleções do Reader's Digest em novembro daquele ano, negócios e pelos proprietários de terra, não contou com o
45
reafirmam esse ponto de vista • Recentemente, historia- respaldo da maioria da opinião pública, coriforme a ver-
dores têm buscado explorar esse apoio, pesquisando, sao- OJ
,-r;' I I ,,49 .
lCla propa ou
entre outras coisas, essas próprias marchas 46. O segundo elemento apontado por Daniel Aarão
50
Todavia, muitos não têm levado em conta, por Reis, o argumento da "expressiva votação da Arena "
exemplo, as informações de pesquisa de opinião pública não leva em conta que parte não desprezível da oposição
levantadas pelo IBOPE em várias capitais em fevereiro e ao regime pregou o voto nulo como forma de denunciar a
março de 1964, que ficaram desconhecidas naquele con- farsa de ter de escolher entre o partido do "sim"
texto, mas foram reveladas em 1989, pelo cientista políti- (ARENA) e o do "sim senhor", o Movimento Democráti-
47
co Antonio Lavareda • Constata-se nesses dados uma co Brasileiro (MDB), oposição consentida. O próprio
enorme popularidade do governo Goulart e de suas pro- autor, em seu livro Ditadura militar, esquerdas e socieda-
postas reformistas, e entre todas estas informações, uma de, havia enfatizado a enorme proporção de votos nulos e
5
chama particular atenção. No relatório referente à pesqui- brancos nas eleições de 1966 e 1970 \ mas hoje parece
sa realizada entre 9 a 26 de março de 1964 - num universo abandonar esse elemento que afinal esclarece como parte
de 500 pessoas entrevistadas no Rio e em São Paulo, e significativa da sociedade brasileira não colaborou nem
400 nas outras capitais -, em resposta à pergunta "Se o apoiou aquela barbárie. Aliás, nas eleições de 1974, quan-
Presidente João Goulart também pudesse candidatar-se do o regime afrouxou o controle sobre a propaganda elei-
à Presidência", temos o seguinte resultado48: toral, o voto oposicionista foi vencedor nos grandes cen-
tros urbanos, ainda sob o governo do (agora "popular")
Médici.
Certamente nos anos Médici a ditadura viveu seu
auge: o "Milagre brasileiro" e o desbaratamento da oposi-
ção anti-sistêmica simbolizaram a vitória dos preceitos
que em 1964 conquistaram o Estado. A modernização
capitalista e a contrarrevolução estavam plenamente
52
vitoriosas por volta de 1972 • E, certamente, essa supre-
macia, somada ao amplo uso de publicidade estatal (com-
binada a uma dose cavalar de coerção) produziu certo
consenso, mas é preciso não exagerar.
Elio Gaspari, por exemplo, em seu livro A ditadu-
ra derrotada menciona uma pesquisa do IBOPE realiza-
da em julho de 1971, e onde o presidente-general Médici
53
aparecia com 82% de aprovaçã0 • Parece ser nesse tipo
de dado que Aarão Reis se apoia. Todavia o mínimo que
se espera é que os historiadores sejam capazes de proble-
matizar certas fontes, como o são as pesquisas de opinião
feitas no contexto de uma ditadura, bem diferente daque-
las de fevereiro e março de 1964, ainda no contexto demo-
crático - que o autor preferiu ignorar. A relação de forças
Ou seja, não só seu governo possuía apoio, como parte no contexto da produção destas representações sociais
significativa do eleitorado poderia apoiar uma eventual deve ser sempre levada em conta. Pesquisas de opinião
pública produzidas em contextos tais como a França de
Vichye a Alemanha durante a Segunda Guerra produzem
45 HALL, Clarence W; WHITE, William L. A Nação que se salvou a si

mesma, Seleções do Reader's Digest, Rio de Janeiro, n.274, pp.93-


120, novembro de 1964.
46 Cf. PRESOT, Aline. As Marchas da Família com Deus pela 49 BANDEIRA, O governo João Goulart... , 7" e., op. cit., p.186.
Liberdade. Dissertação de mestrado em História. Programa de Pós- 50 O autor baseia-se na pesquisa de Lúcia Grinberg que comentaremos
Graduação em História Social (PPGHIS) da UFRJ, Rio de Janeiro, a seguir, sobre a representatividade da Arena.
51 Naquele livro ele afirma que nas eleições de 1966 os votos brancos e
2004.
47 Em comunicação ao XIII Encontro Anual da Associação Nacional de nulos alcançaram proporções inéditas, e sobre as eleições de 1970 o
Pós-Graduação em Ciências Sociais. apudBANDElRA, Luiz Alberto número destes votos de protesto seria ainda maior, alcançando o índice
Moniz. O governo João Goulart e as lutas sociais no Brasil (1961- de 30%. REIS, DanielAarão. Ditadura militar, esquerdas e sociedade.
1964).7" ed. revista e ampliada. Rio de Janeiro: Revan; Brasília: UNB, Rio de Janeiro: Zahar, 2000, pp.44 e 59.
52 LEMOS, Renato. Contrarrevolução e ditadura no Brasil: elementos
2001,p.185.
48 Resultados comparados da pesquisa de opinião realizada nas cidades para uma periodização do processo político brasileiro pós-1964. No
de Fortaleza, Recife, Salvador, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, São prelo.
53 GASPARI, Elio. A ditadura derrotada. São Paulo: Companhia das
Paulo, Curitiba e Porto Alegre., 9 a 26 de março de 1964. Fundo Ibope,
MRJ0277 , Arquivo Edgard Leuenroth/Unicamp, Campinas (SP), Letras, 2003, p.2I. Por sua vez, Gaspari retira a informação do livro
folha 19. SILVA,Hélio. Opodermilitar. Porto Alegre: LP&M, 1984,p.467.
16 -O golpe de 1964 e meio século de controvérsias o estado atual da questão •••

resultados qualitativamente diferentes daqueles aferidos ficativo apoio conseguido pela ditadura não deve mistifi-
nestes mesmos países sob contextos democráticos. car o entendimento a tal ponto de considerarmos que o
Qualquer opositor do regime ditatorial brasileiro período do "Milagre", por exemplo, foi "de ouro para não
- qualquer que fosse sua tendência política -, em face de POUCOS,,56.

uma entrevista sobre o comandante em chefe da ditadura Na Apresentação de obra coletiva animada por
nos anos mais duros desta, certamente, por uma questão este programa revisionista, A construção social dos regi-
de sobrevivência, evitaria pronunciar-se de forma crítica mes autoritários, "suas organizadoras se referem ao pro-
em relação àquele governo. Desse modo, é sob a suspeita pósito de "entender como os ditadores foram amados -
quanto à sua verossimilhança de suas informações que quando se trata de ditaduras pessoais - não porque temi-
uma fonte deste gênero deve ser mobilizada na prática dos, mas, provavelmente, porque expressam valores e
historio gráfica. Muito menos a euforia com o tricampeo- interesses da sociedade que, em dado momento, eram
nato mundial de futebol (1970), a frequência a festivida- outros que não os democráticos,,57. É claro que, em se
des cívicas, ou os aplausos ao general Emílio Garrastazu tratando de obra coletiva que, antes de tudo, pretende
Médici nos estádios de futebol, podem ser contabi1izados apresentar tal hipótese num amplo quadro de experiênci-
como provas suficientes de que apenas "uns loucos" não as do século XX - abrangendo desde a América Latina
percebiam que aquele era "um país que vai pra frente". aos continentes africano e asiático, passando pela Euro-
58
Certamente a ditadura soube tirar um bom proveito de pa - , é necessário assinalar a desigualdade de sofistica-
59
todos esses episódios, mas exagerar no consenso conse- ção em seus capítu1os • Vejamos alguns deles cujos
guido só pode implicar na proposição de que, tanto na temas referem-se à última ditadura.
instalação quanto no período mais duro do regime, misti- Destacamos a contribuição de Gustavo A1onso
fica a tal ponto o processo que no fim das contas não se sobre o controverso personagem Wilson Simona160 • Imor-
sabe contra quem a ditadura era exercida. talizado tanto por canções swingadas, quanto por sua
É verdade que regimes de exceção, como os fas- fama de "dedo-duro" e amigo dos agentes da repressão,
cismos nos anos 1930, conheceram significativo consen- sabe-se que caiu em desgraça no meio artístico após o
so social. Do ponto de vista da consolidação do capitalis- episódio em que, junto a policiais do DOPS, enquadrou o
mo monopolista, é possível inclusive estabelecer alguma seu contador Raphae1 Viviani. Como o próprio autor nar-
semelhança entre a ditadura empresarial-militar brasilei- ra, Viviani foi submetido a torturas, mas diz ter sido o
54
ra e o fascismo histórico • Todavia, ao contrário deste, cantor praticamente uma vítima das "patrulhas ideológi-
aqui não havia o elemento mobi1izador, aspecto impor- cas" da esquerda. Segundo esse autor, Simona1 teria sido
tante que se liga à construção de um consenso ativo dos um "bode expiatório" - só não se sabe de quem. Sem som-
cidadãos em relação ao regime nas experiências fascistas bra de dúvidas, a mediocridade de proposições como
55
na Itália e na A1emanha • Informada por uma longa tradi- essa, não fazem mais do que construir uma narrativa com
ção positivista, por um lado, e pelo liberalismo udenista ar acadêmico para legitimar recente resgate dessa biogra-
por outro, os grupos militares que tomaram a dianteira do fia (não se tratam das músicas) presentes no recente docu-
Estado brasileiro (e que rivalizavam pelo poder) se identi- mentário Simonal - Ninguém sabe o duro que dei, de
ficavam por uma comum oposição à participação popular Micae1 Langer, Ca1vito Lera1 e Cláudio Manoel (Brasil,
na política. Nesse sentido, a importante questão do signi- 2009).
Bode expiatório também teria sido a ARENA,
54 " ( ••• ) o pós-1964 dificilmente se compatibiliza com a imagem de uma
segundo outra pesquisadora que escreve capítulo na
61
revolução econômica burguesa, mas é mais semelhante com o seu mesma obra , mas que desenvolveu tal hipótese mais
oposto, o de uma contra-revolução. Esta talvez seja sua semelhança longamente em sua tese de doutorado, recentemente
mais pronunciada com o fascismo, que no fundo é uma combinação de publicada em livro 62. Não contente em atribuir tal caracte-
expansão econômica e repressão." OLIVEIRA, Francisco. Crítica à
razão dualista. São Paulo: Boitempo, 2003, p.106.
55 A característica mobilizadora do fascismo é tão central no fenômeno

que levam historiadores revisionistas como Renzo De Felice e Emilio


Gentile a caracterizarem a variante italiana de "revolucionária", 57 ROLLEMBERG, Denise & QUADRAT, Samantha Viz. A
avaliação naturalmente equivocada, já se trata justamente do construção social dos regimes autoritários. Brasil e América Latina.
contrário. Cf. TRAVERSO, Enzo. InterpretareI fascismo. Notas sobre Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010, p.17, grifo nosso.
58 A própria noção de "autoritarismo" é reveladora da natureza liberal
George L. Mosse, Zeev Sternhell y Emilio Gentile. Ayer, Madrid,
n.60, p.227 -258,2005. do corpo teórico que informa a problemática da obra.
59 O capítulo de Daniel James "O peronismo e a classe trabalhadora,
56 "Os anos 70, considerados e aperreados como anos de chumbo,

tendem a ficar pesados como o metal da metáfora, carregando para as 1943-1955" (Idem, p.307-36l), por exemplo, é originalmente
profundas do esquecimento a memória nacional. Eles precisam ser pertencente ao seu instigante livro Resistance and Integration, não
revisitados, pois foram também anos de ouro, descortinando tendo sido elaborado especialmente para o já mencionado volume
horizontes, abrindo fronteiras, geográficas e econômicas, movendo sobre Brasil e América Latina. Cf. JAMES, D. Resistance and
as pessoas em todas as direções dos pontos cardeais, para cima e para Integration. Peronism and the argentine working class, 1946-1976.
baixo nas escalas sociais, anos obscuros para quem descia, mas Cambridge: Cambridge University Press, 1988, p. 7 -40.
60 ALONSO, Gustavo. Simonal, ditadura e memória: do cara que todo
cintilantes para os que ascendiam. Naquelas areias movediças havia
os que afundavam, mas também os que emergiam, surgidos de todos mundo queria ser a bode expiatório. In. ROLLEMBERG &
os lados, desenraizados, em busca de referências, querendo aderir. QUADRAT. A construção social dos regimes autoritários, op. cit.,
Anos prenhes de fantasias esfuziantes, transmitidas pelas TVs a cores, p.175-218.
61 GRINBERG, Lúcia. "Saudações arenistas": a correspondência entre
alucinados anos 70, com tigres e tigresas de toda sorte dançando ao
som defrenéticos dancing' days." REIS, Ditadura militar, esquerdas e partidários da Aliança Renovadora Nacional (Arena), 1966-1979. In.
sociedade, op. cit., p.4l. ROLLEMBERG & QUADRAT, op. cit., p.251-278.
••• História & Luta de Classes, N° 17 - Março 2014 (11-21) -17

rização ao partido de sustentação da ditadura, Lúcia Grin- melhor a importância que a Arena exerceu no processo
berg conclui que este, em conjunto com os militares, cons- político brasileiro após 1964, sem cair na esparrela de que
tituíram os "dois grandes bodes expiatórios". Para Grin- havia hegemonia nos "anos de chumbo".
berg, ao se desqualificar a Arena, uma "memória baseada No mesmo período de difusão hegemônica das
em referenciais da esquerda" construiu um esquecimento proposições revisionistas, se desenvolveu no Brasil uma
"sobre a participação da sociedade no movimento de importante reflexão histórica ancorada na caracterização
1964 e no apoio ao regime militar durante longos anos". daqueles regimes existentes na América do Sul nos anos
E alega ainda que a Arena "não [era] destituída de repre- 1960/1970 como Ditaduras de Segurança Nacional, que
sentatividade", desconsiderando a vigência de um regime remete ao trabalho pioneiro de Maria Helena Moreira
63
ditatorial • 67
Alves • O historiador Enrique Serra Padrós, que tem
Realmente, o papel é capaz de sustentar qualquer seguido essa linha interpretativa, argumenta que os
coisa, mesmo pesquisas construídas com base em falsas aspectos gerais destes regimes compreenderam os
polêmicas. Afinal, quem é que disse que ninguém votava seguintes elementos: a Doutrina de Segurança Nacional;
na Arena, ou que parte da sociedade não havia apoiado o o alinhamento militante junto aos Estados Unidos na
arbítrio desde 1964 e durante toda a ditadura? Interessan- estratégia de "contenção do comunismo" que passou pela
te é que a autora não recorre a uma única fonte para exem- adoção de estratégias de contra-insurgência; e a defesa
plificar essa "injustiça", senão a certeza de que, obvia- dos cânones do capitalismo 68.
mente, nunca a esquerda poderia ter enunciado qualquer Numa abordagem própria, o historiador Renato
consideração elogiosa ao "maior partido do Ocidente". Lemos tem defendido a centralidade da categoria de con-
Por fim, vale também problematizar o termo "bode expia- trarrevolução como articuladora de determinações do
tório", convocado tanto por ela quanto por Afonso. No processo histórico brasileiro que, em linguagem braude-
sentido figurado, "bode-expiatório" refere-se a alguém liana, remetem a: uma longa duração, cujo marco é 1917
que é injustamente escolhido para levar a culpa de um onde há emergência de uma alternativa societária ao capi-
evento negativo, como foi o caso dos judeus escolhidos talismo a partir da Rússia, que promove uma inflexão em
pelos nazistas como responsáveis pelos graves problemas toda relação de forças internacionais e obriga as institui-
sociais na Alemanha de Weimar. Não nos parece adequa- ções políticas burguesas a incorporar como tarefa históri-
da a utilização da expressão para se referir não só ao parti- ca a prevenção de situações revolucionárias; uma média
do de sustentação da ditadura, aos militares ou mesmo duração, que remete às alterações do padrão de acumula-
para um notório dedo-duro. ção capitalista brasileiro; e uma curta, que se liga ao pro-
Mais interessante é a pesquisa desenvolvida por cesso político imediato e às alternativas disponíveis aos
64 69
Cláudio Beserra de Vasconcelos que busca responder agentes sociais num quadro de crise de hegemonia • Em
uma questão intrigante para todos os investigadores suma, tal como na proposição de Dreifuss, as formula-
daquele regime: qual o sentido da manutenção do Legis- ções de Moreira Alves, Padrós e Lemos buscam o sentido
lativo? Pois, ao longo daquele regime, só em brevíssimos daquelas experiências históricas face à dinâmica social
momentos o Legislativo federal foi fechado: doAI-5 (13 interna e à relação de forças internacionais, de modo que é
de dezembro de 1968) à posse do general Médici (30 de permitem fugir das visões mistificadoras aqui criticadas.
outubro de 1969), e uns quatro meses após o Pacote de
Abril (15 de abril de 1977). Fugindo do simplismo da Resistência
opinião de que se trataria apenas de uma "fachada", Vas-
Sobre a resistência à ditadura, o argumento do
concelos observa que a manutenção do Legislativo pos-
"déficit democrático" tem ganho ares de uma condenação
suía uma função estratégica de produzir um mecanismo
generalizada às oposições armadas, em leitura proposta
de legitimidade àquele regime que, imerso numa cultura 70
por um historiador de passado ligado a tais correntes •
política que valorizava a democracia, buscava dar conte-
Além disso, a existência de propostas e iniciativas de luta
údo verossímil ao discurso de compromisso com a rede-
mocratização65. Ao mesmo tempo, o pesquisador não cai
na armadilha apologética ao assinalar que havia um com-
ponente simbólico que contribuía "na busca do consenti- 67 ALVES, Maria Helena Moreira. Estado e oposição no Brasil (1964-
mento de determinadas parcelas da sociedade,,66, e não 1984). Petrópolis: Vozes, 1984.
68 PADRÓS, Emique Serra. História do tempo presente, Ditaduras de
"da sociedade", como quer a retórica revisionista. Numa Segurança Nacional e arquivos repressivos. Tempo e Argumento,
perspectiva mais fina como esta é possível compreender Florianópolis, v.l, n.l, p.30-45, jan./jun.2009. PADRÓS, E. S. A
política de desaparecimento como modalidade repressiva das
Ditaduras de Segurança Nacional. Tempos Históricos
62 GRINBERG, Lúcia. Partido político ou bode expiatório: um estudo (EDUNIOESTE), v.lO, p.l05-129, 2007. PADROS, E. S. América
sobre a Aliança Renovadora Nacional, ARENA, (1965-1979). Rio de Latina: Ditaduras, Segurança Nacional e Terror de Estado. Revista
Janeiro: MauadX, 2009. História & Luta de Classes, v.4, p.43-49, 2007.
69 LEMOS, Renato. Justiça Militar e processo político no Brasil (1964-
63 Idem, p.284.

64 VASCONCELOS, Cláudio Beserra de. Os militares e a legitimidade


1968). In: 1964-2004. 40 anos do golpe. Ditadura militar e resistência
do regime ditatorial (1964-1968): a preservação do Legislativo. Vária no Brasil. Anais do seminário. Rio de Janeiro: FAPERJ; 7Letras,
História, Belo Horizonte, vol.29, p.333-358,janlabr 2013. p.282-289; LEMOS, R. Contrarrevolução e ditadura: ensaio sobre o
65 Afinal, não era um regime fascista, embora, como as experiências
processo político brasileiro pós-1964.(mimeo). _
70 E, lembramos, com trabalho relevante sobre a temática. AARAO
italiana e alemã da primeira metade do XX, tenha servido para
consolidar o capitalismo monopolista no Brasil. REIS, Daniel. A revolução faltou ao encontro. 2a edição. São Paulo:
66 Idem, p.341. Brasiliense,1990.
18 -O golpe de 1964 e meio século de controvérsias o estado atual da questão •••

armada no interior da esquerda antes do golpe, como na que na época tinha tal legitimidade que os gol-
fracassada tentativa do Movimento Revolucionário Tira- pistas logo apelidaram seu movimento de 'revo-
dentes (MRT), tem sido arrolada como "prova" da "falta luçãode 1964,77.
de apego pela democracia". Francisco Julião e outros
membros das Ligas Camponesas, sob a influência do O mesmo autor contribui no que tange à caracte-
processo cubano, e com apoio de Cuba, tentaram implan- rização dos grupos armados como componentes de uma
tar um foco guerrilheiro na região central do país (em resistência à ditadura. O ponto de referência para o tema,
Divinópolis, Goiás) ainda em 1962, mas logo seriam a resistência nos países ocupados na Segunda Guerra
descobertos pelos órgãos de segurança. O episódio já era Mundial, de acordo com Aarão Reis, não seria adequado
de conhecimento de qualquer um familiarizado com a para o caso da luta armada no Brasil, levando em conta
literatura sobre a luta armada, como o livro clássico de uma suposta ausência do termo na documentação produ-
7
Jacob Gorender, O combate nas Trevas \ mas tem sido zida pelos grupos. Em primeiro lugar, Ridenti é capaz de
incluído como novidade por essa literatura revisionista, demonstrar a fragilidade empírica de tal afirmação, apre-
como no trabalho de Denise Rollemberg sobre o apoio sentando referências ao termo em documentos de vários
72
cubano à luta armada no Brasil • Mesmo historiadores grupos, de escritos de Carlos Marighella à lembrança de
competentes e mais prudentes como Jean Rodrigues que o próprio MR8 - grupo ao qual pertenceu o próprio
Sales concluem, a partir desse episódio, que "a opção ou Aarão Reis -, chegou a editar um jornal com o nome de
78
simpatia de uma parte da esquerda brasileira pelo cami- Resistência •
nho armado antecede o golpe militar de 1964,,73. Voltando à historiografia da ditadura brasileira,
Ora, não é possível entender as opções armadas pensando agora sobre sua periodização, o mesmo autor
naquele contexto a partir desse enfoque de certo modo resolveu também inovar quanto a este quesito, escolhen-
moralizante, pois a opção pelas armas não foi legítima do o ano de 1979 como de volta do "estado de direito",
apenas em contextos de regimes formalmente de exce- utilizando para isso aspectos formais, a saber: a revoga-
ção, como atestam as experiências nesse sentido em ção do AI-5 e a Lei de Anistia, que permitiu a volta dos
outras latitudes, como o grupo Weather Underground nos opositores exilados. Cito:
74
EUA, o Rote Armee Fraktion na República Federal (... ) E observar, finalmente, como se foi extin-
Alemã e as Brigate Rosse na Itália. Isso obviamente não guindo a ditadura militar, redefinindo-se, trans-
implica aqui numa defesa acríticas dessas experiências, formando-se, transitando para uma democracia
que são convocadas como forma de entendimento das sob formas híbridas, mudando de pele como um
opções existentes aos contemporâneos, sendo razoável camaleão muda de cores, em uma lenta meta-
também lembrar que, no âmbito da esquerda marxista, a morfose que até hoje desencadeia polêmicas a
própria luta armada encontrava lugar nos programas revo- respeito de quando, efetivamente terminou.
Nossa escolha recai em 1979, quando deixou de
lucionários desde muito antes (pelo menos desde 1917). existir o estado de exceção, com a revogação dos
Sobretudo, essa cobrança de "compromissos Atos Institucionais, e foi aprovada a anistia,
com a democracia" é anacrônica. Como acertadamente ensejando a volta do exílio dos principais líderes
aponta o sociólogo Marcelo Ridenti, autor do importante das esquerdas brasileiras. Daí em diante, abriu-
estudo Ofantasma da Revolução Brasileira, seria preciso se um período de transição, até 1988, quando a
compreender o "espírito da época,,75, ou a "estrutura de aprovação de uma nova Constituição restabele-
sentimento" daquele período - conceito que em trabalhos ceu as condições de um pleno estado de direito
, 79

recentes Ridenti toma emprestado de Raymond Willi- em nosso paiS .


76
ams -, onde o tema que mais mobilizava a reflexão sobre
a política era o daRevolução. Em suma, entre 1979 e 1988 não havia ainda uma
É um anacronismo analisar aquele passado com Democracia constituída, mas também não havia mais a
base numa ideia de democracia estabelecida ditadura.
posteriormente e consolidada no presente (cujos 8
Num artigo publicado em 2012 °, Daniel Aarão
limites os futuros historiadores também aponta- Reis conclui o deslocamento de sentido do argumento
rão). Outro anacronismo é ressaltar a discussão "civil-militar". Criticando duramente aqueles que se
da democracia em detrimento do tema que mais
opõem a sua proposta de periodização, argumenta que "a
mobilizava a sociedade no início dos anos 60, a
'revolução brasileira', hoje tão esquecida, mas obsessão em caracterizar a ditadura como apenas mili-
tar levou, e leva até hoje, a marcar o ano de 1985 como o
fim da ditadura". Curiosa argumentação, já que vimos
71 GORENDER, Jacob. O Combate nas trevas. A esquerda brasileira:

das ilusões perdidas à luta armada. São Paulo: Ática, 1987, p.52.
72 ROLLEMBERG, Denise. O apoio de Cuba à luta armada no Brasil:
77 RIDENTI, Marcelo. Resistência e mistificação da resistência
o treinamento guerrilheiro. Rio de Janeiro: Mauad, 2001, p.24.
73 SALES, Jean Rodrigues. A luta armada contra a ditadura militar. A
armada contra a ditadura. In. REIS, Daniel Aarão; RIDENTI,
esquerda brasileira e a influência da revolução cubana. São Paulo: Marcelo; MOTTA, Rodrigo Patto Sá (orgs.). O golpe e a ditadura
PerseuAbramo, 2007, p.54. militar - 40 anos depois (1964-2004). Bauru (SP): Edusc, 2004, p.62-
74 Conhecido pelo termo midiático Der Baader MeinhofKomplex.
63.
a 78 Idem, p.55.
75 RlDENTI, Marcelo. Ofantasma da Revolução Brasileira. 2 edição,
79 REIS, Ditadura militar, esquerdas e sociedade, op. cit., p.9.
revista e ampliada. São Paulo: UNESP, 2010,p.287.
80 REIS, Daniel Aarão. Ditadura civil-militar. O Globo, Rio de Janeiro,
76 RIDENTI, Marcelo. Brasilidade revolucionária. São Paulo:

EdUNESP, 2010. 31 demarçode2012.


••• História & Luta de Classes, N° 17 - Março 2014 (11-21)-19

que a proposição do termo "civil-militar", aparece no como um elaborador da teoria democrática, algo que,
supracitado trabalho de Dreifuss, publicado no Brasil em salvo engano, nunca foi pretensão do mesmo. Mais ade-
1981. quado seria ir às fontes teóricas que informam tais pro-
postas revisionistas, como é o caso explícito do cientista
o revisionismo em questão político polonês Adam Przeworski (orientador da tese de
F igueiredo e uma influência notória na construção teórica
Antes de mais nada é preciso atestar que a exis-
daautorays.
tência de uma corrente dita revisionista foi notada não só
por seus críticos. Em artigo para a revista Tempo publica- Outro movimento que se constata na historiogra-
do em 2010, a historiadora mineira Lucília Almeida fia recente, e que de certo modo reflete preocupações de
Neves Delgado contribuiu nesse quesito, em primeiro parte de pesquisadores em se distanciar disso que estamos
lugar ao reconhecer a pertinência da controvérsia em um denominando revisionismo, aparece, por exemplo, na
8l
balanço da historiografia sobre o golpe • Não obstante produção do historiador Carlos Fico. Na altura de 2004,
este meritó do texto, ele apresenta alguns problemas que em um amplo balanço historiográfico publicado em seu
valem ser mencionados. livro Além do golpe, o autor escrevia: "Na verdade, o
presidente [João Goulart] dava sinais dúbios de suas
Em primeiro lugar, seguindo mesmo enquadra-
verdadeiras intenções, havendo forte suspeita de que ele
mento estabelecido pelo trabalho de Argelina Figueiredo,
estaria urdindo um golpe que lhe permitisse um segundo
Delgado reduz a interpretação de René Dreifuss a uma
mandato, proibido pela Constituição"86. Mais prudente,
narrativa na curta duração centrada tão somente na cons-
82 em obra posterior, em que apresenta preciosa documenta-
piração do IPES • Ora, reduzir 1964, a conquista do Esta-
ção referente à mencionada "Operação Brother Sam"
do a uma explicação "conspiratória" é desconsiderar o Fico assim se referiu ao mesmo tema: '
eixo central do trabalho de Dreifuss que é a relação entre a
A identificação de suas atitudes como causas do
emergência de um novo padrão de acumulação capitalista
golpe de 64 seria a base da tese do 'contragolpe
nos anos 1950, centrado no processo de internacionaliza- preventivo,87, isto é, a suposição de que Goulart
ção monopolista da economia brasileira a partir da pretendia perpetuar-se no poder para além do
implantação do setor de bens de produtos duráveis, e a prazo constitucional e que, por isso, precavida-
organização desses interesses politicamente no IPES. É mente, foi deposto antes que ele mesmo desse
desconsiderar também que o IPES, muito mais do que um um golpe (a tese também é utilizada em relação
mero promotor de uma campanha de desestabilização do aos comunistas). Trata-se de especulação incon-
governo nacional-reformista de Goulart, engendrou um sistente não apenas porque é anacrônica: embora
projeto dessa fração de classe que, desde abril de 1964, alguns episódios indiquem a radicalização das
em léxico gramsciano, tomou Estado esses interesses posições (especialmente o pedido malogrado de
decretação do estado de sítio e o episódio do
particulares. E por fim, é negligenciar o conteúdo do últi-
'ultimato' de Leonel Brizola ao Congresso Naci-
mo capítulo de 1964, a conquista do Estado, quando o onal), não há nenhuma evidência empírica de
autor prova sua hipótese do golpe de classe, ao demons- que Goulart planejasse um golpe e todos sabe-
trar como os projetos anteriormente formulados pelo mos que um golpe era planejado contra ele •
s8

IPES são realizados como políticas de Estado através de


seus quadros que, antes de mais nada, vão constituir os
Ainda assim, a marca amenizadora do significa-
principais postos no staff do governo Castelo Branco.
do da ingerência estadunidense no cenário político brasi-
Em segundo lugar, ao reconhecer o caráter revi-
sionista das leituras de Argelina Figueiredo e Jorge F erre-
83 84 Os críticos mencionados são Caio Navarro de Toledo e Marcelo
ira , enquadrando-as como exemplos de interpretações
Badaró Mattos.
que destacam a "questão democrática", Delgado incorre 85 Sobre tal "teoria democrática", ver PRZEWORSKl, Adam. Amas a

em procedimento no mínimo questionável ao convocar incerteza e serás democrático. Novos Estudos CEBRAP São Paulo
ninguém menos que Daniel Aarão Reis como "teórico da n.9, p.36-46, ju1.1984. Sobre influência schumpe~eriana na~
democracia" para polemizar com alguns críticos do revi- elaborações do cientista político polonês, ver PRZEWORSKl, A.
84 Minimalist concept,ion of democracy: a defense. In. SCHAPIRO, L &
sionism0 • Ora, não é possível desconsiderar que o pró- HACKER-CORDON, C. (ed.). Democracy's Value. Cambridge:
prio Aarão Reis é um autor implicado na mesma contro- Cambridge University Press, 1999, p.12-16. Como é possível
vérsia historiográfica, além de não ser nada razoável, no observar, Figueiredo conclui seu trabalho alegando que nem a
que toca à literatura disponível, inseri-lo nesta polêmica esquerda nem a direita aceitavam "a incerteza inerente às regras
democráticas", numa clara alusão à teoria do politólogo polonês.
FIGUEIREDO, Democracia ou reformas?, op. cit., p.202.
86 FICO, Carlos. Além do golpe. Versões e controvérsias sobre 1964 e a
81 DELGADO, L. A. N. O governo João Goulart e o golpe de 1964:

memória, história e historiografia. Tempo, Niterói (RJ), v.14, n.28, Ditadura Militar. São Paulo: Record, 2004, p.17.
p.125-145,jan-jun 2010. 87 A dimensão do presente texto não nos permite inserir outros
82 O item em que discute a obra de Dreifuss chama-se "Análises que
trabalhos importantes como os de Florestan Fernandes e Jacob
privilegiam explicações conspiratórias do golpe". Gorender, ambos partidários da tese de que 1964 representou uma
83 E também de Wanderley Guilherme dos Santos e sua tese, algo
contrarrevolução preventiva, algo bem diferente do que Fico alude
metafísica, de uma crise de paralisia decisória, elaborada em sua tese nesse trecho como a tese do "contragolpe preventivo", que sempre foi
de doutorado e que já anunciava o propósito de co-responsabilizar a parte da leitura do vencedores e que aparece no trecho acima
esquerda pelo agravamento da crise que resultou no golpe. Cf. mencionado de Gaspari. Cf. FERNANDES, Florestan. Revolução ou
SANTOS, W. G. O cálculo do conflito. Estabilidade e crise na política Contra-Revolução? In Brasil: em compasso de espera. São Paulo:
brasileira. Belo Horizonte: UFMG; Rio de Janeiro: IUPERJ, 2003, p. HUCITEC. 1980, p. 113. GORENDER, O Combate nas trevas, op.
165-337. cit.,p.66-67.
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20 -O golpe de 1964 e meio século de controvérsias o estado atual da questão •••

leiro está presente em vários momentos de seu livro, quan- almente para o período anterior ao golpe. Teses como as
do, por exemplo, enuncia que "não se deve demonizar a de Marco Aurélio Santana92 e Fernando Teixeira da Silva93
figura de [Lincoln] Gordon", já que no contexto da Guer- redimensionaram a importância da aliança entre comu-
ra Fria, "o embaixador viu-se numa posição em que podia nistas e trabalhistas no movimento operário-sindical no
atuar conforme suas posições de cold warrior e o fez, Rio de Janeiro e na Baixada Santista, durante toda a Quar-
decididamente, supondo servir da melhor maneira possí- ta República. Enquanto estudos como os de Marcelo
94
velo seu país,,89. Tal raciocínio, que aparentemente visa Badaró Mattos e Luciana Lombard0 95 para o Rio de J ane-
tomar distância das posições políticas do contexto, pode- iro, Murilo Leal Pereira Neto 96 para São Paulo, João Mar-
ria ser atribuído a qualquer agente estatal (desde Henry celo Pereira dos Santos 97 e Marcos André Jakob y98 para
Kissinger até mesmo Adolf Eichmann), sem que isso Porto Alegre, demoliram a noção de uma classe trabalha-
possa acrescentar em nada na compreensão daquele con- dora passiva e mal organizada, abordando também a rela-
texto histórico. ção comunista-trabalhista. Apoiando-se nessa gama de
Mesmo Jorge Ferreira, buscando distanciar-se de novos estudos, desenvolvi em minha tese de doutorado
avaliações negativas sobre a memória de Goulart, na sua uma pesquisa sobre a primeira greve nacional da classe
biografia do ex-presidente escreve que: "Não se pode trabalhadora brasileira, realizada em 5 de julho de 1962,
afirmar que um golpe de Estado liderado por Jango e em apoio ao presidente João Goulart e contra o Congresso
pela esquerda estaria em curso. Ninguém, com seguran- Nacional99 •
ça, pode fazer tal declaração".90 Contudo, após o leitor Essa tendência da história social do trabalho vem
ser informado que ninguém poderia afirmar "com segu- contribuindo na crítica a noções como a de que no período
rança" que havia um golpe de esquerda no horizonte, do governo Jango o sindicalismo era "populista", afasta-
escreve as seguintes palavras: do das bases e feito na cúpula, a partir de pesquisas que
Mas é inegável que a Frente de Mobilização confirmam na verdade que havia um significativo proces-
Popular manifestava desprezo pelas instituições so de organização das bases. De sorte que, é o ciclo gre-
liberais democráticas. Nos discursos das lide- vista ascendente ocorrido no início dos anos 1960 um dos
ranças de esquerda e do próprio governo, princi- aspectos fundamentais da relação de forças sociais que
palmente com a Mensagem presidencial, o regi- presidiu a cena política durante o governo João Goulart.
me político era descrito com imagens bastante Desarmada, a classe trabalhadora foi a parcela da socie-
negativas: a Constituição de 1946 estava ultra-
dade brasileira mais penalizada pela política econômica
passada, o Congresso Nacional era um antro de
latifundiários, e novas formas de governabilida- implementada pelo regime ditatorial, mesmo sob o perío-
de deveriam ser implementadas - a exemplo de do do chamado "Milagre", ao contrário do que prega a
plebiscitos, delegação de poderes e uma Consti- retórica revisionista.
tuinte formado por operários, camponeses, sar- Recolocando o capitalismo no centro da reflexão
gentos e oficiais militares nacionalistas. As sobre a história contemporânea, várias pesquisas recentes
mudanças nas regras eleitorais, beneficiando a têm tido uma notável importância para a compreensão da
candidatura de Brizola à presidência da Repúbli-
ca e permitindo a reeleição de Jango, somente
contribuíam para criar suspeições. A Frente de 92 SANTANA, Marco Aurélio. Homens partidos. Comunistas e
Mobilização Popular e o PCB não escondiam sindicatos no Brasil. Rio de Janeiro: Unirio; São Paulo: Boitempo,
que seu projeto era governar o país com exclusi- 200l.
vidade, impondo seu programa de governo e não 93 SILVA, Fernando Teixeira da. A carga e a culpa: os operários das

considerando outras tendências políticas no docas de Santos, direitos e cultura da solidariedade (1937-1968). São
quadro nacional - vistas como conservadoras, Paulo: Hucitec; Santos: Prefeitura Municipal de Santos, 1995.
94 MATTOS, Marcelo Badaró. Novos e velhos sindicalismos. Rio de
decadentes, reacionárias, entreguistas etc 9l .
Janeiro (1955-1988). Rio de Janeiro: Vício de Leitura, 1998;
MATTOS, M. B. (coord.), Greves e repressão policial ao sindicalismo
Interessante o funcionamento dessa ideologia carioca (1945-1964). Rio de Janeiro: Faperj/Aperj, 2003; MATTOS,
M. B. Trabalhadores em greve, polícia em guarda. Greves e repressão
revisionista, capaz de irmanar um detrator como Marco policial na formação da classe trabalhadora carioca. Rio de Janeiro:
Antonio Villa com a apologética de Jorge Ferreira. Bomtexto; Faperj, 2004.
95 PEREIRA, Luciana Lombardo Costa. Caça às bruxas nos

sindicatos: polícia política e trabalhadores entre 1945-1964.


A historiografia para além do revisionismo Dissertação de mestrado em Antropologia Social. Rio de Janeiro:
Nem só de revi sionismo vivem as pesquisas aca- Museu Nacional da UFRJ, 2004.
96 PEREIRA NETO, Murilo Leal. A reinvenção do trabalhismo no
dêmicas dedicadas ao golpe de 1964 e a ditadura nos últi-
"vulcão do inferno". Um estudo sobre os metalúrgicos e os têxteis de
mos anos. Vale mencionar o esquecido (em 2004) campo São Paulo. A fábrica, o bairro, o sindicato e a política (1950-1964).
de estudos sobre os trabalhadores, que já incluem uma Tese de doutorado em História. São Paulo: USP, 2006.
significativa lista de títulos importantes voltados especi- 97 SANTOS, João Marcelo Pereira dos. Herdeiros de Sísifo. Ação

coletiva dos trabalhadores porto-alegrenses nos anos 1958 a 1963.


Dissertação de Mestrado em História. Campinas, Unicamp, 2002.
98 JAKOBY, MarcosAndré. A organização sindical dos trabalhadores

88 FICO, Carlos. O Grande Irmão: da operação Brother Sam aos anos metalúrgicos de Porto Alegre no período de 1960 a 1964. Dissertação
de chumbo. O governo dos Estados Unidos e a Ditadura Militar de mestrado em História. UFF,2008.
brasileira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008, p. 73. 99 MELO, Demian Bezerra de. Crise orgânica e ação política da classe

89 Idem,p.87. trabalhadora brasileira: a primeira greve geral nacional (5 de julho


9OFERREIRA,João Goulart: uma biografia, op. cit.,p.433-434. de 1962). Tese de Doutorado em História. Niterói, Universidade
91 Idem, p.434. Federal Fluminense, 2013.
••• História & Luta de Classes, W 17 - Março 2014 (11-21) - 21

ordem empresarial estabelecida pela ditadura, Nesse


quesito devem ser mencionadas a tese de Pedro Henrique
Pedreira Campos sobre a constituição dos grandes impé-
1oo
rios da construção pesada no período da ditadura , e o
101
trabalho em andamento de Martina Spohr , sobre as
relações no interior do empresariado dos EUA e do Brasil
no contexto do golpe de 1964. Constituem parte de uma
tendência importante, onde também destacamos os arti-
gos desse dossiê "50 anos do golpe de 1964", da revista
História & Luta de Classes.

Artigo recebido em 30.9.2013


Aprovado em 14.l1.20 13

100 CAMPOS, Pedro Henrique Pedreira. A Ditadura dos Empreiteiros:

as empresas nacionais de construção pesada. Tese de doutorado em


História. Niterói, Universidade Federal Fluminense, 2012. CAMPOS,
P. H. P. A ditadura dos empreiteiros: as empresas nacionais de
construção pesada, suas formas associativas e o Estado brasileiro,
1964-1985. Revista Praia Vermelha, Rio de Janeiro, v.21, p.135-152,
2013.
101 SPOHR, Martina. A relação empresarial-militar entre Brasil e

Estados Unidos no golpe de 1964. Militares na Política, Rio de


Janeiro, v.9, p.52-63, 2012; SPOHR, M. O empresariado e as relações
Brasil-Estados Unidos no caminho do golpe de 1964. Confluenze,
Bolonha, v.4, p.45-62, 2012.

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