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O VIOLENTO BORGES E UM PRÓLOGO PARA A ARGENTINA DOS ANOS 1970

O ano de 1970 foi de consagração para o escritor argentino Jorge Luis Borges (1899-
1986) no circuito literário mundial. A prestigiosa revista New Yorker publica a
Autobiographical Essay como parte da estratégia de relançamento da sua obra no importante
mercado norte-americano: The Aleph and Other Stories (1933-1969) teve edição e tradução
acompanhadas de perto pelo escritor, trabalho realizado em conjunto com o agente e tradutor
Norman Thomas DiGiovanni. Borges comemorava 70 anos e uma trajetória que chegava ao
entardecer com reconhecimento e honrarias. Sua obra vinha sendo relançada no país natal, que
finalmente reconhecia sua importância; publica sem parar, é convidado a escrever uma dezena
de prefácios e apresentações para obras alheias; concede inúmeras entrevistas (para veículos de
comunicação argentinos, brasileiros, mexicanos, norte-americanos, .....); é recebido com honor
em Universidades e governos.1 O lançamento de dois novos livros estavam previstos para
celebrar o escritor septuagenário: El elogio de la sombra, um novo poemário (lançado em
agosto de 1969), e o tão aguardado novo livro de contos, El informe de Brodie (lançado um ano
depois), o primeiro desde El Aleph, de 1949 (obra que conformaria o estilo inigualável que daria
fama ao autor).
O ano seria marcado ainda, no âmbito pessoal, pela sua separação de Elsa Astete, com
quem estava casado e dizia levar uma vida infeliz. E pelo acirramento do conflito político
argentino, marcado pela instabilidade institucional e por um processo de erosão da autoridade,
em uma sucessão de golpes e contra golpes de Estado. O governo de plantão, comandado desde
1966 pelo general Juan Carlos Ongania, tenta restabelecer a autoridade do poder central e
controlar, sem sucesso, o caos vigente e a situação de desagregação social, agravada desde 1969
pelo “Cordobazo” – uma sublevação popular contra o governo militar ocorrida na cidade de
Córdoba- e pela eclosão da luta armada, culminando no ano seguinte com sequestro e execução
do ex general e ex presidente da República, Pedro Eugenio Arumburu, pelo grupo Montoneros.
Os fatos desconstroem o discurso da ordem que sustentava o governo Ongania, que enfim
sucumbe em junho de 1970 em mais um golpe (militar) dentro do golpe. É nesse contexto
poítico-institucional caótico que Borges finaliza os últimos contos, escreve o prefácio e prepara
o lançamento do novo livro.
O Prólogo a El informe de Brodie é finalizado poucas semanas antes do ato espetacular
dos Montoneros. No texto que apresenta os contos, “en lo que constituye el prefacio más largo
y atípico de todas sus ficciones, (donde) el autor confiesa sus convicciones políticas junto con
sus no-convicciones” (SALINAS, p. 7), o argentino declara sua filiação político-partidaria:
“mis convicciones en materia política son harto conocidas; me he afiliado al Partido
Conservador” (OC, p. 1021). E confirma seu posicionamento: “no soy, ni he sido jamás [...] un
escritor comprometido [...]. No he disimulado nunca mis opiniones, ni siquiera en los años
arduos, pero no he permitido que interfieran en mi obra literaria” (idem). Dada as inúmeras
vezes que defendeu a autonomia da arte e sua sempre declarada contrariedade à ingerência de
temas políticos na criação artística, essa afirmação era algo inédito em sua trajetória literária, e
trazê-la para o interior da obra, para o para texto literário que é o Prólogo, não deixava de ser
surpreendente.
A abordagem explícita do tema político pode ser vista pela premência do contexto de
crise, a exigir uma tomada de posição. Que acontece de forma direta pelas afirmações do
Prólogo e se desdobram nos contos que se sucedem, dominados pelo passado local, pela história
dos próceres e da pátria, e pela reflexão sobre o problemático processo de construção do Estado
Nacional argentino. O embate, físico ou psíquico, está presente em suas mais diferentes formas,

1
O Borges Center (https://www.borges.pitt.edu/bibliography/1970-1) apresenta uma relação completa dos
principais acontecimentos na vida e obra do escritor naquele ano particularmente marcante.
1
em todos os contos da coletânea, conferindo unidade temática e definindo um estilo narrativo
“direto e realista". São contos cujos enredos remetem à uma Argentina formativa, às lutas pela
unificação nacional, a um país cindido por guerras civis e conflitos infindáveis: uma sociedade
convulsionada como aquela dos anos sombrios que precedem a preparação e publicação da
obra.
Se a coletânea de El informe de Brodie surge em um momento de consagração mundial
do autor, reconhecido principalmente pelos seus contos autoreflexivos, metaliterários, onde os
temas filosóficos e metafísicos predominam, cheios de erudição, referências cultas,
barroquismos e labirintos, os novos contos surpreendem seus leitores e críticos e apresentam
uma temática local, voltada para a história formativa da Argentina, para personagens deslocados
e degradados, em narrativas límpidas e apoiados na memória e na oralidade. Ao mesmo tempo,
Borges reafirma nesse texto introdutório seu compromisso com a autonomia da arte, não se
furta em elaborar a representação do quadro nacional, das questões que tomam conta do debate
público e cultural naquele período. De certa forma, a abordagem que o argentino confere ao
tema da violência nesses contos pode ser tomada como a antecipação ficcional das polêmicas
posições que tomaria no futuro próximo, quando passou a defender um estado forte, e a apoiar
regimes militares. Ambígua e profundamente irônica, a apresentação da obra é também um
primor de dissimulação e pistas falsas, confundindo realidade e aparência, o que diz e o que
omite. Vamos dividi-la em três partes nesta análise. Na primeira, o autor declara sua filiação
literária e os princípios que regem os contos que apresenta. A seguir, destaca a obra
propriamente dita, escolhendo alguns contos para comentar, dando dicas ao seu leitor. Na
conclusão, Borges articula o discurso político e o discurso sobre a construção do nacional, as
questões de Estado e as questões identitárias.

PRÓLOGO DE UM PRÓLOGO
O respeito conquistado no circuito acadêmico e literário e a fama crescente encontravam
na comemoração dos 70 anos do escritor uma grande oportunidade para celebração. Previa,
entre outras ações, a reedição da sua obra em espanhol pela Editora Emecé, o lançamento dos
dois novos livros e o relançamento da sua obra no importante mercado editorial dos Estados
Unidos. Uma nova tradução de El Aleph e a publicação da sua autobiografia eram o ponto alto
das comemorações, e a celebração, que havia começado em 1969 com o lançamento de Elogia
de la sombra, nova compilação de poesias, seria completada no ano seguinte com o lançamento
de El informe de Brodie, os esperados novos contos. Borges passava a circular mundialmente
como professor, conferencista e “convidado especial”. DiGiovanni, o agente norte-americano,
era também o responsável pelas traduções da obra, realizadas a quatro mãos com o próprio
escritor, e o teria incentivado a escrever material inédito visando aquele mercado. Adolfo Bioy
Casares registra o contexto do surgimento dos contos e o desafio que o novo livro representava
para o autor que havia perdido quase totalmente a visão, dedicando-se desde então à poesia.
“Que, al hacerlo trabajar en las traducciones, tal vez le ha dado ganas de escribir cuentos
nuevos. Que, si eso es así, le debe El informe de Brodie y El Congreso”2 (BIOY CASARES,
p. 1377). A separação de Elsa Astete pode ter fornecido estímulo adicional ao escritor, que se
refugiava na casa de Bioy Casares e na Biblioteca Nacional com Di Giovanni para traduzir a
obra que seria publicada no exterior e finalizar as novas ficções.

2
Em outra entrada do diário, em 28 de outubro de 1969, Bioy Casares escreve: “Almuerzan em casa Di Giovanni
y Heather, su mujer. Me dice Norman que Borges está escribiendo outro cuento y que parece finalmente
convencido de que debe escribir um libro de cuentos; se esto se cumple, gran parte del mérito corresponde a
Norman” (BIOY CASARES, p. 1295).
2
El informe de Brodie reúne onze contos3 elaborados ou finalizados especialmente para
compor essa obra tardia. Alguns deles, como “La intrusa”, dormiam inconclusos há décadas. O
diário de Bioy Casares indica ainda que a ideia para o enredo de “Guayaquil” surgiu em 1953,
e os personagens que inspiraram “El duelo" são citados em 1957.4 A preocupação com o novo
mercado editorial e com a renovação do seu público transparece na apresentação da
obra. Borges atenta para o que está na moda, em ser direto e simples (embora afirme
que a simplicidade é algo complexo), em realizar contos “realistas”, seguindo as
convenções do gênero5. É atencioso com seu leitor, alongando-se na explicação dos
contos, oferecendo generosamente chaves – enganosas – e um roteiro de leitura para seu
público. Indica as “musas inspiradoras” (o jovem Kipling, Poe, Shaw, Quevedo, As mil
e uma noites...) e até mesmo a origem de alguns relatos, como aquele que dá título à
coletânea. Afirma que abdicou dos finais imprevistos e das surpresas do barroco, e fala
da inutilidade de algumas discussões sobre a representação literária do nacional.
Borges assina o Prólogo em 19 de abril de 1970, uma data que remete diretamente
àquele período agitado da vida política argentina. A tomada de posição político-
partidária assumida no texto ocorre nesse contexto e pode ser entendida pela urgência e
gravidade do momento, acentuado pela possibilidade de volta cada vez mais próxima
do ex presidente Juan Domingo Perón do exílio (que afinal só aconteceria em 1973). O
país vivia uma escalada de conflitos políticos que explodiria na luta armada - cerca de
50 dias depois de concluir e assinar o texto do Prólogo, ocorria a execução do ex
presidente Aramburu. Logo depois, um novo golpe derrubaria Ongania. A sociedade
argentina debatia-se, em pleno século XX, entre governos ditatoriais e uma democracia
que não conseguia manter-se dentro das regras democráticas. Fausto e Devoto apontam
que no período de 1955 a 1983, desde a chamada Revolução Libertadora (assim também
chamada por Borges, que nunca escondeu seu apoio àquele movimento militar), que
apeou Perón do poder, sucederam-se inúmeros governos militares até a definitiva
redemocratização, em 1983, com algumas poucas interrupções, um período que marcou,
segundo os historiadores, “a privatização do Estado, tendo em vista os grandes interesses
dominantes” (FAUSTO e DEVOTO, p. 395), e consolidou a formação de um regime de
tipo “burocrático-majoritário", um tipo específico de Estado autoritário.
Quebrada pela repressão e pelo medo, a sociabilidade colapsa [...] a Argentina
conhece nos anos 70 uma falência do coletivo social, e assiste a uma
coalescência dos grupos e setores sociais ligados à violência em torno de dois

3
Além do Prólogo, El informe de Brodie reúne os contos “La intrusa", “El indigno", “Historia de Rosendo
Juárez”, “El encuentro", “Juan Muraña", “La señora mayor", “El duelo", “El otro duelo", “Guayaquil", “El
Evangelio según Marcos" e “El informe de Brodie".
4
Os contos de El informe de Brodie começam a aparecer, como de costume em Borges, primeiro na imprensa
argentina. “El Evangelio según Marcos” e “Historia de Rosendo Juárez” são publicados, respectivamente, em
agosto e novembro de 1969 no diário La Nación. “El encuentro” surge em outubro do mesmo ano em La Prensa.
No ano seguinte, “Guayaquil” e “El outro duelo” aparecem em agosto nas revistas Periscopio e Los libros,
respectivamente (conforme https://www.borges.pitt.edu/bibliography/1970-1 e
https://www.borges.pitt.edu/bibliography/1969-1).
5
Em entrevista concedida em 1967 para César Fernández Moreno, recolhida por Monegal (1987), intitulada
muito sugestivamente como “Farto dos labirintos”, Borges aborda os novos projetos que tem em mente. O
escritor comenta: “E depois penso escrever alguns contos. Vou ver se faço outros como “La intrusa”, contos de
suburbanos” (p.195). Nos três seminários que ditou na Universidade de Columbia em 1971, reunidos em El
aprendizaje del escritor, faz declaração idêntica: “ahora estoy abandonando la erudición, o la falsa erudición.
Ahora intento escribir simple, escribir historias directas” (BORGES, 2016).
3
grandes eixos: um estruturado em torno da violência do regime militar, o outro,
dos alvos a serem reprimidos, cada vez com menores possibilidades de ataque
e resistência. (DELLASSOPPA, p. 81).

Assim, entre o Prólogo, assinado em Buenos Aires em abril, e o lançamento do


livro, em agosto daquele ano, o país atravessava um dos períodos institucionais mais
caóticos, com a perda do controle do aparato repressivo. “A violência do regime
argentino não tinha, por vocação e por definição, nenhum limite. A frase ‘isto não tem
limites’, cunhada expressando a admiração dos próprios executores” (O’DONNEL, p.
81), mostra como a repressão agia descontroladamente. A violência, a delação e a
perseguição se disseminaram por todo o tecido social: “o que surpreende é que dentro
da própria sociedade surgem focos de repressão secundários que vibram em consonância
com o autoritarismo do regime” (idem).6
Inserido na vida política, referência na vida cultural, um dos mais ativos
debatedores dos destinos nacionais, respaldado pela crítica e respeito conquistado,
Borges se arrisca a levar suas opiniões para a apresentação da sua nova obra: “Mis
convicciones en materia política son harto conocidas” (OC, p. 1021), em uma atitude
cada vez mais frequente em declarações públicas e entrevistas. Utiliza então o Prólogo
como texto ensaístico especulativo, argumentativo e opinativo, dando prosseguimento a
uma discussão que já estava presente em artigos como ”Nuestras imposibilidades”
(1931) e “Nuestro pobre individualismo” (1946), ou ainda em “El escritor argentino y
la tradición”7. Textos onde é central o debate entre como deve se dar a relação entre
Estado e indivíduo, e suas injunções para além do campo político, como por exemplo
na defesa da autonomia da arte. Uma afirmação nesta primeira parte do Prólogo liga
esse àqueles textos: “creo que con el tiempo mereceremos que no haya gobiernos”
(idem), repetindo o que já havia expressado em 1946, a defesa de “un severo mínimo de
gobierno” contra o principal problema do nosso tempo, “la gradual intromisión del
estado” (p. 663). Assim, ao longo de quatro décadas, tempo que separa “Nuestras
imposibilidades” do Prólogo a El informe de Brodie, o tema da construção do nacional
como uma questão de Estado, e da relação deste com seus cidadãos, não desaparece das
preocupações do escritor. Apenas muda de registro e agora invade o ficcional de forma
não mais dissimulada e desreferenciada como nos contos de Ficciones e El Aleph. É em

6
Hanna Arendt (2004) constata a “intromissão maciça da violência criminosa na política” na segunda metade do
século XX, uma vez que as práticas da Segunda Guerra Mundial – como o assassinato indiscriminado de civis, a
tortura, o genocídio – são reproduzidas nos anos seguintes nas inúmeras guerras que acontecem ao longo do
mundo. O impasse é reforçado pelo sentimento de impotência: os anos 1960 e 1970 assistem a um processo de
glorificação da violência, que para a pensadora alemã se deve a “uma séria frustração da faculdade de agir no
mundo moderno” (p. 53), o que levaria à justificação da violência como atitude política, como era o caso dos
atentados terroristas dos anos 1970.
7
Balderston (2021), ao analisar o manuscrito intitulado “Viejo hábito argentino” – que daria origem a “Nuestro
pobre individualismo” e à conferência (depois transcrita em texto) “El escritor argentino y la tradición” - identifica
semelhanças no método compositivo e nas preocupações políticas e de representação literária com alguns textos
ficcionais do período - os contos “El fin” (de Ficções) e “Biografia de Tadeo Isidoro Cruz (1829-1874” e “La
espera” (de El Aleph). Ambos apontam para o mesmo método compositivo (notas, citações, referências) e a
criteriosa escolha das palavras e suas variantes, e também como esses textos estão contaminados pelo clima político
da época.
4
desacordo a essa abordagem que os contos de Brodie são diretos e “realistas”, ancorados
que são nos temas históricos e na problemática nacional.
Há outra atitude do autor, anotada por Beatriz Sarlo, que reforça a intenção comentativa
do autor e seu texto sobre o contexto local. Em agosto de 1970, “a revista Los Libros publicou
‘El otro duelo’, de Borges. A nota editorial dizia: No dia 24 de agosto Jorge Luis Borges
completa 71 anos. Coincidindo com a data, será publicado pela Emecé um novo livro de contos
[...]” (p. 9). A surpresa inicial fica por conta de uma revista de assumido posicionamento
político à esquerda ter dedicado a capa daquele número para um escritor de posições
assumidamente conservadoras e provocadoramente anti esquerdistas e anti peronistas. “Depois
de muitos anos, Borges escolhia como antecipação a El informe de Brodie essa história bárbara,
e mais uma vez afrontava seus leitores com a narração diáfana de um acontecimento brutal e
remoto” (idem). “El otro duelo” narra o conflito que acontece no final do século XIX entre dois
gaúchos, inimigos históricos, que se enfrentam em uma das muitas guerras sul americanas
daquele período. Para a crítica argentina, a decisão de publicar o conto remete diretamente ao
conturbado momento vivido pela Argentina, mesmo enxergando apenas uma “proximidade
casual entre as duas datas […]” (idem). A exceção do conto na trajetória e na obra do autor –
pela sua crueldade, relatada de forma direta e crua – pode ser equiparada à excepcionalidade
daqueles tempos, marcados pela “hipérbole da crueldade” (p. 11)8.
Em “El otro duelo”, Borges elabora e explicita o conceito de “contos realistas" que
aplica a estas ficções tardias. Por um lado, os personagens Manuel Cardoso e Carmen Silveira
são situados e referenciados - sabemos pelo narrador que são da Província de Cerrro Largo, que
foram recrutados e lutaram em uma das batalhas da Revolução de Aparício, guerra civil que
dividiu o Uruguai no final do século XIX. A ação ocorre entre o inverno de 1870 e o outono de
1871, período que remete à Revolução das Lanças, a última batalha realizada pela cavalaria
com armas brancas - a sangrenta batalha final e a degola dos vencidos sugerem que o autor teve
neste conflito ocorrido entre 1870-1871 inspiração para o relato. Porém, as várias camadas
narrativas que o autor nos apresenta e as diferentes fontes do ocorrido desestabilizam as
referências históricas. As fontes não são confiáveis, os acontecimentos perderam-se no passado,
e o autor deixa clara que não é fidedigno aos fatos - “en mi recuerdo se confunden ahora la
larga crônica [...]“ (OC, p. 1058) - para, em seguida, reafirmar a incerteza - “¿Cómo
recuperar, al cabo de un siglo, la oscura historia de dos hombres [...]“. Adiante, continua: “ya
no sé si los hechos que narraré son electos o causas” (p. 1059), avisando que “ahora traslado
sen mayor fe, ya que lo olvido y la memoria son inventivos” (p. 1058). São muitos avisos
alertando o incauto leitor que os fatos históricos são apenas o ponto de partida, e a inventividade
é o que move a narrativa.
Borges estabelece esse jogo com seu leitor desde o Prólogo, com palavras – e até datas
– parecidas: “He situado mis cuentos un poco lejos, ya en el tiempo, ya en el espacio. La
imaginación puede obrar así con más libertad. ¿Quién, en mil novecientos setenta, recordará
con precisión lo que fueron, a fines del siglo anterior, los arrabales de Palermo o de Lomas?”
(p. 1021). Estratégia narrativa que se repete na maioria dos relatos de El informe de Brodie, e
surge já na primeira linha do primeiro conto: “Dicen (lo cual es improbable) [...]” (p. 1025).
São na sua maioria relatos que se originam de outro relato, geralmente oral, como aquele que
acontece no velório de “La intrusa" ou pelas palavras do livreiro de “El indigno". Está também
no acaso que dispara o relato do narrador de “Juan Muraña": “El azar me enfrentó, poco depois,
con Emilio Trápani” (p. 1044), o antigo colega que conta ao narrador uma versão fantástica

8
No colóquio que manteve com o agente literário Norman Thomas Di Giovanni, em 1971, o escritor reafirma sua
intenção de contar uma história implacável. “Yo la imaginé como una trama cruel, y la transformé en una broma
para hacerla aún más cruel. Inventé algunos personajes que contaran la historia de manera cómica para hacerla
más dura y más despiadada”. (BORGES, 2016).
5
(em um livro de contos realistas…) de armas que ganham vida, como acontece também em “El
encuentro”. Em “Historia de Rosendo Juárez", é o protagonista de uma história ficcional do
próprio Borges quem procura o autor para contar a história “verdadeira”. Essa dubiedade
atravessa El informe de Brodie, do Prólogo ao último conto. São narrativas breves e realistas,
mas de um real que se esfumaça à vista do leitor. O desreferenciamento continua operando a
máquina literária do escritor, agora com outro registro e estratégia narrativa.

OS CONTOS
A segunda parte do Prólogo é dedicada a apresentar a oba em si, por meio de alguns
contos destacados pelo autor, os tais contos “diretos e realistas". Porém, antes mesmo de afirmar
que observam “todas las convencionesl del género” (p. 1022) ora em voga, o autor já apresenta
uma exceção: o conto que dá título ao livro, declaradamente inspirado na terceira viagem de
Gulliver, uma obra ficcional do século XVIII. O conto anterior, “El Evangelio según Marcos",
apontado como o melhor da coletânea, foi sugerido pelo sonho de um personagem inventado,
e sua história alterada pelo autor - “temo haberla maleado con los cambios que mi imaginación
[...]” (p. 1022). Afinal, "la literatura no es otra cosa que un sueño dirigido”. Pouco antes, o
autor afirma ainda no Prólogo que dois dos relatos tem uma chave fantástica, e se permite
brincar com o leitor: “no diré cuáles”. Essa rápida apresentação - e os destaques que elege -
mais confundem que esclarecem esse leitor. E omitem o protagonista principal dos relatos: a
violência, tanto a brutal e física (estocadas a faca, degolas, assassinatos, traição, feminicídio e
até mesmo uma crucificação) como a cultural - nenhum dos relatos é mais chocante que o
contado pelo missionário David Brodie sobre sua convivência com os primitivos Mlch. Ou o
desfecho da leitura do Evangelho. O conflito violento engancha tematicamente as onze
narrativas. Mesmo quando fala dos contos que possuem a mesma chave mágica - Borges
provavelmente se refere a “Juan Muraña” e “El encuentro" -, o fantástico é dado por armas que
adquirem vida própria, comandam o destino dos personagens e levam à morte – uma morte que
se repete ciclicamente e que traga suas vidas. “Las armas, no los hombres, pelearon" (p. 1043),
alerta o narrador de “El encuentro”. Os personagens são comandados pelas armas e tragados
pelo conflito: “Las dos sabian pelear – no sus instrumentos, los hombres [...] En su hierro
dormía y acechaba un rencor humano" (idem). O mesmo acontece com o valentão Juan
Muraña, que reencarna para cumprir seu destino violento e se confunde com a própria arma -
“la daga era Muraña, era el muerto que ella seguia adorando” (p. 1047).
Nos contos onde a violência não é física, os enredos são marcados pelo confronto entre
seus personagens. Em “El duelo", o embate entre duas artistas plásticas já é antecipado pelo
título. “Guayaquil" narra a disputa entre dois historiadores pelo privilégio de decifrar
documentos históricos. “La señora mayor", relato em tons autobiográficos e que também acaba
em morte, remete mais uma vez às guerras da história argentina. Borges teve essa história muito
próxima - os ancestrais sempre lembrados, as intervenções nas discussões públicas sobre os
destinos nacionais ou como matéria propriamente literária, presente na poesia ou em contos de
gaúchos e compadritos, que vão ganhando protagonismo na sua velhice. São histórias locais,
da mesma forma que o espaço das orillas, da pampa, os duelos a faca por honra, as lutas e
batalhas, como as que povoam os contos de El informe de Brodie, formam um mosaico e são o
registro de uma literatura que, em última instância, tenta enunciar a identidade nacional.
Nesses contos, o autor entra na história, assume o papel de historiador, embaralha o
relato historiográfico e o narrativo-literário. Apresenta de forma quase exata os acontecimentos
reais e históricos, mas, no entanto, os incorpora à ficção, aos enredos, como fatos externos que
são aproveitados para iluminar os impasses, contradições e dramas dos personagens Em El
informe de Brodie, o escritor abusa desses recursos estilísticos e trabalha de diferentes maneiras
com a distância entre o narrador e o leitor, entre o real e o fictício. Usa o mesmo procedimento
narrativo para tratar fatos históricos e memória de fatos e relatos, que se transformam em
6
materiais inventivos para a elaboração dessas narrativas, seja em relação a algum detalhe
circunstancial ou até mesmo para o argumento principal do conto. “Usa a memória para reter
lições e ensinamentos para o tempo presente, anacronicamente atribui a uma época algo que
pertence a outra” (GORLIER, p. 70), exorciza o presente pedindo a ajuda nas experiências
passadas, na história de antepassados nacionais, nos mitos identitários, nas guerras e combates
que fundaram a nação.
Ao se aproximar da última etapa da sua obra, o argentino retoma alguns temas que
estiveram em segundo plano na obra ficcional, revê algumas posições adotadas ao longo da
vida (como a crítica ao seu período “martinferrista”), reescreve alguns relatos (como o de
Rosendo Juárez), edita e reedita a obra (como acontece com as Obras Completas, de 1974,
quando intervém com a inclusão e exclusão de textos). Ao revisar a história de Rosendo Juárez
em El informe de Brodie, é a revisão dessas narrativas que faz, depurando-as. Os contos breves
que compõe a coletânea são, portanto, a realização dessa nova proposta estética – “ahora estoy
abandonando la erudición, o la falsa erudición. Ahora intento escribir simple, intento escribir
historias directas” (BORGES, 2016), repetindo em 1971 o desejo manifesto no Prólogo:
He renunciado a las sorpresas de un estilo barroco; también, a las que quiere
deparar un final imprevisto. He preferido, en suma, la preparación de una
expectativa o la de un asombro. Durante muchos años creí que me sería dado
alcanzar una buena página mediante variaciones y novedades; ahora,
cumplidos los setenta, creo haber encontrado mi voz (OC, p. 1026).

Borges, “en las lindes de la vejez", diz ter encontrado sua voz nesses textos cruentos,
quando concede a voz narrativa ao outro, à fonte primária ou secundária dos relatos, aos
detalhes complementares que enriquecem a narrativa fornecidos por personagens secundários
como Laderecha (o capataz “que tenia bigotes de tigre” (OC, p. 1058)). É aqui que pode ser
melhor localizado o "realismo” com que o escritor diz ter escrito seus contos tardios. A voz
despojada, sem barroquismos; o relato direto, sem labirintos. A voz do outro registrada, tornada
perene, pela escritura do autor, um autor já consagrado, que pode abrir mão da sua voz e deixar
o personagem falar.

EPÍLOGO
O autor que apresenta a nova obra dedica os últimos parágrafos do Prólogo a discutir
aspectos da representação literária do nacional, preocupação presente desde seus primeiros
escritos e que nesses anos 1970 continuava provocando debates acalorados entre os intelectuais
argentinos. Da mesma forma que a declaração de filiação partidária e de ceticismo político são
trazidos para o interior da nova obra, a crítica ao nacionalismo ganha igual destaque na
referência ao lunfardo e aos “escrupulosos” do idioma. Borges afirma sarcasticamente que
discutir esse tema, querer transformá-lo em um cânone literário e critério de argentinidad, seria
uma perda de tempo, uma bobagem, e convoca uma citação de Roberto Arlt em seu apoio - "me
he criado en Villa Luro, entre gente pobre y malevos, y realmente, no he tenido tiempo de
estudiar esas cosas" (OC, p. 1022). O lunfardo também seria uma “broma literária inventada
por sainotes y compositores de tango", ignorado pelos moradores dos arrabaldes e relevante
apenas para aqueles “escrupulosos que ejercen la policía de las pequeñas distracciones”
(idem). Cabe anotar que de todos os inúmeros escritores citados neste Prólogo - Kipling, Kafka,
James, Esopo, Poe, Maldon, Groussac, Swift, Mallarmé, Joyce, Quevedo, Shaw –, e que
formam um mosaico vasto dos seus precursores, Roberto Arlt é o único escritor argentino
contemporâneo a Borges citado, o que estabelece um diálogo atualizado com os temas e
questões levantadas no texto (Hormiga Negra e Martin Fierro, personagens ficcionais do século
XIX, entram no texto e reforçam essa ligação entre passado e presente).

7
Broma, perda de tempo, artifício de escritores e poetas urbanos, são definições críticas
semelhantes às que estão no ensaio “La poesia gauchesca”, quando Borges investiga e
inventaria a história desse gênero único, e faz um recorte muito pessoal, identificando o que
seria relevante na produção poética do gênero enquanto questiona a mitificação do gaúcho. A
exaltação desse personagem e do seu ambiente, sua transformação em critério definidor e
generalizante da “verdadeira” literatura argentina, são criticadas pelo escritor, que aponta a
contradição sobre a condição urbana de quem escreveu sobre o gaúcho e seu habitat,
aproveitando para estabelecer um dos princípios estéticos que norteiam sua obra: “el arte,
siempre, opta por lo individual, lo concreto; el arte no es platónico” (OC, p. 180). Podemos
ver ainda outro eco deste ensaio no Prólogo: a referência ao cavalo “parejero de color overo
rosado”, verso do poema gauchesco Fausto, de Estanislao del Campo. A definição causou
polêmica com os “escrupulosos do idioma” pelo uso de “overo rosado”, um tipo de cavalo raro
na lida do campo. Para Borges, a questão é inócua, uma vez que o verso segue,
“misteriosamente”, agradando. Ao retomar o exemplo em 1970, o escritor mostra que aquelas
questões polêmicas e que dividiam os debates culturais desde pelo menos a comemoração do
Centenário da Independência, em 1910, continuavam problemáticas muitas décadas depois.
Neste ensaio, o escritor discorre ainda sobre Martín Fierro, personagem do poema de José
Hernández, chamando atenção para que, "de todos los héroes de esa poesia, Fierro es el más
individual, el que menos responde a una tradición” (idem). Fierro seria a expressão literária da
arte que não deve buscar as generalizações nem os denominadores comuns, que “opta por lo
individual, lo concreto”. O concreto é a história pessoal, o sentimento, a entonação de Martín
Fierro, não sua transformação em mito nacional. Assim, no final do Prólogo, o gaúcho de
Hernandez ressurge para reafirmar a autonomia da arte e da representação literária e criticar
indiretamente o uso político do personagem.
O mesmo se aplica aos usos do idioma. O escritor é irônico ao falar dos “dicionários de
argentinismos” e do cânone maior, o Dicionário de la Real Academia. “Cada lenguaje es una
tradición, cada palabra, un símbolo compartido; es baladí lo que un innovador es capaz de
alterar” (p. 1022). O que se discute aqui é a construção de “un discurso que poetice la nación”
(BLANCO, 2020, p. 28) e, ao mesmo tempo, que contribua para organizar o Estado nacional a
partir de uma âncora cultural comum, assim como uma história e uma língua oficiais,
inventando uma prosápia que conferisse uma identidade comum aos habitantes daquelas terras
longínquas.
Blanco sugere que já em 1928 (em O idioma dos argentinos), Borges propõe que o
idioma oficial seja o não escrito, aquele que nos fala como uma amizade conversada (p. 36).
Essa declaração de princípios já prediz toda a etapa tardia do escritor, quando diz ter encontrado
a voz nos contos plenos de referências à dicção, à entonação, ao modo de dizer dos seus
conterrâneos. A busca no passado para preencher o presente e preparar a estrada poética em
direção ao futuro está baseada agora na recusa ao lunfardo e os ditames dos cânones da língua.
A questão do idioma assume então um caráter político: a escolha das palavras e do recorte que
será validado pela língua “oficial” também determina a forma de representar o nacional, de
quem o faz e de quem é o representado. A recusa dos “argentinismos” ou dos dizeres e trejeitos
de personagens como o gaúcho é também uma forma de não representar essa cultura popular e
procurar uma forma expressiva que não fique limitada a emular certas expressões. Por isso, os
contos diretos e realistas de El informe de Brodie podem ser encarados também como a defesa
– e a práxis – de que pode se dizer o nacional com uma linguagem sem maneirismos e ou
folclorismos.
Ao escolher encerrar seu Prólogo jogando ironias críticas aos defensores da “cor local”
e da fidelidade aos dicionários; àqueles que querem policiar – ou seja, delimitar, recortar,
excluir e eleger – os usos da linguagem, o escritor dispõe-se a aconselhar e recomendar o ofício
que tão bem conhece. E aproveita para disparar contra os defensores da literatura como cópia
8
do real. Para reafirmar seu projeto estético, Borges retorna então àquela parte da sua obra
ficcional destinada à Argentina, aos seus antepassados, ao heroísmo e à valentia que teriam
fundado a nação, àquele espaço fronteiriço onde cidade, periferia e deserto se confundem. É aí
que transcorre enredos como “La intrusa", “El encuentro” e “El otro duelo”, que retornam ao
passado e a um espaço indefinido, já visitado pelo escritor em contos como “Hombre de la
esquina rosada”, “Historia del guerrero y la cautiva”, “El fin”, “El Sur”. Não mais para dar
contornos identitários, nem construir uma identidade ou inventar os fantasmas que povoariam
o imaginário nacional, mas agora para tentar entender e explicar os impasses atuais e a
permanência dessa história entreverada, violenta e conflitiva.
Se nas ficções anteriores a Brodie os referenciais eram difusos e muitas vezes irreais, e
suas elaborações implicavam uma série infinita de dúvidas e resoluções parciais9, em El informe
de Brodie as ações são categóricas e definitivas, inescapáveis como o fim trágico dos
personagens que habitam os contos. A degola dos dois gaúchos de “El outro duelo" é um
desfecho previsto para aquele conflito que se projeta no tempo e no espaço até os dias atuais.
O descarte do corpo de Juliana Burgos pelo mais velho dos irmãos Nielsen (“La intrusa”), o
destino cruel do médico Baltasar Espinosa que lê a Bíblia (“El Evangelio seg[um Marcos"), o
acerto de contas operado pela viúva de Juan Muraña, a queima de arquivos da polícia em “El
indigno": não há dúvidas ou indefinições, apenas o violento destino latino americano que se
repete.

O LEVIATÃ CONTRA A VIOLÊNCIA


O estado de conflito permanente, geralmente associado à omissão ou distanciamento do
Estado da sociedade, ou então ao desvirtuamento das suas atribuições, está presente (ou
ausente) na maioria dos contos de El informe de Brodie. Domina o espaço, dita o ritmo da
narrativa, comanda a vida dos personagens e determina seus destinos, como os punhais que se
enfrentam pelas mãos de Duncan e Uriarte, ou a arma que ganha vida pelas mãos da viúva de
Muraña. O enfrentamento está, neste Borges crepuscular, no centro da questão nacional. A crise
profunda que a Argentina atravessa está impressa na trajetória dos personagens, que são em si
violentos. Ou que, mesmo quando não o são, acabam tragados por atitudes e pela solução
violenta das disputas. Os contos retratam uma situação de guerra de todos contra todos, de uma
sociedade regredindo a um estado de natureza e conflito permanente. As saídas heroicas, via
lutas e duelos, ocupam o lugar desse Estado ausente na manutenção da ordem e na execução da
justiça. Uma situação que tem seu equivalente na regressão cultural vivida pelos Gutrie, que
perdem a escrita, a leitura e a capacidade de distinguir entre verdade e ficção. Contra esse estado
pre social, o argentino propõe uma saída política hobbesiana – a defesa do Estado Leviatã.
Preconiza um Estado forte e militar, hegemônico politicamente e detentor do monopólio do uso
da violência, como poderiam ser os regimes militares que receberiam seu apoio ostensivo
poucos anos depois do lançamento da obra. O apoio aos governos fortes e a solução radical do
conflito que divide a sociedade argentina encontra sua representação literária na execução cruel
dos dois gaúchos de “El otro duelo”, o conto escolhido para antecipar a obra e dialogar com o
momento. Inimigos históricos - como a divisão histórica entre federalistas e unitários, ou
peronistas e anti peronistas -, Manoel Cardoso e Carmen Silveira são degolados pelo
comandante militar do grupo vencedor da batalha, que impõe sua vitória de maneira categórica,
executando exemplarmente os derrotados.
O filósofo inglês Thomas Hobbes escreveu sua principal obra no contexto conturbado e
conflituoso da Revolução Inglesa e da guerra civil que dividia o país. No Leviatã, o pensador

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“Borges es un escritor que no solo tiene dudas, sino que tiene dudas dentro de dudas”, afirma Balderston (2021,
p. 109), para quem o escritor argentino pratica uma estética da fragmentação, na qual predominam as “variantes
com vacilações”
9
se propõe a fazer um discurso sobre o Estado, procurando uma resposta racional para a questão
básica da ciência política que ele ajudou a fundar: como tornar as sociedades pacíficas e a vida
sobre a terra prazerosa e feliz? Nesse tratado, Hobbes formulou a concepção moderna do
Estado, representado por um soberano que se justifica pela renúncia consciente dos homens aos
seus direitos e sua cessão a um poder maior que, amparado na razão, vai se responsabilizar pela
segurança, pela auto conservação e pelo progresso da sociedade, resultando no estabelecimento
de um contrato ou pacto social. O caos instaurado pelo conflito inglês do século XVII e as
mortes que se seguiram, os prejuízos econômicos e sociais, a anarquia da guerra civil vivida
naquele período, justificariam e legitimariam a renúncia dos direitos individuais a favor de uma
pessoa abstrata, o Estado. Borges refere-se a Hobbes e à sua filosofia em vários momentos da
obra, em especial nos dois ensaios filosóficos onde discute o paradoxo de Aquiles – “La
perpetua carrera de Aquiles y la tortuga” e “Avatares de la tortuga”. Destaca alguns aspectos
do pensamento do inglês que procuram dar caráter lógico aos aspectos políticos da convivência
social, aplicando a eles o método matemático ou científico. Se o pensamento político que deu
os contornos do Estado Moderno não é nominado diretamente pelo argentino, ele, no entanto,
pode ser identificado nos enredos de El informe de Brodie, na omissão e ausência do poder
estatal que não regula as relações sociais nem garante a justiça e a paz dos seus personagens,
tampouco impede a situação de desagregação social vivida.. Se a defesa e a filiação ao
individualismo spenceriano é uma constante nos artigos, entrevistas e textos ensaísticos de
Borges – está, por exemplo, em “Nuestro pobre individualismo” e reaparece de forma
autobiográfica no conto “El Evangelio según Marcos" (“Su padre, que era librepensador, como
todos los señores de su época, lo había instruido en la doctrina de Herbert Spencer [...]” (OC,
p. 1068)) - os termos da conceituação do Estado feitas por Thomas Hobbes e sua comparação
do momento argentino com o homem vivendo em estado de natureza10, está presente nesses
textos de 1970. Fundamenta as ficções a partir da ciência política e fornece os argumentos para
o posicionamento futuro do escritor.
O Borges dos anos 1920-1930, que apoiou o governo de Hipólito Yrigoyen e uma visão
liberal clássica, e que a partir da queda daquele governo aprofunda sua mirada em direção à
defesa cada vez mais intransigente da concepção spenceriana do individualismo anti estatal, ao
chegar nos anos 1970 inclina-se para uma opção conservadora e desacreditada dos destinos
nacionais a partir da sua leitura do contexto político-ideológico que pediria a instalação de um
Estado hegemônico baseado na força. A imposição da ordem e a eliminação do adversário (no
caso, o adversário peronista) é sua resposta ao contexto político da Argentina daqueles anos,
ameaçada por uma nova guerra civil, como a que dividiu o país entre unitários e federalistas.
Nos contos de El informe de Brodie, o escritor flagra as origens desses conflitos voltando ao
passado formativo e enxerga no duelo sempre latente entre seus personagens a repetição de uma
luta fratricida que remonta à Conquista e às lutas pela unificação nacional. Para o autor que
defendia “un severo mínimo de gobierno”, torna-se premente a imposição da paz e da ordem
pela intervenção estatal. Há um nítido sentimento de derrota e o ceticismo domina o autor nesta
altura da vida, que transparece no Prólogo: “la ya avanzada edad me ha enseñado la
resignación de ser Borges” (OC, p. 1022).
Os contos de El informe de Brodie podem ser considerados mais um momento da obra
do escritor em que as questões estéticas e as políticas se entrelaçam e no qual Borges se torna
um escritor engajado de forma menos dissimulada. Ao explorar ficcionalmente os conflitos que
originaram e ainda dividem a nação, ao trazer o tema para o centro da sua obra tardia, o autor
expõe as suas próprias contradições e uma escritura apoiada no conflito. Optando por uma saída

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Segundo o filósofo inglês, no estado de natureza “não existe nenhum freio à concorrência e nenhum processo
civilizador do conflito. No estado de natureza vigora uma predisposição multilateral para a violência e os
concorrentes tornam-se necessariamente inimigos [...]” (KERSTING, p. 75).
10
radical através da violência extremada, reveladora de uma sociedade fraturada e que só resolve
seus impasses pela violência, Borges contradiz seu discurso liberal, opta pelo retorno a um
passado oligárquico, arcaico e pré-capitalista. Para uma sociedade desorganizada e em estado
de guerra, há que refazer o contrato à maneira de Hobbes e implantar um Estado Leviatã, que,
sob o domínio do medo e o monopólio da violência, imponha-se sobre a sociedade que, um
século depois, continua dividida e vivendo próxima ao estado de natureza. Ao tentar integrar e
equacionar essa herança, o escritor explicita as bases sobre as quais se constrói a sua visão de
mundo política, a ideologia que tensiona sua escritura.
[…] esta forma ideológica no debe ser confundida con las opiniones políticas
de Borges. Las determina, pero contradictoriamente, y mientras estas
opiniones cambian y Borges pasa del yrigoyenismo a cierta forma nativa del
fascismo, los elementos básicos de esa construcción se mantienen y se los
encuentra a lo largo de toda su producción. Fundada en el pasado de sangre
y en la estirpe, en el origen y en el culto a los mayores, esta ideología refleja,
antes que nada, las contradicciones de su inserción en la sociedad. Transcribe
en un lenguaje específico un contenido social particular y a la vez expresa una
oposición central entre consciencia de clase y situación social” (PIGLIA, p.6).

Borges então nunca “excluye los contrarios, sino que los mantiene y los integra como
elementos constitutivos de su escritura (idem).
Os contos de 1970 representam a última inflexão da obra ficcional do argentino e é
antecipada na apresentação do novo livro. Os contos “realistas” e diretos são o oposto dos
contos “fantásticos” e “labirínticos” das ficções anteriores. Eles compõem aquela que seria a
época mais violenta da literatura do autor, que vai de El informe de Brodie,
pasa por los poemas épico-patrioteros de La rosa profunda, hasta el prólogo
de La moneda de hierro, con la tristemente célebre frase: ‘Me sé del todo
indigno de opinar en materia política, pero tal vez me sea perdonado anadir
que descreo de la democracia, ese curioso abuso de la estadística’
(GAMERRO, p. 314).

É o período que antecede o apoio aos governos militares e que vai até 1976, fase mais
dura da ditadura militar e da história recente da Argentina. Gamerro assinala que, a partir de
então, Borges revê seu posicionamento e em 1985, no livro Conjurados, não há mais a
celebração da violência, da barbárie ou do culto à coragem.

Umberto Luiz Miele


Universidade Federal do Paraná

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