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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO PAULO

ESCOLA DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS

LETÍCIA ALVES SANTOS

A EXPRESSÃO MULHER-MACHO: HISTÓRIA E DISPUTAS

GUARULHOS
2021
LETÍCIA ALVES SANTOS

A expressão mulher-macho: História e Disputas

Monografia de conclusão de curso apresentada como


requisito parcial para obtenção do título de Bacharel
em História da Universidade Federal de São Paulo.

Orientadora: Profª Drª. Maria Luiza Ferreira de


Oliveira

Guarulhos
2021
Catalogação na Publicação
Serviço de Biblioteca e Documentação da Unifesp/Campus Guarulhos
Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas – EFLCH
Dados fornecidos pelo(a) autor(a)
LETÍCIA ALVES SANTOS
A EXPRESSÃO MULHER MACHO: HISTÓRIA E DISPUTAS

Monografia de conclusão de curso apresentado


como requisito parcial para obtenção do título
de Bacharel em História
Universidade Federal de São Paulo
Área de concentração: História

Aprovado em:

Banca Examinadora

_________________________________________________________________________
Profª Drª. Maria Luiza F. de Oliveira

_________________________________________________________________________
Profª Drª Samira Adel Osman

__________________________________________________________________________
Prof. Dr. José Lindomar Coelho Albuquerque
Dedico este trabalho àqueles que tornaram
possível a minha chegada e permanência na
Universidade.
AGRADECIMENTOS

A permanência na Universidade quando se é filhes e netes da classe trabalhadora é


sempre mais desafiadora. Agradeço a minha família por ter aberto os caminhos e me ajudado
nesse percurso e aos governos do PT por ter atendido as demandas na área da educação,
implementando políticas públicas que fizeram com que novos corpos penetrassem os muros
acadêmicos.
Agradeço ao meu companheiro Ricardo Cavalcante, pelo afeto, cuidado e incentivo,
por sempre acreditar em mim quando eu mesma não o fazia. Também agradeço aos meus
amigos Izabelle, Bruno, Nathalia, Patrícia, Jéssica Daiane, Jesus, Gilmar e Leandro pelas
trocas, apoio e amizade, vocês tornaram mais alegre minha passagem pela Unifesp. Agradeço
também à minha psicóloga Patrícia Milani, por todo suporte e afeto nessa travessia.
bell hooks em Ensinando a transgredir traz o tema do Eros e do Erótico na sala de
aula, ela afirma que, historicamente, muitos professores entram nas salas de aula negando os
corpos, negando os sentimentos e os afetos. Que Eros e Erotismo não se limitam ao campo
sexual, mas são ferramentas que geram e potencializam força, criatividade e a transformação
de nós enquanto alunos. Quando os professores ensinam de forma apaixonada e acionam os
afetos contribuem imensamente em nossa caminhada acadêmica.
Eu tenho o privilégio de dizer que me vi nas linhas de bell hooks ao resgatar na
memória as trocas, o apoio, o afeto e o cuidado que a minha orientadora Maria Luiza Ferreira
de Oliveira me ofereceu. Então para a Malu, meu agradecimento especial, sem essas
ferramentas acionadas, essa travessia teria sido difícil.
RESUMO

O objetivo deste trabalho é investigar os sentidos do uso da expressão mulher-macho


em objetos culturais no Brasil do século XX. Selecionamos a obra literária Luzia Homem
(1903) de Domingos Olímpio, a letra da música Paraíba cuja autoria é de Luiz Gonzaga e
Humberto Teixeira, gravada primeiramente na voz de Emilinha Borba em 1946 e depois por
Gonzaga em 1952 e a radionovela Jerônimo, o Herói do Sertão criada por Moysés Weltman
para a Rádio Nacional do Rio de Janeiro em 1953. A pesquisa surgiu de inquietações sobre a
expressão mulher-macho frequentemente mobilizada pela minha família e nas produções
culturais do país, expressões como esta e cabra-macho ou cabra da peste são utilizadas ao se
falar em Nordeste e/ou de “nordestinos”. Nordeste e/ou os nordestinos que foram / são
historicamente atravessados por imagens ligadas à violência e virilidade, utilizadas enquanto
categorias identitárias para se referir às pessoas da região. Para a análise busquei saber em
quais momentos a expressão apareceu e como ganhou projeção também nos jornais de cada
contexto abordado. Considera-se aqui a influência que tais linguagens culturais tiveram na
elaboração da representação do sertanejo e da sertaneja, e posteriormente, na emergência da
expressão mulher-macho para designar as mulheres do Nordeste, sobretudo, do sertão. Não se
trata de buscar a origem da expressão, ou designar qual seria a original, mas analisar discursos
que vão influenciar na construção de uma referência identitária, de maneira que as
particularizam em detrimento de mulheres de outras regiões. A expressão não tem um
significado intrínseco, mas sentidos construídos social e historicamente, desse modo, este
trabalho metodologicamente pretende analisar o discurso presente na linguagem literária,
musical e no gênero da radionovela, considerando sua produção, circulação e recepção, em
três períodos da história.

Palavras-chave: mulher-macho; identidade; Nordeste; literatura; música; radionovela


ABSTRACT

The objective of this work is to investigate the moments of allusion and use of the
expression mulher-macho in cultural objects. The literary work Luzia Homem (1903) by
Domingos Olímpio was selected, the lyrics Paraíba authored by Luiz Gonzaga and Humberto
Teixeira, first recorded in the voice of Emilinha Borba in 1946 and by Gonzaga in 1952 and in
the radio soap opera Jerônimo, the Hérói do Sertão created by Moysés Weltman for Rádio
Nacional in Rio de Janeiro in 1953. The research arose from concerns about the expression
male-female often mobilized by my family and in cultural productions in the country. used
when talking about the Northeast and/or “Northeasts”, they are historically crossed by images
linked to violence and virility, used as identity categories to refer to the people of the region.
For the analysis, I sought to know at which moments the expression appeared and how it also
gained prominence in the newspapers of each context covered. Here, the influence that such
cultural languages ​had on the elaboration of the backcountry and backcountry, and later, on
the emergence of the expression woman, is considered. -male to designate women from the
Northeast, above all, from the hinterland. It is not a question of seeking the origin of the
expression, or designating which would be the original, but analyzing discourses that will
influence the construction of an identity reference, in a way that particularizes them to the
detriment of women from other regions. The expression does not have an intrinsic meaning,
but meanings constructed historically and socially, thus, this work methodologically intends to
analyze the discourse present in literary, musical language and in the radio soap opera genre.

Keywords: mulher-macho; North East; literature; music; radio soap opera


LISTA DE IMAGENS

Imagem 1 - Sucessos da Semana …………………………………………………………….73


Imagem 2 - Emilinha Borba ………………………………………………………………….81
Imagem 3 - Emilinha Borba…………………………………………………………………..82
Imagem 4 - Recordes de Audiência…………………………………………………………..88
Imagem 5 - Capa do HQ de Jerônimo………………………….…………………………….89
Imagem 6 - Chamado para as caravanas de Jerônimo no HQ.….…........................................90
Imagem 7 - Maria Homem vale por 10 homens!......................................................................97
Imagem 8 - Maria cavalga como um homem!……………………….……………………….98
Imagem 9 - Uma mulher Piloto de Navio………...………………………………………...102
Imagem 10 - Maria Florisbela…………………………………………………………….…103
Imagem 11 - Mulher-Macho enfrentou a polícia no braço………………………………103
LISTA DE TABELAS

Tabela 1. Aparições contextualizadas na imprensa do termo mulher-macho, 1925-1935.... p.41


Tabela 2. Ocorrências do termo mulher-macho na imprensa, 1950-1960.............................p.77
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 12
Escolha do tema: afetos e memória
Objetos culturais analisados e metodologia

Cap. 1. A INVENÇÃO DO NORDESTE, O SERTÃO E O REGIONALISMO: UM


DIÁLOGO COM A OBRA DE DURVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JR. 18

Cap. 2. OS SENTIDOS E OS USOS DE MULHER-MACHO, FINAL DO SÉCULO XIX


E INÍCIO DO SÉCULO XX 35
2.1 Masculinidade nordestina e a emergência da mulher-macho 46
2.2 Literatura Regionalista e a masculinização de personagens femininas: o caso de Luzia
Homem 49

Cap.3. OS SENTIDOS E OS USOS DE MULHER-MACHO NOS ANOS 1950 61


3.1 Luiz Gonzaga, o Rei do Baião 66
3.2 Paraíba Masculina, Muié Macho, Sim Sinhô! 71
3.3 Jerônimo, O herói do Sertão: Filho de Maria Homem 83
3.4 Maria Homem e Aninha: personagens femininas no sertão de Jerônimo 95

CONSIDERAÇÕES FINAIS 104


FONTES 108
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 112
INTRODUÇÃO

Escolha do tema: afetos e memória

Escrever a monografia, cujo tema atravessa a minha vida, é acionar lembranças e


situações que me levam junto da minha família. Em tempos de pandemia esse processo é
ainda mais intenso. Sempre me encantou ouvir os causos do vô Raimundo e do vô Dioci,
arrancaram de mim muitas risadas e nós na garganta.
Ao entrar na universidade, imaginei passar por muitos temas, não sabia que havia
possibilidade de estudar aquilo que me tocava. Mas foi em uma aula sobre Juazeiro, Canudos
e Contestado de História do Brasil II oferecida pela Profª. Malu, que vi a oportunidade de
falar sobre algo que me inquietava, a expressão mulher-macho. Expressão bastante utilizada
na minha família no lado materno, daqueles que vieram do Pernambuco e do Ceará, usada
seja no sentido de dizer que alguma mulher era valente e guerreira, seja para me masculinizar
quando eu era criança, por ser uma menina que não se comportava como uma "mocinha".
Inicialmente, em conversas com a professora, pensamos em alguns caminhos e leituras
para investigar a história dessa expressão, comecei a buscar em dicionários antigos e nos
jornais de fins do XIX e do começo do XX a ocorrência do termo, para verificar os usos e os
sentidos que apareciam. Nesse processo, em 2015 participei de um minicurso realizado por
alguns mestrandos da História chamado (Re)Construindo o Nordeste, foram três dias em
contato com Durval Muniz de Albuquerque Jr e tive um banho de água gelada nas minhas
convicções sobre identidade e cultura nordestina.
Para mim, esses dois conceitos orbitavam a dinâmica da minha família: se reunir pra
comer o baião do vô Raimundo, fazer cuscuz com leite antes de dormir, ir na Casa do Norte
buscar rapadura, queijo e feijão de corda, ter um Padim Ciço dentro de casa, visitar os
parentes que lá ficaram, se empanturrar de tanto doce de leite, carne de sol e umbuzada no
Geribá era tudo aquilo que eu achava ser a completa experiência de pertencer a essa
identidade, ter o sangue nordestino nas veias.
O contato com Albuquerque Jr. e tantas outras leituras sobre identidade, estereótipos e
representação foi uma travessia esclarecedora, mas também dolorida. Eu devia negar tudo
isso? Deveria alertar meus familiares sobre a invenção do Nordeste? Não fiz nenhum dos
dois, em 2015 sai da casa dos meus pais e na mala um Padim Ciço me acompanhou, sigo
agradecendo aos meus familiares que, desde que saí de casa, passaram a mandar carne de sol,
doce de leite talhado, queijo, requeijão e rapadura vindos do Geribá para mim também, sabor
e afeto de uma comida que percorre longa distância pra aquecer meu coração e que faz parte
da tradição dos que vão visitar e voltam cheios de afeto em forma de comida e lembranças.
Daí em diante, passei a me debruçar sobre esse tema na perspectiva que Albuquerque
Jr. propõe, mas sem deixar de pensar que as dinâmicas, as memórias e os costumes acionados
e recriados pela minha família foram importantes no processo da diáspora que fizeram parte
quando chegaram em São Paulo.
A questão está quando eu, filha de migrantes, que não passei pelo processo da
diáspora, passo a ver essa dinâmica, costumes e memória sob o ponto de vista da saudade,
como se eu também tivesse deixado minhas raízes em uma terra distante. Esse foi o ponto que
me fez entender meu lugar nessas dinâmicas e o lugar que meus familiares ocupam.
A realização dessa pesquisa possibilitou compreender a expressão e suas diferentes
formas de uso e evocação, sua presença nos dicionários, na imprensa e na produção cultural
do país. Me colocou na tensão de entender como se constitui em diversos discursos, os
elementos que acionam e as apropriações feitas por aqueles que vêem na expressão uma
referência identitária para as "mulheres fortes do Nordeste".
Este trabalho está dividido em três capítulos, no capítulo A invenção do Nordeste: o
sertão e o regionalismo, um diálogo com a obra de Durval Muniz de Albuquerque Jr.
apresento brevemente alguns trabalhos deste historiador que traz a proposta de desnaturalizar
a região e compreender como esta foi elaborada discursivamente ao longo da História.
Exponho um debate bibliográfico com aqueles que sob uma orientação regionalista
problematizam a posição de Albuquerque Jr.
Em Os Sentidos e os usos de mulher-macho no começo do século XX, investigo as
primeiras aparições da expressão e o seu sentido na imprensa, no dicionário e na obra Luzia
Homem de Domingos Olímpio. Também discuto a noção de masculinidade nordestina
proposta por Albuquerque Jr para se pensar a elaboração da expressão.
E por fim, no último capítulo já nos anos de 1950, contexto de grande fluxo migratório
da região Nordeste para o Sudeste e do sucesso de Luiz Gonzaga com o baião, analiso a
canção Paraíba enquanto uma produção cultural que contribuiu para cristalizar no imaginário
nacional a relação entre mulher-macho e Nordeste, enquanto uma categoria identitária para as

13
mulheres da região. Outra produção cultural analisada nas linhas deste capítulo é a
radionovela Jerônimo, O herói do Sertão, transmitido pela primeira vez em 1953 pela Rádio
Nacional do Rio de Janeiro, novela que conta as aventuras de um herói que lutava no sertão
de Serro Bravo contra poderosos coronéis sedentos por terras. O herói nacional, elaborado sob
um estilo de western americano, era filho de Maria Homem.

Objetos culturais analisados e metodologia

Os objetos culturais escolhidos para a investigação desta pesquisa se deram pela


presença dos sentidos ou da própria expressão mulher-macho que continham. Busquei saber
em que momentos a expressão apareceu e como ganhou projeção. Após ampla pesquisa
(jornais da hemeroteca digital e bibliografia), identifiquei e selecionei três objetos culturais
que, acredito, contribuíram na difusão e circulação dessa imagem. Portanto, para além da
análise da aparição da expressão na imprensa, esta pesquisa investiga os momentos de alusão
e uso da expressão mulher-macho na obra Luzia Homem de Domingos Olímpio publicada em
1903, na letra Paraíba cuja autoria é de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira, gravada
primeiramente na voz de Emilinha Borda em 1946 e por Gonzaga em 1952 e da radionovela
Jerônimo, o Herói do Sertão criada por Moysés Weltman para a Rádio Nacional do Rio de
Janeiro em 1953.
Considera-se a influência que tais linguagens culturais tiveram na elaboração de
representações do sertanejo e da sertaneja, e posteriormente, na emergência das expressões
mulher-macho e cabra-macho para designar homens e mulheres do Nordeste, sobretudo, do
sertão. A intenção não é traçar como e onde surgiram, não se trata de buscar a genealogia da
expressão, ou designar qual seria a original, mas analisar discursos imagéticos que vão
influenciar na construção de uma referência identitária para a mulher do Nordeste, de maneira
que as particularizam em detrimento de mulheres de outras regiões. A expressão não tem um
significado intrínseco, mas sentidos construídos historicamente e socialmente, desse modo,
este trabalho metodologicamente pretende analisar o discurso presente na linguagem literária,
musical e no gênero de radionovela, esta última, com altos índices de audiência e sucesso.
Discutiremos gênero dentro de uma linha teórica que o intersecciona com outros marcadores

14
sociais da diferença, possibilitando compreender gênero, raça e identidade como produções
históricas e sociais.
Luzia Homem foi publicado em 1903, um ano após Os Sertões de Euclides da Cunha.
Trazendo em sua narrativa o sentido de um corpo masculinizado diante da bruteza da terra e
da vida sertaneja, se aproximando da mesma elaboração que Cunha faz dos sertanejos sob a
influência de teorias cientificistas do final do século XIX, onde meio e raça contribuem na
formação de grupos sociais. A obra de Olímpio é o primeiro objeto cultural identificado na
literatura que traz o sentido de mulher-macho.
Para analisar a obra, recorremos ao contexto em que a narrativa é escrita, o contexto
de publicação, ou seja, uma relação dialética entre texto e contexto, contrapondo com
dicionários, imprensa e outros livros com a mesma temática, além d’Os Sertões. Pensaremos
no percurso do autor, na circulação e na recepção da obra. Consideramos também a difusão e
a circulação da obra no ano de 1903 na imprensa e como foi recebida pelos intelectuais do
período. É um momento marcado por transformações e essas mudanças eram registradas na
literatura do século XIX e XX, onde muitos autores se encontravam engajados nos processos
políticos e nos espaços de poder, como é o caso também de Domingos Olímpio.
Orientados por Nicolau Sevcenko que concebe a literatura também enquanto discurso,
olharemos a obra de Luzia sob a perspectiva discursiva. O historiador pontua que

Se a literatura moderna é uma fronteira extrema do discurso e o proscênio dos


desajustados, mais do que testemunho da sociedade, ela deve trazer em si a revelação
dos seus focos mais candentes de tensão e mágoa dos aflitos. Deve traduzir no seu
âmago mais um anseio de mudança do que os mecanismos da permanência. Sendo um
produto do desejo, seu compromisso é maior com a fantasia do que com a realidade.
Preocupa-se com aquilo que poderia ou deveria ser a ordem das coisas, mais do que
com o seu estado real.1

Para análise da canção, trilhamos processo parecido, recorremos à trajetória de Luiz


Gonzaga, ao entendermos que sua vida está refletida em sua obra, como o processo migratório
e a seca. Nos atemos também aos elementos de performance, instrumentos e interpretação

1
SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira República.
2°ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p. 29
15
para a análise de Paraíba. José Barros D’Assunção alerta para não nos limitarmos apenas às
letras das músicas, mas pensarmos toda as dimensões acionadas na realização musical2.
Napolitano e Barros D’ Assunção são os principais autores que nos auxiliam na
análise da música. Aqui, a imprensa também é fonte crucial para investigarmos a recepção da
música pelos públicos ouvintes e pela crítica musical e a circulação no país.
Sem dúvida, investigar a radionovela do Jerônimo, foi um grande desafio, pelos
pouquíssimos estudos sobre o herói e pela falta das gravações ou scripts. Por conta disso,
tivemos que nos limitar somente às gravações de alguns episódios disponíveis no Youtube,
impactando a nossa investigação pelo fato de não podermos analisar com mais profundidade
as figuras de Maria Homem e Aninha, as duas personagens femininas de destaque da
narrativa.
Então nos apoiamos nas histórias em Quadrinhos de Jerônimo para investigar como
tais personagens foram elaborados por Moysés Weltman, criador da radionovela, e quais
aspectos e arquétipos são acionados na composição de cada uma delas. A imprensa nesta
análise foi de extrema importância, dado ao contexto pandêmico e a impossibilidade de
acessar o acervo do Ibope, tivemos que revisitar as notícias para observar os horários de
transmissão, as localidades, a recepção e circulação pelo público ouvinte.
Percorremos a imprensa pela plataforma da Biblioteca Nacional para todo o período
estudado, fazendo busca por palavras-chave, do início do século XX até a década de 1960.
Neste trabalho a imprensa é acionada enquanto fonte e não objeto de estudo, a partir dela
podemos investigar os diversos sentidos que a expressão mulher-macho adquire ao longo do
período analisado, sua circulação, que ora se aproxima dos sentidos das produções culturais,
ora se distancia.
Exploramos quatro dicionários que trazem em seus verbetes a expressão
mulher-macho ou bicho-macho, são eles o Dicionário da língua portuguesa composto pelo
padre D. Rafael Bluteau, reformado, e acrescentado3 de Antônio de Moraes Silva publicado
em 1789. Segundo o site da Biblioteca é a primeira sistematização moderna do léxico da

2
D'ASSUNÇÃO, José Barros. História e Música. Rio de Janeiro: Cela, 2017, s/p
3
BLUTEAU, Rafael. SILVA, Antônio de Morais. Dicionário da língua portuguesa. Lisboa: Officina de Simão
Thaddeo Ferreira, 1789. Disponível em: https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/5413
16
língua4, este dicionário foi escrito por Rafael Bluteau em 1712 e reformulado por Antônio de
Morais.
O segundo é o Dicionário da Língua Portuguesa5, publicado em 1832 por Luiz Maria
da Silva Pinto, consta no site da Biblioteca Mindlin que este dicionário é referente ao
português falado no Brasil em contraposição à língua falada pelos indígenas, seus verbetes
trazem as variantes do português falado em Portugal. Já nos anos de 1934 temos A Língua do
Nordeste Brasileiro - Pernambuco e Alagoas6 de Mário Marroquim, nestes dicionários
encontramos a presença da expressão mulher-macho e cabra-macho, ambos trazem o sentido
de admiração pela valentia. Por último, temos o Dicionário da Terra e da Gente Brasileira7,
publicado em 1939 por Bernardino José de Souza, neste último dicionário não encontramos a
expressão mulher-macho, apenas cabra-macho, considerando estar ambas expressões
articuladas atualmente e com uma conotação regionalista mais evidente, optamos por
inseri-la na pesquisa, outro fator é que seu significado no verbete aparece mais detalhado e
com explicações racializadas de seu sentido, se aproximando da utilização feita por Gilberto
Freyre.

4
BLUTEAU, Rafael. SILVA, Antônio de Morais. Dicionário da língua portuguesa. Lisboa: Officina de Simão
Thaddeo Ferreira, 1789. Disponível em: https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/5413
5
PINTO, Luiz Maria da Silva. Dicionário da Língua Brasileira. Ouro Preto: Typografhia de Silva, 1832.
Disponível em: https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/5414.
6
Foi consultado em 2015, no início das pesquisas no site da Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin e
extraído esse trecho para um caderno, no momento de escrita desta monografia ao consultarmos novamente o
site verificamos que o dicionário não se encontra mais, o trecho extraído se localiza na p. 102 da obra.

7
SOUZA, Bernardino José de. Dicionário da Terra e da Gente Brasileira. 4ºed. São Paulo: Companhia
Editora Nacional, 1939. Disponível em:
http://brasilianadigital.com.br/obras/dicionario-da-terra-e-da-gente-do-brasil
17
1. A INVENÇÃO DO NORDESTE, O SERTÃO E O REGIONALISMO: UM
DIÁLOGO COM A OBRA DE DURVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JR.

O historiador Durval Muniz de Albuquerque Jr. sob orientação, principalmente, de


conceitos foucaultianos, trouxe em sua obra A Invenção do Nordeste e outras artes, assim
como em outros trabalhos, a ideia de que a região não é algo natural, mas uma elaboração
imaginária e discursiva, e segundo ele, em alguns momentos conservadora. Seu pensamento,
diferente das produções até então realizadas sobre o Nordeste, se desloca para problematizar a
região e suas fronteiras, historicizando-a enquanto espaço construído à partir das relações de
poder e não como algo natural que sempre esteve ali.
Certamente, não foi o primeiro a desnaturalizar ou historicizar o conceito de região, ou
mesmo a refletir sobre a criação de fronteiras. Mas propõe um novo olhar para a ideia de
Nordeste. Embora Albuquerque Jr. não mobilize Bourdieu em seu livro, revisito um trecho do
sociólogo que vai de encontro a esta ideia de região e fronteira

Mas não é tudo: <a realidade>, neste caso, é social de parte a parte e as classificações
mais <naturais> apoiam-se em características que nada tem de natural e que são em
grande parte, produto de uma imposição arbitrária, quer dizer, de um estado anterior
da relação de forças no campo das lutas pela delimitação legítima. A fronteira, esse
produto de um ato jurídico de delimitação, produz a diferença cultural do mesmo
modo que é produto desta: basta pensar na ação do sistema escolar em matéria de
língua para ver que a vontade política pode desfazer o que a história tinha feito. 8

O historiador aponta que o termo Nordeste surge na segunda metade do século XX


para nomear a área de atuação do IFOCS9 (Inspetoria Federal de Obras contra a Seca), o
Nordeste outrora conhecido como Norte, aparece somente com a institucionalização do órgão
criado em 1919 no governo de Epitácio Pessoa. E foi no começo do século XX que o termo
ganhou visibilidade na imprensa com as notícias sobre as secas e com os desvios de recursos
para as obras de combate.

8
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989. Disponível em:
https://nepegeo.paginas.ufsc.br/files/2018/06/BOURDIEU-Pierre.-O-poder-simb%C3%B3lico.pdf. Acesso em:
15 jul. 2021, p. 115
9
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. A invenção do Nordeste e outras artes. 5. ed. São Paulo:
Cortez Editora, 2011. p. 81
18
Albuquerque Jr. conta como o conceito de sertão foi “capturado pelo discurso
regionalista”10, primeiramente nortista e depois nordestino associado às questões da seca.
Alerta para o fato de que o próprio termo sertão dizia respeito às terras distantes da costa, e
que até princípios do século XX o sertão não era algo restrito ao que conhecemos hoje como
Nordeste, mas estava presente em vários estados brasileiros, havia os sertões de São Paulo, do
Paraná.
Na primeira metade do século XIX, o conceito de sertão ainda guarda sentidos ligados
à sua origem etimológica pois sertão viria do latim sertãnu ou sertu, significando
“bosque, do bosque”, ou da palavra latina desertãnu, significando “região deserta”. Há
ainda quem a derive de uma palavra de origem angolana, mulcetão, que significava
“terra entre terras”, “local distante do mar”, “lugar interior”.11

No entanto, o processo de captura começaria entre 1877 e 1879, período em que


ocorreu umas das várias secas periódicas no que hoje compreendemos como “semiárido
nordestino e que acontecia desde o início da colonização”12. A diferença é que embora seja
recorrente, neste momento específico confluiu com o contexto econômico e político
desfavorável para as elites das localidades, o que “levou a condição de “grande seca de
setenta”.13 Quanto ao contexto desfavorável para as elites abordado, o autor aponta que

A produção açucareira, prejudicada por sua obsolescência tecnológica, não conseguia


fazer frente à concorrência do açúcar antilhano e àquele produzido a partir da
beterraba, perdendo parcela do mercado internacional e tendo que concorrer com a
crescente produção açucareira das províncias do Sul. A produção algodoeira, que
havia se expandido durante a década anterior em razão da guerra civil
norte-americana, que retirou do mercado a produção do sul daquele país, vê-se às
voltas com o retorno do concorrente e com os efeitos da estiagem. A expansão da
economia algodoeira havia levado a migração para o interior de uma parcela
considerável da população, que se vê obrigada a migrar, em precárias condições, para
o litoral por causa da seca, dando origem à figura do retirante, que se tornará um

10
ALBUQUERQUE JUNIOR, Durval Muniz de. O RAPTO DO SERTÃO: a captura do conceito de sertão pelo
discurso regionalista nordestino. São Paulo: Revista Observatório 25, 2019. Disponível em:
https://www.itaucultural.org.br/revista-observatorio-25-sertoes-imaginarios-memorias-e-politicas. Acesso em: 12
maio 2021.
11
Idem, p. 21
12
Ibidem, p. 22
13
Ibidem, p. 22
19
personagem constante na produção cultural nortista e, posteriormente, na nordestina.
14

Diante da situação em que as elites se encontravam, foi dado agora uma notoriedade
maior à questão da seca, emergindo aqui o discurso da seca e sendo pauta importante dessa
elite, tanto de políticos como de intelectuais. Se valendo desse fenômeno, os políticos vão se
mobilizar em torno de reivindicações de verba para o combate desta e a para a criação de
obras públicas, como é o caso do que se passa na narrativa de Luzia Homem (Domingos
Olímpio, 1903) e a obra pública da cadeia em que trabalha.
Para o autor, é a partir dessa articulação e desse fenômeno que se anunciam as
primeiras “demonstrações de um discurso regionalista que começava a surgir nas chamadas
províncias do Norte”15. Terá repercussão nacional, uma vez que a imprensa já havia penetrado
no país, e será este veículo que divulgará as imagens e as notícias da seca do Norte. José do
Patrocínio teve papel fundamental nas denúncias das situações em que se encontravam as
pessoas em período de estiagem, e também contribuiu para “a associação entre o conceito de
sertão e o espaço de ocorrências das secas”16.
Além da imprensa, a literatura foi extremamente importante para inserir a temática do
sertão e das secas nos debates do país, sendo Os Sertões (Euclides da Cunha, 1902) a obra
primordial. Além de inserir o tema e caracterizar o que seria o sertão e os sertanejos, Cunha
vai pensar também a identidade nacional em sua obra, servindo como uma matriz de
referências para as produções posteriores, tanto literárias quanto de outras áreas.

O livro Os Sertões (1902) torna-se uma fonte permanente de imagens e textos, sempre
consultado quando se quiser dizer e fazer ver o sertão. Os livros de estreia de grandes
nomes do que será a literatura nordestina e o chamado romance de 30 tiveram no livro
vingador de Euclides da Cunha a sua inspiração. É possível encontrar as imagens
euclidianas tanto em A Bagaceira (1928), de José Américo de Almeida, quanto em O
Quinze (1930), de Rachel de Queiroz, obras que serão muito importantes nesse
processo de captura do sertão pelo regionalismo nordestino.17

14
Ibidem, p. 23
15
Ibidem, p. 23
16
Ibidem, p. 24
17
Ibidem, p. 25
20
Por isso, Albuquerque Jr. entende que houve um rapto do conceito de sertão pelo
discurso regionalista nordestino, rapto este que aconteceu antes mesmo da instituição do
Nordeste lá na segunda metade do século XX nas documentações do IFOCS. O sertão, ainda
no final do século XIX, foi objeto de inúmeras obras literárias, e a partir de Euclides da Cunha
o conceito ganhou novas imagens e um caráter científico, o escritor descortinou sobre os tipos
do sertão, o comportamento de cada um deles, possibilitado pelas questões de raça, clima e
espaço.
Assim como acontecerá com o sertão figurado pelas narrativas nordestinas, marcado
pela violência do cangaço, pelo poder discricionário, pela defesa de um estrito código
de honra e virilidade pelos coronéis, pelo misticismo dos beatos, essa produção em
torno do sertão, que vem de autores de outros espaços do país, traz sempre
consorciadas a fé e a violência, o poder sem peias e a coragem pessoal.18

A obra de Domingos Olímpio também reforça o contraste entre litoral e sertão,


civilização e barbárie, quando a única possibilidade de existência para Luzia e sua mãe seria
chegarem ao litoral, ainda que os recursos para a seca e as obras estivessem sendo realizadas,
as pessoas pobres nunca saem da situação de miséria e fome, mesmo trabalhando em troca de
ração ou algum trocado.
Tais obras influenciaram as imagens da seca, caatinga, banditismo, violência,
fanatismo, que irá definir o Nordeste nos anos de 1920 em diante. As produções literárias dos
anos de 1930 agenciaram essas mesmas imagens e os mesmos contrastes e oposições entre
sertão e litoral, sertão enquanto espaço da barbárie e litoral como espaço da civilização.
O sertão fica preso a uma ideia de tradição, costumes e resistente às mudanças do
tempo, sertão como uma rocha. Com a atuação do IFOCS o sertão passa a ser algo somente do
Nordeste, “relegando as outras partes do país a terem apenas interior e não mais sertões”19.
Para Albuquerque Jr.
Os sertões do Norte e, em seguida, os sertões nordestinos representariam um arquivo,
uma reserva de expressões culturais consideradas autenticamente nacionais,
manifestações culturais não maculadas e deturpadas pelas influências externas, do
estrangeiro ou da cidade. Notadamente as camadas populares e suas matérias e formas

18
Ibidem, p. 25
19
Ibidem, p. 28
21
de expressão culturais, definidas por esses autores como sendo folclóricas,
significariam um repositório de inspiração para a produção de uma cultura, de uma
literatura e de uma arte nacionais. 20

Será com o Movimento Regionalista de Recife, encabeçado por Gilberto Freyre em


1926, que o termo Nordeste passou a ter “sustância”, ao ser alimentado por imagens e
discursos que atravessam a virilidade, a seca, a valentia e outros, surgindo um conjunto de
significados que serão sempre atualizados e mobilizados para se falar da região.
Para falar desse Movimento, é preciso retomar o sentido de modernismo e cabe
destacar o contexto histórico em que estava inserido. Mônica Pimenta Velloso indica que se
“consolidou no Brasil, uma tradição intelectual que associou à instauração do moderno à
década de 1920, situando - o na cidade de São Paulo”21. Para a autora, os sinais da
modernidade já haviam se anunciado antes de 1920, com o movimento literário nomeado
como “geração de 1870”, embora tenha se cristalizado na produção historiográfica que o
modernismo tem data e lugar já definidos.
A autora aponta para a geração de 1870 porque enxerga aí uma alteração nas formas
de compreender e falar das questões sociais do país. A crítica literária ficou incumbida da
tarefa de discutir e definir a nacionalidade, até então o que marcava essa discussão era sob
olhar do atraso cultural por conta da inferioridade racial.

Em 1902, Euclides da Cunha publica Os Sertões, elegendo o sertanejo como símbolo


da nacionalidade. A raça e a terra são resgatadas pelo autor como fator da
originalidade cultural brasileira. É nesse sentido que a geração de 1870, vinculada à
Escola de Recife, vai defender uma literatura nativa inspirada no sertanismo, no
indianismo, enfim nas “coisas da nossa terra”22.

Velloso compreende que há uma continuidade entre 1870 e 1922, que na primeira
estão “esboçadas diferentes vertentes de brasilidade que, mais tarde, viriam a ser retomadas e

20
Ibidem, p. 28
21
VELLOSO, Monica Pimenta. O modernismo e a questão nacional. In: Jorge Ferreira e Lucilia de Almeida
Neves Delgado (org.). O tempo do liberalismo excludente: da Proclamação da República à Revolução de 1930.
(O Brasil Repúblicano, v. 1) Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003 p. 353
22
Idem, p. 356-357
22
reelaboradas pelos modernistas paulistas”23. A autora localiza que os estudos etnográficos
sertão revisitados pelos modernistas e que os geográficos, tendo como referência Euclides da
Cunha, serão agenciados pela vertente modernista conservadora dos verde-amarelos,
explicando por exemplo as obras de Gustavo Barroso sobre as “coisas do Norte”.

Para o grupo verde-amarelo, a compreensão da brasilidade modernista devia se dar


através de uma categoria: a geografia. Parte-se do pressuposto de que é a geografia
que faz a história, alterando o seu curso de maneira decisiva. Inspirando-se na
tradicional teoria dos dois Brasis - o legal (litoral) e o real (interior) -, os
verde-amarelos identificam o interior com a brasilidade e a autenticidade em
contraposição ao litoral, associado à ideia de cosmopolitismo, fachada e artifício.24

Identificando essa centralidade do movimento modernista construída pelos paulistas,


que de certa forma invisibiliza outras expressões, temos na contramão do movimento - com
exceção da vertente verde-amarela, já que ambos se aproximam na condenação da
modernidade e a defesa da tradição - o Movimento Regionalista do Recife, que surge em 1926
tendo a frente Gilberto Freyre. Segundo Albuquerque Jr., Freyre se vale do espaço que possui
do Diário de Pernambuco para publicar uma série de artigos para dizer o que seria o
Nordeste.

Com o passar do tempo, este jornal torna-se o principal veículo de disseminação das
reivindicações dos Estados do Norte, bem como vai se constituir num divulgador das
formulações em defesa de um novo recorte regional: O Nordeste25

É ainda nesse momento, especificamente em 1925 que Freyre publicou o livro


Nordeste, em cujos capítulos tece memórias de uma paisagem, costumes e os tipos sociais da
aristocracia açucareira, em tom saudosista dos tempos de prestígio da sociedade patriarcal,
Freyre define mais alguns elementos de quem é o homem e o que é a região.

23
Ibidem, p. 357
24
Ibidem, p. 376
25
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. A invenção do Nordeste e outras artes. 5. ed. São Paulo:
Cortez Editora, 2011. p. 85
23
Em 1924 foi fundado o Centro Regionalista do Nordeste, resultando na elaboração do
Manifesto Regionalista26, essa instituição deveria reunir os diversos aspectos da cultura
nordestina, mapear costumes, promovendo eventos, viagens, conferências etc. Segundo o
historiador, a primeira coisa que foi feita pelo Congresso foi dar bases históricas à região e

Embora as secas, a mestiçagem, continuem a fazer parte de qualquer história da


região, não são mais os fatores naturais que definem, que dão identidade, que estão na
origem da região. São os fatos históricos e, principalmente, os de ordem cultural que
marcariam sua origem e seu desenvolvimento como “consciência”. 27

A interpretação de Albuquerque Jr sobre o surgimento desse Movimento Regionalista


é que ele foi uma resposta ao movimento modernista paulista, e foi pensado para se contrapor
às mudanças que penetravam nas cidades, tanto nos comportamentos quanto no impacto
político e econômico que o advento da modernidade, anunciada com uma série de
transformações no final do século XIX e início do século XX, impactava a sociedade
açucareira. Assim, indicam as características da região como tradição e costumes a serem
preservadas e que são as bases para se pensar a nacionalidade, diferente dos modernistas
paulistas. Quanto a isso, Albuquerque Jr. enfatiza que

Não é à toa que as pretensas tradições nordestinas são sempre buscadas em


fragmentos de um passado rural e pré-capitalista; são buscadas em padrões de
sociabilidade e sensibilidade patriarcais, quando não escravistas. Uma verdadeira
idealização do popular, da experiência folclórica, da produção artesanal, tidas sempre
como mais próximas da verdade da terra.28

Dessa forma, o regionalismo que emerge com Freyre, não é aquela série de discursos
políticos da elite e de literatos sobre a seca, mas há uma organização de saberes sobre a

26
FREYRE, Gilberto. O manifesto regionalista. Disponível em: https://www.ufrgs.br/cdrom/freyre/freyre.pdf.
Acesso em: 15 jul. 2021.
27
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. A invenção do Nordeste e outras artes. 5. ed. São Paulo:
Cortez Editora, 2011. p. 89-90
28
Idem, p. 91
24
região, uma forma de dizer e ver o Nordeste, que será inserido num campo sociológico e pode
ser pensado como um problema social.29
Além do Movimento Regionalista, Albuquerque Jr apresenta em seu livro, diversas
obras literárias, músicas, filmes e pinturas que agenciaram as imagens elaboradas desde o
regionalismo nortista ao regionalismo nordestino de bases freyreanas, na maioria das vezes
mobilizando as mesmas imagens e quando atualizadas, ainda assim, reforçam certos
estereótipos.
A proposta de Albuquerque Jr não se limita apenas a compreender por que o
nordestino e o Nordeste são objetos de discriminação e estereótipos na produção cultural do
país, mas entender as relações de poder e saber que constituem um lugar fixo, homogêneo e
com um universo de imagens e discursos, que perpassa e é subjetivado pelos habitantes. A
busca não é pelo verdadeiro do nordestino e do Nordeste, mas as condições históricas que
possibilitaram o surgimento desses discursos e dessas supostas verdades, o autor aponta que

Não se combate a discriminação simplesmente tentando inverter de direção o discurso


discriminatório. Não é procurando mostrar quem mente e quem diz a verdade, pois se
passa a formular um discurso que parta da premissa de que o discriminado tem uma
verdade a ser revelada. Assumir a “nordestinidad”, como quer Rachel de Queiroz, e
pedir aos sulistas que revejam seus discursos sobre nordestino, porque ele é errado,
por ter nascido de um desconhecimento do nordestino verdadeiro, vai apenas ler o
discurso da discriminação com o sinal trocado, mas a ele permanecer preso. Tentar
superar este discurso, estes estereótipos imagéticos e discursivos acerca do Nordeste,
passa pela procura das relações de poder e de saber que produziram estas imagens e
enunciados clichês, que inventaram este Nordeste e estes nordestinos. Pois tanto o
discriminado como o discriminador são produtos de efeitos de verdade, emersos de
uma luta e mostram os rastros delas. 30

Assim, o autor apresenta em seu livro as condições históricas e sociais que permitiram
a emergência do Nordeste e de seus habitantes, a partir da literatura, música, filmes e pinturas,
como também da produção intelectual.

29
Ibidem, p. 101
30
Ibidem, p. 31
25
Na contramão deste pensamento, recentemente o historiador Paulo Iumatti, que
embora não desconsidere que muitas imagens cristalizadas hoje sobre o Nordeste e a “cultura
nordestina” podem ser objetos de discriminação e estereótipos, ponderou que há também o
aspecto das “vivências, memórias e apropriações criativas”31. Preocupado com o campo da
história da cultura popular brasileira e da formulação de políticas de preservação de acervos
históricos no IEB/USP, onde atua, o autor compreende como uma dupla face que a região e a
cultura apresentam, e destaca ainda a polarização que se ergueu após os trabalhos de
Albuquerque Jr.
De um lado, um Nordeste pensado enquanto invenção e de outro colocado sob a
perspectiva patrimonial, aquilo que deve ser conservado das alterações do tempo. Este último
abarca toda a produção cultural acerca das “coisas e da gente do Nordeste”, onde se inserem
os objetos de análise da pesquisa que propuseram.
Iumatti propõe que o debate de ambas as correntes seja inserido “sob o pano de fundo
do esgotamento de determinada interpretação de outro paradigma importante relativo à
“cultura brasileira”: o oswaldiano-antropofágico.”32 Para o autor, essa perspectiva é
importante uma vez que se observa que esse paradigma tem sido menos mobilizado pelos
agentes culturais, e explica que

Isso se dá devido às mudanças estruturais na inserção do Brasil no contexto global a


partir dos anos 1990, as quais fizeram com que tal paradigma fosse parcialmente
esmagado pela impossibilidade ou, antes, pela existência de possibilidades apenas
restritas, em algumas áreas, de domínio, em patamar elevado, pela produção
“autóctone”, da criação cultural no âmbito das práticas, formas de organização e
dispositivos tecnológicos do capitalismo contemporâneo. 33

Outro ponto de seu argumento, em relação a crítica da invenção do Nordeste é que esta
possui “caráter radical e selvagem” e que o reconhecimento nos países centrais da
hibridização de culturas, ou como ele coloca a antropofagização da própria antropofagia,

31
IUMATTI, Paulo Teixeira. O Nordeste no Sudeste (e vice-versa). In: Cultura Nordestina no contexto
urbano do Sudeste. 11. ed. São Paulo: Cadernos do Ieb, 2019. Disponível em:
http://www.livrosabertos.sibi.usp.br/portaldelivrosUSP/catalog/book/399. Acesso em: 20 jul. 2021, p. 13
32
Idem, p. 14
33
Idem, p. 14
26
possibilita os usos das práticas antropofágicas, em um duplo movimento nas inovações e
implementação do multiculturalismo “e das teorias da mestiçagem e do hibridismo, paralelas
a uma maior articulação (conquanto controlada) desses espaços aos fluxos informacionais e
migratórios em escala global”.34 A questão para o autor situa-se nesse movimento de
“negação abstrata” da identidade e da “cultura nordestina” e a falta de propostas para ser
substituída por essa dissolução do Nordeste.

Não surpreende, assim, que, pensando na problemática do “Nordeste”, setores


intelectualizados destas últimas, inferiorizados dentro do pacto nacional, revoltem-se,
com razão, contra seu lugar simbólico e sintam o descompasso geral talvez com ainda
mais urgência que a dos centros supostamente mais cosmopolitas desses mesmos
países periféricos, embarcando na dissecação radical das mitologias identitárias – que
para muitos são de fato prisões – mas nos moldes de uma negação abstrata, ou seja,
sem que nada seja proposto ou colocado no lugar, além de vagos apelos ao hibridismo
etc.35

Iumatti cita inúmeros países que convivem com as tradições sem abolir
completamente ainda que se faça críticas e esteja imersa em processos de tensões, o autor
alerta para o perigo de dissolver as nossas tradições do nosso país e de grupos fragilizados, e
complementa
que sua afirmação em uma esfera global depende, é certo, do uso inteligente, criativo
e político de determinados repertórios, da chamada cultura com aspas – ou seja,
daquilo de aproveitável que ele pode ter (posto que grande parte de sua estrutura
social e de valores deve ser sim, e sem qualquer sombra de dúvida, subvertida). E que,
ao denunciar armadilhas românticas que rondam os movimentos de defesa do regional
– como a da “folclorização” –, acabam se esquecendo, na prática, de um de seus
principais e pertinentes bordões: o de que jamais existiram estratégias ou formas de
atuação “puras”, em qualquer plano, em qualquer espaço-tempo. 36

Sintetizando as críticas de Iumatti, a partir de sua leitura das obras de Albuquerque Jr.,
para o autor é importante manter o diálogo e as contribuições entre ambos os pólos, mobilizar

34
Idem, p.16.
35
Ibidem, p.17.
36
Ibidem, p.18.
27
um uso estratégico de termos generalizantes e homogeneizantes como “cultura nordestina”,
inserido em um universo de tensões, mas também produções, saberes e memórias e não deve
ser “desinventado”. Ainda que as imagens e discursos às vezes sejam mobilizados a produzir
estereótipos, de maneira geral podem ser também mobilizados pelos próprios grupos
detentores dessa cultura. Para ele, os intelectuais de regiões subalternizadas ou periféricas
devem estar atentos para não fragilizar mais ainda a região de origem,

já que os fluxos de mercadorias e produtos culturais que nos chegam


diariamente e, muitas vezes, de forma “gratuita”, têm, sim, locais de
produção e irradiação que, por vários mecanismos, de forma direta ou
indireta, também cooptam vozes de todo mundo, produzindo novas/velhas
hierarquias e podendo renovar um estoque muito mais nocivo e perverso de
estereótipos.37

O autor reitera que é importante considerar as apropriações e transformações no


agenciamento da cultura e da identidade, principalmente pela comunidade migrante, o que
possibilitou um maior diálogo entre as culturas.

Os deslocamentos e situações disruptivos das migrações e imigrações, forçadas ou


não, mas muitas vezes dolorosas, foram fundamentais nesse sentido, e a grande
mobilidade populacional certamente contribuiu em muito para que, ao longo da
história, o país tenha colocado culturas tão contrastantes em contato, como as das
populações indígenas e do “velho mundo”, as africanas e as de origem europeia, as
dos diferentes sertões do país e as das megalópoles em formação.38

Outra crítica que destacamos para esse trabalho é a de Nivalter Aires dos Santos, que
propõe uma crítica radical e dialética à tese da invenção do Nordeste, sob orientação
“teórico-metodologicamente numa leitura materialista e dialética, levando em consideração o
movimento e a contradição dos processos econômicos político e sociais.”39

37
Ibidem, p. 19
38
Idem, p. 20
39
SANTOS, Nivalter Aires dos. Elementos para crítica à tese de invenção do Nordeste. Reves - Revista
Relações Sociais, v. 2, n. 3, 2019, p. 448-449 2019. Disponível em:
https://periodicos.ufv.br/reves/article/view/8604. Acesso em: 20 jul. 2021.
28
A primeira crítica tecida é a de que Albuquerque Jr., ainda que cite por exemplo
“alianças de forças” e as disputas de classe, sobretudo dos anos de 1930, momento também no
qual o Nordeste se constitui e se insere no discurso de integração nacional, não traz um debate
sobre o “desenvolvimento desigual do capitalismo nas regiões”40.
As outras críticas que seguem têm como ponto um trecho no qual Albuquerque Jr.
enfatiza sobre os discursos de vitimização em que nos colocamos, tanto em relação aos golpes
de Estado, subdesenvolvimento quanto ao colonialismo interno, sempre no movimento de
encontrar no outro o problema.
Para Santos, esse trecho apresenta várias questões a serem pontuadas, enfatiza como
as ditaduras e os golpes se desenrolaram contra a classe trabalhadora e subalterna. O termo
vitimização, mobilizado por Albuquerque Jr, para Santos sugere uma “descaracterização de
trabalhos com elevado grau de seriedade, sem ao menos adentrar com profundidade nos
devidos debates”.41 Cita a questão do subdesenvolvimento mas não discute Celso Furtado,
referência no tema, assim como Albuquerque Jr também aponta a questão da dependência
mas não dialoga com Florestan Fernandes e Fernando Henrique Cardoso, e também não se
aprofunda em nenhuma discussão sobre colonialismo e desigualdades regionais.
O autor concorda com Albuquerque Jr. quando este aponta que o movimento
regionalista tem um saudosismo da sociedade açucareira, porém para Santos isso não é tão
relevante, já que a construção imaginária do Nordeste está muito mais associada à seca que à
aristocracia açucareira. E quanto ao fenômeno da seca, embora entenda que não é ela em si a
responsável pelos problemas do Nordestes, Santos acredita ser um exagero desconsiderá-la

Não endossamos a ideia de que a seca é a responsável pelos problemas do Nordeste


sertanejo, mas negar a importância do fenômeno como detonador, no sentido de ser a
falta de chuvas a escancarar a agudeza do problema social, político e econômico dessa
sub-região do Nordeste, relegando sua importância ao campo literário (ou do
discurso) é demasiado. Os períodos de estiagem de fato desorganizaram a produção
agropastoril da forma que era montada, e quem mais sofria com o processo eram
justamente os despossuídos, aqueles que não dispunham de nada além da sua
capacidade de trabalhar. 42

40
Idem, p. 451
41
Ibidem, p. 452
42
Idem, p. 453-454
29
Santos considera superficial a leitura de Albuquerque Jr sobre o modernismo, já que a
segunda geração se propõe a retratar a realidade do país

Esse é o espírito dos romances da geração de 30, eles penetraram profundamente nas
contradições de classe da realidade brasileira, especialmente do Nordeste. Isso não
significa que eles tenham sucumbido a uma abordagem regionalista dos problemas
tipicamente nordestinos, mas que através do esforço de recuperação da cultura e
realidade nordestina buscavam mostrar o que havia de mais sincero sobre as
condições e contradições no Brasil. Ou seria de se esperar de um Fabiano
(personagem de Vidas Secas) ou um Paulo Honório (personagem de S. Bernardo) a
possibilidade de negar-se a si mesmo, negar sua condição de classe, num pretenso
“modo de agir regional”. 43

Para o autor, mobilizando Josué de Castro e uma fala onde este diz “nós não
inventamos nada” e nós, configura em Castro, Celso Furtado e Arraes, que os problemas da
fome e desigualdades já estavam aí.
“Não inventamos nada” disse ele, e concordamos integralmente, afinal a estrutura
social da região marcada pelo problema agrário, pela dependência e pela fome é a
base do que entendemos como questão nordestina. Esses elementos não são frutos da
imaginação de Deus ou dos homens, não surgiram do discurso de representantes das
classes abastadas, que mesmo que poderosas, não criam verbalmente, em busca de
verbas, a seca, a fome e o abandono sem qualquer base material para tal. 44

Em síntese para Santos, Albuquerque produziu um discurso onde a ideia de invenção


do Nordeste não tem materialidade e que o discurso do movimento regionalista de Freyre, não
seria capaz de por si só constituir uma região. Já a geração de 1930 possuía uma dupla face,
no sentido de apresentar o verdadeiro Brasil e suas mazelas.
Quanto a estas críticas, embora concorde com Santos que Albuquerque em algumas
passagens não adentra certos debates que aborda, é bastante incômodo pensar que as
produções do movimento regionalista Nordestino, principalmente da obra Nordeste de Freyre
se restrinja somente à aristocracia açucareira, já que ele traz tipos como o próprio cabra e

43
Ibidem, p. 454
44
Idem, p. 456
30
quem seria o cabra do Nordeste que será mobilizado enquanto referência identitária para se
pensar em uma espécie de expoente dessa identidade, onde se cristaliza no imaginário que
esse tipo pertence ao sertão.
Albuquerque Jr não indica que o movimento regionalista é o único responsável pela
construção de discursos, mas que também atualiza e incorpora imagens anteriores. Quanto às
bases materiais dos discursos basta ligar a TV, ouvir certas músicas, inclusive músicas atuais,
como Mano Walter45 ou Raí Saia Rodada46, cantores de forró que trazem em suas letras
recentes, uma imagem do que é ser do sertão.
Ora, meus primos do Geribá (Zona da Mata), andam a cavalo e de moto, ouvem
Racionais MC, como também, escutam Tarcísio do Acordeon, mas a imagem veiculada é uma
só, é aquela que as pessoas dos diferentes estados da região estão presas em uma pintura, que
não sofre alteração alguma do tempo. Essa reflexão está em diálogo com que Homi Bhabha
aponta sobre esse movimento de fixar no outro uma realidade

O poder colonial produz o colonizado com uma realidade fixa que é imediatamente
em “outro” e ainda inteiramente conhecível e visível. Isto assemelha-se a um tipo de
narrativa em que produtividade e circulação de matérias e signos encontram-se
ressaltadas numa totalidade reformada e reconhecível. Emprega um sistema de
representação, um regime de verdade, que estruturalmente, se parece ao realismo. (...)
47

São imagens que foram construídas em duplo movimento dentro do Nordeste, por sua
elite, por condições já discutidas anteriormente e retroalimentada pelo Sudeste, o que lhe
garante uma posição de hegemonia econômica, política e simbólica. Perpassa os habitantes
que subjetivam essas identidades, pode ser no sentido de positivar e ser um símbolo de
resistência como sugere Iumatti, em um uso estratégico e político, como às vezes é, pois vejo
isso de minha família, uma forma de existir.

45
Mano Walter - Matuto de verdade. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=l4Ld9qrFBiU Acesso
em: 20 jul. 2021.
46
Raí Saia Rodada - Filha do Mato. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=uAY0Da2vlDE Acesso
em: 20 jul. 2021.
47
BHABHA, Homi K. A questão do "outro": diferença, discriminação e o discurso do colonialismo. Rio de
Janeiro: Rocco, 1992. p.186
31
A identidade nacional ou regional é uma construção mental, são conceitos sintéticos e
abstratos que procuram dar conta de uma generalização intelectual, de uma enorme
variedade de experiências efetivas. Falar e ver a nação ou a região não é, a rigor,
espelhar estas realidades, mas criá-las. São espaços que se institucionalizam, que
ganham foro de verdade. Essas cristalizações de pretensas realidades objetivas nos
fazem falta, porque aprendemos a viver por imagens. (...) Eles nos chegam e são
subjetivados por meio da educação, dos contatos sociais, dos hábitos, ou seja, da
cultura, que nos faz pensar o real como totalizações abstratas.48

Pode-se até pensar que o problema está quando o estrangeiro / Outro se vale das
identidades e manifestações culturais colocando tudo no mesmo “balaio”, invisibilizando e
dissipando singularidades, e esse Outro pode ser inclusive a indústria musical do Centro-Sul
que vê nas músicas de Gonzaga a Mano Walter uma possibilidade de lucrar em cima dessas
temáticas, já que contempla os migrantes. Poderíamos para essa reflexão evocar Bakhtin,

A palavra nativa é percebida como um irmão, como uma roupa familiar, ou melhor,
como a atmosfera na qual habitualmente se vive e se respira. Ela não apresenta
nenhum mistério. Só pode apresentar algum, na boca de um estrangeiro, duplamente
estrangeiro por sua posição hierárquica e se trata, por exemplo, de um chefe ou de um
sacerdote; mas, nesse, a palavra muda de natureza, transforma-se exteriormente ou
desprende-se de seu uso cotidiano (torna-se tabu na vida ordinária ou então
arcaíza-se) - isto se a palavra em questão já não for, desde a origem, uma palavra
estrangeira na boca de algum chefe-conquistador. 49

Albuquerque Jr busca desnaturalizar o sujeito nordestino e o Nordeste, a partir do


mapeamento desses discursos que possibilitaram em um certo momento uma determinada
forma de falar sobre isto como verdades, e que vai se consolidar com a institucionalização do
Nordeste enquanto região e enquanto saber sociológico com Freyre. Por isso a ideia de
dissolver o Nordeste e o sujeito nordestino, movimento de escavar as camadas discursivas que

48
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. A invenção do Nordeste e outras artes. 5. ed. São Paulo:
Cortez Editora, 2011. p. 38
49
BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e Filosofia da Linguagem. Disponível em:
http://lutasocialista.com.br/livros/V%C1RIOS/BAKHTIN,%20M.%20Marxismo%20e%20Filosofia%20da%20L
inguagem.pdf Acesso em: 20 jul. 2021, p. 74
32
possibilitam a emergência de características que se cristalizaram como verdades.O autor
propõe negar este lugar construído e reservado historicamente para as pessoas do Nordeste,

A resistência que podemos exercer é dentro desta própria rede de poder, não fora dela,
com seu desabamento por completo. O que podemos provocar são deslocamentos do
poder que nos impõe um determinado lugar, que reserva para nós um certo espaço,
que foi estabelecido historicamente, portanto em movimento. Até que ponto a melhor
forma de provocar um deslocamento nesse dispositivo e nesse saber é nos postarmos
como o outro do poder, assumir a posição de sujeito vencido e discriminado? Não
seria melhor se negar a ocupar este lugar?50

Por fim, para terminarmos esse primeiro capítulo de enquadramento da nossa pesquisa
e de debate da perspectiva de Durval Albuquerque Jr., é importante mencionar também os
trabalhos que já vêm sendo realizados sobre a expressão mulher macho, mobilizada para
designar, frequentemente, mulheres do Nordeste. Observamos que em grande parte as
produções estão sendo desenvolvidas a partir das obras do historiador Durval Muniz de
Albuquerque Jr. que vai pensar a formação da masculinidade nordestina articulada à
elaboração discursiva da região. Embora o historiador se debruce em discutir a masculinidade
e a identidade do homem nordestino, ele não deixa de apresentar o que seria a mulher da
região seguindo a lógica dos discursos regionalistas, impulsionado em grande medida por
Gilberto Freyre.
As produções não se limitam apenas à área de História51, onde temos por exemplo
Alômia Abrantes que discute as produções discursivas do século XX que contribuíram para o
surgimento da imagem de mulher macho para o Estado e mulheres da Paraíba52. Há trabalhos
nas Ciências Sociais como Nem “cabra macho”, nem “paraíba masculina”: Discutindo
travestilidade e regionalidade em perspectiva interseccional de Juciana de Oliveira Sampaio
que discute como os marcadores sociais da diferença se interseccionam ao pensar os discursos

50
Idem, p. 32
51
PAIVA, Carla Conceição da Silva. Mulheres-macho ou sensuais? Apontamentos sobre a representação das
mulheres nordestinas no cinema brasileiro da década de 1980. São Bernardo do Campo: Metodista, 2013. (V.
34, n.2). RAMOS, Ana Raquel Farias Lima. Mulher macho sim senhor! a violência materializada nos
discursos da cultura nordestina. Anais II CONEDU... Campina Grande: Realize Editora, 2015.
52
SILVA, Alômia Abrantes da. Paraíba, mulher-macho : tessituras de gênero,(desa)fios da história. Recife:
2008. Disponível em: https://attena.ufpe.br/bitstream/123456789/7230/1/arquivo3295_1.pdf. Acesso em: 20 jul.
2021.
33
que naturalizam aspectos da virilidade e nega a feminilidade na região, com foco na
experiência de travestis do Nordeste. 53
São produções que destacam os diferentes discursos que possibilitaram a emergência
da expressão e sua constante atualização, geralmente na lógica de fixar uma identidade única
para as mulheres, tornando um bloco homogêneo, invisibilizando vivências, trajetórias,
sotaques etc.
Sem contar com a frequente visão, quase que biologizante, de tratar as mulheres
nordestinas como fortes e não que discursivamente a região e os habitantes foram elaborados
dentro desses parâmetros da virilidade, violência e resistência, embora as pessoas possam ter
esses atributos para sobreviver diante das mazelas que o próprio Estado criou, não é algo
natural e que nascem assim, fixando todas as pessoas da região, homens e mulheres em um
único lugar, embaçando as possibilidades de observar rejeição, negociação ou subversão do
uso da expressão.
O ponto comum entre todos os trabalhos é buscar, talvez, a desnaturalização dessa
identidade, chamando atenção para os elementos de virilidade e violência que marcam a
região e os corpos dos habitantes. Ainda que haja o movimento de elogiar os nordestinos se
valendo dessas referências identitárias, é preciso estar atento para a formação histórica da
expressão.
Se atentar para a formação da expressão e dos sentidos que a configura, já que entre as
palavras e as coisas54, há a linguagem na qual os homens são ligados às práticas sociais e é
ela quem permite a representação do pensamento dos sujeitos, que são sempre marcadas no
tempo e no espaço. É nas interações sociais que emerge o sujeito, se a mulher macho surge
das interações sociais, das produções culturais, são elas que investigaremos no intuito de
desnaturalizar a ideia de que as mulheres nordestinas são fortes porque especificamente são
do Nordeste, em um sentido quase que biologizante.

53
SAMPAIO, Juciana de Oliveira. NEM “CABRA MACHO”, NEM “PARAÍBA MASCULINA”:
DISCUTINDO TRAVESTILIDADE E REGIONALIDADE EM PESPECTIVA INTERSECCIONAL.
Florianópolis: 1 Seminário Internacional Fazendo Gênero 1, 2012. Disponível em:
http://www.fg2013.wwc2017.eventos.dype.com.br/resources/anais/20/1373338665_ARQUIVO_FazendoGenero
_JucianaSampaio.pdf. Acesso em: 20 jul. 2021

54
FOUCAULT, Michael. As palavras e as coisas - Uma arqueologia das Ciências Humanas. 8ª ed. São Paulo:
Martins Fontes, 1999
34
2. OS SENTIDOS E OS USOS DE MULHER-MACHO, FINAL DO SÉCULO XIX
E INÍCIO DO SÉCULO XX

Pensando nos sentidos que a expressão ao longo do tempo foi adquirindo, quando
começou a circular, assim como os contextos em que foi empregada, recorremos aos
dicionários e à imprensa. Dos dicionários pesquisados temos o Dicionário da língua
portuguesa composto pelo padre D. Rafael Bluteau, reformado, e acrescentado por Antonio
de Moraes Silva de 1789, o verbete de origem portuguesa traz:

Machão: f.m. da mulher grande, robufta, e defpejada, dizemos


vulgarmente que é um machão.
Machoa: f.f. mulher forte, robufta, com animo e corpo varonil: t.chulo.

É interessante observar que desde 1789, os usos de machão, machoa designava


mulheres robustas e com comportamento e corpo semelhante ao de homem: viril / varonil,
enquadrando isso nos contextos históricos analisados e junto aos outros dicionários,
observa-se que de machão, fomos para bicha-macho e mulher-macho. Na imprensa, como
veremos adiante, temos o termo virago, que traz o mesmo sentido.
O Dicionário da Língua Brasileira de Luiz Maria da Silva Pinto de 1832, traz o
verbete machão, com significado semelhante ao anterior

Machoa: (T.baixo) V. Machão


Machão: (T. Baixo) Diz-se da mulher que em robustez, e nos modos
he parecida com hum homem,e tem o desembaraço prorio delle55

Em ambos os dicionários, não temos especificamente a palavra mulher-macho, porém


machão e machoa era um adjetivo masculino usado para as mulheres, os significados dos
dois verbetes se mantém e constitui um dos sentidos que compõe a expressão mulher macho,
como veremos na imprensa e nos objetos culturais analisados, principalmente, se valendo

55
PINTO, Luiz Maria da Silva. Dicionário da Língua Brasileira. Ouro Preto: Typografhia de Silva, 1832.
Disponível em: https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/5414 Acesso: Agosto de 2021

35
desta ideia de robustez e modos parecidos com o de um homem, especificamente
“desembaraço” próprio de um homem, dando ideia de ações relacionadas com a vida prática.
O dicionarista classificou como “termo baixo”, ou seja, era de uso coloquial e considerado de
mau gosto.
Se buscarmos por MACHO nesses mesmos dicionários, o sentido é o de animal,
especificamente o “Mulo, ou o macho da espécie muar. Peça que encaixa na femea da
dobradiça ou em qualquer tubo; o animal que fecunda a femea”. O verbete era quase igual nos
dois, no primeiro, dicionário mais completo, há também a entrada MACHO, adj., e nessa
entrada aparece como último sentido anotado: “homem robusto, vigoroso”. O homem que
eventualmente fosse chamado de macho, embora evocasse o animal, o mulo, era também o
que fecunda, e era alguém forte, eram atributos positivos. Ao chamar uma mulher de machão
o sentido animalesco era bem carregado e era, como anotou o dicionarista, um termo chulo,
um xingamento.
Nos dicionários a seguir, a expressão já adquire um sentido regionalista, considerando
que o dicionário de Marroquim já designa ser de palavras do Pernambuco e Alagoas e o de
Bernardino de Souza, enfatiza no início no verbete que é de uso comum no Norte do Brasil.
Em A Língua do Nordeste Brasileiro - Pernambuco e Alagoas de Mário Marroquim,
publicado em 1934, encontramos cabra-macho e bicha-macho:

Exprime a admiração por um homem valente chamando - o ‘cabra macho’. Pois uma
mulher valente, resoluta será ‘bicha macho’, sem que haja menosprezo, antes reforço
de admiração nas palavras cabra e bicha56.

Em Dicionário da Terra e da Gente do Brasil, publicado em 1939 por Bernardino


José de Sousa57, não encontramos a expressão mulher-macho, mas sim cabra-macho e seu
significado de maneira mais detalhada.

56
Foi consultado em 2015 início das pesquisas no site da Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin e extraído
esse trecho para um caderno, no momento de escrita desta monografia ao consultarmos novamente o site
verificamos que o dicionário não se encontra mais, o trecho extraído se localiza na p. 102 da obra.
57
SOUZA, Bernardino José de. Dicionário da Terra e da Gente Brasileira. 4. ed. São Paulo: Companhia
Editora Nacional, 1939. (5). Disponível em:
http://brasilianadigital.com.br/obras/dicionario-da-terra-e-da-gente-do-brasil. Acesso em: 15 abr. 2021
36
Cabra: Dição de uso frequente no Norte do Brasil, designativa de mestiça de negros e
mulatos, sendo este por seu turno um produto euro-africano. Entretanto, não há
concordância de opiniões a respeito deste tipo de mestiço. (...) Rodolpho Theóphilo
no seu grande livro Os Brilhantes, à página 72, ensina que é mestiço produto de
cruzamento de índio e africano, inferior aos elementos que o formam. E acrescenta:
“O cabra é pior do que o caboclo e do que o negro”. É geralmente um indivíduo forte,
de maus instintos, petulante, sanguinário, muito diferente do mulato por lhe faltarem
as maneiras e a inteligência deste. E tão conhecida é a índole perversa do cabra que o
povo diz: não há doce ruim, nem cabra bom". (...) Ao cabra, não raro, se chama
também pardo, fula ou fulo, bode e cabrito (Pereira da Costa), todos, em suma,
mestiços nos quais a dosagem dos sangues inferiores é maior. Figuradamente, esta
palavra significa homem valente, audacioso, atrevido, sinônimo de cangaceiro e
bandoleiro, ocorrendo neste sentido as expressões cabra-macho, cabra-feio,
cabra-onça, cabra-seco, cabra-topetudo, cabra de chifre (Acre), cabra arranca-toco,
sinônimas de quantas outras, no Brasil, designam homem valente, valentão (...)58.

Embora não seja o foco do trabalho, é importante observamos que a expressão cabra-
macho é racializada e constituída por elementos que atravessam a violência, nos exigindo a
importância de considerar a maneira com que a região é construída historicamente e como a
racialidade contida na produção dos intelectuais que falam da região, como Euclides da
Cunha com os sertanejos, e Gilberto Freyre com o homem do Nordeste, desaguam no que
hoje entendemos como características do cabra-macho e mulher-macho
Freyre descreve quem seria o cabra-macho em seu livro de 1937 Nordeste, em “A
cana e a terra” o autor utiliza a palavra “cabra” como sinônimo para cruzamento tal como é
evocado no verbete acima, sendo então uma mistura do português, do indígena e do africano.

Um homem do povo, semelhante ao polinésio, feito de três sangues, em outras terras


tão inimigos – o do branco, o do índio e o do negro. Um negro adaptado como
nenhum à lavoura do açúcar e ao clima tropical. Um português também predisposto à
sedentariedade da agricultura. Um índio que ficou aqui mais no ventre e nos peitos da
cabocla gorda e amorosa do que nas mãos e nos pés do homem arisco e inquieto.
Todos eles e o produto caracteristicamente regional do seu cruzamento – o cabra – se
mostram hoje desprestigiados pelas doenças e pelas condições regionais de vida, mas

58
Idem, p. 74-75
37
se revelam, ao mesmo tempo, cheios de possibilidades eugênicas, já esboçadas em
antecipações magníficas.59

Já no capítulo “A cana e o Homem'', há várias passagens sobre quem seria o cabra na


sociedade açucareira, Freyre indica que há dois tipos de homem regional do Nordeste: o
aristocrata e o homem do povo60. O homem do povo, ou o “tipo rural de homem do povo”
seria

hoje quase desconhecidas na sua pureza, do antigo sistema agrário e patriarcal: o


cabra de engenho, o moleque da bagaceira, o capanga (de ordinário caboclo ou
mulato), o mulato vadio caçador de passarinho, o malungo, o pajem, o branco pobre,
o “amarelo” livre, a mãe preta, a mucama, o negro velho, o curandeiro, o caboclo
conhecedor da mata e dos seus bichos, a ama de leite tapuia ou negra, a
“cabra-mulher”.61

Freyre apresenta qual seria a cor cabra do Nordeste cunhado pelo folclorista Rodrigues
de Carvalho, que em diálogo com o verbete acima seria mestiço, sendo “50 por cento de
africano, quarenta de índio e dez de um ariano fugidio pelo entorpecimento do clima62”.
Freyre complementa as características do cabra

É mais: é o herói de um grande número de histórias de coragem e de aventuras de


amor. É o “cabra danado”. O “cabra escovado”. O cabra bom. O cabra de confiança.
A ele a imaginação do povo atribui uma potência sexual extraordinária a que não
faltariam vantagens físicas também excepcionais. Rodrigues de Carvalho dá o cabra
do Nordeste como “forte, trabalhador, valente”, mas “irrequieto; inconstante, nem
sempre leal”. E acrescenta: “Raramente o cabra... tem a dedicação afetuosa do
africano ou a carinhosa estima do mameluco, ou do branco”. 63

Ao refletir sobre os usos dessa expressão no contexto dos anos de 1930, com teor
racial tanto no dicionário quanto em Freyre, parece importante adotar as teorias do feminismo

59
FREYRE, Gilberto. Nordeste. Global Editora e Distribuidora Ltda, 2015, p. 44
60
Idem, p. 114
61
Idem, p. 113
62
Ibidem, p. 164
63
Ibidem, p. 164
38
decolonial ou os estudos pós coloniais, tendo em vista a racialidade presente nos discursos
nortistas e nordestinos sobre a região e sobre essas referências identitárias e sua articulação
com gênero e território. Maria Lugones, sob influência do conceito de colonialidade do poder
de Aníbal Quijano, vai pensar a colonialidade de gênero. Para a autora,

A colonialidade do gênero permite-me compreender a opressão como uma interação


complexa de sistemas econômicos, racializantes e engendrados, na qual cada pessoa
no encontro colonial pode ser vista como um ser vivo, histórico, plenamente
caracterizado.64

Outro ponto fundamental que a autora elabora em seu trabalho e se aproxima da


elaboração dessas expressões é “a hierarquia dicotômica entre o humano e o não humano
como a dicotomia central da modernidade colonial”65, onde mulheres e homens são sinônimo
de civilização e humanidade e os escravizados indígenas e africanos não são humanos, são
animalizados: machos e fêmeas. A autora traz o seguinte raciocínio para compreender a
colonialidade do gênero e que pode nos levar a entender ainda que parcialmente o uso de
macho para cabra-macho e mulher-macho.

Proponho interpretar, através da perspectiva civilizadora, os machos colonizados não


humanos como julgados a partir da compreensão normativa do “homem”, o ser
humano por excelência. Fêmeas eram julgadas do ponto de vista da compreensão
normativa como “mulheres”, a inversão humana de homens.Desse ponto de vista,
pessoas colonizadas tornaram-se machos e fêmeas. Machos tornaram-se
não-humanos-por-não-homens, e fêmeas colonizadas tornaram-se não-humanas-
por-não-mulheres. Consequentemente, fêmeas colonizadas nunca foram
compreendidas como em falta por não serem como-homens, tendo sido convertidas
em viragos.

A autora mobiliza o termo “virago” que nos anos vinte é um sentido semelhante à
mulher-macho. Considerando a análise de Lugones podemos identificar a colonialidade

64
LUGONES, Maria. Rumo a um feminismo descolonial. Florianópolis: Revistas de Estudos Feministas, 2014.
(V.22 n.3). Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/ref/article/view/36755. Acesso em: 15 maio
2021.p. 941
65
Idem, p. 936
39
existente na construção dessa expressões, uma hipótese seria que ambas foram constituídas a
partir de elementos coloniais em articulação à raça e gênero e que nos anos de 1950 se
consolidará e será atualizada a partir de elementos do discurso regionalista nordestino.
Essa discussão nos remete a Frantz Fanon, o autor aponta os aspectos biologizantes
que o racismo articula para fixar em pessoas negras, como ser forte, viril, animal etc.66 e isso é
apresentado tanto em Freyre quanto no dicionário do Bernardino José de Souza sobre quem é
o cabra e sua cor.
Considerar a racialização da expressão é fundamental pela forma que esses tipos
regionais são elaborados tal qual a própria região, colocada como mestiça e atrasada,
posteriormente viril e resistente, não ultrapassando as noções de corpo / emoção X razão,
dicotomias coloniais que hierarquizam o branco e o não branco. Sendo pertinente que as
questões de gênero e raça sejam evidenciadas ao lado da problematização da própria região.
Quanto à investigação nos dicionários, foi possível compreender o forte sentido
preconceituoso que está na origem do qualificativo, como mostra o primeiro de 1789, e que
desde aquela época até hoje ainda permanecem a ideia de virilidade, robustez, valentia. A
partir de 1930, os dicionários passam a apresentar o sentido ligado à região, articulado às
produções sobre o sertão onde o meio sertanejo exige homens fortes e mulheres varonis.
Em 1902, Euclides da Cunha tentou qualificar as mulheres sertanejas, mas teve
dificuldades, misturou imagens diversas. Desprovidas de alguma vaidade, diz ele que traziam

Faces murchas de velhas- esgrouviados viragos: mulher-macho, descabelada


em cuja boca deve ser um pecado mortal a prece; rostos austeros de matronas
simples; fisionomias ingênuas de raparigas crédulas, misturavam-se em
conjunto estranho67

Recorremos também à imprensa para mapear se havia a circulação da expressão


mulher-macho e em quais contextos eram empregados. O site utilizado foi o da Hemeroteca
Digital Brasileira. Como a obra Luzia Homem é publicada em 1903, optamos por começar a

66
FANON, Frantz. Pele Negra Máscaras Brancas. Salvador: Edufba, 2008, p. 144
67
CUNHA, Euclides da. Os Sertões. São Paulo: Martin Claret, 2004, 231
40
busca a partir de 1900, indo até 194068 aproximadamente. Consideramos que foi nesta obra
literária a primeira aparição encontrada do sentido que se aproxima da expressão analisada.
Achamos necessário, para visualizar melhor a circulação das notícias e das imagens de
mulher-macho, construir duas tabelas69, no intuito de demonstrar as regiões, o ano e o
contexto em que a expressão foi veiculada. Ressaltamos que incluímos na tabela a expressão e
os textos que evoquem o sentido “de mulher macho”.

Tabela 1. Aparições contextualizadas na imprensa do termo mulher macho, 1925-1935

Periódico Ano / Edição Contexto

Na seção Clube dos fenianos, ao que parece ser


uma descrição dos carros alegóricos do carnaval,
há o 11º carro "Trocando as bolas - Contrastes,
com uma crítica sobre o contraste das modas e a
inversão dos sexos: "O casaco do homem
(almofadinha) encurta-se e ajusta-se na cinta, até
desenhar formas que tornam duvidosas" (...) Em
A Manhã / RJ 1926 / 00043
seguida é apresentado um pequeno poema /
marchinha sobre esse fenômeno, nas duas últimas
estrofes diz o seguinte: "A damas a passear, nos
lançam olhos altivos / Os homens, baixando o
olhar, caminham rebolativos! / Isto, dizer o que
quer? O de cima foi pra baixo? O homem virou
mulher?! A mulher, agora é macho?!
Um conto de Adaucto Castello Branco sobre
Mané do Riachão (personagem que Patativa do
Assaré também cita). No conto aparece que Mané
Correio Paulistano /
1926 / 23028 é "defrontado por uma corpulenta virago que se
SP
dizia vinda do Rio Grande do Norte (...) tratava-se
de uma criatura de aspecto menos feminino que
propriamente masculo. Robusta e grandalhona.

68
O período escolhido se deve ao fato de que após a veiculação da canção Paraíba de Luiz Gonzaga na década
de 1950 os sentidos da expressão já estão fortemente articulados à região e identidade nordestina, então a ideia
aqui é mapear as primeiras aparições, os sentidos e contextos empregados antes da consolidação da expressão
após a canção.
69
A segunda tabela está no próximo capítulo desta pesquisa, que corresponde a circulação da expressão após a
canção Paraíba de Luiz Gonzaga.
41
Um tipo escarrado e esculpido de mulher macho".
Na seção Scenas Horripilantes da revolução
(factos absolutamente verdadeiros) do repórter /
cronista (?) João de Minas: é apresentado a
história de um "homem louco" que queria se
O Paiz / RJ 1927 / 15652
enterrar vivo, ele era "casado com uma mulher
forte e bonita rio grandense, uma espécie de
mulher macho, boa cavaleira sabendo lidar como
ninguém com o gado"
Na seção policial Pingos e Respingos, sob o título
Mulher Macho é descrito um crime onde uma
Correio da Manhã /
1930 / 10779 mulher foi presa por ter espancado seu amante.
RJ
Maria da Conceição é descrita como "creoulinha",
"mulher de bom quilate" e "virago cor da treva"
Na seção do repórter / crônista (?) João de Minas
é apresentado uma pequena crônica, Minas diz
que é "contra a mulher literata", "a mulher
política", "a mulher bigodes ou de papo", a "a
Gazeta de notícias /
1935 / 00195 mulher em suma de botas e ideias tortas". " A
RJ
mulher deve ser mulher e não mulher macho",
mas a "mulher literata quando é um gênio (...) não
só a suportamos como até convidamos a continuar
nas suas loucuras vienenses literatoides"
Na seção Nos Mysteriosos subterrâneos de São
Paulo: O telephonema suspeito de João de Minas:
Na crônica é apresentada uma personagem
Diário da Noite / RJ 1935 / 02249
chamada Anna, que é descrita como uma
"montanha de churrasco, uma gloriosa
riograndense, virtuosa mulher macho"
Fonte: Hemeroteca digital - Biblioteca Nacional70

No período destacado, observa-se que a recorrência do termo se dá na imprensa de


São Paulo e do Rio de Janeiro, não encontramos em outro estado. Mesmo que seja necessário
ressaltar que a ferramenta de busca pode ser imprecisa e deixar passar algum periódico, é
significativo que não tenha aparecido nenhum caso fora do eixo Rio-SP.

70
Hemeroteca digital - Biblioteca Nacional. Disponível em: https://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital/
42
O contexto em que a expressão é empregada são de crônicas e marchinhas escritas por
homens. Em duas notícias (O Paiz e Diário da Noite) a expressão é usada para designar uma
mulher do Rio Grande do Sul, enquanto em outro periódico (Correio Paulistano) é
mobilizada para indicar uma mulher do Rio de Grande do Norte. A do Sul demarcadamente é
valente e bonita, mas a do Norte não tem a sua beleza destacada.
Outro ponto comum de todas as aparições da expressão são as características bem
definidas do que é uma mulher-macho, são grandes ou fortes, faz tarefas que são entendidas
como algo comum aos homens, como cuidar do gado, ou mulheres que penetram no mundo
masculino sendo ela das letras ou da política, não possuem muitos traços de uma feminilidade
indo contra a ideia de sexo frágil que deve ser protegida pelo homem, quase uma afronta,
fugindo da norma da fragilidade são postas com certo ranço como viragos, mulher-macho e
desvios.
Observamos poucos contextos que relacionam a expressão ao Nordeste, embora Luzia
Homem de Domingos Olímpio, A moça de Sapiranga de Gustavo Barroso, assim como
Nordeste de Gilberto Freyre já tivessem sido publicados, nos levando a crer cada vez mais que
a expressão se consolidará com uma conotação regionalista nordestina, após a canção Paraíba
de Gonzagão, estando fortemente imbricada à região.
Nos anos de 1920, o Brasil foi palco das primeiras movimentações de emancipação
feminina e anseios pela conquista do espaço público, embora mulheres negras e pobres já
estivessem nesses espaços, essas mudanças também impactaram as feminilidades e
masculinidades. Gilberto Freyre, em Modos de Homem e Modas de Mulher e Ordem e
Progresso, esboça suas impressões sobre esse período convergindo com o contexto que
mulher-macho aparece em 1926 no jornal A Manhã. Para Albuquerque

Novos estilos de existência emergiram, novos corpos e rostos apareciam pelas ruas.
Contrariando muitas vezes o código da moral, os sujeitos se comportavam a partir de
uma ética própria, códigos impostos a si mesmos, num trabalho de autoelaboração,
levando a que estes discursos lamentassem a artificialidade e o exótico dessas
identidades de gênero.71

71
ALBUQUERQUE JUNIOR, Durval Muniz de. Nordestino: A invenção do falo uma história do gênero
masculino (1920-1940). 2. ed. São Paulo: Intermeios, 2013, p. 40
43
Carla Bassanezi Pinsky também aponta para essa mudança nos comportamentos e
modas, a autora diz que
Compatíveis com a necessidade de mobilidade no trabalho, nos passeios e nas
atividades de compras, as saias ficaram mais curtas e as vestes, um pouco mais soltas,
livres da rigidez de espartilhos e anquinhas e das várias camadas de tecido a cobrir o
corpo. O prático corte de cabelo à la garçonne também ganhou adeptas, denotando
ainda a maior aceitação de uma atitude que incluía pitadas de ousadia, decisão e
malícia. Juventude e Modernidade passaram a ser rótulos que agregam valor. Saúde
completava a tríade.72

Os novos hábitos, modos e modas estavam sob influência dessas mudanças, o que se
percebe na marchinha do jornal A Manhã é justamente uma tensão e crítica sobre os novos
comportamentos, como também a alteração da feminilidade e masculinidade das classes
abastadas, já que desses se espera a civilidade do homem e da mulher e não a brutalidade de
machos e fêmeas como aborda Lugones.
Então, diante de qualquer desvio da norma, a mulher é vista como macho e
masculiniza-se e o homem fêmea se feminiza. É nessa perda de uma masculinidade viril e
potente e a feminização vinda com a modernidade que chegara aos jovens do Nordeste, que
Freyre e outros intelectuais vão produzir artigos a partir do Centro Regionalista e
Tradicionalista do Recife, sobretudo para o jornal Diário de Pernambuco, sobre a perda dos
poderes das elites tradicionais, a mudança nos costumes, que antes assegurava o status quo
dessa elite.

Estes discursos lamentam o fim de uma sociedade de modos aristocráticos, onde as


distâncias e hierarquias sociais bem nítidas, onde havia a distinção, a pompa, onde as
boas maneiras eram apanágio de poucos. A heterogeneidade das identidades e a
infedelidade às tradições trazidas pelos novos modos de existir faziam estes
intelectuais suspirarem por uma sociedade do Império e da escravidão que vinha se
73
arruinando definitivamente.

72
PINSKY, Carla Bassanezi; PEDRO, Joana Maria. Nova história das mulheres no Brasil. Editora Contexto,
2012, p. 475
73
ALBUQUERQUE JUNIOR, Durval Muniz de. Nordestino: A invenção do falo uma história do gênero
masculino (1920-1940). 2. ed. São Paulo: Intermeios, 2013.p. 36
44
A visão de masculinização da mulher e o uso de viragos e mulher-macho emerge na
imprensa em um período de mudanças nos comportamentos, advindo pela modernidade
(abolição, industrialização, primeira guerra mundial, movimentos feministas, etc).
Na imprensa do início do século o que observamos é que os sentidos que possuem
pouco têm a ver com um regionalismo nordestino, considerando que apenas no caso da
crônica sobre Mané do Riachão temos a localização do Rio Grande do Norte. Podemos pensar
até em dois grandes extremos regionais que aparecem nas notícias, o Sul e o Nordeste,
havendo a presença do gado em ambos, de um lado uma mulher masculinizada sendo
sertaneja do Nordeste, local marcado pelas secas e a “natureza hostil” e do outro uma mulher
que cuida do gado nos pampas, atividade de homens e quando ocupada pelo feminino é
masculinizada, mas sem perder sua beleza que é pontuada na notícia.
Podemos considerar que todos esses elementos que constituem a expressão
mulher-macho vem de diferentes lugares discursivos e de valores depreciativos e positivos e
isso é que caracterizará também - além do significado que os dicionários e a teoria pós
colonial nos encaminha - posteriormente a problemática em torno do seu uso, são muitas
imagens discursivas que historicamente endossaram a expressão,tanto regionalista quanto no
sentido de designar mulheres que estavam iniciando o processo de ocupar o meio público em
meados do século XX, como sugere o Gazeta de Notícias de 1935 descrito na tabela.

Embora Albuquerque Jr pontue que Júlio Belo e Freyre tecem críticas sobre esse
fenômeno e que vai impactar e balançar as feminilidades e masculinidades vigentes até então,
e assim iniciaria a articulação da figura do homem do nordeste enquanto um expoente que
barraria essas mudanças, podemos pensar que neste caso é acionado o regionalismo
nordestino diante do lugar social que esses intelectuais ocupam e da forma que interpretam
essas mudanças em relação ao Nordeste, já que na imprensa carioca isso não está evidente.

O nordestino será inventado como macho por excelência, a encarnação do falo, para
se contrapor a este processo visto como de feminização, pensado como ameaçador, em
última instância, para a própria região. A relação entre masculinidade e poder fica

45
assim explicitada, ou seja, a feminização do espaço regional significa, segundo esses
discursos, a perda de poder em nível nacional, a impotência74.

2.1 Masculinidade nordestina e a emergência da mulher-macho

Pensando em masculinidades, cabe trazer uma breve reflexão sobre esse conceito, por
observarmos nos dicionários e na imprensa, e tal como indica Albuquerque Jr., que os
elementos que orbitam em volta da expressão mulher-macho estão articulados ao “cabra
macho”. O historiador busca compreender como o homem nordestino emergiu e porque está
associado à figura masculina.

Tendo sido construído no começo deste século, entre o final dos anos 1910 e começo
dos anos 1920, junto com a região de quem é filho, habitante e sujeito, o nordestino é
uma figura que atualiza várias imagens e se diz através de vários enunciados que
antes definiam o nortista, o sertanejo, o brejeiro, o praieiro, identidades com que, até
então, se definiam os moradores deste espaço.75

Maria Izilda Santos de Matos chamou a atenção para a necessidade de pensar homens
e masculinidade sem universalizar esse grupo, mas compreender que ser homem pode ser
diferente de acordo com classe, raça, territórios etc., da mesma forma que se universalizou as
vivências e o ser mulher, criando uma análise em oposição de homem e mulher nos primeiros
estudos feministas.

Essa universalização impõe dificuldades de se trabalhar com a masculinidade, que


varia de contexto para contexto, sendo, portanto, múltipla, apesar das permanências e
hegemonias. Assim, sobrevêm a preocupação em desfazer noções abstratas de
“homem” enquanto identidade única, a-histórica e essencialista, para pensar a
masculinidade como diversidade no bojo da historicidade de suas inter-relações,
rastreando-a como múltipla, mutante e diferenciada no plano das configurações de
práticas, prescrições, representações e subjetivações.76

74
Idem, p. 151-152
75
ALBUQUERQUE Jr., Durval Muniz de. Nordestino: Invenção do falo uma história do gênero masculino
(1920-1940). 2 ed. São Paulo: Intermeios, 2013, p 18
76
MATOS, Maria Izilda Santos de. Por uma História das Sensibilidades: Em Foco: A Masculinidade.
História Questões & Debates, Curitiba, v. 34, 2001, p. 47.
46
Os trabalhos de Albuquerque Jr sobre a masculinidade nordestina caminham nesse
aspecto, superar a concepção universalizante do homem, que homogeneiza e mascara as
diferentes vivências e outros marcadores sociais.

Embora o discurso da identidade regional opere com a lógica da semelhança,


unificando experiências, construindo uma ideia de essência regional, para fazer isso
trabalha com uma multiplicidade de elementos, com um conjunto de signos,
experiências, práticas e discursos que se tornam partes de um todos, que convergem
para a criação de uma imagem homogênea do que seria característico da região. (...) A
masculinidade é apenas um elemento constitutivo da identidade regional, mas é
fundamental na construção de uma figura homogênea e característica que se chamará
de nordestino.77

Seguindo essa lógica temos R. Connel, que vai apontar a importância de pensar além
de uma masculinidade, ou seja, as masculinidades, contemplando assim diferentes formas de
ser homem e suas práticas, historicamente e socialmente construídas. O autor também traz a
noção de hegemonia para as masculinidades, uma ou mais masculinidades podem ocupar um
lugar que concorre com outras.

Para se compreender a política da masculinidade, dois aspectos dessa historicidade


são cruciais. O primeiro é o fato da luta por hegemonia. Grupos de homens lutam por
domínio através da definição social da masculinidade. A posição dominante na ordem
do gênero propicia vantagens materiais bem como vantagens psicológicas e isso faz
com que ela tenda a ser contestada. As condições sob as quais a hegemonia pode ser
sustentada estão constantemente mudando. Como consequência, um dado padrão de
masculinidade hegemônica está sujeito ou a ser contestado ou a ser transformado ao
longo do tempo. 78

Isso nos permite pensar nas negociações e subversões para o uso da expressão
cabra-macho que tende a fixar o homem em um lugar e uma experiência: valente, cangaceiro,

77
ALBUQUERQUE JUNIOR, Durval Muniz de. Nordestino: A invenção do falo uma história do gênero
masculino (1920-1940). 2. ed. São Paulo: Intermeios, 201, p. .25
78
CONNELL, Robert. Políticas de Masculinidade. Educação e Realidade, Porto Alegre. Vol. 20 (2), 1995. p.
191-192
47
dominador. Essa possibilidade de pensar em masculinidades e a subversão da expressão me
faz lembrar do meu avô materno (nesse lado da família se mobiliza com mais frequência essas
referências) Raimundo, que é um homem extremamente sensível, amigo, que cozinha, lava e
passa, dividindo as tarefas domésticas com minha avó e na prática não se encaixaria nessa
identidade de homem nordestino e cabra-macho.

A masculinidade é uma configuração de prática em torno da posição dos


homens na estrutura das relações de gênero. Existe, normalmente, mais de
uma configuração desse tipo em qualquer ordem de gênero de uma
sociedade. Em reconhecimento desse fato, tem-se tornado comum falar de
"masculinidades".79

Quanto à masculinidade que aparece em Freyre nos anos de 1920, o fenômeno da


modernidade seria o responsável pelo declínio da sociedade açucareira e a perda do poder do
homem do engenho, do macho e do pai, como ressaltou Albuquerque Jr.80
Nesse contexto, emerge a figura do homem nordestino e da mulher nordestina, assim
como a expressão começa a circular na imprensa, ainda sem o sentido regionalista nordestino
evidente. Ainda assim, a forma pela qual a expressão é mobilizada aqui contribui para o
compilado de imagens e discursos (literários e jornalísticos) que vão ser retomados e
atualizados para se dizer sobre homens e mulheres da região, ou seja, a construção do Outro
por quem ocupa o espaço de poder e saber, falar sobre o Outro a partir de imagens que fixam
e homogeneízam. Deepika Bahri sobre isso é contundente

Aqueles que tem o poder de representar e descrever os outros claramente


controlam como esses outros serão vistos. O poder de representação como
uma ferramenta ideológica tradicionalmente faz dele um espaço disputado.81

79
CONNELL, Robert. Políticas de Masculinidade. Educação e Realidade, Porto Alegre. Vol. 20 (2), 1995. p.
188.
80
ALBUQUERQUE JUNIOR, Durval Muniz de. Nordestino: A invenção do falo uma história do gênero
masculino (1920-1940). 2. ed. São Paulo: Intermeios, 201, p. 29
81
BAHRI, Deepika. Feminismo e/no pós-colonialismo. Estudos feministas, 2013, p. 666
48
Problematizar cabra-macho, a partir da ideia de masculinidades hegemônicas,
possibilitou cartografar duas masculinidades em tensão, aquela que Freyre sente saudade e a
que teria vindo com a modernidade, em contraste com as feminilidades que emergiram
também, endossando ainda mais os elementos que orbitam em torno da expressão
mulher-macho.

2.2 Literatura Regionalista e a masculinização de personagens femininas: o caso de


Luzia Homem

Essa “masculinização” das mulheres acontecem também em outros contextos, por


circunstâncias diferentes, a literatura foi palco desse fenômeno e Walnice Nogueira Galvão
abordou isso em seu livro A donzela-guerreira: um estudo de gênero, onde apresenta
inúmeras personagens femininas que são elaboradas a partir de aspectos masculinos com
pontos comuns em suas narrativas: presa ao laço paterno, primogênita ou filha única,
“mutilada nos múltiplos papéis que a natureza e sociedade lhe oferecem”.82 Destacando
algumas personagens reais e literárias no Brasil, temos as cangaceiras, Luzia Homem, Maria
Quitéria, Maria Moura, Diadorim, etc.
Nos limitamos nesta etapa da pesquisa à obra literária de Luzia Homem escrita por
Domingos Olímpio. Alguns aspectos foram levados em conta para essa escolha, sendo o
principal a proximidade entre as datas de publicação de Os Sertões, em 1902 e de Luzia, em
1903. O segundo elemento seria a maneira com que Luzia é descrita, muito próxima dos
sertanejos de Cunha e por provavelmente ser uma das primeiras narrativas a exprimir a
masculinização de uma mulher sertaneja.
Domingos Olímpio nasceu no Ceará, na cidade de Sobral, em 1851, era advogado,
jornalista e escritor, ao finalizar o curso de Direito em Recife foi nomeado no Ceará como
Promotor Público, permanecendo de 1874 até 187883 nessa função. Sua atuação enquanto
promotor configura o momento da seca de 1877 que afetou também parte do estado do Ceará,
período em que a narrativa da sertaneja Luzia é ambientada.

82
GALVÃO, Walnice Nogueira. A donzela guerreira - um estudo de gênero. São Paulo: Senac, 1998, p. 12
83
Hemeroteca digital - Biblioteca Nacional: Os Annaes / Ano 1906 Edição 0102 p. 9
49
Olímpio foi diretor do periódico Os Annaes do RJ, onde publicou outra obra sua
chamada O Almirante. Localizamos alguns trechos do romance de Luzia em algumas edições
no Diário da Tarde do Paraná em 190784 após sua morte, segundo Carmélia Aragão85 Luzia
Homem foi publicado em 1903 como folhetim no Jornal do Commercio antes de se tornar
livro.
Ao mapear a circulação do romance na imprensa, o site da Hemeroteca indica que as
localidades cujos periódicos mais aparecem na ocorrência da palavra-chave “luzia homem”
foram o Rio de Janeiro, São Paulo, Paraná e Pernambuco, mas também houve repercussão em
outros estados. Observamos uma boa recepção entre os intelectuais da época, o autor por ter
atuado em diferentes jornais como Correio do Povo, O Paiz, Correio Mercantil e O
Commercio86, estava inserido dentro de um espaço de sociabilidade com intelectuais e
jornalistas.
As críticas de Luzia foram publicadas em diversos jornais do país e republicadas nos
Annaes também, como é o caso da crítica de Mario Imperial do Alcantil do Espírito Santo.

O sr. Domingos Olympio é um artista que se inspira, altaneiro e sublime, nas vivas
commoções do soffrimento na retratação fiel du’ma alma torturada (...) Nas paginas
de Luzia Homem, há trechos divinos, há conceitos de valor e de observação
profundamente equilibrada e sadia, sempre adornadas com as mais mimosas flôres d
eum portuguez robusto e captivante. (...) Não podemos, embóra, terminar, sem dizer
publicamente que Luzia Homem é uma eschola a seguir; é um vôo ousado que
consagrará eternamente o Condor que o desferira.87

No jornal Diário de Pernambuco de 1903, o romance é apresentado como literatura do


Norte por Antonio Salles, este explica que a literatura nacional deve muito mais ao Norte que
ao Sul, e essa divisão foi feita por Silvio Romero. Salles tece longos elogios a Domingos
Olímpio e ao romance e apresenta um breve resumo sobre a obra, e sobre seu final pontua:

84
Hemeroteca digital - Biblioteca Nacional: Os Annaes / Ano 1907 Edição 0240
85
ARAGÃO, Carmélia Maria. Luzia Homem: Aspectos da crítica sobre uma obra. 2008. 103 f. Dissertação
(Mestrado) - Curso de Letras, Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2008. Cap. 5. Disponível em:
http://www.repositorio.ufc.br/bitstream/riufc/8076/1/2008_dis_cmaragao.pdf. Acesso em: 20 ago. 2021.
86
Hemeroteca digital - Biblioteca Nacional: Os Annaes Ano 1906 / Edição 0102 p. 9
87
Hemeroteca digital - Biblioteca Nacional: Os Annaes Ano 1905 Edição 0033
50
(...) O final é cruel, e muitos leitores não o perdôam ao autor; mas é forte, é belamente
trágico e, do ponto de vista artístico, é o remate digno da obra, de uma imaginação
pujante e mascula. As letras do norte podem contar agora com mais um obreiro de
primeira ordem. 88

Outro índice da boa inserção social de Domingos Olympio foi o fato dele ter por duas
vezes disputado uma cadeira na ABL. Primeiro, já em 1903, ele disputou a de Castro Alves
com Euclides da Cunha, e perdeu; depois em 1905 foi a vez da cadeira de José do Patrocínio,
quando perdeu para Mário Alencar

A derrota revoltante que lhe foi infligida na última eleição que deu ganho de causa a
Mario de Alencar, que, como belletrista, absolutamente não póde hombrear-se com o
vigoroso esttylista, com a organisação, omnimodamente artistica do notavel chronista
politico e impecavel romancista, que legou á litteratura patria uma obra forte,
vibrante, original e escorreita como Luzia Homem; não feriu sómente o amor proprio
de Domingos Olympio, que o paiz litterario em pezo apontava como legitimo
substituto de José do Patrocínio; tornou por ventura mais altiva sua fronte de homem
digno e fe-lo superior a essa Academia, em que a politica já exerce a sua influencia
nefasta, o seu mandonismo auctoritario para guindar seus protegidos com prejuizo da
justiça e, quiçá, do brilhos dos seus annaes.89

Os Sertões teve uma maior recepção garantindo a cadeira para Euclides da Cunha,
talvez o livro de Olímpio tenha ficado um pouco nas sombras diante do enorme sucesso do
primeiro. A proximidade é sentida também pela maneira que os sertanejos de ambas as obras
são construídos, sob influência das mesmas teorias vigentes do período.
O fim do século XIX e início do século XX foram marcados por discussões em torno
da identidade nacional. Com o advento da República, a abolição da escravidão e o
crescimento da industrialização e das cidades, tais discussões foram potencializadas, Lúcia
Lippi Oliveira aponta que as doutrinas acerca da constituição da nação podem ser observadas
a partir de dois enfoques: um de cunho cultural e outro político. A maior parte dos intelectuais
que escreveram na década final do século XIX, bem como escritores, artistas e cineastas do

88
Hemeroteca digital - Biblioteca Nacional: Diário de Pernambuco Ano 1903 / Edição 00117
89
Hemeroteca digital - Biblioteca Nacional: Os Annaes Ano 1906 / Edição 0066 p. 2
51
século XX, fizeram o movimento de revisitar o sertão e sua cultura, buscando identificar uma
brasilidade autêntica.
As doutrinas que enfatizam o mundo da cultura tendem a se contrapor à ideia
de progresso, entendido como resultante natural da vida do homem em
sociedade. Nesta vertente, cabe ao nacionalismo descobrir a continuidade
cultural e reconstruir o passado. O nacionalismo é entendido como um
movimento de idéias e de ação visando a construção simbólica da nação.90

Esse período, marcado pelas teorias cientificistas produzidas nos Estados Unidos e na
Europa, momento também em que o papel dos intelectuais brasileiros é preponderante na
construção do projeto de nação, intelectuais como Euclides da Cunha, Sílvio Romero e Nina
Rodrigues ao tentar compreender a realidade brasileira e o brasileiro produziram obras
orientadas por tais teorias dentro da concepção evolucionista, o que por sua vez, legitimava
ideologicamente a posição hegemônica do mundo ocidental e a consequente definição do
Brasil enquanto inferior, justificado pelas noções de raça e meio.91

Como acontece geralmente na maioria dos países colonizados, a elite brasileira do fim
do século XIX e início do século XX foi buscar seus quadros de pensamento na
ciência européia ocidental, tida como desenvolvida, para poder não apenas teorizar e
explicar a situação racial do seu País, mas também, e sobretudo, propor caminhos
para a construção de sua nacionalidade, tida como problemática por causa da
diversidade racial.92

A literatura e os intelectuais se configuraram dentro dessas tentativas de compreensão


do Brasil e da elaboração das representações acerca do brasileiro, sendo o século XIX,
sobretudo, a partir de 1870, significativo para o surgimento e constituição do imaginário do
que é ser brasileiro, calcado numa visão muitas vezes colonialista e estereotipada. Buscaram a
origem do povo no Jeca Tatu, no caboclo, no sertanejo, etc.

90
OLIVEIRA, Lúcia Lippi de. A questão nacional na primeira República. São Paulo: Brasiliense, 1990, p. 29
91
ORTIZ, Renato.Cultura brasileira e identidade nacional. São Paulo: Brasiliense, 1985, p. 15
92
MUNANGA, Kabengele. Rediscutindo a mestiçagem no Brasil: identidade nacional versus identidade
negra. Autêntica Editora, 2019, p. 49
52
Uma identidade que vinha sendo construída no decorrer do século XIX e que foi
tomando forma em múltiplas representações que, frequentemente, contribuíram para a
ambiguidade no tratamento da questão. Ambiguidade proveniente ora do
descompasso entre o arcabouço teórico a partir do qual se pensou o nacional e a
realidade com que se deparou, ora das discrepâncias entre os diferentes tipos sociais e
as variadas formas com que se olhou pra essa gente.93

Dentre esses “tipos regionais”, está o sertanejo, cuja imagem vem sendo desenhada e
redesenhada pela literatura desde o final do século XIX e durante todo o século XX, seja
como um tipo do Nordeste ou do Sudeste, sendo ele o caipira. Representação do autêntico
brasileiro, possuindo características como resistente, viril, valente, aspectos primeiramente
colocados como biológico em conformidade à natureza, serão retomadas em diversas
produções culturais, como a literatura naturalista. Nísia Trindade indica que

Ao lado da valorização do discurso científico e do papel do cientista na reforma da


sociedade, encontramos na tendência ao naturalismo literário a sua superposição da
ênfase na capacidade de descrever a realidade sobre a visão presente no romantismo
de situar a literatura enquanto veículo da construção da nacionalidade. (...) O
sertanejo é um exemplo desta fase, quando tentava caracterizar os tipos brasileiros.
Tanto nos textos científicos como nos literários, distinção problemática em alguns
casos, trata-se de entender a natureza e suas leis, adotando-se uma perspectiva
ambientalista para análise do homem. Nesse sentido, Herschmann (1994, p. 56)
sugere que, para Euclides da Cunha, o verdadeiro sujeito da história era a natureza.94

A caracterização do que seria o sertanejo e o sertão por Euclides da Cunha, como as


dualidades95 expostas, são fundamentais para compreender os discursos literários que foram
produzidos a posteriori, tal qual Luzia Homem e sua relação com a emergência do Nordeste e
do nordestino, na segunda metade do século XX.

93
NAXARA, Márcia Regina C. Estrangeiro em sua própria terra: representações do brasileiro, 1870 - 1920.
1 ed. São Paulo: Annablume, 1998. p. 75
94
LIMA, Nísia Trindade. Um sertão chamado Brasil. 2. ed. São Paulo: Hucitec Editora, 2013, p. 98
95
SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira República.
2°ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p.43
53
O sertão aí é muito mais um espaço substancial, emocional, do que um recorte
territorial preciso; é uma imagem-força que procura conjugar elementos geográficos,
linguísticos, culturais, modos de vida, bem como fatos históricos de interiorização
como as bandeiras, as entradas, a mineração, a garimpagem, o cangaço, o latifúndio, o
messianismo, as pequenas cidades, as secas, os êxodos etc. O sertão surge como a
colagem dessas imagens, sempre vistas como exóticas, distantes da civilização
litorânea.96

Enquanto o contexto de produção intelectual pautava o tipo nacional, nas cidades,


como já esboçado anteriormente, a modernidade fazia sentir no comportamento das pessoas,
ainda que a narrativa de Luzia é ambientada durante a grande seca de 1877 que acometeu o
Ceará e o Pernambuco, talvez seja possível elencar a questão da feminilidade contida na obra
com o período de produção e publicação da mesma, em plena Belle Époque, período de
mudanças que fez ecoar nos comportamentos de jovens moças e moços.
A obra aborda a vida de Luzia, sertaneja retirante que junto com sua mãe chegam à
Sobral, descrita como uma cidade formosa e intelectual, em busca de trabalho. Logo ela
consegue um emprego, fruto de uma atitude heróica que teve ao salvar Raulino, trabalhador
da cadeia e que torna-se seu amigo. Alexandre, outro personagem, descreve no romance o ato
heróico de Luzia:
Era uma canzoada de mulheres e meninos, gritando: Olha a Luzia-Homem, a macho e
fêmea! O povo tudo corria morro baixo e eu também fui ver o que era. Você vinha
subindo, trazendo nos braços Raulino Uchoa, quase morto, ensanguentado e coberto
de poeira. Contou-me, então, o Antônio Sieba, pai daquela moça bonita, que canta
como um canário, o que se havia passado. O Raulino apostara derribar, a toda a
carreira, um boi pelo rabo. Na verdade o homem corria como um veado e, era pegar
na saia da rês e virá-la, na poeira, de pernas para o ar; mas, naquele dia, foi caipora;
falseou-lhe o pé; o boi voltou-se como um gato e mataria o pobre diabo se, dentre o
povo, que disparava espantado, não surgisse uma moça afoita e destemida que
agarrou o bicho pelas galhadas e o sujicou que nem um cabrito.97

Passou, então, a trabalhar na construção da cadeia pública da cidade, obra custeada


pela Comissão de Socorros do Governo Imperial, no qual as pessoas eram remuneradas, às

96
Idem, p. 67
97
OLÍMPIO, Domingos. Luzia-Homem. 12 ed. São Paulo: Ática, 1995, p. 26
54
vezes em dinheiro ou comida, em troca de trabalho. Essa política, de fato, existiu no período.
98

Há muitos aspectos pertinentes a serem analisados na obra, mas nos interessa destacar
aqui, a forma pelo qual a imagem de Luzia é construída pouco a pouco pela ótica dos
personagens e do autor, evidenciando a “masculinização” da personagem. Essa elaboração é
iniciada pelo olhar do viajante francês Paul que, em visita à obra da cadeia, se depara com
Luzia carregando uma parede na cabeça.

Um dia, visitando as obras da cadeia, escreveu ele, com assombro, no seu caderno de
notas: “Passou por mim uma mulher extraordinária, carregando uma parede na
cabeça”. Era Luzia, conduzindo para a obra, arrumados sobre uma tábua, cinquenta
tijolos. 99

Outros, até viram ela carregar um enorme jarro d’água que “valia três potes de peso,
calculado para a força normal de um homem robusto”100. Os moradores de Sobral, dos jovens
aos velhos, teciam diversos comentários sobre o “lado homem de Luzia”, essa jovem de
“músculos de aço e formas esbeltas das morenas moças do sertão”101, não se enturmava com
as outras moças, e por isso, era vista como soberba.

- Aquilo nem parece mulher fêmea - observava uma velha alcoveta e curandeira de
profissão. Reparem que ela tem cabelos nos braços e um buço que parece bigode de
homem.102 (...) - Não diga isto que é blasfêmia - atalhou Teresinha, loura, delgada e
grácil, de olhar petulante e irônico, toda ela requebrada em movimentos suaves de
gata amorosa.103

Interessante notar neste trecho que Luzia é descrita e ao mesmo tempo outras
personagens também, como a velha, uma cabocla roliça e Teresinha. Demarcando a diferença
de Luzia em relação com as outras personagens femininas, são feminilidades em concorrência

98
Para saber mais sobre as políticas de socorros públicos no Ceará, ver JOSÉ W. F. de Souza, Secas e socorros
públicos no Ceará: doença, pobreza e violência (1877-1932). Projeto História, v.52, 2015
99
OLÍMPIO, Domingos. Luzia-Homem. 12 ed. São Paulo: Ática, 1995, p. 13
100
Idem, p. 13
101
Ibidem, p. 14
102
ibidem, p. 14
103
Ibidem, p. 14
55
ou que coexistem, onde o padrão hegemônico seria aquilo que Luzia não representa e não
partilha.
A trama vai se desenrolar a partir dos assédios de Capriúna, descrito como um soldado
“mulato” com histórico de façanhas no ofício e “mulherengo” e as objeções de Luzia, sua luta
por escapar das investidas ao passo que o seu sentimento por Alexandre, branco louro e
trabalhador na construção da penitenciária, é pouco a pouco construído e alimentado na obra.
Interessante notar que nas descrições entre Capriúna e Alexandre, também parecem ser
masculinidades que concorrem entre si e que coexistem na narrativa, um em oposição ao
outro, demarcando racialmente os atributos de cada um. Capriúma em várias passagens é
descrito com um cabra.

Capriúna, o tal soldado, era mal afamado entre os homens e muito acatado pelas
mulheres, graças à correção do fardamento irrepreensível, os botões doirados o
cinturão e a baioneta polidos e reluzentes: todo ele tresandando ao patchouli da
pomada, que lhe embastia a marrafa e o bigode, teso e fino como um espeto. Possuía,
apesar das duras feições, o encanto militar, a que é tão caroável o animal caprichoso, e
fútil, a mulher de todas as categorias e condições sociais, talvez porque, sendo fraca,
naturalmente, se deixara atrair pelas manifestações da força. 104

Com o ego ferido pelas inúmeras rejeições de Luzia, Capriúna busca negar e difamar
Luzia, atribuindo à sertaneja até feitos sobrenaturais pelo sentimento que esta a despertou.
“Ressentido” Capriúna aponta ao amigo que não gosta de Luzia, que com “semelhante força
nem parece mulher”105. O amigo retruca e a descreve como um monstro da natureza,
expressão que nos faz lembrar de Frankenstein, mas também destaca atributos femininos de
seu corpo.

Tira o cavalo da chuva e conta a história direito, Capriúna. Todas as mulheres são
iguais e merecem tudo; a demora é grelar no coração o capricho, principalmente,
quando resistem. Fora ela um monstro da natureza; paixão não enxerga nem repara e,
quando nos ataca, é como sarampo: até jasmin de cachorro é remédio. E deixa falar
quem quiser, que é soberba, sonsa, mal ensinada… Ela não é nenhum peixe podre.

104
OLÍMPIO, Domingos. Luzia-Homem. 12 ed. São Paulo: Ática, 1995, p. 15
105
Idem, p. 16-17
56
Não reparaste naqueles quartos redondos, no calculo do queixo, na boca encarnada
como um cravo?! E o buço?!... Sou caidinho por um buço… Ela quase que tem
passa-piolho, o demônio da cabrocha...106

Luzia, um desvio, ora fêmea ora macho, um corpo discursivamente marcado pelo não
lugar. Aos olhos das moças da cidade, por força máscula e pelos pêlos de seu corpo, um
macho,
Muitas se afastavam dela, da orgulhosa e seca Luzia-Homem, com secreto terror, e
lhe faziam a furto figas e cruzes. Mulher que tinha buço de rapaz, pernas e braços
forrados de pelúcia crespa e entonos de força, com ares varonis, um virago, avessa a
homens, deveria ser um desses erros da natureza, marcados com o estigma dos
desvios mosntruosos do ventre maldito que os concebera.107

Agora, quando sucumbe nas dores de ser mulher por sofrer assédios constantes de
Capriúna, um sexo frágil. Diz o autor

Sob os músculos poderosos de Luzia-Homem estava uma mulher tímida e


frágil, afogada no sofrimento que não transbordava em pranto, e só irradiava,
em chispas fulvas, nos grandes olhos de luminosa treva.108

Teresinha é a primeira mulher a se aproximar de Luzia, e confirma que esta é


realmente uma mulher, quando a encontra tomando banho no rio nua.

Teresinha não despregava dela os olhos, em êxtase de admirativa curiosidade. (...)


- Agora sou sua defensora - continuou a outra torcendo os cabelos ensopados - Hei de
punir por você em toda parte, porque vi com os meus olhos que é uma mulher como
eu, e que mulherão!109

A amizade entre ambas inicia aí, mas se fortalece quando Teresinha vem dar a notícia
a Luzia que Alexandria havia sido preso, acusado de roubar dinheiro do armazém, desse
episódio em diante, passa a morar com Luzia e sua mãe e a fazer companhia para ambas, e a

106
Ibidem, p. 17
107
Ibidem, p. 20-21
108
Ibidem, p. 20
109
Ibidem,p. 21
57
cuidar da velha enquanto Luzia ia levar comida na cadeia para Alexandre e tentar resolver o
caso com o Promotor quem também a olhou com olhares invasivos

Luzia, reparou, então em seu desalinho, e sentiu um calefrio de pejo, como se a


lambessem aqueles olhos que a fitavam com insistência, olhos mortos de volúpia.
Colheu os cabelos, toda aflita e ruborizada; enrolou-os rapidamente, e os prendeu com
um gesto gracioso no alto da cabeça, e abrigou-se no lençol branco de babados de
cambraia de salpicos.110

A narrativa passa a se desenvolver em torno da prisão injusta de Alexandre, Luzia


tenta de várias maneiras buscar soluções e meios de inocentar Alexandre, primeiro tentando
convencer o Promotor de sua bondade, por ser uma grande amigo de todos depois indo vender
seus cabelos a ele e sua esposa em troca de dinheiro para rezar um respônsio de Santo
Antônio com Rosa Veado, que ajudaria na resolução do caso segundo Teresinha.
A venda acontece, Luzia vende seu cabelo para Matilde, esposa do Promotor, que
impõe a condição de não cortá-lo e de cuidá-lo. Assim Luzia consegue o dinheiro e Teresinha
faz a reza com Rosa Veado. Esse episódio da venda do cabelo, é sugestiva, nos lembra da
reflexão de Walnice Galvão, de que as personagens ao cortarem o cabelo demarcam o sinal de
uma donzela-guerreira, enquanto Sansão perderia suas forças a donzela-guerreira ganharia,
sendo o cabelo “sua força vital”111. A donzela-guerreira cortando o cabelo também deixaria de
lado suas "especificidades enquanto mulher”, adotando valores masculinos.112
Mas no caso de Luzia o corte não acontece de fato, ela não precisa deixar de lado uma
feminilidade que estaria ligada aos cabelos, ainda com seus longos cabelos cacheados é vista
como virago, macho fêma ou mulher-homem. Ela não ganharia poder algum.
Quando questionada pelo Promotor sobre seu apelido, Luzia explica que desde criança
fora acostumada a andar vestida de homem para poder ajudar o pai no trabalho, realizando
diversas funções na fazenda, deixando de usar camisa e ceroula quando já tinha 18 anos.

Desde menina fui acostumada a andar vestida de homem para poder ajudar meu pai
no serviço. Pastorava o gado; cavava bebedores e cacimbas; vaquejava a cavalo com

110
Ibidem, p. 36
111
GALVÃO, Walnice Nogueira. A donzela guerreira - um estudo de gênero. São Paulo: Senac, 1998, p. 175
112
Idem, p. 175
58
o defunto; fazia todo o serviço da fazenda, até o de foice e machado na derrubada dos
roçados. Só deixei de usar camisa e ceroula e andar encoirada, quando já era moça
demais, ali por obra dos dezoito anos. Muita gente me tomava por homem de verdade.
113

Sobre essas tarefas desempenhada por Luzia vista como de homens, Silvana A. da
Silva enfatiza que esses papéis sociais “não surtiam efeito na população negra, uma vez que
homens e mulheres, desde a escravidão estavam acostumados a fazer as mesmas tarefas, eram
utilizados para os mesmos tipos de serviços, não havia divisão”114. Portanto, essa problemática
invocada na narrativa pelo autor é permeada pelos ideais patriarcais das classes senhoriais, no
qual pautavam a feminilidade branca vigente no período de produção da obra.
Talvez, o principal seja a inversão de papéis sociais de homens e mulheres, ou como
ouvimos geralmente “coisa de mulher'', “coisa de homem”, então se vestir de homem, ir para
a guerra, cortar o cabelo, etc. Nas narrativas de Donzela - Guerreira, o pai tem papel
importante, enquanto a mãe aparece ausente ou debilitada, os ideais de força e poder estão
expressos na figura do pai, sendo assim, a constituição desse corpo ora masculino, ora
feminino, se fortalece quando o pai sai de cena e a personagem passa a assumir suas funções,
após sua morte é ela a responsável pelos cuidados da mãe, em trabalhar fora e manter a casa
como acontece com Luzia.
A partir da visão do autor, homem e branco do século XIX e XX e da elaboração que
faz de Luzia, é possível trazer diversas reflexões sobre gênero e corpo, com o apoio da obra
de Judith Butler. A mais pertinente para essa discussão é a noção de gênero enquanto
construção social, cultural e discursiva.115 O gênero de Luzia é colocado em discussão, pois as
marcas que ela traz no corpo são do desvio, foge de uma feminilidade, é calcado naquilo que é
compreendido como características de homem (força, pêlos, etc).
São as falas dos personagens que desenham em Luzia que a mulher deve estar no
corpo feminino, portanto carregar um conjunto de práticas que expressaria uma feminilidade.

113
Ibidem, p. 36
114
SILVA, Silvane Aparecida da. Silvane Aparecida da Silva Racismo e Sexualidade nas Representações de
Negras e Mestiças no Final do Século XIX e Início do XX. São Paulo , 2008. (Dissertação de Mestrado). p. 31
115
BUTLER, J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Tradução de Renato Aguiar. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p. 24-25.
59
São as produções culturais (literatura, cinema, música) que repetem a mesma lógica,
alimentando com imagens e discursos o que seria a mulher-macho.
Outro ponto a ser observado é que a maneira pela qual Olímpio elabora Luzia não
difere muito de como Euclides da Cunha caracteriza os sertanejos de Canudos. Sob a
perspectiva do racismo científico, o sertanejo é pensado como sub-raça, é elaborado como o
não ser, uma vez que é inferiorizado e animalizado em diversas passagens. Em Luzia Homem
há vestígios da mesma influência cientificista, a personagem é elaborada tal qual o meio:
seco, embrutecido, viril, a ser dominado e domesticado, em algumas passagens é associada a
um animal, uma não fêmea. Luzia é racializada pelo autor em diversas passagens a partir do
olhar dos personagens, então esse desvio da natureza, macho e fêmea, é uma não branca116,
nos fazendo lembrar de Lugones abordado anteriormente. Ora aberração, ora sexualizada, um
corpo público que todos falam, maldizem e que sofre com assédios e olhares invasivos. Em
ambas as narrativas há a racialização dos personagens.
O fim de Luzia é trágico, mesmo após conseguir, junto com Teresinha, inocentar
Alexandre e prender Capriúna, quando todos eles iam embora da cidade rumo ao litoral, para
amenizar o problema respiratório que a mãe de Luzia tinha, Capriúna foge da cadeia e vai
atrás de Luzia, trava uma luta violenta com ela, Luzia a sertaneja sucumbe, é estuprada e
depois assassinada. Dentro da concepção de donzela-guerreira, “destina-se a sua morte real ou
simbólica”117.
Percebe-se uma regularidade de elementos que compõem a obra de Domingos
Olímpio, acionando os mesmos signos raciais, de gênero e de território discutidos
anteriormente. Luzia nas críticas da imprensa foi vista como heróica e sofrível tal qual os
sertanejos de Cunha, Hércules e Quasímodos. São atributos que não ultrapassam os elementos
do corpo ou da emoção, num aspecto biologizante, como se fossem atributos naturais, ou algo
da essência desses povos.

116
OLÍMPIO, Domingos. Luzia-Homem. 12. ed. São Paulo: Ática, 1995,p. 24
117
GALVÃO, Walnice Nogueira. A donzela guerreira - um estudo de gênero. São Paulo:Senac, 1998, p. 12

60
3. OS SENTIDOS E OS USOS DE MULHER-MACHO NOS ANOS 1950

Revisitar o tema da migração me transporta para os causos que ouvi dos meus avôs
paternos e maternos. De um lado, meu avô Raimundo traz as brigas entre as famílias Alencar
e Sampaio no Exu118, ele dizia que foi por conta disso que veio para São Paulo119. Do outro
lado, meu avô Dioci me contou que sua vinda para São Paulo pela primeira vez foi para
buscar dinheiro para ajudar o pai, mas logo retornou por causa da saúde do mesmo120. A
segunda vez foi para dar “princípios” aos filhos:

A segunda vez eu vim pra pude dar estudo pra meus filho, que eu morava em fazenda,
então eu não tinha estudo, aí eu falei pra meu patrão que eu tinha que vim embora pra
uma cidade, que eu não podia ficar morando numa fazendo que eu não tinha condição
de dar pagar estudo pra meus filho na cidade. Aí eu vim embora pra São Paulo, aí
batalhei até que eu pus todo mundo no estudo, foi onde aprenderam as primeira letra
foi aqui em São Paulo.121

São muitos causos e memórias que atravessam a minha vida e a da minha família. São,
também, muitas as representações que são evocadas e agenciadas por todos nós, sob a ótica da
saudade, ainda que esporadicamente visitemos os que lá ficaram. É comum a saudade do
Geribá (Bahia) e Exu (Pernambuco). É frequente ouvir da minha família materna
pernambucana: “Lá no norte”, que nos remete à antiga divisão regional do país entre Norte e
Sul.
Expressões de cabra macho, mulher macho, se reunir para comer baião, ter um Padin
Ciço nas estantes da sala, entre tantas imagens cotidianas são comuns na minha família e por
muito tempo acreditei conterem uma espécie de reduto da cultura nordestina. Lampião,
segundo minha avó Socorro, era primo de segundo grau de sua mãe. Então o cangaço sempre
foi exaltado, gente valente que lutava contra os ricos a favor dos pobres.

118
Programa exibido em 1978 pela Rede Globo sobre as mortes vindas das brigas Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=qeVq46R9WOQ&t=8s Acesso Jun. de 2021
119
A primeira vez que meu avô veio para São Paulo foi em 1977, voltaram pro Exu no começo de 1981 e em
1982 retornaram novamente para São Paulo.
120
Foram idas e vindas do meu avô, primeiro aos 18 anos na década de 1960, e depois uma série de idas e vindas
com a família no final dos anos de 1970 e início de 1980. Até ficarem de vez no final da década de 80.
121
Entrevista realizada em 2016 para a UC de Lab III do departamento de história da Unifesp, campus Guarulhos
61
A migração potencializa esses discursos. Estar fora de seu território talvez faça
necessário recriar e evocar certos símbolos de pertencimento, ser nordestino faz sentido mais
no Sudeste, que em Pernambuco ou na Bahia. Por outro lado, aqui eles são chamados de
nordestinos ou “bahias” e “paraíbas”, sempre no movimento de colocar todos em um bloco
homogêneo, dissipando singularidades, vivências e reforçando estereótipos.
O conflito se dá, talvez, justamente por isso, o movimento de querer reconstruir e
manter suas diferentes práticas culturais e cotidianas aqui ao passo que historicamente, a
imprensa, a literatura, a música e programas radiofônicos estavam em constante repetição do
que seriam esses povos e essa região, esse processo de reconstruir a cultura aqui no Sudeste
pode pensar no termo diáspora122 muito caro aos estudos de migração com vertente pós
colonial.
O estímulo à imigração já era prática do Estado Brasileiro antes mesmo de 1930, no
entanto é aproximadamente neste período que tem início um estímulo oficial para apresentar
uma São Paulo moderna, acolhedora e repleta de oportunidades, que se intensifica para outros
estados brasileiros.
A imagem elaborada de São Paulo, por exemplo, como o lugar do progresso, do
trabalho e com bons salários, está em contraponto à imagem que se constrói do Nordeste, o
lugar de secas, flagelados e retirantes.
Nos anos de 1950 esse movimento migratório se intensificou, principalmente para as
cidades do Rio de Janeiro e de São Paulo, pois eram os principais polos industriais do país. A
busca por oportunidade de emprego, educação, bons salários, não eram uma realidade para
todos, as condições precárias que muitos viviam e a instalação nas periferias é registrada pela
historiografia. Além disso, há a forma pela qual essas pessoas são enxergadas em um lugar
desconhecido, principalmente, oriundas do sertão.
A chegada dos migrantes altera a paisagem, quantas “casas do norte” não temos por
aí? Principalmente, nas periferias, CTN, Feira de São Cristóvão, Praça do Forró, entre tantos
outros lugares, construídos nessa diáspora para reconstruir e manter suas diferentes práticas
culturais. Para Odair Paiva

122
HALL, Stuart. Da Diáspora: Identidades e Mediações Culturais. Org. Liv Sovik. Belo Horizonte: UFMG,
2009. 410 p. (Humanitas)
62
A inserção destes novos sujeitos transformou antigos territórios e convivências ao
passo que implantou novos elementos na paisagem. Como toda migração, a chegada
de nordestinos em São Paulo constituiu-se por redes sociais que a retroalimentaram123.

Neste capítulo, vamos discutir imagens da mulher-macho que circulavam em SP nos


anos 1950, pela imprensa e sobretudo no rádio. Para o historiador, se debruçar sobre essa
mídia, enquanto meio de comunicação imerso em processos históricos, disputas políticas e de
poder, e também, a produção das radionovelas, é pensar sobre as “estratégias” e “táticas”,
como apresenta Michel de Certeau, na busca por

explicitar as combinatórias de operações que compõe também (sem ser


exclusivamente) uma “cultura” e exumar os modelos de ação característicos dos
usuários, dos quais se esconde, sob o pudico nome de consumidores, o estatuto de
dominados (o que não quer dizer passivos ou dóceis). 124

Aqui, se evidencia muito mais as estratégias e as condições históricas que


possibilitaram elaborar e consolidar a imagem do Nordeste e de homens e mulheres desse
território, acionando imagens fruto da temática regionalista, como o cangaceiro, o coronel, o
jagunço etc. Certeau entende como estratégia

o cálculo das relações de forças que se torna possível a partir do momento em que um
sujeito de querer e poder é isolável de um “ambiente”. Ela postula um lugar capaz de
ser circunscrito como um próprio e, portanto, capaz de servir de base a uma gestão de
suas relações como uma exterioridade distinta.125

São as maneiras de fazer que selecionamos, pelo fato de não termos tido uma
aproximação maior com aqueles que ouviam o rádio e a radionovela, para adentrar de forma
considerável o mundo do ouvinte e apreender os movimentos de apropriação ou rejeição

123
PAIVA, Odair da Cruz. Histórias da (I)migração: imigrantes e migrantes em São Paulo entre o final do
século XIX e o início do século XXI. São Paulo: Arquivo Público do Estado, 2013. Disponível em:
http://www.arquivoestado.sp.gov.br/site/assets/publicacao/anexo/historias_da__i__migracao.pdf. Acesso em: 20
jul. 2021, p. 137
124
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano. 3a edição. Petrópolis, Editora Vozes: Rio de Janeiro, 1998,
p. 38
125
Idem, p.46
63
daquilo que era fabricado pelos sujeitos de querer e poder. O que temos, e teremos que
trabalhar só com isso, são algumas hipóteses dado ao grande sucesso e a recepção na
imprensa.
Na pretensão de projetar o Brasil na corrida das inovações tecnológicas, o rádio foi
introduzido em 1922 no Rio de Janeiro, até então capital federal. Lia Calabre, destaca a
derrubada do Morro do Castelo para construção de pavilhões para a Exposição Nacional,
espaço que seria realizado a comemoração do Centenário da Independência Brasileira e a
primeira transmissão radiofônica, com o discurso de Epitácio Pessoa e trechos da ópera O
Guarany de Carlos Gomes que foi tocada no Teatro Municipal126.
O estabelecimento do rádio no país teve duas faces, o veículo tinha caráter privado e
então era submetido às regras do mercado econômico, mas estava sob o controle do Estado,
quem concedia a liberação do funcionamento das emissoras por um período de dez anos e
quem exercia o papel também de cassar as emissoras em casos do não cumprimento da lei de
comunicação.127
Renato Ortiz e Lia Calabre apontam várias dificuldades enfrentadas nos primeiros
anos de atividade da rádio, acarretando no desaparecimento de algumas delas. Calabre
enfatiza que, embora tenham surgido emissoras em todos país, “as rádios cariocas e paulistas
tiveram posição de destaque no cenário radiofônico nacional”128. Segundo Ortiz

Existiam poucos aparelhos, eram de galena, e o ouvinte tinha que pagar uma taxa de
contribuição para o Estado pelo uso das ondas. A década de 20 é ainda uma fase
experimentação do novo veículo de radiodifusão que se encontrava muito mais
amparada no talento e na personalidade de alguns indivíduos do que numa
organização de tipo empresarial129

A saída encontrada para criação de novas emissoras foi a constituição de


rádio-sociedades, contendo associados e a obrigatoriedade de colaborar com um valor mensal,
Calabre indica que esta verba arrecadada era talvez a única fonte de renda das emissoras130.

126
CALABRE, Lia. A era do rádio. Editora Schwarcz-Companhia das Letras, 2002. p. 10
127
Idem, p. 12
128
Ibidem, p. 11
129
ORTIZ, R. 1988. A Moderna Tradição Brasileira. Cultura brasileira e indústria cultural. São Paulo,
Brasiliense, p. 39
130
CALABRE, Lia. A era do rádio. Editora Schwarcz-Companhia das Letras, 2002, p. 12
64
Havia a falta de verba das emissoras, a escassez dos aparelhos e consequentemente o
seu valor alto que resultava na compra apenas por uma pequena parte da população, os
problemas técnicos e a desconfiança de boa parte dos patrocinadores, embora não houvesse
programas comerciais, “havia durante a irradiação a citação de alguns patrocinadores”131.
Quanto a isso, Calabre apresenta que

A própria prática de anunciar os produtos ainda não era largamente utilizada pela
indústria e pelo comércio na década de 1920; o rádio naquele momento um veículo
novo, despertava ainda mais a desconfiança dos possíveis anunciantes, acostumados,
no máximo, a veicular suas mensagens comerciais através da imprensa e de painéis.132

Com a vinda das agências de publicidade estrangeiras no final da década de 1920 e


início de 1930133, com a introdução dos rádios de válvula e a mudança na legislação quanto a
publicidade, o panorama das dificuldades acima apontadas começam a se modificar.

As emissoras podem agora contar com uma fonte de financiamento constante e


estruturar sua programação em bases mais duradouras. Evidentemente isto iria
modificar o caráter de rádio, que se torna cada vez mais um veículo comercial, a
ponto de alguns anunciantes se transformarem em verdadeiros produtores de
programas, como no caso da Standart Propaganda e da Colgate Palmolive, que
contratavam atores, escritores e tradutores de radionovelas.134

Essa ampliação do público ouvinte impactou na programação veiculada, que até então
dedicava quase totalmente a programas de cunho erudito, o rádio dos anos 20 era caro e
apenas alguns podiam comprar, sua programação era destinada para poucos. A chegada dos
rádios com alto falantes permitiu a escuta coletiva e o começo da popularização tanto do
aparelho quanto das programações135.

131
Idem, p. 14
132
Ibidem, p. 14
133
Ibidem, p. 14
134
ORTIZ, R.. A Moderna Tradição Brasileira. Cultura brasileira e indústria cultural. São Paulo,
Brasiliense.1988, p. 41
135
CALABRE, Lia. A era do rádio. Editora Schwarcz-Companhia das Letras, 2002, p. 22
65
A curiosidade e o desejo das camadas populares de possuírem aparelhos de rádio
cresciam,e, quando as famílias ainda não podiam ter seus próprios rádios, lançavam
mão de uma prática que se tornou muito corriqueira: a de ser um rádio-vizinho. Era
comum que as famílias que tinham os aparelhos de rádio partilharem com os vizinhos,
permitindo que acompanhassem parte da programação. Alguns estabelecimentos
comerciais também mantinham aparelhos de rádio ligados como forma de atrair a
freguesia136

Ainda na década de 30, diante dos acontecimentos políticos, ficou evidente o poder de
mobilização do rádio e “mostrou-se um excelente meio de propaganda ideológica”137. Neste
período, Velloso expõe que houve a constituição de um mecanismo de propaganda do governo
com a finalidade de “divulgar e popularizar a ideologia do regime junto às diferentes camadas
sociais”138, por meio do DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda).

Na realidade, as origens dessa instituição remontam a um período anterior ao Estado


Novo. Em 1934 Vargas já defendera a necessidade do governo associar o rádio,
cinema e esportes em um sistema articulado de “educação mental, moral e higiênica”.
139

3.1 Luiz Gonzaga, o Rei do Baião

Iniciamos esta investigação pela trajetória de Luiz Gonzaga, compositor e intérprete


da música Paraíba, mulher macho. Consideramos que sua vida está refletida em sua obra, nos
atemos, também, a outros elementos como performance, ritmo, instrumentação, tema, etc que
nos orientam a analisar uma fonte musical ou poesia cantada como indica José Assunção
D’Barros.
Se pretendo estudar a música como tema de pesquisa, devo considerar não apenas a
dimensão poética das realizações musicais (das composições, por exemplo), mas
sobretudo a dimensão propriamente musical das realizações musicais. Se, como

136
Idem, p. 25
137
CALABRE, Lia. A era do rádio. Editora Schwarcz-Companhia das Letras, 2002, p. 18
138
VELLOSO, Monica Pimenta. Os intelectuais e a política cultural do Estado Novo. Rio de Janeiro:
Fundação Getúlio Vargas, 1987. Disponível em:
http://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/bitstream/handle/10438/6604/803.pdf?sequence=1. Acesso em: 20 jul.
2021, p. 19
139
Idem, p. 19
66
historiador, considero apenas a “letra” de uma música, estou elaborando uma História
da poesia cantada, e não propriamente uma História da Música.140

A migração foi um fenômeno que também atravessou a vida de Luiz Gonzaga e é


fortemente explorado em sua obra. Para Ruberval José da Silva,

Nesse processo de gestação do Baião, acontecimentos da biografia de Luiz Gonzaga


ganharam relevância na medida em que suas canções representavam algumas das
experiências de sua vida, na condição de migrante que foi, e que eram comuns para
uma parte do público que havia migrado para a cidade do Rio Janeiro ou São Paulo.141

Luiz Gonzaga do Nascimento nasceu em Exu - Pernambuco (1912 -1989),


especificamente na Fazenda Caiçara, onde seu pai prestava serviço. A região estava localizada
próximo a Serra do Araripe, possuindo assim drenagem de águas, embora esteja no semiárido
pernambucano, a Serra do Araripe engloba parte do Piauí, Ceará e Paraíba, portanto

assegura o abastecimento de água para a população e a lavoura mesmo nos períodos


de seca, dada a sua conformação natural. Não por acaso, aquelas terras eram
dominadas política e economicamente pelo Barão de Exu, da poderosa família
Alencar que não reconhecia as fronteiras dos estados limítrofes, pois estava
ramificada por toda parte daqueles territórios.142

Gonzaga era o segundo de nove filhos, seu pai Januário era um sanfoneiro conhecido
da região, foi com o pai que aprendeu a tocar e afinar o instrumento e com oito anos de idade
substituiu um sanfoneiro em uma festa tradicional e, a partir daí, os convites tornam-se
frequentes.143
Em 1930 aos 17 anos Gonzaga fugiu de Exu, Silva apresenta a entrevista do cantor
concedida ao MIS - RJ, os motivos para a fuga foram em consequência de seu envolvimento
com a filha de um proprietário de terras, que desaprovava Gonzaga, o cantor foi ameaçado na

140
BARROS, José D’Assunção. Música e História. Ed Cela. Rio de Janeiro, 2017, s/p
141
DA SILVA, Ruberval. Vida de Viajante: uma análise da obra musical do compositor e intérprete Luiz
Gonzaga na cidade do Rio de Janeiro (1940–1970), 2017. Tese de Doutorado. PUC-Rio, p. 17
142
Idem, p. 23
143
Sobre Luiz Gonzaga. Disponível em: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa359569/luiz-gonzaga
Acesso: Junho de 2021
67
feira da cidade, local onde a mãe trabalhava e deu lhe uma surra144, é um episódio que marca a
vida de Gonzaga e que o faz escrever algumas músicas sobre a moça.

Neste relato há a prefiguração que ele expôs na canção “Pau de arara”. Foi com a
“cara e a coragem” que o jovem Luiz Gonzaga, com apenas 17 anos de idade, fugiu
de casa levando poucos pertences pegando o trem na cidade do Crato – no Ceará,
próximo à cidade de Exu – e partindo para Fortaleza para se alistar no Exército no
momento em que acontecia a Revolução de 1930.145

A saudade é aspecto importante da obra Gonzagueana, resultando na identificação


daqueles que também migraram, as rememorações dos lugares que passaram, das “paisagens
do Norte”. Gonzaga apresenta em sua obra a sua narrativa histórica do deslocamento,
deslocamento este que é individual e coletivo. Para Albuquerque Jr, o Nordeste é espaço da
saudade não só para os filhos de famílias tradicionais que perderam poder político no
Nordeste, mas também

para milhares de homens pobres, do campo, que foram obrigados a deixar seu local de
nascimento, suas terras, para migrar em direção ao Sul, notadamente, São Paulo e Rio
de Janeiro, para onde iam buscar empregos, na pujante agricultura comercial, mas
sobretudo, no parque industrial que, a partir da Primeira Guerra, se desenvolve
aceleradamente.146

A década de 1930 é marcada por vários acontecimentos políticos, no Rio de Janeiro,


São Paulo, Recife e na Paraíba, nesse contexto Gonzaga se alistou ao Exército. São
acontecimentos inclusive explorados em suas músicas, por exemplo, Respeita Januário e
Paraíba.
Em 1939 Gonzaga chega ao Rio de Janeiro, já em vistas de ser dispensado do Exército
por ter cumprido dez anos de serviço, ele tomaria o navio de volta para o Recife e de lá para
Exu. No entanto, foi visto tocando sanfona, de quem comprara de italianos em São Paulo, fora

144
DA SILVA, Ruberval. Vida de Viajante: uma análise da obra musical do compositor e intérprete Luiz
Gonzaga na cidade do Rio de Janeiro (1940–1970) 2017. Tese de Doutorado. PUC-Rio, p. 27
145
Idem, p. 27
146
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. A invenção do Nordeste e outras artes. São Paulo: Cortez,
2011, p. 171
68
persuadido por outro soldado a ficar e ir tocar o instrumento nas ruas do Mangue, em troca de
dinheiro para ambos.147
As músicas tocadas ainda não eram o Baião, tocava um bocado de coisa, passou a ser
convidado a tocar em muitos lugares e chamar atenção de muitas pessoas, assim passou a
estabelecer contatos com músicos da localidade.
Antes de ter seu caminho traçado ao de Humberto Teixeira, Gonzaga já queria cantar
as músicas do sertão e do “Norte” inspirado em Pedro Raimundo, um sanfoneiro gaúcho que
cantava nas rádios e fora levado para a Rádio Nacional por Almirante.148 O cantor gaúcho se
apresentava com “roupas típicas dos pampas”, isso despertou em Gonzaga o desejo de fazer o
mesmo, que até então segundo Saroldi, se vestia com linho e sapato de verniz149, talvez para
além de querer se enquadrar na elegância da capital carioca, Gonzaga tendo noção de ser um
homem migrante e não branco, sentia a pressão de estar na “estica”.
É notório ver os trabalhos a respeito de Luiz Gonzaga e a falta de racialização do
cantor, influenciando inclusive na maneira que será abordado questões como essa, a
preocupação com o tipo de roupa, o obstáculo da sua aceitação nos programas de auditório
por conta do sotaque, da voz150 entre outros, onde é preciso olhar sob ótica interseccional151 a
xenofobia e o racismo sofrido pelo cantor.
Quando decidiu reivindicar os trajes de cangaceiro que para ele representaria a
identidade nordestina, para cantar na Rádio Nacional foi impedido por Floriano Faissal, esse
episódio é narrado por Gonzaga em entrevista ao Jornal do Brasil, apresentada por Saroldi em
seu livro.152 Apesar do ocorrido, Gonzaga insistiu no uso das vestimentas, até conseguir ser
aceito em 1943.

Por volta de 1943, Luiz Gonzaga transferiu-se para a poderosa Rádio Nacional e
conseguira gravar algumas músicas (sambas, choros e mazurcas) como solista, pois

147
DA SILVA, Ruberval. Vida de Viajante: uma análise da obra musical do compositor e intérprete Luiz
Gonzaga na cidade do Rio de Janeiro (1940–1970) 2017. Tese de Doutorado. PUC-Rio, p. 35
148
SAROLDI, Luiz Carlos; MOREIRA, Sônia Virgínia. Rádio Nacional, o Brasil em sintonia.Rio de Janeiro.
Funarte, 2005, p. 39
149
Idem p. 39
150
Hemeroteca digital - Biblioteca Nacional: Revista do Rádio RJ Ano 1950 / Edição 00027
151
COLLINS, Patricia Hill. Em direção a uma nova visão: raça, classe e gênero como categorias de análise e
conexão. Reflexões e práticas de transformação feminista. São Paulo: SOF, p. 13-42, 2015.
152
SAROLDI, Luiz Carlos; MOREIRA, Sônia Virgínia. Rádio Nacional, o Brasil em sintonia.Rio de Janeiro.
Funarte, 2005, p. 39
69
encontrou algumas resistências dentro daquela Rádio por causa da sua voz que não
agradou aos produtores e diretores.153

A emissora que notadamente já vinha explorando em suas programações temas


folclóricos, resolveu aceitar Gonzaga e aí que o cantor conhece Lauro Maia, reconhecido
compositor no Rio de Janeiro, cujas canções faziam para o grupo cearense 4 Ases e um
Coringa. Lauro Maia era cunhado de Humberto Teixeira, foi assim que Gonzaga e Teixeira se
conheceram, desse encontro resultou uma parceria que criaria o Baião. Gonzaga ficaria
conhecido como o rei do gênero, e Teixeira como o doutor. Em um depoimento ao MIS - RJ
Humberto Teixeira explica esse encontro e a busca pelo ritmo, esse depoimento está
dissertação de Silva,

“(...) Eu já vi seu estilo dentro desses xotes que você faz. Nós precisamos fazer umas
coisas puramente nordestinas. Descobrir um ritmo novo’. E então, naquela noite,
tinham saído os últimos clientes e eu fiquei até horas com Luiz Gonzaga no meu
escritório conversando, debatendo, calculando, verificando o que seria possível dos
ritmos mais conhecidos do Nordeste... ‘É melhor um ritmo que já tenha raiz, que
tenha, ao menos, uma certa sedimentação. Que pelo menos uma parte do povo já
conheça. É uma questão de nós urbanizarmos, de nós citadinizarmos esse ritmo. Nós
darmos características comerciais para gravação’.”154

Essa tentativa de urbanizar o baião, me chama atenção e penso na hipótese dessa


estratégia estar em diálogo por exemplo, da gravação por Emilinha Borba de Paraíba e
Carmélia Alves de outras canções, duas mulheres de grande prestígio nas rádios do período e
ambas cariocas, é em cima desta hipótese que analisaremos a letra Paraíba na sessão
seguinte.
Além da Rádio Nacional, Gonzaga trabalhou na Mayrink e na Rádio Record São
Paulo. Segundo Albuquerque Jr. esse foi um movimento de alcançar a comunidade de
migrantes que havia em São Paulo e no Rio de Janeiro, trazendo assim maior capital de
público para a indústria fonográfica.

153
DA SILVA, Ruberval. Vida de Viajante: uma análise da obra musical do compositor e intérprete Luiz
Gonzaga na cidade do Rio de Janeiro (1940–1970), 2017. Tese de Doutorado. PUC-Rio, p.38
154
Idem, p. 39
70
A Rádio Nacional apareceu em um cenário de crescimento e popularização do rádio
em 1936, sob a orientação do jornal A Noite155. Em 1940 foi incorporada pelo Estado,
segundo Calabre, foi entre 1940 e 1946 que a emissora de destacou no cenário radiofônico, se
consolidando “na posição de campeã de audiência (que manteve até a década de 50), tendo
156
como diretor Gilberto de Andrade”.

Em 19 de abril, dia do aniversário de Vargas, são inaugurados os novos estúdios da


Rádio Nacional. (...) Gilberto de Andrade anuncia que um de seus objetivos é o de
"transformar a rádio em veículo de difusão cultural-artística e de brasilidade”.157

Percebe-se a relação entre a programação da Rádio Nacional e a formação de uma


nacionalidade, com temáticas folclóricas, “comemorações de grandes datas e heróis
expressivos da nacionalidade”158. O folclórico aqui está em harmonia com a concepção do
popular que havia entre intelectuais como Sílvio Romero, onde cultura popular estava
relacionada com a tradição, algo a ser conservado nos museus.159

3.2 Paraíba Masculina, Muié Macho, Sim Sinhô!

Procuramos aqui, mapear a recepção e circulação pelo público geral, por meio dos
jornais, da música Paraíba tanto quando cantada por Emilinha, quanto por Gonzaga e
veiculada nos rádios e nos programas de auditório. É importante evidenciar que o interesse
principal é refletir sobre a difusão da expressão mulher-macho, presente no refrão.
Destacamos a imagem que possivelmente se consolida das mulheres do Nordeste, a partir do
sucesso do Baião enquanto gênero musical.

155
SAROLDI, Luiz Carlos; MOREIRA, Sônia Virgínia. Rádio Nacional, o Brasil em sintonia.Rio de Janeiro.
Funarte, 2005, p. 16
156
CALABRE, Lia. No tempo do rádio: radiodifusão e cotidiano no Brasil 1923-1960. 2002, p.15
157
VELLOSO, Monica Pimenta. Os intelectuais e a política cultural do Estado Novo. Rio de Janeiro:
Fundação Getúlio Vargas, 1987. Disponível em:
http://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/bitstream/handle/10438/6604/803.pdf?sequence=1. Acesso em: 20 jul.
2021, p. 22
158
Idem, p. 23
ORTIZ, R. 1988. A Moderna Tradição Brasileira. Cultura brasileira e indústria cultural. São
159

Paulo, Brasiliense, p. 160


71
De acordo com Napolitano, a cidade do Rio de Janeiro, palco de grande efervescência
cultural, forjou ao longo do século XIX e XX, boa parte das nossas formas musicais urbanas
160
. O autor, atenta para o fato que nos anos 50 havia um movimento dos folcloristas de
defender a “autenticidade”, como também de nacionalizar o rádio pela entrada massiva de
artistas de origem popular e de gêneros não conspurcados pelos estrangeirismos musicais161.
Percebemos que houve uma intenção mercadológica por parte dos criadores do Baião,
principalmente, Humberto Teixeira em criar um gênero com a “cara do Nordeste”. Isso nos
projeta para pensar o espaço de poder e saber que o produtor cultural ocupa, ainda que sejam
estes criadores do Ceará e do Pernambuco, a forma pela qual o Nordeste, a seca e a
masculinidade vão ser exploradas na obra Gonzagueana é homogeneizante, seja nas diferentes
experiências da migração, seja pela forma que falam das mulheres e homens de diferentes
estados no Nordeste.

A música de Gonzaga vai ser pensada como representante desta identidade regional
que já havia se firmado anteriormente por meio da produção freyriana e do “romance
de trinta”. (...) Usando o rádio como meio e os migrantes nordestinos como público, a
identificação do baião com o Nordeste é toda uma estratégia de conquista de mercado
e, ao mesmo tempo, é fruto desta sensibilidade regional, que havia emergido nas
décadas anteriores.162

A letra foi escrita em 1946 por Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira, houve vários
intérpretes, como Carmélia Alves163, 4 Ases e Um Coringa164, Orlando Silva165, e Emilia
Borba166, foi na voz desta que a música teve grande repercussão pelo país. Segundo Silva, nos
anos de 1950, há uma internacionalização do Baião para outros países, Carmélia Alves e

160
NAPOLITANO, Marcos. História e música. Belo Horizonte: Autêntica. 2002, p. 27
161
NAPOLITANO, Marcos. Rio, Zona Norte (1957) de Nelson Pereira dos Santos: a música popular como
representação de um impasse cultural. REVISTA ACADÊMICA DE MÚSICA, 2014.p. 77
162
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. A invenção do Nordeste e outras artes. São Paulo: Cortez,
2011p. 175-176
163
LP Carmélia Alves. Disponível em: https://immub.org/album/carmelia-alves Acesso: Maio de 2021
164
78RPM Quatro Ases e um Coringo. Disponível em: https://immub.org/album/78-rpm-60788 Acesso: Maio de
2021
165
78RPM Orlando Silva / Vagalumes do Luar. Disponível em: https://immub.org/album/78-rpm-46051 Acesso:
Maio de 2021
166
78RPM Emilinha Borba / Os Boêmios. Disponível em: https://immub.org/album/78-rpm-45887 Acesso: Maio
de 2021
72
Carmem Miranda contribuíram com esse processo também. O baião estaria em disputa com
outros ritmos considerados regionais, como o samba.

Esse processo de irradiação do Baião para outros países contou com uma rede de
intercâmbio internacional, sem, no entanto, abrir mão da reafirmação do folclore
popular e de uma tradição vinculadas ao discurso nacionalista. Dessa maneira, os
agentes nacionais e internacionais responsáveis pela difusão do Baião não apenas
emplacaram-no como manifestação cultural autêntica do país, como também
associaram-no a uma modernidade musical como novidade.167

Na imprensa, identifica-se uma enquete realizada nas fábricas, gravadoras, nas casas
de discos e pelos pedidos musicais, as canções mais solicitadas da semana, vemos que Baião
de Dois e Paraíba foram as mais pedidas pelo público, na voz de Emilinha. Além do grupo
regional Quatro Ases e um Coringa cantando Cariri e Baião, e também houve pedidos na voz
do próprio cantor, para as canções A dança da moda e Baião parecendo ser uma estratégia em
conjunto o lançamento próximo de várias canções e diversos intérpretes, com a finalidade de
divulgar e popularizar o ritmo e o próprio Gonzaga.

Imagem 1 - Sucessos da Semana

Fonte: Jornal da Hemeroteca Digital - Biblioteca Nacional168

167
DA SILVA, Ruberval. Vida de Viajante: uma análise da obra musical do compositor e intérprete Luiz
Gonzaga na cidade do Rio de Janeiro (1940–1970), 2017. Tese de Doutorado. PUC-Rio, p. 56
168
Hemeroteca digital - Biblioteca Nacional: Revista do Rádio RJ Ano 1950 / Edição 00045
73
Foi importante observar, que dentre os intérpretes comumente citados tanto em
trabalhos acadêmicos quanto na imprensa, pouco se fala de Carmen Costa. Identificamos que
fora a primeira mulher a cantar o Baião Xamego de Luiz Gonzaga em 1944169, nossa hipótese
é que pelo fato de Emilinha e Carmélia serem consideradas rainhas do rádio, serem brancas e
mais bem aceitas nos espaços musicais, ainda que mulheres, nada se fala de Carmem Costa,
uma mulher negra e invisibilizada nessa gama de intérpretes do gênero.
Essa questão contribui para reforçar nossa hipótese sobre a tentativa de urbanizar o
Baião170 introduzindo o gênero a partir da interpretação de nomes de pessoas brancas, aceitas
e reconhecidas no rádio. Jurema Werneck vai discutir o termo “macacas de auditório”, termo
criado entre as décadas de 1940-1950 por Nestor de Holanda, em relação à participação de
mulheres negras na música popular brasileira e no rádio. No ensaio, Werneck apresenta
brevemente a vida de Carmem Costa
Carmen Costa nasceu no interior do Rio de Janeiro em 1920, negra de pele bem
escura. Trabalhando como empregada doméstica desde a infância, aos 15 anos foi
incentivada por seu patrão, o cantor Francisco Alves no auge do sucesso, a iniciar
carreira musical. Cumpriu a trajetória comum aos talentos da época, participando e
vencendo o programa de calouros de Ary Barroso. (...) Gravou cerca de 76 discos e
foi uma das primeiras a apresentar canções de Luiz Gonzaga, tendo atuado também
no cinema.171

Apresentado o panorama geral em torno na questão dos intérpretes do Baião,


adentramos agora para a análise da letra Paraíba, exporemos brevemente seu cunho político
que reflete os acontecimentos de 1930. A historiadora Alômia Abrantes, quem se debruçou
em discutir essa letra, aponta “a superposição de imagens e temporalidades”.172
A música foi composta para narrar os acontecimentos políticos da Paraíba, segundo
Abrantes o que seria um jingle foi encomendado na década de 1940, pelo senador Pereira
Lima,

169
78 RPM Carmen Costa. Disponível em: https://immub.org/album/78-rpm-67314 Acesso: Maio de 2021
170
O homem que engarrafava nuvens. Direção de Lírio Ferreira. Brasil: Good Ju Ju, 2009. (100 min.), P&B.
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=OLLcf8UTnPo. Acesso em: 10 jun. 2021.
171
WERNECK, Jurema. Macacas de Auditório? Mulheres negras, racismo e participação na música popular
brasileira. 2013. p. 12 Disponível em: https://www.fundobrasil.org.br/v2/uploads/files/artigo_jurema.pdf
Acesso: 20 Jul 2021
172
SILVA, Alômia Abrantes da. Paraíba, mulher-macho: Tessituras de Gênero,(Desa)fios da história
(Paraíba, Século XX). 2008. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal de Pernambuco, p. 123
74
da coligação que representava a continuidade político-partidária os que se apoiavam
nas memórias da atuação do Partido Republicano em 1930, mais particularmente da
sua ala conservadora — esta, melhor traduzida na lembrança do coronel José Pereira
Lima frente à Revolta de Princesa.173

Pereira Lima era apoiado pelo governador do estado da Paraíba, ligado à chapa da
Aliança Republicana contra José Américo de Almeida, que foi secretário de João Pessoa em
1930, Almeida era apoiado por Ruy Carneiro. Abrantes aponta que Ameida era “alimentado
pelos ideais considerados revolucionários em 1930”174.
A trajetória política de ambos os senadores se cruza com a de João Pessoa, governador
da Paraíba em 1930, morto por João Dantas. Segundo a historiadora

a música, cruzando temporalidades, (re)afirma um jogo de forças que se mantinha no


fluxo dos acontecimentos políticos no Estado e que permanecerá pondo em circulação
os signos identitários forjados por toda uma série de discursos sobre os eventos e
personalidades ligados aos movimentos que marcaram o fim da Primeira República
no Brasil — também chamada República Velha ou República dos Coronéis.175

A canção foi cantada em julho de 1950 por Luiz Gonzaga em um comício na Paraíba,
evento que resultou em um tiroteio com três mortos e vários feridos176. Além dos elementos
políticos presentes na canção, que são de extrema importância, para essa pesquisa buscamos
pensar a questão de gênero.
Entendemos gênero, aqui, enquanto uma categoria de análise histórica, que nos
permite compreender as construções sociais e culturais, como coloca Joan Scott
O gênero é igualmente utilizado para designar as relações sociais entre os sexos. O
seu uso rejeita explicitamente as justificativas biológicas, como aquelas que
encontram um denominador comum para várias formas de subordinação no fato de
que as mulheres têm filhos e que os homens têm uma força muscular superior. O
gênero se torna, aliás, uma maneira de indicar as “construções sociais” - a criação
inteiramente social das ideias sobre os papéis próprios aos homens e as mulheres.177

173
Idem, p. 123
174
Ibidem, p. 123
175
Ibidem, p. 124
176
Ibidem, p. 124
177
SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação & realidade, v. 20, n. 2, 1995, p.
75
75
Primeiro que é curioso pensar que a música retrata a disputa política, historicamente
ocupada por homens e brancos, de 1950 e evoca os acontecimentos de 1930, dado a polêmica
da morte João Pessoa por Dantas ter sido de origem passional, mobilizando a questão da
honra e virilidade, ter na mesma canção os dizeres “Paraíba masculina, Muié macho, sim,
sinhô”. Para Abrantes,
Justamente a Paraíba de uma masculinidade idealizada naquelas imagens que o baião
utiliza, que remetem a 1930 e que se (re)apresentam naquela disputa política que a
canção pretende animar.178

Como visto no capítulo anterior, a primeira aparição que identificamos do termo na


imprensa remonta a 1927179, numa história de Adaucto Castello Branco sobre Mané do
Riachão, personagem presente também em um cordel de Patativa do Assaré, sem repetir o
causo, a questão é que o termo aparece após a descrição de uma “criatura” vinda do Rio
Grande do Norte, “um virago”, robusta e grandalhona, de aspectos mais masculinos que
femininos, como em Luzia Homem os aspectos do desvio e da ambiguidade. Em 1923 na
literatura, Gustavo Barroso escreve Almas Sertanejas com diversos contos, em um deles em A
moça de Sapiranga, é abordado a diferença entre a mulher do sertão e da cidade, a do sertão,
obviamente, é daquelas que se impõe, que até mata, é valente. O que se percebe é que em
determinados momentos da história as mulheres do Nordeste, sobretudo, do sertão, possuem
seus corpos inscritos a partir do desvio, quando não da animalização.
Com o sucesso da música, da criação do Baião em termos mercadológicos e tendo
como público a comunidade migrante, esse termo se une ao sentido de uma identidade
nordestina mais evidente. A imagem da mulher nordestina se consolida aqui no Sudeste, isso
percebemos pela quantidade da utilização da expressão mulher-macho nos anos de 1950 em
diante na imprensa como indica a tabela abaixo. E mais uma vez o Rio de Janeiro é o local
que mais há ocorrências da expressão nos jornais, tal como na tabela apresentada
anteriormente.

178
SILVA, Alômia Abrantes da. Paraíba, mulher-macho: Tessituras de Gênero,(Desa)fios da história
(Paraíba, Século XX). 2008. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal de Pernambuco, p. 126
179
Hemeroteca digital - Biblioteca Nacional: Correio Paulistano Ano 1927 / Edição 23028
76
Tabela 2. Ocorrências do termo mulher macho, 1950-1960
Periódico Ocorrências

Diário da Noite (RJ) 11


O Norte (PB) 9
O Governador (SP) 8
Correio Paulistano (SP) 7

Pequeno Jornal : Jornal Pequeno (PE) 7

Correio da Manhã (RJ) 6


Diario de Pernambuco (PE) 5
A Manhã (RJ) 5
O Cruzeiro : Revista (RJ) 4
O Dia (PR) 4
Diario Carioca (RJ) 4
O Jornal (RJ) 4
Ultima Hora (RJ) 4
Manchete (RJ) 3
Diário da Noite (SP) 3
Gazeta de Noticias (RJ) 3

Il Moscone : Operazioni di Credito


3
Commerciale Agricolo e Popolare (SP)

Folha do Povo : O vespertino do


2
Espirito Santo (ES)
Pacotilha : O Globo (MA) 2
A Noite (RJ) 2
Jornal de Noticias (SP) 2
A Cigarra (SP) 1
Revista da Semana (RJ) 1
Diário de Natal (RN) 1

A Gazeta da Pharmacia : Orgão


Independente, Informativo e Defensivo 1
dos Interesses da Pharmacia (RJ)

Jornal do Brasil (RJ) 1


Careta (RJ) 1
Diario de Noticias (RJ) - 1

77
O Estado de Mato Grosso (MT) - 1
Folha Capixaba : Defesa da Terra e do
1
Povo do Espirito Santo (ES)
Imprensa Popular (RJ) 1
Jornal dos Sports (RJ) 1
Radiolândia (RJ) 1
Revista do Rádio (RJ) 1
Tribuna da Imprensa (RJ) 1
Jornal do Commercio (RJ) 1
A Tarde (PR) 1

Fonte: Hemeroteca digital - Biblioteca Nacional180

Marchinhas de carnaval começam a surgir com a expressão mulher-macho, jornalistas


possuídos de raiva e medo ao verem mulheres ocupando os espaços políticos, ou para
designar mulheres que não “levam desaforo pra casa” e nem se submete aos mandos do
homem, sejam eles da política ou o próprio marido. A notícia abaixo mostra, por exemplo,
uma mulher que agride e atira em um guarda. A notícia começa com seu nome: “Ercília
Madeira e Mulher Macho agrediu um guarda e lhe deu um tiro”.

É mulher mas é de briga. Topa qualquer parada e costuma dizer que “pau que venta
ali venta cá”. Talvez porque Ercília tenha Madeira no nome, ela se julga pau pra toda
obra. De uma feita, na vizinha capital fluminense, quando era levada para o xadrez,
tentou agredir um investigador, empunhando uma faca. E várias vezes esteve às voltas
com a política em Niterói. Agora botou banca e quase manda para o outro mundo um
guarda municipal. Ercília Madeira que tem 21 anos e não tem moradia certa, estava
dormindo no interior da casa desabitada da rua Andrade Neves, 160. Alguém foi
avisar o guarda municipal Edson Kelly, que incontinenti, partiu pra lá, intimidando
que a mulher saísse da casa. Ercília enfureceu-se, aplicou um “rabo de arraia” no
guarda jogando-o no chão. Depois apoderou-se de seu revólver e desfechou-lhe um
tiro à queima roupa, indo o projétil felizmente, alcançar uma das paredes da habitação
(...)181.

180
Hemeroteca digital - Biblioteca Nacional. Disponível em: https://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital/
Acesso: Maio de 2021
181
Hemeroteca digital - Biblioteca Nacional: A Manhã (RJ) Ano 1951 / Edição 03166
78
Para Butler182 e Scott, gênero é elaborado a partir de signos culturais, a imprensa, a
literatura e nesse caso a música tem papel importante no movimento de representar e dizer
que as mulheres da Paraíba são mulher-macho, isso vai ser adequado para uma “identidade
nordestina” e para designar qualquer mulher que venha dessa região, principalmente no
sentido sempre de homogeneizar e estereotipar. Para Stuart Hall, essa prática tem a
característica de separar o normal e o anormal
Elas se apossam das poucas características “simples, vividas, memoráveis, facilmente
compreendidas e amplamente reconhecidas” sobre uma pessoa; tudo sobre ela é
reduzido a esses traços que são depois, exagerados e simplificados.183

Os momentos que a imprensa irá mobilizar a expressão, - após o sucesso da música e


além de vincular ao Nordeste a Paraíba ou a outro estado - também é para indicar mulheres
que se comportam em desalinho com o papel sexual imposto e consagrado na sociedade184.
Um exemplo que reflete bem essa questão é a notícia de 1951 do jornal o Estado de Goiás,
cujo título é Uma Paraíba na Câmara Municipal, e diz o seguinte

Estão enganadas as pessoas que supõe - certamente influenciadas pelo apreciado


baião de Humberto Teixeira - que “muié macho”, só há na Paraíba. Aqui mesmo em
Goiania, existe uma, dotada de todas as características da curiosa espécie: valente,
mexeriqueira e sempre pronta pra topar qualquer briga. Quem quiser vê-la de perto
pode se dirigir-se á Câmara Municipal das duas às quatro da tarde. Trata-se de uma
balzaqueana já entrada em anos, a decadência estampada nas faces e que atende pelo
nome de Maria José, vereadora eleita pelo PSD. Ignorante a cabotinha, a sra. Maria
José se julga a mais bela e talentosa filha de Eva (Oh! Mundo Ingrato!) (...) Mesmo
antes de tomar posse, já ela havia brigado com seus colegas da bancada do PSD,
cismou de ocupar um lugar à Mesa da Câmara Municipal, com o que não
concordaram os vereadores pessedistas e petebistas. A “paraíba” ficou fula de raiva.
Protestou, xingou, ameaçou. Tudo inútil, porque não sobrou nada pra ela. Viu-se
obrigada a votar em branco, pois os ingratos não lhe deram um lugarzinho na chapa
encabeçada pelo sr. Cláudio das Neves. Depois desta, outras brigas vieram. (...) Maria

182
BUTLER, J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Tradução de Renato Aguiar. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p. 23
183
HALL, Stuart. Cultura e Representação. Rio de Janeiro: Puc Rio, 2016. Disponível em:
https://www.ufrb.edu.br/ppgcom/images/HALL_Cultura_e_Representa%C3%A7%C3%A3o_-_2016.pdf.
Acesso em: 15 maio 202, p. 191
184
Hemeroteca digital - Biblioteca Nacional: Jornal A Manhã (RJ), Ano 1951 /Edição 03166
79
José ficou desfigurada, pediu a palavra, balbuciou uma calúnia contra o vereador (...)
e por fim, desesperada por ter caído em ridículo, desafiou-o para brigar. Com uma
linguagem imprópria, para mulheres decentes, a “paraíba” reptou: “Vamo lá pra fora
que eu não tenho medo de homens”. Como vêem os leitores, Valentia não falta à
vereadora Maria José. O que lhe falta é o decoro, mas seria lícito procurar o decoro
em “mulher macho”?185

Aqui notamos - tal qual no capítulo anterior ainda que no início desse processo - o
quanto mulheres em espaços de poder e ocupado em sua maioria por homens incomoda, a
vereadora é deslegitimada, depreciada e masculinizada quando acionam a expressão, quando
não corresponde ao comportamento que no imaginário masculino as mulheres deveriam ter.
O que percebemos com esta pesquisa, é que em várias esferas, as mulheres quando
ocupam espaços de poder elas precisam ativar ou ativam por elas o arquétipo da heroína
(como traz Walnice Nogueira Galvão com Donzela-Guerreira) para ser respeitada, nos
levando a pensar nesse costume enraizado de separar corpo e mente, razão e emoção, onde a
mulher se limitasse ao corpo e à emoção e o homem à mente e à razão.
Como se mulheres, para estarem em espaços de poder, tivessem que abrir mão de suas
feminilidades para não serem enquadradas no sexo frágil, vide o caso da presidenta Dilma que
em diversas notícias, nas imagens veiculadas ela aparece de maneira séria, masculinizada em
contraposição à Michelle Bolsonaro, a do lar, que embora esteja presente no jogo político, a
imprensa busca enquadrá-la em outro perfil.
Outro ponto é que na literatura, tanto de Luzia Homem quanto nas que Walnice
Nogueira Galvão aborda, essa imagem de donzela-guerreira, mulher-macho, é romantizada ao
serem exaltados os aspectos de força e de coragem. Já no exemplo da notícia acima descrita, o
uso desses sentidos e expressão é de ameaça, perigosa tal qual Ercília Madeira que atirou no
guarda, é uma grande afronta essas mulheres que não se limitam ao papel de passivas e
submissas que insistem em balançar o poder e as masculinidades hegemônicas.
É curioso se pensarmos que Emilinha Borba, primeira mulher intérprete desta canção,
ao cantar não mobilizou os signos considerados da nordestinidade, como o sotaque, a ausência
da sanfona e da vestimenta. Aciona, assim, elementos diferentes quando cantada por Gonzaga
– nacionaliza a canção. Emilinha, considerada uma das rainhas do rádio, fez muito sucesso

185
Hemeroteca digital - Biblioteca Nacional: O Estado de Goiás Ano 1951 / Edição 01400
80
cantando as músicas de Gonzaga186, trazia nas fotografias, vestígios de uma das feminilidades
do período e de acordo com o título de rainha que carregava, amplamente divulgados pela
imprensa, como os penteados, vestidos bem acinturados, etc.
Imprensa esta que, apresentava também que o que era ser mulher-macho e o que não
era, como pontua Michelle Perrot a mulher é, antes de tudo, uma imagem. Um rosto, um
corpo, vestido ou nu. A mulher é feita de aparências. 187

Imagem 2 - Emilinha Borba

Fonte: Jornal da Hemeroteca Digital - Biblioteca Nacional188

186
Hemeroteca Digital: Revista da Rádio (RJ) Ano 1950 / Edição 00023
187
PERROT, Michelle. Minha história das mulheres. 2 ed. São Paulo. Contexto, 2019, p. 49
188
Hemeroteca Digital: Revista do Rádio (RJ) Ano 1958 / Edição 00445
81
Imagem 3 - Emilinha Borba

Fonte: Jornal da Hemeroteca Digital - Biblioteca Nacional189

Já na voz e performance de Luiz Gonzaga, a sanfona juntamente com a vestimenta que


reforça o imaginário do sudeste sobre o sertão e o nordestino, provoca ao ouvir a canção uma
maior associação da identidade nordestina, da valentia e virilidade expressa nas roupas de
vaqueiro / cangaceiro, ou seja, um sertão sonorizado por sua sanfona, que será audível
também em seu sotaque, sua voz encorpada e no seu uso de expressões regionais190.
Se a imprensa afere o sucesso da canção e demonstra a quantidade de pedidos delas
pelo público, isso significa que há uma boa recepção no geral, podemos pensar nessa recepção
positiva no sentido que o ouvinte não rejeita o que está na letra, mas pode ser que se aproprie
ou ressignifique. O que nos leva a pensar a recepção, sob a ótica Bakhtiniana do leitor como
parte responsiva do processo.191
Um dos movimentos dessa investigação foi pensar que “mulher-macho, sim senhor” é
um signo e dentro de contextos históricos e ideológico, específico, buscamos decifrar, como
sugere Bakhtin

189
Hemeroteca Digital: Revista do Rádio Ano 1958/ Edição 00436
190
TROTTA, Felipe. Som de cabra macho: sonoridade, nordestinidade e masculinidades no forró.
Comunicação Mídia e Consumo, v. 9, n. 26, 2013, p. 157
191
BAKHTIN, Mikhail. Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1997
82
Um sistema de signos (ou seja, uma língua), por mais reduzida que seja a coletividade
em que repousa sua convenção, sempre pode em princípio ser decifrado, isto é, pode
ser traduzido noutro sistema de signos (noutra língua) (...)192.

Ainda que nossa análise se limite praticamente a um refrão, seria impossível não
considerar os elementos abordados aqui para decifrar e compreendê-la quando agenciada para
se referir a identidade em conformidade à identidade nordestina, quanto para depreciar
mulheres que não correspondem ao papel social imposto. Assunção alerta que

A questão que nos interessa neste momento é que a análise da letra de uma música (a
análise da poesia de um refrão, por exemplo) não é de modo nenhum suficiente para
dar a entender o potencial dinamizador de uma composição musical, ou para mostrar
o seu possível efeito sobre uma multidão. A análise de um fenômeno musical que se
esgote no exame puro e simples de uma letra de música é incompleta, deixa escapar
aspectos importantíssimos, contorna a possibilidade de entrever os usos da dimensão
musical e das instâncias performáticas para encaminhamento de uma certa mensagem
ou com vistas à possibilidade de provocar determinada reações no público.193

Até aqui vemos indícios de continuidades e rupturas nos usos da expressão


mulher-macho. Podemos concluir que a partir da canção de Gonzaga a expressão se
cristalizou mais fortemente ao aspecto regional nordestino em relação ao início do século XX.
Por outro lado, ficou visível também como a mulher atuando no espaço público
incomodava e a expressão mulher-macho era acionada para mulheres ameaçadoras e
perigosas pela imprensa e pela polícia, não era mais a mulher-macho objeto sexual, indomável
pelo sexo – era indomável por ser altiva, brigar por espaço.
Seguiremos a investigação tratando de outro objeto cultural também veiculado pelo
rádio que lidava com a imagem de mulher-macho, a radionovela Jerônimo, o herói do sertão,
criado para a Rádio Nacional em 1953.

3.3 Jerônimo, O herói do Sertão: Filho de Maria Homem

192
BAKHTIN, Mikhail. Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1997 p. 334
193
BARROS, José D’Assunção. Música e História. Ed Cela. Rio de Janeiro, 2017, s/p
83
Jerônimo, O Herói do Sertão, criada em 1953 por Moysés Weltman e transmitida pela
Rádio Nacional durante quatorze anos, teve grande sucesso, expresso na longevidade do
programa.
Sob a influência do estilo western americano e ambientada no sertão do Brasil, a
novela transmitia uma determinada imagem do Nordeste e dos seus moradores; pretendemos
verificar se houve rupturas, as continuidades, assim como a consolidação de discursos da
identidade nacional a partir de tipos regionais, especificamente, o estereótipo ligado às
mulheres do Nordeste, no qual evoca expressões e sentidos da expressão mulher macho na
narrativa da radionovela194.
Os episódios trazem as aventuras de Jerônimo em sua luta incansável contra os
coronéis de Serro Bravo, ele está sempre acompanhado de seu amigo Moleque Saci para
enfrentar as armadilhas dos coronéis e seus cangaceiros. Filho de Maria Homem, tal qual a
mãe, ele é valente e está sempre em busca de justiça.
É noivo de Aninha, neta do Coronel Saturnino, também seu inimigo. Um fato curioso
que Roberto Salvador aponta é que o casamento de Aninha e Jerônimo sempre se adiava, já
que o herói mal saía de uma aventura e já entrava em outra, sendo assim o noivado durou
quatorze anos, o tempo que a radionovela foi transmitida. Seu eterno inimigo era o Caveira e
seu capanga era o Chumbinho, quem estava sempre à espreita vigiando Jerônimo. Segundo
Roberto Salvador, Capenga foi um dos últimos inimigos do herói.
Moysés Weltman nasceu em 1932 no Rio de Janeiro, foi radialista, roteirista e
quadrinista195. Roberto Salvador, em seu livro de memórias da Nacional, conta que Mário
Lago foi quem apresentou Weltman para a emissora; nas palavras do autor “vivíamos um
Brasil rural, ainda não industrializado, o que levou Weltman a apresentar seu projeto: um
herói cavaleiro, defensor dos pobres e oprimidos"196.

194
O período pandêmico colocou alguns obstáculos no desenvolvimento dessa investigação, o primeiro deles, foi
para ter acesso ao acervo do Ibope e termos dados exatos sobre a audiência da radionovela. Também não foi
possível consultar o acervo de Moisés Weltman que está no Arquivo Nacional, mas não é disponível online,
como a Rádio Nacional que tem parte do acervo no MIS RJ. Juntamos fragmentos aqui e ali, exploramos o
material disponível no Youtube, as revistas em quadrinho que traziam o enredo da radionovela, recorremos às
notícias de jornais e trabalhos sobre o rádio que possibilitou identificar parcialmente quem eram os ouvintes
195
Acervo Moysés Weltman. Disponível em: http://dibrarq.arquivonacional.gov.br/index.php/moyses-weltman
Acesso: 20 Jul. 2021
196
SALVADOR, Roberto. A era do radioteatro: o registro da história de um gênero que emocionou o Brasil.
Gramma, 2016, s/p
84
Cabe destacar que o regionalismo foi pauta nas discussões sobre a identidade nacional,
seja no sentido de eleger o autêntico brasileiro, seja para dissipar as diferenças e integrar o
país, tal qual era o caráter do discurso nacionalista na era Vargas. Na narrativa se mescla o
sertão do Nordeste com o sertão paulista, muito evocado nos 30 e 40 com a imagem do
caipira. Há uma mistura de elementos desses dois espaços na radionovela. No campo
sociológico, Nísia Trindade Lima identifica

a existência de uma continuidade temática e de perspectiva de interpretação social que


nos permitiria falar de uma corrente de pensamento voltada para o tema da
“incorporação dos sertões”. Reunindo Euclides da Cunha, Vicente Licínio Cardoso,
Roquette-Pinto, Belisário Penna e Monteiro Lobato, entre outros intelectuais, trata-se
de concepções que criaram imagens fortes e duradouras sobre o homem do interior.197

Embora o advento da indústria cultural - que segundo Ortiz, acontece nos anos de
1940 e 1950, no qual se observa os "momentos de incipiência de uma sociedade de consumo e
as décadas seguintes de consolidação do mercado de bens culturais”198 - altere o debate em
torno da cultura e do popular, essa perspectiva folclórica do popular não some totalmente das
programações, basta se ater aos programas como Os Sertões de Oswaldo Moles199, as
radionovelas e grupos musicais que se destacam sob a alcunha do regional e do popular em
diferentes emissoras.
De maneira concomitante, as duas faces parecem coexistir na Rádio Nacional, seja na
programação que evoca os elementos folclóricos para designar por exemplo, o samba200 e o
baião, colocando-os por exemplo com orquestras regionais, seja seu valor mercadológico que
surge com o advento da indústria cultural. Quanto a isso, Ortiz expõe que

Na moderna sociedade brasileira, popular se reveste de um outro significado, e se


identifica ao que é mais consumido, podendo-se inclusive se estabelecer uma

197
LIMA, Nísia Trindade. Um sertão chamado Brasil. 2. ed. São Paulo: Hucitec Editora, 2013, p. 55
198
ORTIZ, R. 1988. A Moderna Tradição Brasileira. Cultura brasileira e indústria cultural. São Paulo,
Brasiliense, p.113
199
ANKAVA, Matan. Modernização não é Mole (s): rádio e produção cultural em São Paulo, 1937-1962.
2020. 180 f. Dissertação (Mestrado) - Curso de História, Unifesp, Guarulhos, 2020.
200
É notório encontrar na imprensa do período, estilos musicais quando apresentados nos rádios estavam
acompanhados de orquestras regionais, como o samba e o baião, Jackson do Pandeiro em uma entrevista que
encontrei no Youtube, questiona justamente por que seria acompanhado do regional. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=0CJTasvSjmA / Acesso em: Abril de 2021
85
hierarquia de popularidade entre diversos produtos ofertados no mercado. Um disco,
uma novela, uma peça de teatro, serão considerados populares somente no caso de
atingirem um grande público. Nesse sentido se pode dizer que a lógica mercadológica
despolitiza a discussão, pois se aceita o consumo como categoria última para se medir
a relevância dos produtos culturais. 201

Quanto à popularidade da Nacional, esta se destacou como a emissora de maior


prestígio e audiência, se tornando um modelo para outras emissoras do país202, contando
também com o capital do Estado e com o sucesso de sua programação. Calabre apresenta que
a emissora “apoiava-se em quatro núcleos: a música, a dramaturgia, o jornalismo e os
programas de variedade”.203
A Rádio Nacional se destacava também na produção do gênero da dramaturgia no Rio
de Janeiro. Até a década de 1930, livros eram lidos e peças radiofonizadas, porém somente
em 1941 surgiu a novela em capítulos, com a estreia de Em busca da felicidade do cubano
Leandro Blanco, com adaptação de Gilberto Martins nesta emissora, fazendo enorme sucesso.
204
Jerônimo, O herói do Sertão surge no auge desse gênero na década de 1950 permanecendo
no ar até os anos de 1960. Calabre aponta que
No final da década de 1940 e 1950, algumas emissoras chegaram a manter
diariamente no ar mais de seis radionovelas. Os capítulos eram apresentados em dias
alternados, de segunda a sábado, distribuindo-se nos horários da manhã, da tarde e da
noite. Ao longo da década de 1950 as novelas foram se transferindo para a televisão e
desapareceram do rádio.205

Percebemos a importância de pensar os anos de 1950 enquanto um período com


grande produção cultural voltada para “as coisas do Nordeste”, chegando ao ponto de mesmo
que não trate do Nordeste, mobilizar termos identitários como foi o caso do Teatro de Revista
Mulher Macho, Sim Senhor206.

201
ORTIZ, R. 1988. A Moderna Tradição Brasileira. Cultura brasileira e indústria cultural. São Paulo,
Brasiliense, p.164
202
CALABRE, Lia. A era do rádio. Editora Schwarcz-Companhia das Letras, 2002, p. 32
203
idem p. 32-33
204
CALABRE, Lia. A era do rádio. Editora Schwarcz-Companhia das Letras, 2002, p.35
205
Idem, p. 38
206
Hemeroteca Digital: Jornal Correio da Manhã Ano 1950 / Ed 17662
86
O Nordeste mobilizado na série radiofônica é aquele inventado, fictício que se resume
em sertão, cangaço e jagunços, terra de homens valentes tal qual Jerônimo, e mulheres-macho
como Maria Homem, mãe do herói sertanejo, não muito diferente das produções culturais
anteriores analisadas nesta pesquisa.
Ao considerarmos as produções culturais anteriores, as notícias que a imprensa
divulgava sobre o “nordestino” que chegava para trabalhar em São Paulo e no Rio de Janeiro
como aponta Paulo Fontes207 e o ano de transmissão da radionovela, o ouvinte já teria
repertório suficiente para imaginar e produzir sentidos acerca dos personagens em diálogo
com referências identitárias como cabra-macho e mulher-macho. Importante ressaltar que
diferentemente do que acontece nos objetos anteriormente analisados, quem fala o que seriam
as vastas terras sertanejas, assim como quem seriam os habitantes de Serro Bravo (cidade em
que se passa Jerônimo) é um homem que não pertence ao sertão ou a algum estado do
Nordeste. Isso nos remete ao que Said chama atenção sobre o encontro de Flaubert com uma
cortesã egípcia
Ele falava por ela e a representou. Ele era estrangeiro, relativamente rico, do sexo
masculino, e esses eram fatos históricos de dominação que lhe permitiram não apenas
possuir fisicamente Kuchuk Hanem, mas falar por ela e contar a seus leitores de que
maneira ela era “tipicamente oriental” 208

Obviamente, tanto Albuquerque Jr e Said, e nessa pesquisa partilhamos dessa posição,


não se trata de identificar se as representações condizem com a realidade e encontrar uma
verdade, o verdadeiro Nordeste ou a verdadeira mulher Nordestina, trata-se de compreender
como foi possível a construção de determinadas identidades. Said aponta que

Não se deve supor que a estrutura do Orientalismo não passa de uma estrutura de
mentiras ou de mitos que simplesmente se dissipariam ao vento se a verdade a seu
respeito fosse contada. Eu mesmo acredito que o Orientalismo é mais particularmente
valioso como um sinal do poder europeu-atlântico sobre o Oriente do que como um
discurso verídico sobre o Oriente. Ainda assim, o que devemos respeitar e tentar
compreender é a pura força consolidada do discurso orientalista, seus laços muito

207
FONTES, Paulo. Um Nordeste em São Paulo: trabalhadores migrantes em São Miguel Paulista (1945-66). 1a
edição. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2008.
208
SAID, Edward W. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. S.Paulo: Cia das Letras, 2007, p.
33.
87
próximos com as instituições do poder político e socioeconômico, e sua persistência
formidável.209

Roberto Salvador conta que Jerônimo nasceu para aproximar o público masculino às
radionovelas, essa demanda surgiu a partir do interesse das indústrias Ross sob o patrocínio de
Melhoral, a radionovela ia ao ar às 2ª a 6ª feira às 18h35 com duração de 25 min, "cada
história durava mais ou menos três meses e quando terminava se iniciava outra, era um
seriado"210 Ao longo dos quatorze anos no ar, Jerônimo foi transmitida para vários lugares do
país, incluindo cidades do Nordeste como Recife211 e Natal212.

Imagem 4 - Recordes de Audiência

Fonte: Jornal da Hemeroteca Digital - Biblioteca Nacional213

O sucesso se expressa além dos anos que durou a radionovela, também pelas notícias
que a imprensa veiculava, por exemplo, no jornal Radiolândia, foi noticiado uma matéria
sobre Milton Rangel, o ator que interpretava no Rio de Janeiro Jerônimo, onde diz o seguinte
desde que passou a interpretar o herói

209
Idem, p. 33
210
SALVADOR, Roberto. A era do radioteatro: o registro da história de um gênero que emocionou o Brasil.
Gramma, 2016, s/p
211
Hemeroteca Digital: Radiolândia RJ Ano 1961 / 0344
212
Hemeroteca Digital: Jornal O Poti RN Ano 1958 / 011/88
213
Hemeroteca Digital: Radiolândia RJ Ano 1961 / 0343
88
Esta identificação do público ouvinte vale como o melhor prêmio de interpretação de
Milton Rangel. Hoje ele é um dos artistas que mais recebem correspondência.
Inclusive dos confins dos sertões, até do lugarejo denominado Serro Bravo, que na
novela consta como o berço natal de “Jerônimo”, vem cartas de carinho para o
radiator214.

Na ausência dos dados de audiência, as cartas aferem o sucesso e a relação do ouvinte


com a radionovela e os radioatores, Calabre em sua dissertação se vale desse mesmo percurso
metodológico
Ao trabalharmos com a transmissão e a recepção das mensagens radiofônicas,
efetuamos algumas análises referentes às possibilidades de interferência e interação
dos conteúdos presentes nestas mensagens com o público ouvinte, a partir,
principalmente, dos índices de aceitação da programação, que podem ser aferidos nos
mapas de audiência do IBOPE, nas cartas de ouvintes e nas crônicas das colunas de
jornais especializadas em rádio. 215

Ainda em 1961, a novela mantinha uma boa audiência, sendo retirada do ar após o
golpe civil-militar. A notícia da radiolândia de 1961, atesta o prestígio.
A série “Jerônimo”, produzida por Moysés Weltman para a Sidney Ross e transmitida
no Rio de Janeiro pela Rádio Nacional, continua batendo recordes de audiência em
todos os Estados em que é transmitida. No Rio é a favorita no horário.216

Diante de todo esse prestígio, a história foi adaptada para os HQ´S em 1957 com a
primeira edição chamada Laços de Sangue, novas edições do HQ seguiram sendo impressas.
Em 1972 foi adaptada para novela televisiva sendo transmitida pela TV Tupi, e em 1984 o
SBT fez um remake chamado Jerônimo.
Imagem 5 - Capa do HQ de Jerônimo

214
Hemeroteca Digital: Radiolândia (RJ) Ano 1959 / 0280
215
CALABRE. No tempo do rádio: radiodifusão e cotidiano no Brasil, 1923-1960. 2002, p. 159
216
Hemeroteca Digital Radiolândia Ano 1961 / Edição 0343
89
Fonte: Site de Histórias em Quadrinhos217

Além de ser veiculada pela rádio, o elenco fazia caravanas para apresentar peças pelo
interior218, no HQ de 1958 vemos o anúncio que dizia: “estão sendo organizadas caravanas
artísticas, capitaneadas por Jerônimo e Moleque Saci, para apresentarem espetáculos nas
cidades do interior brasileiro”.219 Quem quisesse ter sua cidade na rota das apresentações, a
divulgação pedia para que enviasse uma carta para incluírem o local.

Imagem 6 - Convite para as caravanas de Jerônimo no HQ

217
Jerônimo, O herói do Sertão em Laços de Sangue. Rio de Janeiro: Rio Gráfica Editora, Ano 1 / nº1 ,
julho-agosto de 1957. Disponível em: http://guiaebal.com/rge_jeronimo.html Acesso: Maio de
2021http://guiaebal.com/rge_jeronimo.html Acesso Maio de 2021
218
SALVADOR, Roberto. A era do radioteatro: o registro da história de um gênero que emocionou o Brasil.
Gramma, 2016, s/p
219
Jerônimo, O herói do Sertão em Terra Maldita. Rio de Janeiro: Rio Gráfica Editora, Ano 1 / nº6 ,
julho-agosto de 1958. Disponível em: http://guiaebal.com/rge_jeronimo.html Acesso: Maio de 2021
90
Fonte: Site de Histórias em Quadrinhos220

A trilha sonora de abertura da radionovela, ao que tudo indica de composição de


Getúlio Macedo e Lourival Faissal, foi interpretada também por Emilinha Borba221, escolha
significativa, uma voz feminina, sem sotaque, a voz mais famosa que interpretava a canção
Paraíba foi a da radionovela.
A música apresenta Jerônimo como herói e protetor, filho de Maria Homem da cidade
Serro Bravo, uma cidade fictícia do sertão brasileiro, sertão este que não é especificado se é
no Nordeste, embora acione os temas de cangaço, coronel, termos como cabra da peste, etc.
Roberto Salvador expõe essa questão, ele informa que

220
Jerônimo, O herói do Sertão em Terra Maldita. Rio de Janeiro: Rio Gráfica Editora, Ano 1 / nº6 ,
julho-agosto de 1958. Disponível em: http://guiaebal.com/rge_jeronimo.html Acesso: Maio de 2021
221
Gravação da trilha sonora da radionovela. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=V5S4665oWqU
Acesso: Junho de 2021
91
Propositalmente o autor de Jerônimo não o identificou com nenhuma região do Brasil.
Não era dos pampas gaúchos nem do Pantanal matogrossense. Nem paulista do
interior nem da zona da mata mineira. Mas segundo Weltman "ele tinha um leve
cheiro de nordeste". 222

Ao mesmo tempo, o sotaque empregado na radionovela223 se aproxima de um sotaque


caipira, nos levando a pensar no sertão paulista, e no uso desse termo para indicar que os
personagens da narrativa estariam em um espaço não urbano. O uso do sertão com o "leve
cheiro do nordeste" e com elementos do sudeste por Weltman, nos remete às novelas globais
que muitas vezes se valem de um elenco paulista ou carioca para representar um “nordestino”.
Ainda que tenha esse elemento do sotaque caipira, prevalece a temática do que se entendia
como do sertão nordestino, terra de cangaceiros e coronéis.
Segundo Albuquerque Jr., primeiro temos a emergência do discurso da seca pelo
regionalismo nortista, acarretando nas imagens de miséria, flagelo e na do retirante “que se
tornará um personagem constante na produção cultural nortista e, posteriormente, na
nordestina”224, onde sertão estará relacionado aos temas do coronelismo, jaguncismo, cangaço
e messianismo.225 A radionovela em questão aciona os elementos já do discurso regionalista
nordestino, Albuquerque Jr, explica que
Os sertões do Norte e os nordestinos representariam um arquivo, uma
reserva de expressões culturais consideradas autenticamente nacionais,
manifestações culturais e não maculadas e deturpadas pelas influências
externas, do estrangeiro ou da cidade.226

Jerônimo trava batalhas com coronéis e seus cangaceiros, mas uma questão
interessante para se levantar é, embora a narrativa traga os aspectos de uma luta de classes, o

222
SALVADOR, Roberto. A era do radioteatro: o registro da história de um gênero que emocionou o Brasil.
Gramma, 2016, s/p
223
Episódio O caso do atirador de punhais. Disponível em
https://www.youtube.com/watch?v=P0OWuMSOkUk&t=8s Acesso Junho de 2021
224
ALBUQUERQUE JUNIOR, Durval Muniz de. O RAPTO DO SERTÃO: a captura do conceito de sertão
pelo discurso regionalista nordestino. São Paulo: Revista Observatório 25, 2019. Disponível em:
https://www.itaucultural.org.br/revista-observatorio-25-sertoes-imaginarios-memorias-e-politicas. Acesso em: 12
maio 2021, p. 22
225
idem p. 26
226
Ibidem, p. 28
92
coronel latifundiário sedento por terras, que é o que se espera de produções dos anos de 1950
e 1960 ao tratar do Nordeste sob a orientação teórica do marxismo, aqui Weltman coloca os
cangaceiros como aliados dos coronéis e não como heróis ou Robin Hood, esse espaço é
reservado somente à Jerônimo dentro da narrativa. Talvez estivesse demarcando uma
diferença e estabelecendo um diálogo em relação às interpretações e apropriações que
circulavam sobre o cangaceiro bandido / herói Lampião.
Sobre o viés político presente na produção radiofônica, sob a ótica do dominador e
dominado, luta de classes e por terras, na busca do bem e no estabelecimento da justiça,
Salvador relembra
Não estou seguro de que Moysés Weltman tivesse a intenção de mandar algum "
recado", às massas oprimidas do interior rural brasileiro dos anos 1950/1960, porém,
que as histórias tinham um viés político-social lá isso tinham. Tanto assim que, após o
movimento militar de 1964, teve problemas com a censura e foi retirado do ar. 227

É comum neste período ter as produções culturais sobre o sertão e o Nordeste sob a
ótica da revolta e da mudança social, se voltando para o cangaço e messianismo e atribuindo
um caráter revolucionário, como em Rui Facó e Glauber Rocha, por exemplo. Segundo
Albuquerque Jr.
O Nordeste, como território da revolta, foi criado basicamente por uma série de
discursos acadêmicos e artísticos. Discursos de intelectuais de classe média urbana.
Uns interessados na transformação, outros na manutenção da ordem burguesa. Por
isso, são obras que partem, quase sempre, de um “olhar civilizado”, de uma fala
urbano-industrial, de um Brasil civilizado sobre um Brasil rural, tradicional e arcaico.
228

Além desses pontos que giram em torno da temática Nordeste e sertão, há a questão da
maneira como os personagens falam, Moleque Saci companheiro de aventura de Jerônimo e
os cangaceiros apresentam uma variação linguística, nas frases não há concordância verbal,
enquanto os coronéis, Jerônimo e Aninha falam “corretamente o português”.

227
SALVADOR, Roberto. A era do radioteatro: o registro da história de um gênero que emocionou o Brasil.
Gramma, 2016, s/p
228
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. A invenção do Nordeste e outras artes. 5. ed. São Paulo:
Cortez Editora, 2011, p. 219
93
Identificamos nos episódios da radionovela elementos de um caráter moral-cívico,
como é o caso dos momentos nos quais Jerônimo e Aninha corrigem a forma de falar de
Moleque Saci. Segundo Velloso, o “rádio deveria “aperfeiçoar” as relações entre as camadas
cultas e as populares, sendo o portador do “bom exemplo, do certo e do direito”229.
Talvez além de querer demarcar alguma posição social, parece ter resquícios da
finalidade que as programações das décadas de 1920 e 1930 precisavam ter, o caráter de
“educação mental, moral e higiênica”.230 No episódio disponível no Youtube onde Jerônimo
enfrenta Caveira, Aninha corrige a pronúncia de Moleque Saci e Jerônimo sugere que o
companheiro precisaria fazer uma temporada na escola231

Aninha: Não é transminento que se diz, Moleque, é transmissão!


Moleque Saci: Ah é? Eu sempre ouvir falar em transminento de pensação!
Aninha: Que nada! Vc faz cada confusão… O certo, Moleque Saci é transmissão de
pensamento e não transminento de pensação.
Moleque Saci: Ah! Quer dizer que não é transminento de pensamento, é transmisão
de pensação?
Jerônimo: Chega, chega Moleque Saci, até eu já não sei qualé o certo e qualé o
errado. Em matéria de português, o Moleque Saci costuma arrumar tanta encrenca que
põe todo mundo louco. Sabe, oh Moleque Saci, você precisa fazer uma temporada em
uma escola.
Moleque Saci: Dispois que a gente liquidar o Caveira, tá bem?
Jerônimo: Então precisamos liquidar o Caveira depressa,que é para você ir logo para
escola! Toda criança precisa estudar, aprender a falar certo seu idioma.

O episódio continua com mais uma “confusão” de Moleque Saci quanto ao significado
das palavras idioma e língua, é importante destacarmos o racismo que ocorre na narrativa
radiofônica, tanto o racismo linguístico no movimento de corrigir as palavras de Moleque
Saci e o apagamento das variações linguísticas232, quanto o personagem ser interpretado por

229
VELLOSO, Monica Pimenta. Os intelectuais e a política cultural do Estado Novo. Rio de Janeiro:
Fundação Getúlio Vargas, 1987. Disponível em:
http://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/bitstream/handle/10438/6604/803.pdf?sequence=1. Acesso em: 20 jul.
2021, p. 25
230
Idem, p. 19
231
Episódio O caso do atirador de punhais. Disponível em
https://www.youtube.com/watch?v=P0OWuMSOkUk&t=8s Acesso Junho de 2021
232
NASCIMENTO, Gabriel. Racismo Linguístico: Os subterrâneos da linguagem e do racismo. Belo
Horizonte: Letramento, 2019.
94
Cauê Filho, um homem branco, que segundo Roberto Salvador, pintava o rosto nas aparições
das caravanas233, ou seja, fazia o que nomeamos hoje como blackface, prática onde pessoas
brancas se pintavam e ainda se pintam de preto para ridicularizar ou na tentativa infeliz de
representar uma pessoa não branca. É problemático, mais ainda, pensar que isso se dá nos
anos de 1950, onde já temos a existência do Teatro Experimental do Negro que surge em 1943
criado por Abdias Nascimento 234.
Se faz necessário colocar que há uma perda em ouvir a radionovela pelo rádio e ouvir
pelo Youtube, ainda que esteja dentro do processo da escuta, os suportes já não são os
mesmos e impacta na maneira que trilhamos o processo metodológico para a investigação do
objeto. Isso nos remete à questão da obra de arte e de sua reprodutibilidade técnica que
Walter Benjamin discute, há uma perda da sua autenticidade e da ritualística que se tinha em
esperar a radionovela começar, ouvir, talvez coletivamente, conversar e debater sobre o
episódio, etc.

Essas condições modificadas podem deixar intocada a maior parte da existência da


obra de arte - mas, em todo caso, elas certamente desvalorizam seu aqui e agora. (...)
A autenticidade de uma coisa é a quintessência de tudo o que nela é originalmente
transmissível, desde sua duração material até seu testemunho histórico. Como este
testemunho está fundado sobre a duração material, no caso da reprodução, na qual
esta última tornou-se inacessível ao homem, também o primeiro - o testemunho
histórico da coisa - torna-se instável.235

3.4 Maria Homem e Aninha: personagens femininas no sertão de Jerônimo

233
SALVADOR, Roberto. A era do radioteatro: o registro da história de um gênero que emocionou o Brasil.
Gramma, 2016, s/p
234
NASCIMENTO, Abdias do. Teatro experimental do negro: trajetória e reflexões. Estudos Avançados, [S.L.],
v. 18, n. 50, p. 209-224, abr. 2004. FapUNIFESP (SciELO).
http://dx.doi.org/10.1590/s0103-40142004000100019. Disponível em:
https://www.scielo.br/j/ea/a/B8K74xgQY56px6p5YQQP5Ff/?lang=pt. Acesso em: 20 jul. 2021.
235
BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. Porto Alegre: L&Pm, 2020,
p. 57
95
Maria Homem, mãe de Jerônimo e Aninha sua noiva, são as duas personagens
femininas que se destacam na radionovela. Não foi possível fazer uma análise considerando
apenas a radionovela, pela falta de material disponível online.
A trilha sonora e o próprio nome de Maria Homem, já sugere que seu corpo é
atravessado pelo discurso da valentia, embora não se evoque especificamente a expressão
mulher-macho, Maria Homem evidencia uma masculinização. É muito comum, infelizmente,
ouvir por exemplo, que algumas meninas tem jeito de “maria homem” ou “maria joão”; são
expressões que eu ouvi durante boa parte da minha infância, por simplesmente brincar, correr,
jogar bola, subir nos batentes das portas e não me “comportar como mocinha” que é o que se
espera das mulheres.
Filho de Maria Homem nasceu
Serro Bravo foi seu berço natal
Entre tiros de tocaia cresceu
Hoje luta pelo bem contra o mal
Galopando vai a todo lugar
Pelo pobre a lutar sem temer
O Moleque Saci pra ajudar
Ele faz qualquer valente tremer

É o que identifico dessas duas personagens, ainda que nos quadrinhos a representação
de ambas permeie o que se espera de algum padrão de feminilidade, Aninha representa a
moça comportada, recatada e com gestos delicados, elemento que Salvador também destaca
para a radionovela "Jerônimo era noivo de Aninha, uma moça de voz doce e meiga,
interpretada por Dulce Martins"236. Enquanto, Maria Homem, é representada com mais
sensualidade e coragem, já que enfrentou cangaceiros e coronéis.
É importante ressaltar que a prática discursiva na radionovela é composta não só pelo
texto interpretado, mas também, pelo papel do contra-regra, quem cuida da parte sonora, por
exemplo, barulho de cavalos, de beijo, de chuva, etc e também, pela forma que cada ator
interpreta aquele personagem, por isso a necessidade de destacar essa fala de Salvador quanto
a voz meiga e doce de Aninha.

236
SALVADOR, Roberto. A era do radioteatro: o registro da história de um gênero que emocionou o Brasil.
Gramma, 2016, s/p
96
São esses artifícios empregados que contribuem para o processo de imaginação do
ouvinte. Silvia Helena Borelli e Maria Celeste Mira, apresenta essa discussão a partir de
entrevistas concedidas pelos atores aos jornais

No rádio a narração se produz através de um trabalho de carpintaria do som, que deve


conter todas as informações de que o ouvinte necessita para criar mentalmente uma
estória. "O som era um personagem a mais no texto", opina Mário Lago. Mas ele é
mais do que isto. A música como vimos, pode simular o deslocamento no espaço, ou
a passagem do tempo; ela faz a separação de cenas, indica as emoções alegres ou
tristes237

Na edição do HQ Laços de Sangue, João Corisco, um dos capangas do Coronel


Saturnino na edição de 1957, ao saber que teria que matar Jerônimo, recua e deixa-o escapar
dizendo: “Não te conheço cabra, mas se és filho de Maria Homem deves ser valente, pois sua
mãe vale por 10 homens".238
Imagem 7 - Maria Homem vale por 10 homens!

237
BORELLI, Silvia Helena Simões; MIRA, Maria Celeste. Sons, imagens, sensações: radionovelas e
telenovelas no Brasil. Revista Brasileira de Ciências da Comunicação, São Paulo, p. 33-57, jan-jun 1996.
V.19 N.1. Disponível em: http://portcom.intercom.org.br/revistas/index.php/revistaintercom/article/view/897.
Acesso em: 20 jul. 2021, p. 41
238
Jerônimo, O herói do sertão em Laços de Sangue. Rio de Janeiro: Rio Gráfica Editora, nº1 / Ano 1, julho /
agosto de 1957
97
Fonte: Site de Histórias em Quadrinhos239

Nesta investigação não temos como apreender se há um conflito por parte das
personagens da radionovela, como no caso de Luzia Homem, a ambiguidade e do desvio que
atravessa seu corpo é identificado com características que pertencem ao homem (força, pêlos,
etc). Essa relação entre sexo e gênero, Butler diz que “a hipótese de um sistema binário dos
gêneros encerra implicitamente a crença numa relação mimética entre gênero e sexo, na qual
o gênero reflete o sexo ou é por ele restrito”240. O fato de a Aninha ser caracterizada como
oposta à Maria Homem aponta para a ideia de dois modelos de feminilidade explorado por
Weltman, o herói não escolheu uma mulher forte para casar, a coragem da mãe fica no
passado, tempos de embrutecimento, tempos de guerra mais dura. De toda forma, a
personagem Maria Homem é valorizada, era uma origem que valoriza o personagem.
Até onde foi possível analisar, não é colocado em discussão na própria narrativa
radiofônica o gênero das personagens, como ocorre em Luzia Homem, mas a Maria Homem
tem uma feminilidade afirmada e diferente da de Aninha, como abordado anteriormente,
Maria Homem traz elementos de uma sensualidade expressa nos vestidos, nos brincos
grandes, na independência, uma vez que era sozinha, sem homem e é ao mesmo tempo
valente, reverenciada e admirada pelos cangaceiros, Maria cavalga tão bem que dizem:
“cavalga como um homem”

Imagem 8 - Maria cavalga como um homem!

239
Jerônimo, O herói do Sertão em Laços de Sangue. Rio de Janeiro: Rio Gráfica Editora, Ano 1 / nº1 ,
julho-agosto de 1957. Disponível em: http://guiaebal.com/rge_jeronimo.html Acesso: Maio de
2021http://guiaebal.com/rge_jeronimo.html Acesso Maio de 2021
240
BUTLER, J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Tradução de Renato Aguiar. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p. 24
98
Fonte: Site de Histórias em Quadrinhos241

Nos leva a pensar que anos de produções culturais que abordaram a mulher sertaneja
ou àquela que não pertence ao Sudeste sob o discurso da virilidade e da valentia, a
radionovela contribui para repetir, mas também atualizar o enredo de imagens e discursos
sobre as mulheres do Nordeste. Até porque não encontramos nada na imprensa que veicula o
descontentamento das mulheres pela forma que Maria Homem talvez fosse retratada em
relação à Aninha. No entanto, a radionovela repete esse imaginário de valentia sem
desconsiderar a perda de aspectos do feminino como acontece na imprensa nesse mesmo
período, como indica a notícia do caso da vereadora.
Para a investigação desse objeto, sentimos a necessidade de estarmos em contato com
os ouvintes, e talvez, compreender como estes ao ouvirem a radionovela, elaboravam os
personagens a partir do processo imaginativo, a produção de sentidos, o que eles fabricavam
durante aqueles minutos dedicados à escuta. Entendemos que a linguagem radiofônica
envolve o produtor / locutor e o ouvinte, é agenciado elementos para que o ouvinte revisite

241
Jerônimo, O herói do Sertão em Laços de Sangue. Rio de Janeiro: Rio Gráfica Editora, Ano 1 / nº1 ,
julho-agosto de 1957. Disponível em: http://guiaebal.com/rge_jeronimo.html Acesso: Maio de
2021http://guiaebal.com/rge_jeronimo.html Acesso Maio de 2021
99
seu repertório de mundo e, talvez, nisso possa elaborar sentidos e representações, podendo
rejeitar ou se apropriar daquilo que recebe. Para Bakhtin

De fato, o ouvinte que recebe e compreende a significação (lingüística) de um


discurso adota simultaneamente, para com este discurso, uma atitude responsiva ativa:
ele concorda ou discorda (total ou parcialmente), completa, adapta, apronta-se para
executar, etc., e esta atitude do ouvinte está em elaboração constante durante todo o
processo de audição e de compreensão desde o início do discurso, às vezes já nas
primeiras palavras emitidas pelo locutor.242

Por isso percorri os grupos de Facebook sobre Memória do Rádio, e lancei a proposta de
fazer entrevistas com aqueles que ouviram Jerônimo na infância, após explicar brevemente a
pesquisa. Três homens responderam que assistiram e uma senhora recordou que o pai
escutava sempre, mandei mensagem pra todos, porém, não tive retorno.
Nos vídeos do Youtube, também encontrei a presença de homens falando que ouviam ao
herói quando novo. E embora não tenhamos conseguido acessar os ouvintes, essa presença
masculina é pertinente tratar.
Historicamente as radionovelas são associadas às mulheres, como o público ouvinte fiel
e principal, inicialmente envolvendo "melodrama e empresas de sabão"243. Surgiu assim nos
Estados Unidos conhecidas como as soap opera, chegou a Cuba e depois ao Brasil.

O modelo utilizado era o das soap operas surgidas nos Estados Unidos na década de
1939 e concebidas originalmente como veículos de propaganda das fábricas de sabão,
devendo atingir um público predominantemente feminino. Essa estratégia torna
compreensível a existência da agência de publicidade, a Standard Propaganda, de que
Em busca da felicidade fosse irradiada às 10h da manhã, um horário considerado
comercialmente fraco e fadado ao fracasso. Entretanto, tanto o gênero como o horário
escolhido para a irradiação se mostraram um grande sucesso (...) 244

242
BAKHTIN, Mikhail. Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1997, p. 291
243
BORELLI, Silvia Helena Simões; MIRA, Maria Celeste. Sons, imagens, sensações: radionovelas e telenovelas
no Brasil. Revista Brasileira de Ciências da Comunicação, São Paulo, p. 33-57, jan-jun 1996. V.19 N.1.
Disponível em: http://portcom.intercom.org.br/revistas/index.php/revistaintercom/article/view/897. Acesso em:
20 jul. 2021, p. 34
244
CALABRE, Lia. A era do rádio. Editora. Schwarcz-Companhia das Letras, 2002, p.36
100
Segundo Roberto Salvador, Jerônimo nasce na intenção de aproximar o público
masculino das radionovelas, nos parece ser muito mais um interesse comercial das Indústrias
Ross e da Rádio Nacional, que uma tentativa de quebra de tabu. Pelo que se observou das
pessoas que encontramos na internet é que de fato os homens compunham boa parte do
público ouvinte dessa radionovela.

Quando a Sidney Ross entrou comprando horários e pontuando a programação da


Nacional com programas de radioteatro que cobriam todas as faixas, constatou-se que
havia para vender produtos que também interessavam aos homens. Eram
medicamentos para azia, ressaca e pós barba. Havia Glostora para os cabelos,
Astringozok para o hálito, talco Ross… coisas para homens. Mas onde estavam os
homens, que não ouviam a novela ou se envergonham de confessar que ouviam? O
tabu precisava ser rompido, e foi. 245

Na imprensa, como já abordado neste capítulo, mapeamos diversos momentos e em


vários lugares, sobretudo, no Rio de Janeiro a maneira com que o termo mulher-macho era
empregado, tanto para designar mulheres do Nordeste ou aquelas que enfrentavam homens, as
autoridades e estavam na política. Porém, verificamos que nos anos de 1950 há uma grande
chuva de utilização desse termo pelo país e mais uma vez, o Rio de Janeiro se destaca, seja
talvez pela influência do baião e da própria radionovela.
Maria Homem, elaborada como valente e destemida retoma o aspecto romântico de
Luzia Homem de Donzelas-Guerreiras em 1953, enquanto na imprensa de 1951 nas notícias
os sentidos acionados são outros, é mobilizado para limitar a mulher à um comportamento
aquele que não enfrenta o poder dos homens, seja ele representado na figura do policial,
marido ou político.
Algumas notícias do período de sucesso da radionovela reforçam essa ideia de ativar o
masculino nas mulheres quando estas ocupam certos espaços, como se nós não pudéssemos
exercer qualquer atividade sem ativar qualquer arquétipo que permeie o masculino, já que
somos sexo frágil e se vamos pilotar um navio somos mulher-macho, maria-joão, etc, a

245
SALVADOR, Roberto. A era do radioteatro: o registro da história de um gênero que emocionou o Brasil.
Gramma, 2016, s/p
101
notícia de 1953 do Diário de Pernambuco evidencia isso, com a intenção de positivar e
elogiar essa pilota.

Imagem 9 - Uma mulher Piloto de Navio

Fonte: Jornal da Hemeroteca Digital - Biblioteca Nacional246

Nos anos de 1960 o Jornal do Brasil do Rio de Janeiro247 traz uma série de
personagens históricas que se enquadram nesse arquétipo da heroína / donzela-guerreira, e a
expressão mulher-macho é atribuída à duas delas: Maria Bonita e Maria Florisbela, uma
mulher que se destacou na Guerra do Paraguai. Aqui o ambiente da guerra, da violência é o
espaço do homem, então a mulher quando adentra ela ativa o “lado masculino”. Embora se
atribua à Maria bonita a imagem de mulher-macho, por estar em destaque no bando e ser
companheiro do líder. Dadá é quem lutava junto aos homens e acompanhou Corisco até o fim
248
.

246
Hemeroteca Digital: Diário de Pernambuco Ano 1953 / Edição 00282
247
Hemeroteca Digital: Jornal do Brasil Ano 1962 / Edição 00165
248
FEMININO Cangaço. Direção: Lucas Viana e Manoel Neto. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=wsTCQ7LOeds&t=435s. Acesso em: 10 jul. 2021.
102
Imagem 10 - Maria Florisbela

Fonte: Jornal da Hemeroteca Digital - Biblioteca Nacional249

Ainda nos anos de 1960, mais uma notícia250 que reforça a mulher como perigosa e
ameaçadora. Embora tenhamos tentado fazer uma busca detalhada, são muitos jornais e
muitas as ocorrências, mas em sua maioria elas trazem essas duas perspectivas, ora perigosa,
ora ameaçadora. Na maior parte das vezes a expressão vai ser usada para depreciar. Mesmo
quando havia um sentido romântico e idealista de mulher guerreira e corajosa, o que se
percebe é que ambas abalam a posição dos homens.

Imagem 11 - Mulher-Macho enfrentou a polícia no braço

249
Hemeroteca Digital: Jornal do Brasil Ano 1962 / Edição 00165
250
Hemeroteca Digital: A Luta Democrática : Um jornal de luta feito por homens que lutam pelos que não podem
lutar (RJ) Ano 1966 / Edição 03898
103
Fonte: Jornal da Hemeroteca Digital - Biblioteca Nacional251

As notícias da imprensa não questionam o termo mulher-macho, mas se apropriam e


estabelecem alguns elementos que constituem esta imagem, apareceram notícias de mulheres
não brancas, de mulheres do Nordeste, assim como de mulheres do Sudeste que enfrentaram
homens, autoridades e adentraram o meio político, que cometeram crimes, que realizaram
atividade - embora muitas vezes na divisão sexual do trabalho e no imaginário social se
conceba como “coisas de homens” - passaram a ser elogiadas com esta expressão, algo que
deveria ser de todas por direitos, quando se é alcançado vem com a alcunha de macho /
homem. E outras passaram a ser xingadas e depreciadas com a mesma expressão.
Acredito que a imprensa se aproxima mais da ambiguidade da expressão em relação
ao uso cotidiano. Expressa esses sentidos em diversos momentos, quando é mobilizada em um
sentido de valorizar e acionar o arquétipo da heroína / donzela-guerreira é repetido e
retomando o que a produção cultural, seja a literatura ou a música iniciou e produziu, quando
ela traz o aspecto depreciativo é para indicar qual o lugar das mulheres no espaço público pois
estariam afrontando demais.

251
Hemeroteca Digital: A Luta Democrática : Um jornal de luta feito por homens que lutam pelos que não
podem lutar (RJ) Ano 1966 / Edição 03898
104
CONSIDERAÇÕES FINAIS

A sociedade dita qual o lugar da mulher e como deveríamos nos comportar, quando
subvertemos essa lógica somos vistas de inúmeras formas, muitas vezes somos agredidas e
mortas por isso. Ora romantizam nosso cansaço e somos valentes e donzelas-guerreiras
contemporâneas, matando um dragão por dia, quando nem sempre temos a opção de
descansar ou desistir, ora somos ameaçadoras e perigosas, todo tipo de violência física ou
verbal é assim justificada.
É muito difícil chegar a uma conclusão sobre o uso da expressão mulher-macho, acho
importante que o uso nativo252 e o uso sociológico, como coloca Antônio Sérgio Guimarães,
seja levado em conta, ou seja, quem mobiliza, onde e possua “um sentido histórico, um
sentido específico para um determinado grupo humano”253. Não vou ficar pregando para
minha avó sobre a complexidade dessa expressão, alertando-a que está reforçando
determinada imagem sobre a mulher nordestina. Mas do ponto de vista da pesquisa científica
posso lançar mão de inquietações acerca dessa expressão.
A pesquisa possibilitou percorrer os diversos momentos em que a expressão foi
acionada em seus diferentes usos e sentidos. Foi possível observar que no início do século XX
a expressão pouco esteve relacionada à um regionalismo nordestino, mas já nos anos de 1930
o dicionário associava o termo ao território, o que nos abriu a possibilidade de investigar a
partir de leituras pós-coloniais, contribuindo para interpretar essa expressão em diálogo ao
colonialismo presente na nossa linguagem.
A imprensa dos anos de 1920 e 1930 nos indica o início das mudanças nos
comportamentos de homens e mulheres, nos modos e modas que diverge com o que era
concebido até então, timidamente a mulher virago ou a mulher-macho já era identificado
como algo estranho, diferente ou idealizada.
Observa-se as feminilidades em tensão e em coexistência, podemos pensar que não há
somente masculinidades hegemônica tal qual coloca Connell, mas feminilidades hegemônicas
também, no sentido que outras podem ser vistas como um desvio, como é o caso de mulheres

252
GUIMARÃES, Antonio Sérgio Alfredo. Como trabalhar com. Educação e Pesquisa, [S.L.], v. 29, n. 1, p.
93-107, jun. 2003. FapUNIFESP (SciELO). http://dx.doi.org/10.1590/s1517-97022003000100008. Disponível
em: https://www.scielo.br/j/ep/a/DYxSGJgkwVyFJ8jfT8wxWxC/abstract/?lang=pt. Acesso em: 10 jul. 2021.
253
Idem, p. 95
105
que fogem ao ideal masculino de mulher, como é o caso da vereadora, ou da pilota de navio e
assim são categorizadas como mulher-macho.
Mas é somente nos anos de 1950 que a expressão ganha mais elementos, muitos
definitivamente ligados ao regionalismo nordestino. Evocando a valentia quase um como
atributo biológico das pessoas que nascem no Nordeste, a canção Paraíba sem dúvida
cristalizou no imaginário nacional essa expressão enquanto uma referência identitária.
Podemos dizer também que o sucesso de Jerônimo teve papel importante nesse processo, e
aqui os elementos de uma determinada feminilidade não foi excluída para se falar de Maria
Homem.
Ao mesmo tempo, na imprensa dos anos de 1950 e 1960 os aspectos depreciativos são
recorrentemente acionados ao associar o termo às mulheres reais, de carne e osso, e não à
mulher da canção ou da radionovela. As mulheres-macho são ameaça à ordem e ficamos
novamente nos estereótipos, como se os jornais não pudessem ver a mulher fora dos
estereótipos, precisassem rebaixá-las o tempo todo. Nessa fronteira de como fomos/somos
vistas, o que é ser mulher? Entendo que não se limite à performance de alguma feminilidade,
talvez podemos pensar que a expressão, enquanto uma categoria, em alguns momentos
organiza um sistema de poder de discriminação, tal qual aconteceu com a vereadora na
reportagem analisada, tal qual acontece quando acionada por homens para nos enquadrarem
em uma caixa. São muitas as possibilidades e as inquietações que a pesquisa proporcionou.
Vale ressaltar que as produções culturais analisadas são produzidas por homens, e
embora Domingos Olímpio e Luiz Gonzaga sejam pertencentes ao Ceará e Pernambuco,
respectivamente, a atuação destes e a circularidade de suas obras se concentraram no eixo
Rio-SP.
Sendo obras produzidas sob o olhar masculino, ao mesmo tempo contribuem para
produzir uma região generificada, a pesquisa não se esgota e possibilitará uma investigação
mais minuciosa ao se pensar como se produziu discursivamente a região generificada e
racializada articulado à expressão, tendo em vista a tensão que orbita em torno da
mulher-macho e do sertão, onde ambos não se territorializam totalmente.

106
O discurso para Foucault254 é uma prática e não uma simples nomeação de objetos e
coisas, o regime de verdade dos discursos é o modo pelo qual uma ideia foi construída
enquanto verdade. A imprensa, o dicionário e os objetos culturais expressam diferentes
formas de construir o que é a expressão mulher-macho. O que tentamos realizar aqui foi
resgatar os processos históricos que permitiram o surgimento dessas verdades que guardam
proximidades e distâncias em cada período, especificidades que nos ajudam a refletir
historicamente e criticamente sobre o passado / presente de discriminação contra as mulheres.

254
FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008. Disponível
em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4070132/mod_resource/content/1/FOUCAULT.pdf. Acesso em: 12
abr. 2021.
107
FONTES

DICIONÁRIOS
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Officina de Simão Thaddeo Ferreira, 1789. Disponível em:
https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/5413
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Companhia Editora Nacional, 1939. (1ª. edição 1910, versão reduzida)
MARROQUIM, Mário. A Língua do Nordeste Brasileiro, São Paulo: Cia Editora Nacional,
1934.
PINTO, Luiz Maria da Silva. Dicionário da Língua Brasileira. Ouro Preto: Typografhia de
Silva, 1832. Disponível em: https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/5414

JORNAIS USADOS NA TABELA 1


A Manhã (RJ) Ano 1926 / 00043
Correio Paulistano (SP) 1927 / 23028
O Paiz (RJ) Ano 1927 / 15652
Correio da Manhã (RJ) Ano 1930 / 10779
Gazeta de Notícias (RJ)Ano 1935 / 00195
Diário da Noite (RJ) Ano 1935 / 02249

LUZIA HOMEM
Obra
OLÍMPIO, Domingos. Luzia-Homem. 12. ed. São Paulo: Ática, 1995
Jornais usados
Os Annaes do RJ Ano 1906 / 0102
Os Annaes do RJ Ano 1907 / 0240
Os Annaes do RJ Ano 1906 / 0102
Os Annaes do RJ Ano 1905 / 0033
Diário de Pernambuco Ano 1903 / 00117
Os Annaes do RJ Ano 1906 / 0066

108
MÚSICA PARAÍBA
Músicas
LP Carmélia Alves. Disponível em: https://immub.org/album/carmelia-alves
8RPM Quatro Ases e um Coringo. Disponível em: https://immub.org/album/78-rpm-60788
78RPM Orlando Silva / Vagalumes do Luar. Disponível em:
https://immub.org/album/78-rpm-46051
78RPM Emilinha Borba / Os Boêmios. Disponível em:
https://immub.org/album/78-rpm-45887
78 RPM Carmen Costa. Disponível em: https://immub.org/album/78-rpm-67314

Jornais usados
Revista do Rádio RJ Ano 1950 / Edição 00027
Revista do Rádio RJ Ano 1950 / Edição 00045
A Manhã (RJ) Ano 1951 / Edição 03166
O Estado de Goiás Ano 1951 / Edição 01400
Revista da Rádio (RJ) Ano 1950 / Edição 00023
Revista do Rádio (RJ) Ano 1958 / Edição 00445
Revista do Rádio Ano 1958/ Edição 00436

Site consultado
Sobre Luiz Gonzaga. Disponível em:
http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa359569/luiz-gonzaga

JERÔNIMO
Acervo Moysés Weltman. Disponível em:
http://dibrarq.arquivonacional.gov.br/index.php/moyses-weltman

Gravações da radionovela:
Episódio O caso do atirador de punhais. Disponível em
https://www.youtube.com/watch?v=P0OWuMSOkUk&t=8s

109
Episódio Jerônimo faz justiça. Disponível em
https://www.youtube.com/watch?v=Hyzr4DELuQY&t=25s
Trilha sonora da radionovela. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=V5S4665oWqU

Revistas em Quadrinhos

Jerônimo, O herói do Sertão em Laços de Sangue. Rio de Janeiro: Rio Gráfica Editora, Ano 1
/ nº1 , julho-agosto de 1957. Disponível em: http://guiaebal.com/rge_jeronimo.html
Jerônimo, O herói do Sertão em Terra Maldita. Rio de Janeiro: Rio Gráfica Editora, Ano 1 /
nº6 , julho-agosto de 1958. Disponível em: http://guiaebal.com/rge_jeronimo.html

Jornais usados
Jornal Correio da Manhã Ano 1950 / Ed 17662
Radiolândia RJ Ano 1961 / Ed 0344
Jornal O Poti RN Ano 1958 / Ed 011/88
Radiolândia (RJ) Ano 1959 / Ed 0280
Radiolândia Ano 1961 / Edição 0343
Diário de Pernambuco Ano 1953 / Edição 00282
Jornal do Brasil Ano 1962 / Edição 00165
A Luta Democrática : Um jornal de luta feito por homens que lutam pelos que não podem
lutar (RJ) Ano 1966 / Edição 03898

Documentários / Entrevista / Vídeos


Feminino Cangaço. Direção: Lucas Viana e Manoel Neto: CEEC, 2016. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=wsTCQ7LOeds&t=435s.
O homem que engarrafava nuvens. Direção de Lírio Ferreira. Brasil: Good Ju Ju, 2009. (100
min.), P&B. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=OLLcf8UTnPo.
Trecho da entrevista de Jackson do Pandeiro. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=0CJTasvSjmA /

110
Músicas
Mano Walter - Matuto de verdade. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=l4Ld9qrFBiU
Raí Saia Rodada - Filha do Mato. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=uAY0Da2vlDE

111
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