Você está na página 1de 8

* Rubens Arantes Corrêa

RAUL POMPÉIA E A HISTORIOGRAFIA DA


LITERATURA BRASILEIRA

Resumo: Este artigo pretende fazer um resgate histórico do escritor Raul Pompéia, levando
em conta o ponto de vista dos historiadores da literatura brasileira, ou seja, enseja investigar
a forma de construção intelectual pela qual !cou conhecido o autor de O Ateneu , obra
publicada em 1888, que imortalizou o seu autor.

Palavras-chave: Literatura. Crítica literária. Realismo literário. Intelectual engajado. Vida


literária.

Este texto tem como objetivo situar condições de a!rmação de “uma consciência
Raul Pompéia no contexto intelectual de sua nacional”, conforme assinala Nelson Werneck
época. Para isso, procuramos reavaliar o que Sodré. Não se trata de algo absolutamente
a crítica e a história da literatura da época e novo, tendo em vista que, num período
da posterior escreveram sobre Raul Pompéia anterior ao que está em estudo, José de
e sua obra. Por outro lado, estabelecemos as Alencar, em seus livros de literatura regional,
relações de Pompéia com outros intelectuais havia demonstrado essa intenção.
da época.
Entretanto, nesse momento, a questão
O !nal do século XIX (até as primeiras torna-se capital: criar uma consciência
décadas do século XX) foi caracterizado brasileira e procurar caminhos que insiram o
pela atuação de intelectuais interessados país no rol das “nações civilizadas” da época,
em compreender o Brasil. Esse contexto foi tal como se falava.
marcado por transformações nas relações de
É nesse contexto que surgem as
trabalho (abolição da escravidão em 1888) e
grandes “interpretações do Brasil”, conforme
por mudanças na ordem política institucional
a!rmação de Nelson Werneck Sodré em seu
com a proclamação da República em 1889.
livro História da Literatura Brasileira1. Para
Dessa forma, podemos estabelecer um corte
esse autor, “essas tentativas de análises e
nessa fase: a década de 1870 em diante,
interpretações do Brasil se dão em meio a um
com as transformações do período, assiste
processo contraditório: se por um lado existe
a preocupação dos intelectuais em “pensar
o grande interesse em conhecer a realidade
o Brasil”.
brasileira, por outro, o instrumental teórico
O objetivo desse “pensar o Brasil” para a análise dessa realidade, lançado pelos
é de, ao compreender o processo de intelectuais, foi elaborado no estrangeiro,
desenvolvimento histórico do país, criar notadamente, na Europa”.2

* Mestre em Ciências Sociais pela UFSCar - São Carlos - SP. Professor do Centro Universitário Claretiano - Batatais - SP.

CLARETIANO - REVISTA DO CENTRO UNIVERSITÁRIO, BATATAIS. N.6, JAN./DEZ. 2006 39


Embora reconhecendo as limitações Euclides da Cunha (1866–1909), por
impostas por referencial teórico distante sua vez, representa a “interpretação social”
da realidade objetiva que se procurava da realidade brasileira. Sua obra maior, um
compreender, ainda assim, Werneck Sodré clássico da história da literatura nacional,
a!rma a importância das “interpretações Os Sertões (1902), é um mergulho nos
do Brasil”, produzidas nesse momento, pois acontecimentos em torno da Guerra de
abriram “perspectivas para a compreensão Canudos, no sertão baiano. Para Werneck
dos nossos problemas, colocavam-se já sob Sodré, Euclides da Cunha é o “iniciador
equações diversas das antigas, mostravam de uma interpretação do Brasil !ndada no
ângulos ainda não vistos, traduziam um conhecimento direto e exato da verdadeira
esforço imenso para superar de!ciências de situação do homem e da terra”.5
instrumentos ou deformações profundamente
ancoradas na tradição”.3 Ainda de acordo com o esquema
interpretativo de Werneck Sodré, outro viés
Sensível às transformações que de conhecimento da realidade brasileira que
vinham ocorrendo no país, os agentes da se forma entre !ns do século XIX e início do
produção literária adotam nova temática e XX é o representado pela !cção. E, nesse
novas personagens. O Brasil rural, da vida
aspecto, a !gura de maior relevo é, sem
patriarcal do campo, dá lugar para novas
dúvida, Machado de Assis. Sua obra re"ete
personagens do Brasil urbano, das relações
as mudanças em curso no país, podendo-
sociais deslocadas do eixo senhor rural-
se dividi-la em duas fases: um período
escravo do eito para a cena urbana da vida nas
romântico em que se destacam os romances
confeitarias, nas repúblicas estudantis, nas
Helena (1872) e Iaiá Garcia (1878) e a
redações de jornais e no teatro. Trata-se de
segunda fase, marcadamente realista, em
um nova con!guração da realidade brasileira,
que se sobressaem Memórias Póstumas
traduzida pela literatura, que denuncia um
de Brás Cubas (1881) e Memorial de Aires
“Brasil novo, que surge e que começa a se
(1881).
de!nir como nação”.4
José Veríssimo (1857–1916)
Para Werneck Sodré, de acordo com os
representa o viés interpretativo da crítica
seus marcos históricos, ou seja, do !nal do
literária, brilhantemente trabalhado em
século XIX até o !m da I Guerra Mundial, os
suas principais obras: Estudos de Literatura
grandes intérpretes do Brasil no período São
Brasileira (1901–1907, 6 vols.) e História da
Joaquim Nabuco, Euclides da Cunha, Machado
Literatura Brasileira (1916). Sua importância
de Assis e José Veríssimo. Outros autores
são citados, entre eles Raul Pompéia e Lima está na sistematização de autores e obras
Barreto, considerados, contudo, secundários. que marcaram o desenvolvimento das letras
ao longo de três séculos – do XVI ao XIX.
Joaquim Nabuco (1849–1909), segundo
o modelo teórico de Werneck Sodré, representa Coube a Raul Pompéia, na história
a interpretação do Brasil pela ótica histórica e literária de Werneck Sodré, uma análise
biográ!ca, destacando-se, em sua produção muito super!cial6. Na verdade, esse autor
intelectual, a obra Minha Formação (1900). considera Pompéia, ao lado de outros autores
A visão de Nabuco sobre o Brasil é a de um do período, !gura menor. Essa é uma quase
representante da aristocracia (o que não regra geral da história e crítica literária
diminui a importância de sua obra) que brasileira, da qual Werneck Sodré não escapou
teve importante participação nos debates (e outros autores, como veremos adiante,
políticos em torno da abolição dos escravos. também não fugiram à regra): Raul Pompéia
Por outro lado, manteve-se !el à Monarquia, surge como um autor de difícil classi!cação,
considerando-a responsável pela unidade ora realista, ora naturalista; sua importância
territorial que o país manteve após a literária é restringida a seu livro O Ateneu
independência. (1888), entre outros aspectos.

40 CLARETIANO - REVISTA DO CENTRO UNIVERSITÁRIO, BATATAIS. N.6, JAN./DEZ. 2006


Mesmo em um capítulo especí!co que o ano de 1870, no Brasil, marca o início da
trata das “interpretações do Brasil”, Werneck campanha republicana no país, por meio da
Sodré restringe sua análise sobre Pompéia ao fundação do Partido Republicano.
fato de que sua obra O Ateneu foi publicada
A toda essa conjuntura de transformação
“sob forte in"uência do naturalismo”, possui na ordem política, social e intelectual brasileira
“tom amargo e ao mesmo tempo saudosista” e européia, José Veríssimo, em sua História
e tem estilo “caprichado”. Para encerrar da Literatura Brasileira de Bento Teixeira
sua análise, conclui: O Ateneu !gura como (1601) a Machado de Assis (1908), chama de
um romance isolado na história da “!cção “movimentos de idéias” e “modernismo”.8
brasileira”.7
Para José Veríssimo, um dos principais
Nenhuma referência é feita aos intelectuais desse período que soube
movimentos políticos da época, nos quais compreender as questões de seu tempo foi
Raul Pompéia teve participação intensa. Em Tobias Barreto. Natural de Sergipe, estudou
relação às quatro grandes !guras que, na na Faculdade de Direito do Recife (1862–
visão de Werneck Sodré, contribuíram para a 1872). Exerceu o jornalismo e o magistério,
formação de um pensamento social brasileiro, escrevendo obra de cunho !losó!co e de
é esquecido o fato de que Pompéia manteve crítica literária. Teve uma especial in"uência
relações intelectuais com todos eles. do pensamento alemão, chegando mesmo a
escrever artigos e ensaios nessa língua.
O quadro intelectual da segunda
metade do século XIX no Brasil é nitidamente Tobias Barreto, de acordo com J.
in"uenciado por correntes de pensamento, Veríssimo, “in"uiu na mente brasileira”. Teve
surgidas na Europa já na primeira metade a seu mérito a capacidade de introduzir no
desse século. Dentre essas correntes, as debate intelectual de seu tempo “uma porção
que mais se !zeram in"uentes foram o de idéias novas e, sobretudo, proclamou a
positivismo de Augusto Conte, o darwinismo, necessidade de fazermos completamente a
o evolucionismo de Herbert Spencer e o nossa cultura em outras fontes que aquelas
“intelectualismo” de Taine e Renan. onde até si principalmente bebiam os
portugueses e franceses”9.
Por outro lado, acontecimentos de
natureza social e política, no Brasil e na Segundo Veríssimo, para medir o grau
Europa, tiveram importância na formação de de in"uência de Tobias Barreto na formação
uma nova mentalidade no país da segunda do pensamento brasileiro, devemos olhar mais
metade do século XIX: a Guerra do Paraguai, para a atuação de seus discípulos, como Silvio
que fez surgir nos militares o sentimento de Romero, do que para a ação, propriamente
maior participação na vida política nacional; o dita, do intelectual sergipano. Talvez uma
movimento abolicionista, que engajou setores explicação para isso decorra do fato de Tobias
médios urbanos na campanha pró-abolição Barreto viver distante dos dois principais
do trabalho escravo e, !nalmente, a questão centros intelectuais, políticos e econômicos
religiosa, movimento de alguns membros do Brasil. No nordeste açucareiro decadente
católicos que reivindicavam maior autonomia da segunda metade do século XIX, deslocado
da Igreja em relação ao Estado. do eixo economicamente mais dinâmico do
país, já naquela época, pouca oportunidade
Por !m, da Europa, alguns
teve para ampliar a sua ação de intelectual
acontecimentos têm in"uência direta sobre o
in"uente.
Brasil: a Guerra Franco-Alemã, que despertou
interesse de alguns intelectuais brasileiros pela Corrente literária inspirada na voga
cultura alemã; a Revolução Espanhola (1868) do “movimento de idéias” ou simplesmente
e a queda do II Império Napoleônico, que “modernismo”, tal como cunhou José
abriram caminho para o advento da república Veríssimo, sobretudo nas idéias cienti!cistas
na Espanha e na França. Como conseqüência, da época, surge no Brasil a corrente literária

CLARETIANO - REVISTA DO CENTRO UNIVERSITÁRIO, BATATAIS. N.6, JAN./DEZ. 2006 41


do naturalismo, sob in"uência de Emile Zola compreender a obra. Nesse sentido, quatro
e Eça Queiroz, que seriam fontes inspiradoras críticos importantes desenvolvem modelos
dos intelectuais brasileiros. de análises exemplares: Olívio Montenegro,
Mário de Andrade, Lúcia Miguel Pereira e
De acordo com a análise crítica de
Alfredo Bosi.
José Veríssimo, o naturalismo brasileiro,
enquanto corrente literária, não produziu Olívio Montenegro, em sua obra O
“obras realmente notáveis e vivedouras” e os Romance Brasileiro, dedica um capítulo
autores !liados a essa tradição que ganhavam ao estudo de Raul Pompéia, enfatizando
reconhecimento eram: Aluízio de Azevedo, suas características pessoais e detendo-se
Júlio Ribeiro e Raul Pompéia.10 mais longamente na análise do romance O
Ateneu13.
Aluízio de Azevedo (1858–1913)
publicou seu primeiro romance em 1880. Para Montenegro, Raul Pompéia teve
Trata-se de Uma Lágrima de Mulher, vida e obra bastante “contraditórias”, sendo
obra em que se percebe ainda fundo de ambas marcadas pela “grande timidez” e
inspiração romântica. O seu talento passa a “grande orgulho”. Além disso, Pompéia teria
ser reconhecido quando da publicação de O sido “um revoltado”, um “grande solitário”, um
Mulato (1881), livro em que “ao jeito da nova “homem que ria sem gosto” e atormentado
estética, era estudado o caso de preconceito por um terrível “complexo de vítima” que o
de cor na província natal do autor.”11. Outras acompanharia em sua vida.14
três obras colocariam Aluízio de Azevedo entre
Contudo, seu comportamento tímido-
o “mais notável” escritor do naturalismo: A
orgulhoso, conforme análise de Montenegro,
Casa de Pensão (1884), O Homem (1887) e
marcaria Pompéia, tanto em suas ações
O Cortiço (1890).
políticas, quanto na própria criação literária,
Dedicado aos estudos lingüísticos e à como no caso dos personagens-chave de
gramática da língua portuguesa, Júlio Ribeiro O Ateneu. No caso especí!co da atuação
(1845–1890) exerceu várias atividades, política, diz Montenegro que Pompéia teve
sendo professor e jornalista em boa parte de “ação extraordinariamente de combate, a
sua vida. Seu livro de 1888, A Carne, !gura mais sensacional e pública, pela abolição
como romance naturalista de importância e pelos governos republicanos liberais”. É
relativa a essa corrente literária. mediante sua ação política que Pompéia “vai
se descobrir em toda a sua intolerância de
Por !m, José Veríssimo dedica rápido
espírito.”15
comentário a Raul Pompéia e a seu romance
principal. Quanto ao O Ateneu (1888), diz o Ainda conforme Montenegro, o encontro
crítico tratar-se da “amostra mais distinta, da timidez e do orgulho em Pompéia teria
se não a mais perfeita, do naturalismo no resultado em uma pessoa cujo comportamento
Brasil.” (12). Em relação a Pompéia, conclui oscila entre o “ódio” e o “entusiasmo”. Seria
que este possuía “dotes de pensador e de exemplo desse comportamento o episódio em
artista superiores” aos de Aluízio de Azevedo que Raul Pompéia, destilando todo seu ódio
e Júlio Ribeiro. contra os anti-abolicionistas de Campinas, faz
uma charge parodiando a Paixão de Cristo,
Há como que uma unanimidade na
colocando em lugar de Jesus um jumento
crítica literária, segundo a qual Raul Pompéia
simbolizando os escravocratas. O objetivo de
apresentava, como traço de personalidade,
Pompéia era atingir, por meio da encenação
perturbações que trouxeram di!culdades para
religiosa, as suscetibilidades dos fazendeiros.
a sua convivência pessoal e se estenderam
mesmo para a sua produção literária, Por outro lado, Pompéia não continha
notadamente em seu principal romance seu entusiasmo, chegando mesmo a devotar
O Ateneu. De um modo geral, partem da verdadeira “adoração” por Luís Gama e
caracterização psicológica do autor para extraordinário “fanatismo” por Floriano

42 CLARETIANO - REVISTA DO CENTRO UNIVERSITÁRIO, BATATAIS. N.6, JAN./DEZ. 2006


Peixoto. Era dessa forma, en!m, que Toda a análise de Olívio Montenegro,
manifestava seu sentimento, passando de um portanto, está centrada na compreensão da
extremo ao outro. !gura de Raul Pompéia. São seus traços de
natureza psicológica que explicam sua ação
Contudo, a excessiva recorrência aos
política e que esclarecem a construção da
traços psicológicos e de caráter de Pompéia
trama de seu romance O Ateneu (1888).
compromete a análise de Olívio Montenegro em
três momentos. Primeiramente, quando atribui Em texto datado de 1941, Mário de
ao temperamento “orgulhoso” o fato de Pompéia Andrade dá sua interpretação de O Ateneu,
ter-se transferido da Faculdade de Direito de que seria posteriormente inserido em seu livro
São Paulo para a do Recife.16 Na realidade, de crítica Aspectos da Literatura Brasileira.18
Montenegro omite este fato: Raul Pompéia,
A análise de Mário de Andrade
na conjuntura de 1883 a 1884, envolve-se
procura equilibrar-se entre a in"uência do
totalmente na militância abolicionista, o que lhe temperamento de Pompéia na construção
trará problemas dentro da Academia do Largo do romance e todo o contexto !losó!co
São Francisco, reduto do conservadorismo. (evolucionismo) e literário (naturalismo) que
Como conseqüência, ele e outros 92 estudantes o cerca. Embora, destaca o crítico, a matéria-
são reprovados em massa, forçando-os à prima que empresta relevo ao romance, seja a
transferência para o Recife. experiência individual do autor.
Outro equívoco de Montenegro é Para Mário de Andrade, O Ateneu é, em
creditar ao sentimento de orgulho e ao receio grande medida, resultado do extravasamento
de enfrentamento da crítica o fato de Raul do sentimento de revolta e vingança que
Pompéia não assinar seus artigos.17 Como nutria Pompéia pela sua dolorosa experiência
registra Afrânio Coutinho, na edição em dez como interno, na infância, do Colégio Abílio.
volumes das obras de Raul Pompéia, desde A prova evidente dessa intencionalidade de
o início de sua colaboração para a imprensa, Pompéia estaria na insensibilidade com que
Pompéia lançou mão de vários pseudônimos, descreve os personagens do romance, todos
o que, inclusive, comprometeu o trabalho de (salvo, raríssimas exceções) desenhados com
coleta de artigos nos jornais da época. extrema crueldade.
O terceiro equívoco refere-se ao episódio Três aspectos ganham importância
do duelo com Olavo Bilac. Consta que, por volta na leitura que Mário de Andrade realiza de
de 1892, Bilac teria insinuado em crônica para O Ateneu: primeiro, a total insensibilidade
um jornal carioca que Raul Pompéia fazia uso de Pompéia “ante a idade da adolescência e
da masturbação para sua satisfação sexual, o sentimento da amizade”19. Os colegas de
explorando o fato de Pompéia não manter internato do personagem narrador Sérgio
relacionamentos amorosos. Em resposta, são descritos como !guras cruéis, estúpidas
Pompéia chamou Bilac para um duelo, o que e movidas por sentimentos levianos. Tanto é
só não ocorreu devido à interferência de assim que, salienta Mário de Andrade, “todas
amigos comuns. Olívio Montenegro atribui as relações íntimas, todas as ‘amizades’ entre
a reação intempestiva de Pompéia ao seu adolescentes do Ateneu, se reduzem a casos
temperamento tímido-orgulhoso. grosseiros de homossexualidade”.20

Contudo, a conjuntura de 92 é Para Mário de Andrade, essa atitude de


caracterizada por um “racha” entre os desprezo diante da adolescência e, sobretudo,
republicanos. De um lado, os pró-Floriano, da amizade encontra explicação no fato de Raul
como Pompéia, e, de outro, os anti-Floriano, Pompéia, ao longo de sua vida, não ter tido
como Bilac. Na realidade, Bilac utilizou-se do “nenhum amigo íntimo, que lhe freqüentasse
argumento da sexualidade de Pompéia para a casa e a alma nua”.21
lançar-lhe uma crítica política, o que originou Contudo, não estaria Raul Pompéia sendo
a ira de Pompéia. coerente com a Plataforma do naturalismo,

CLARETIANO - REVISTA DO CENTRO UNIVERSITÁRIO, BATATAIS. N.6, JAN./DEZ. 2006 43


segundo a qual os personagens seriam em livro. A data é de grande importância,
moldados pelas circunstâncias malévolas do em termos políticos, para o Brasil. Marca a
ambiente exterior, no caso, um internato de Lei Áurea, que pôs !m à escravidão no país
meninos? e fortaleceu o movimento republicano, que
sairia vitorioso no ano seguinte.
O segundo aspecto de relevo em
O Ateneu, conforme análise de Mário de Tendo em vista que Raul Pompéia
Andrade, é a descrição do ambiente masculino esteve envolvido abertamente em ambos os
do internato. Para o crítico, tal como fez em movimentos, desde o seu início, e, desde então,
relação à adolescência, Pompéia vai descarregar realizava “literatura jornalística de combate”25
“a audácia desesperada de sua vingança”22 em defesa de suas convicções políticas, torna-
contra o mundo masculino do internato. Todos se tentador analisar o romance O Ateneu,
são descritos como “grotescos, invejosos, procurando dar-lhe um outro recorte.
insensíveis, perversos ou brutais.”23
Bosi, em sua História Concisa de
Salvam-se desse mundo perverso as Literatura Brasileira, procura dar algumas
!guras femininas, que são três: a mulher pistas para a interpretação de O Ateneu como
de Aristarco, Ema, pela qual o personagem- um romance de crítica política à sociedade do
narrador Sérgio sente ternura, a criada Ângela, !nal do século XIX.26
por quem aparecem os sentimentos de atração
Para Bosi, a redução do romance à análise
sexual, e a priminha Rosa, que é tratada como
psicológica transforma-o num “mero exemplário
criança. Na verdade, e este constitui o terceiro
aspecto da análise de Mário de Andrade, as de recalques e neuroses”27. Embora, enfatiza o
personagens femininas são, de certo modo, crítico, exista a possibilidade da compreensão
protegidas do universo grotesco constituído de O Ateneu, por meio da análise psicológica
pelos homens. (o resgate do passado de Pompéia com o
romance, “o complexo edipiano” manifestado
Por outro lado, o crítico modernista pelo personagem Sérgio pela esposa de
ressalta os elementos constitutivos da Aristarco e as insinuações homossexuais),
corrente naturalista, presentes no romance de na realidade, o romance aponta para outras
Pompéia. Como exemplo, cita a passagem em possibilidades de análises.
que Sérgio, o personagem-narrador, lembra-se
de sua prima. Observa Mário de Andrade que A leitura de Bosi sugere que o ateneu,
Raul Pompéia, ao dar um aspecto de “criança” enquanto instituição de ensino na qual se
à personagem, distingue, dentro da concepção desenrola toda a ação do romance, “é um
naturalista, o mundo perverso da adolescência microcosmo em vários níveis”28. A !gura de
e o universo ingênuo das crianças.23 Aristarco, o diretor do colégio, é descrita como
um “negociante usuário”, cujo interesse maior,
Mário de Andrade recorre ao encoberto sob o discurso da competência
temperamento psicológico de Raul Pompéia pedagógica, era o “dinheiro”.
para a compreensão de O Ateneu, equilibrando,
entretanto, com as in"uências estéticas, Tal como em O Ateneu !ccional, era assim
literárias e !losó!cas do período. Ressalta, com que Raul Pompéia enxergava as instituições do
muita ênfase, a in"uência dos irmãos Goncourt Segundo Reinado. O que movia essa sociedade
sobre a “escrita artística” de Pompéia e conclui decadente, na ótica de Pompéia, eram os
dizendo que O Ateneu “representa exatamente interesses por riqueza.
os princípios estético-sociológicos, os elementos Toda a crítica que alimentava contra
e processos técnicos do naturalismo”.24 o Ateneu, por intermédio de Sérgio, o
O Ateneu foi publicado originalmente personagem-narrador, constitui a concepção
em 1888, entre os meses de março e maio, de sociedade do autor. Nesse aspecto, lembra
como folhetim da Gazeta de Notícias do Rio Bosi, que o “sistema de idéias” de Pompéia !ca
de Janeiro. Nesse mesmo ano, ganhou edição exposto por intermédio de um personagem

44 CLARETIANO - REVISTA DO CENTRO UNIVERSITÁRIO, BATATAIS. N.6, JAN./DEZ. 2006


secundário, o Dr. Cláudio. Ao expor sua Dessa forma, o entendimento do
concepção de “cultura brasileira”, “Pompéia/ romance O Ateneu passa muito além da
Dr. Cláudio” ataca “o pântano das almas da simpli!cação psicológica, de uma mera “crônica
vida nacional, sob a tirania mole de um tirano de saudades” (tal como traz o subtítulo original
de sebo”.29 da obra). Pompéia transformou seu Ateneu em
um retrato da sociedade em que viveu.

NOTAS

1 A primeira edição da obra data de 1938. Consultamos a 9ª edição da Editora Bertrand Brasil, Rio de
Janeiro, 1995. O Capítulo 14 da obra tem por título exatamente este: “Interpretações do Brasil”.
2 Werneck Sodré, obra citada, p. 490.
3 Werneck Sodré, obra citada, p. 491.
4 Werneck Sodré, obra citada, p. 492.
5 Werneck Sodré, obra citada, p. 497.
6 Na realidade Werneck Sodré dedica somente um parágrafo a Raul Pompéia; em obra citada, p. 502.
7 Werneck Sodré, obra citada, p. 502.
8 A primeira edição dessa obra é de 1916. Segundo o Prof. Heron de Alencar na edição de 1998, publicada
pela Editora Universidade de Brasília, a H. L. B. de José Veríssimo, ao lado de estudos empreendidos por
Sílvio Romero, “permaneceu durante quase meio século à espera de que a cultura brasileira produzisse
coisa melhor, ou equivalente, ou semelhante” (p. 4).
9 José Veríssimo, obra citada, p. 235.
10 José Veríssimo, obra citada, p. 242.
11 José Veríssimo, obra citada, p. 242.
12 José Veríssimo, obra citada, p. 244.
13 Olívio Montenegro. O Romance Brasileiro. 2. ed. São Paulo: José Olympio, 1953. Nessa edição o
prefaciador é Gylberto Freyre e o capítulo em questão é o intitulado “Raul Pompéia”.
14 Olívio Montenegro, obra citada, p. 107-9.
15 Olívio Montenegro, obra citada, p. 111.
16 Olívio Montenegro, obra citada, p. 110.
17 À página 114, diz: “chegou um ponto em que já não assinava os seus artigos de jornal: era um meio
de decepar a crítica”. Olívio Montenegro, obra citada.
18 ANDRADE, Mário de. Aspectos da Literatura Brasileira. São Paulo: Martins, s.d.p. O capítulo em questão
tem por título: “O Ateneu” (1941).
19 Mário de Andrade, obra citada, p. 174.
20 Mário de Andrade, obra citada, p. 179.
21 Mário de Andrade, obra citada, p. 177.
22 Mário de Andrade, obra citada, p. 175.
23 Mário de Andrade, obra citada, p. 176.
24 Expressão de Mário de Andrade, obra citada, p. 175.
25 BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. São Paulo: Cultrix, 1992.
26 Alfredo Bosi, obra citada, p. 204.
27 Alfredo Bosi, obra citada, p. 206.
28 Alfredo Bosi, obra citada, p. 208.
29 Alfredo Bosi, obra citada, p. 210.

CLARETIANO - REVISTA DO CENTRO UNIVERSITÁRIO, BATATAIS. N.6, JAN./DEZ. 2006 45


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANDRADE, Mário de. Aspectos de Literatura Brasileira. São Paulo: Martins, s.d.p.
BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. São Paulo: Cultrix, 1992.
CORRÊA, Rubens Arantes. Literatura e Identidade Nacional: Raul Pompéia e os percalços do
nacionalismo brasileiro. São Paulo: UFSCar, 2001.
MONTENEGRO, Olívio. O Romance Brasileiro. 2. ed. São Paulo: José Olympio, 1953.
SODRÉ, Nelson Werneck. História da Literatura Brasileira: seus fundamentos econômicos. 9.
ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1995.
VERÍSSIMO, José. História da Literatura Brasileira: de Bento Teixeira (1601) a Machado de
Assis (1908). 3. ed., Rio de Janeiro: José Olympio, 1954.

46 CLARETIANO - REVISTA DO CENTRO UNIVERSITÁRIO, BATATAIS. N.6, JAN./DEZ. 2006

Você também pode gostar