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Universidade Federal do Triângulo Mineiro

Isabela Pissinatti

Agripina Menor, uma aliada no estudo sobre gênero e na desconstrução da


figura da mulher criada pelo imaginário masculino na historiografia

UBERABA

2017
Universidade Federal do Triângulo Mineiro

Isabela Pissinatti

Agripina Menor, uma aliada no estudo sobre gênero e na desconstrução da


figura da mulher criada pelo imaginário masculino na historiografia

Trabalho de Conclusão de Curso


apresentado à Universidade Federal do
Triângulo Mineiro como requisito
parcial para graduação no Curso de
Licenciatura em História, orientado pelo
Prof. Dr. Alex Degan.

UBERABA

2017
Isabela Pissinatti

Agripina Menor, uma aliada no estudo sobre gênero e na desconstrução da figura da


mulher criada pelo imaginário masculino na historiografia

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado


à Universidade Federal do Triângulo Mineiro
como requisito parcial para graduação no
Curso de Licenciatura em História, orientado
pelo Prof. Dr. Alex Degan.

____ de _____________ de _____.

BANCA EXAMINADORA

________________________________________

Prof. Dr. Alex Degan - Orientador

Universidade Federal do Triângulo Mineiro

________________________________________

Profa. Dra. Cláudia Regina Bovo

Universidade Federal do Triângulo Mineiro

________________________________________

Profa. Dra. Leandra Domingues Silvério


Universidade Federal do Triângulo Mineiro
Agradecimentos

Não posso apresentar o seguinte trabalho sem agradecer aqueles que


permitiram que este fosse possível. Primeiramente gostaria de agradecer à
minha família que sempre esteve ao meu lado independente das minhas
escolhas, especialmente ao meu pai e minha mãe, que sempre me deram a
liberdade para que fosse quem eu quisesse ser. Mãe, você foi minha inspiração
neste trabalho, e é minha inspiração de mulher na vida.

Quero agradecer também a todos os meus amigos, especialmente os de


Uberaba, que me ajudaram a esquecer os problemas em momentos difíceis e
que também estavam ao meu lado quando precisei de apoio. Aos meus
professores, que foram o caminho e o exemplo para que eu seguisse em frente
e me apaixonasse cada vez mais pela História.

Mas quero agradecer a uma pessoa que me motiva a ser uma pessoa melhor
todos os dias: meu irmão, Gabriel. Você é e sempre será a razão da minha
vida, e eu não consigo, e nem me arrisco, em expressar em palavras o amor
que sinto por você.
Sumário

Resumo.................................................................................................................7

Abstract.................................................................................................................8

Introdução.............................................................................................................9

Capítulo 1 – Uma discussão sobre gênero........................................................12

1.1 A importância da discussão de gênero.....................................................12

1.2 A sexualidade como forma de opressão à mulher....................................15

1.3 As mulheres na historiografia....................................................................17

Capítulo 2 – Agripina, uma ameaça à ordem.....................................................22

2.1 As mulheres romanas na constituição da família.....................................22

2.2 Agripina Menor na visão de Suetônio.......................................................24

2.3 Adultério na Roma Antiga.........................................................................31

2.4 Agripina na historiografia atual..................................................................35

Capítulo 3 – Gênero, sexualidade e poder.........................................................38

3.1 Gênero e sexualidade nos dias atuais......................................................38

3.2 Discussões de gênero e sexualidade no mundo romano.........................40

3.3 Agripina e seus estereótipos.....................................................................43

3.4 Reflexões finais.........................................................................................46

Considerações finais..........................................................................................48

Referências.........................................................................................................50
7

Resumo
Apesar de a discussão sobre gênero ser uma discussão contemporânea,
precisamos repensar o papel da mulher em outras épocas e sociedades,
principalmente porque essas mulheres aparecem na historiografia para nós
através de uma visão masculina, que as utilizavam e ainda utilizam como
instrumento retórico, sem se preocupar com a individualidade dessas mulheres.
Para tanto, a visão de Suetônio em sua obra “A Vida dos Doze Césares” sobre
Agripina Menor, foi utilizada para desconstruir a forma como as mulheres eram
retratadas e os estereótipos utilizados nessa caraterização. A historiografia
ainda retrata as mulheres de forma machista e baseado em comportamentos
que se esperam da figura feminina. Graças a diversas discussões e reflexões
filosóficas, essa visão está se desconstruindo e já podemos perceber essas
mulheres contando a sua própria história, mas ainda não alcançamos a
igualdade de gêneros.

Palavras chaves: Identidade de Gênero, Mulheres, Historiografia


8

Abstract
Although the discussion of gender is a contemporary discussion, we need to
rethink women’s role in other times and societies, specially because these
women appear in historiography for us through a male view, that used to use
them and still use as a rhetorical instrument without worry with the individuality
of these women. For this, the vision of Suetonius in his work "The Twelve
Caesars" about Agrippina the Younger, was used to deconstruct the way
women were portrayed and the stereotypes used in this characterization.
Historiography still portrays women in a sexist way and based on behaviors
expected of the female figure. Thanks to many discussions and philosophical
reflections, this vision is deconstructing itself and we can already see these
women telling their own story, but we have not yet reached gender equality.

Key words: Gender Identity, Women, Historiography.


9

Introdução
Durante o curso de História me identifiquei muito com a História Antiga, e
desde então, diversas indagações surgiram, assim como a necessidade de se
produzir uma pesquisa voltada para esta área. Percebi então, que a História
Romana (período escolhido no trabalho), não estava tão distante do meu
contexto e poderia me ajudar a compreender questões cotidianas do meu
tempo. E dentre essas questões atuais, uma que me chama muito a atenção e
com a qual me identifico é a discussão sobre gênero, neste caso, focando o
papel da mulher na historiografia, em nossa sociedade e na Roma Antiga.

Ser mulher nesses contextos envolve sofrer diversas opressões e exclusões,


principalmente do campo político formal. Fomos, muitas vezes, apagadas da
História ou retratadas pelos homens, e difamadas através de nossa
sexualidade.

“[...]na produção da história temos a necessidade de fontes,


documentos, vestígios. Contudo, quando se trata das mulheres
esses materiais são frequentemente apagados, desfeitos,
destruídos, ou seja, existe uma falta de informações sobre o
gênero feminino. Além disso, existe uma falta de dados não
apenas sobre as mulheres e a mulher, todavia sobre sua
existência concreta e sua história singular. Por outro lado,
temos uma abundância de testemunhos ou discursos sobre as
mulheres, essa documentação por muitas vezes produzidas
pelos homens, isto é, muito se fala das mulheres. Portanto, as
imagens do gênero feminino, desta feita, será uma construção
do imaginário dos homens (COELHO 2015, p. 4).

Esse interesse em discutir sobre gênero e sexualidade surgiu de indagações


atuais que se iniciaram ao longo só século XX, quando as denúncias contra as
desigualdades sociais, a intolerâncias de cunho sexual e racial ampliam-se.

Desde a década de 1970, importantes discussões filosóficas


estimularam uma revisão de conceitos e valores tradicionais,
dentre eles os dos códigos sexuais e o do regime de verdades
instituído sobre as relações de gênero. Dentre essas
abordagens e debates, buscam-se novas referências para se
entender os significados atribuídos à feminilidade e à
masculinidade e rejeita-se , embora essas ideias ainda estejam
10

arraigadas no senso comum, como se as concepções e valores


morais sobre a sexualidade fossem e sempre tivessem sido os
mesmos. (FEITOSA, 2008, p.123 )

A ideia, a partir destes pressupostos, é a de trazer uma reflexão sobre como a


mulher era (e ainda é) retratada pela historiografia e como isso está refletido
em nossa sociedade. Para isso, encontrei em Agripina Menor (mãe do
imperador Nero), um objeto de estudo e uma aliada na desconstrução da visão
das mulheres romanas que exerceram papéis considerados masculinos.

Agripina Menor é sempre lembrada por ser mãe do imperador Nero e umas das
esposas do Imperador Cláudio, assim como muitas mulheres são reconhecidas
através de suas relações com homens considerados importantes pela História.
Mas Agripina foi muito criticada e atacada por exercer funções que não eram
comuns de mulheres. Ela encarou os papéis pré-determinados pela sociedade
de que as mulheres não poderiam se envolver com a política formal ou utilizar
sua sexualidade como jogo político, e foi em busca de seus objetivos, tanto que
conseguiu colocar seu filho, Nero, no poder.

Todos as fontes que temos sobre ela, que a denunciam como uma mulher
adúltera e ambiciosa, foram produzidas por homens, sendo que a maioria não
era nem mesmo contemporânea à sua época. Essas denúncias e difamações
nos mostram o quanto a mulher era desvalorizada por seu gênero. E o que me
surpreende, infelizmente, são as semelhanças entre como as mulheres eram
tratadas na Roma Antiga, e como somos vistas pela sociedade hoje. Apesar
das diferenças temporais e culturais, ainda podemos ver que o caminho para a
igualdade de gêneros é longo, mas já conquistamos muito.

Para tanto, o trabalho foi dividido em três capítulos, onde o primeiro trata de
uma discussão sobre gênero e uma reflexão sobre as desigualdades entre os
sexos. No segundo, faremos uma análise da construção da figura feminina a
partir do imaginário masculino através de como Suetônio retrata Agripina
Menor em sua obra “A Vida dos Doze Césares”, e quais são os estereótipos
utilizados para caracterizá-la. Já o terceiro, e último, traz uma reflexão sobre os
dois primeiros, fazendo uma análise de como a construção de gênero pode ser
utilizado como relação de poder e como isso afeta os sexos.
11

As desigualdades de gênero e a forma como as mulheres são retratadas na


historiografia sempre me incomodaram de certa forma, ainda mais por eu ser
uma mulher dentro do campo acadêmico. Portanto, o objetivo do trabalho é
repensar nas relações de gênero e tentar desconstruir a visão das mulheres
que foi construída pelo imaginário masculino.
12

Capítulo 1 – Uma discussão sobre gênero


1.1 A importância da discussão de gênero
Trazer uma discussão sobre gênero é com certeza um desafio, porém um
desafio que deve ser enfrentado para que novos diálogos permitam novas
perspectivas. Enquanto historiadores e historiadoras, temos o dever de buscar
um sentido para o que estamos vivendo hoje; e problematizar questões e
dialogar com essas fontes para que a História se torne cada vez mais um
“lugar” onde possamos nos identificar enquanto sujeitos.

Quando lemos a famosa frase de March Bloch “A História é a ciência dos


Homens no tempo” talvez não pensemos sobre a identidade desses “homens”,
mas a historiografia muitas vezes é seletiva com relação aos seus
personagens.

O objetivo deste trabalho é tratar com maior ênfase o papel e os desafios das
mulheres na construção historiográfica, porém isso não quer dizer que a
discussão de gênero é algo exclusiva do feminismo. O problema aqui é que
não se trata de uma perspectiva naturalizada, gênero é construção histórico-
cultural-social, uma forma de classificação que, segundo Joan Scott, sugere
uma relação entre categorias que torna possíveis distinções ou agrupamentos
separados.

Primeiramente precisamos definir alguns conceitos sobre a definição do termo


“gênero”. A palavra é originária do latim e significa “descendência, origem”, um
conjunto de seres que possuem a mesma origem ou que se acham ligados por
uma ou mais particularidades. De modo geral, as pessoas em nossa sociedade
são divididas em dois gêneros: homens e mulheres. Aparentemente e a
princípio essa divisão se baseia em nossas genitálias, como se a única
particularidade que nos segrega é um pedaço de nossos corpos. E a partir do
momento em que somos divididos nessas duas caixinhas, somos ensinados a
cumprir nossos papéis: as mulheres têm a capacidade para dar à luz e os
homens têm uma força muscular superior.
13

Ao longo do tempo esse termo tem significado muito mais do que isso. Com a
proliferação dos estudos sobre sexo e sexualidade, "gênero" 1 tornou-se uma
palavra particularmente útil, pois oferece um meio de distinguir a prática sexual
dos papéis sexuais atribuídos às mulheres e aos homens.

Acontece que a maioria desses estudos são produzidos por mulheres, já


muitas vezes não somos representadas por nós mesmas. Não faltam fontes
sobre mulheres na História, porém em quase todas elas as mulheres são as
depoentes: esposas, filhas, mães, netas ou amantes dos homens que
realmente “fizeram história”. São representadas como as guardiãs da memória,
como se esse trabalho secundário fosse digno o suficiente para evitar maiores
discussões.

Obviamente as mulheres contemporâneas (assim como algumas outras de


diversos períodos) não se conformaram com esse papel e produziram (e
continuam produzindo) diversas pesquisas e debates a respeito da nossa
importância. É como se tivéssemos que provar o tempo todo que merecemos
ser reconhecidas pela História, assim como outras minorias, já que muitas
vezes nossa história é vista apenas como uma história “militante”, um tópico.

Já sabemos quanto o feminismo, o movimento de mulheres e o


de gays e lésbicas têm contribuído para que as reflexões sobre
gênero sejam implementadas de forma interdisciplinar. O
campo historiográfico, entretanto, tem sido um dos mais
resistentes. A acusação de ser uma “história militante”,
portanto, não “científica”, continua a assombrar, mesmo
quando há muito já se abandonou a certeza da neutralidade. É
ainda interessante refletir como, da mesma forma, outras
categorias como “classe”, “raça/etnia”, “geração” também são
tributárias de movimentos sociais e, obviamente, ligadas a
contextos específicos; no entanto, não parecem sofrer a
mesma “desconfiança” e desqualificação. (PEDRO, 2011, p.70)
1
Segundo Scott, “(1) o gênero é um elemento constitutivo de relações sociais baseadas nas diferenças
percebidas entre os sexos e (2) o gênero é uma forma primária de dar significado às relações de poder,
As mudanças na organização das relações sociais correspondem sempre a mudanças nas representações
de poder, mas a mudança não é unidirecional” (ibidem, p.85). É um emento constitutivo das relações
sociais fundadas sobre as diferenças percebidas entre os sexos, “uma forma primária de dar significado
às reações de poder” (Scott, 1990)
14

Os historiadores e historiadoras têm adotado os estudos de gênero em seus


trabalhos, mas o mais comum, segundo Joana Maria Pedro, é apenas incluir a
categoria “mulher”. A partir desses trabalhos que incorporam as diferenças de
gênero podemos observar os impactos dos acontecimentos sobre homens e
mulheres, a forma como a fonte é constituída, os dados que podem ser
coletados e a maneira como se vai criticar a fonte. “Historiadores de fama
internacional, como Eric Hobsbawm e Roger Chartier, além de outros, vêm
afirmando que a Revolução das Mulheres foi um dos grandes acontecimentos
do século XX, e que a dominação de gênero permeia as relações.” (PEDRO,
2011, p.270)

No campo acadêmico, observa-se ainda tensões e conflitos que se expressam


nas disputas entre categorias como “feminismo” e “gênero”. A maior parte da
história das mulheres tem buscado de alguma forma incluir as mulheres como
objetos de estudo, sujeitos da história. “Tem tomado como axiomática a ideia
de que o ser humano universal poderia incluir as mulheres e proporcionar
evidência e interpretações sobre as várias ações e experiências das mulheres
no passado.” (SCOTT, 1992, p. 77)

No espaço aberto pelo recrutamento de mulheres, o feminismo


logo apareceu para reivindicar mais recursos para as mulheres
e para denunciar a persistência da desigualdade. As feministas
na academia declaravam que os preconceitos contra as
mulheres não haviam desaparecido, ainda que elas tivessem
credenciais acadêmicas ou profissionais, e se organizaram
para exigir uma totalidade de direitos, aos quais suas
qualificações presumivelmente lhes davam direito. Nas
associações das disciplinas acadêmicas, as mulheres
formavam facções para pressionar suas exigências. (Essas
incluíam maior representação nas associações e nas reuniões
de intelectuais, atenção às diferenças salariais entre homens e
mulheres e um fim à discriminação nos contratos, nos títulos e
nas promoções.) A nova identidade coletiva das mulheres na
academia anunciava uma experiência compartilhada de
discriminação baseada na diferenciação sexual e também
admitia que as historiadoras, como um grupo, tinham
necessidades e interesses particulares que não poderiam ser
15

subordinados à categoria geral dos historiadores.


(SCOTT,1992, p. 69)

Os historiadores e historiadoras que estudam mulheres têm que lutar a todo


tempo para provarem que seus estudos são qualificados de história. Os outros
historiadores não feministas acabaram por confinar a história das mulheres em
um campo separado, como se dissesse respeito apenas ao sexo e à família. A
história das mulheres acaba se tornando um campo político, já que, segundo
Joan Scott, a história do pensamento feminista recusa a construção hierárquica
da relação entre masculino e feminino, e os historiadores e historiadoras desta
área estão posicionados para desenvolver o gênero como uma categoria
analítica. Graças a este debate, as feministas começaram a encontrar aliados
acadêmicos e políticos.

Não penso que devemos deixar os arquivos ou abandonar o


estudo do passado, mas acredito, isto sim, que devemos
mudar alguns de nossos hábitos de trabalho, algumas
questões que temos colocado. Devemos examinar
atentamente nossos métodos de análise, clarificar nossas
hipóteses de trabalho, e explicar como a mudança ocorre. Em
vez da busca de origens únicas, temos que pensar nos
processos como estando tão interconectados que não podem
ser separados. (SCOTT, 1995 p. 85)

Discutir questões como essas enriquecerá a História com novas perspectivas e


rejuvenescerá as velhas, assim as mulheres terão maior visibilidade como
criadoras de sua própria identidade e de outras identidades sociais. Além disso,
ainda segundo Scott, “esta nova história abrirá possibilidades para a reflexão
sobre atuais estratégias políticas feministas e o futuro (utópico), pois ela sugere
que o gênero deve ser redefinido e reestruturado em conjunção com uma visão
de igualdade política e social que inclua não somente o sexo, mas também a
classe e a raça.” (SCOTT, 1995, p.93)

1.2 A sexualidade como forma de opressão à mulher


Outro aspecto que vamos discutir sobre a história das mulheres é a sua ligação
direta com a sexualidade, o modo como a produção historiográfica retrata
essas personagens como vítima ou rebelde a partir deste ponto.
16

Como a historiografia é um dos reflexos da sociedade podemos perceber a


todo o momento e em qualquer lugar o quanto a mulher é oprimida ou colocada
em segundo plano, principalmente quando tenta assumir papéis que são consi-
derados masculinos, e Scott (1995) confirma isso, já que na medida em que a
mulher aspire à atuação no âmbito público, usurpando os papéis masculinos,
transmuta-se em força do mal e da infelicidade, dando lugar ao desequilíbrio da
história.
Existem duas visões básicas sobre a mulher, aquela de um ser puro, capaz de
gerar a vida e cuidar da sua família, e a da depravada, enxerida, que busca por
atenção. Tanto que muitas vezes quando uma mulher consegue um cargo
superior a um homem normalmente ela é acusada de ter conseguido tal
posição através de relações sexuais com algum superior, e não por ser capaz.
Quando uma mulher está em posição de poder (como a ex-presidente Dilma
Roussef), é constantemente atacada com ofensas como “vadia”, “puta”, “mal
amada” e muitas outras. Quando uma mulher decide ter seu filho sozinha
porque foi abandonada pelo companheiro é humilhada pela sociedade.

E isso quando a mulher consegue se expressar, pois muitas vezes há um


silenciamento, que pode acontecer de forma sútil, como no caso da atual
Presidente do Supremo Tribunal Federal Cármen Lúcia Antunes Rocha que ao
defender uma colega, a ministra Rosa Weber (que estava sendo interrompida
pelo ministro Luiz Fux), declarou “Foi feita agora uma pesquisa, já dei ciência à
ministra Rosa, em todos os tribunais constitucionais onde há mulheres, o
número de vezes em que as mulheres são aparteadas é 18 vezes maior do que
entre os ministros…” (ROCHA, 2017). Além disso existem diversos termos
como “manterrupting”, “bropriating”, “gaslighting” e “mansplaining” que foram
criados para sinalizar o machismo nas relações e qualificar o comportamento
masculino em relação a uma mulher em diferentes situações.

Foi lançado até mesmo um aplicativo pela agência de publicidade BETC


chamado “Woman Interrupted” que contabiliza quantas vezes mulheres são
interrompidas por homens. O que motivou essa ideia, segundo a agência, foi
um debate entre Trump e Clinton, na qual a candidata foi interrompida mais de
50 vezes pelo adversário. Os resultados mostram que os homens atrapalham a
17

fala das mulheres em situações de trabalho com muito mais frequência do que
o contrário.

A revista “Virgina law Review” também publicou um estudo onde professores


da Universidade de Northwestern analisaram 15 anos de transcrições da
Suprema Corte americana e chegaram a conclusão de que os homens
interrompem as falas das juízas mulheres com três vezes mais frequência que
do que fazem com outros juízes. Nos últimos 12 anos, quando mulheres
ocuparam 24% das cadeiras do tribunal, 32% dessas situações resultaram na
interrupção das juízas, enquanto apenas 4% das vezes representaram
interrupções feitas por elas.

Esse silenciamento pode acontecer de formas mais extremas também, tanto


que o Brasil é o quinto país com a maior taxa de feminicídio do mundo.
“Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), o número de assassinatos
chega a 4,8 para cada 100 mil mulheres. O Mapa da Violência de 2015 aponta
que, entre 1980 e 2013, 106.093 pessoas morreram por sua condição de ser
mulher. A mulheres negras são ainda mais violentadas. Apenas entre 2003 e
2013, houve um aumento de 54% no registro de mortes, passando de 1.864
para 2.875 neste período. Muitas vezes, são os próprios familiares (50,3%) ou
parceiros/ex-parceiros (33,%) os que comentem os assassinatos.”

Todos esses dados comprovam o quanto as mulheres ainda são oprimidas de


diversas formas, inclusive na historiografia. E isso é uma conclusão de diversas
análises de diversos períodos e sociedades, como o Império Romano, que será
o foco da relação deste trabalho. Quando repensamos essas fontes a partir de
um olhar atual, percebemos que cada uma reflete um ponto sobre determinada
sociedade, e esses pontos, quando discutidos, permitem que se abram novos
caminhos para uma História mais inclusiva.

1.3 As mulheres na historiografia


O Império Romano se tornou o maior Estado do Mundo Antigo e construiu
valores culturais e sociais, criando uma hierarquia da figura masculina sobre a
feminina, assim, cristalizou-se uma sociedade patriarcal e masculina.
18

Devido a essa diferenciação, as fontes historiográficas, quando se trata de


mulheres, são normalmente apagadas, destruídas, e por isso há uma falta de
informações sobre elas. Um exemplo é a autobiografia de Agripina Menor que
foi perdida e hoje só temos os escritos de homens sobre ela. Segundo Fabiano
de Souza Coelho, há uma falta de dados não apenas sobre as mulheres, mas
sobre sua existência concreta e sua história singular. Por outro lado, temos
uma abundância de testemunhos ou discursos sobre as mulheres, essa
documentação por muitas vezes produzidas pelos homens, portanto as
imagens do gênero feminino eram uma construção do imaginário masculino. E
Renata Barbosa, em seu artigo “Gênero e Antiguidade: representações e
discursos”, compartilha da mesma visão:

É evidente que, tanto na historiografia, em geral, como na


Antiguidade romana, em particular, existem trabalhos sobre
mulheres ou sobre aspectos a elas relacionados, porém a
maior parte deles contempla as “mulheres célebres”, que
mantiveram relações com homens famosos, as mulheres da
casa imperial em Roma, ou, ainda, aquelas que se
destacaram, positiva ou negativamente, por “aspectos
especiais”, tais como beleza, bondade, fidelidade, infidelidade,
etc. É o caso da submissão da mulher e do seu aparecimento,
por um lado, como figura de desordem e, por outro, como
criatura benéfica. Essa linha de investigação, além de
marginal, não atesta na verdade o que foi a vida da mulher ao
longo da história, mas, pelo contrário, identifica-se como uma
história vista pelo olhar masculino. (BARBOSA, 2002, p. 353)

Segundo Lourdes Conde Feitosa, em sua obra Gênero e sexualidade no


mundo romano: a antiguidade em nossos dias, precisamos considerar como as
indagações sobre gênero e sexualidade no mundo romano integram um
conjunto de discussões recentes sobre o conhecimento histórico e resultam em
novas visões sobre o passado e a forma de organizar e desenvolver pesquisas
históricas; buscar compreender como as relações estabelecidas entre o
feminino e o masculino geram um conhecimento da complexidade das relações
históricas e sociais romanas; e refletir sobre as questões do tempo atual.

Desde a década de 1970, importantes discussões filosóficas estimularam uma


revisão de conceitos e valores tradicionais, como as relações de gênero. A
19

pauta era a reinvenção de si, das diferentes possibilidades de ser viver e


experimentar novas interpretações. E isso, segundo Feitosa, resultou, também,
em um novo olhar sobre o passado e a maneira de se organizar e desenvolver
as pesquisas históricas. Até os anos 1960, grande parte da historiografia, e de
maneira geral a que tratava da Antiguidade, pouca atenção destinou a elas, já
que a preocupação corrente era com as cenas de guerras e as disputas
políticas. As exceções se davam em alguns estudos relacionados às mulheres
chamadas célebres, como, por exemplo, as histórias de Messalina, de
Cleópatra, de Lívia ou Penélope, sendo que o interesse estava na relação que
possuíam com homens poderosos e famosos.

Com as discussões feministas surgiu uma reelaboração dos princípios teóricos


das Ciências Humanas, até então pouco atentos às experiências femininas. O
conceito de documento histórico ampliou-se e isso permitiu que as experiências
e visões femininas se tornassem uma perspectiva histórica. “Sobre a História
Antiga Romana, esses estudos têm permitido rever as áreas de atuação
tradicionalmente atribuídas às mulheres, as diversas formas de atuação política
e os fundamentos, composição e participação dos grupos sociais nas variadas
esferas da organização social.” (FEITOSA, 2008, p. 125)

As reflexões pós-modernistas influenciaram as discussões epistemológicas


femininas e essas ganharam complexidade e a ideia de uma essência feminina
ou masculina tornou-se insuficiente para justificar os diferentes interesses de
cada um deles em grupos socioculturais variados. E isso põe em discussão a
ideia da supremacia do poder do “homem” sobre a “mulher”. (FEITOSA, 2008)

Desde os gregos na Antiguidade até o início do século XX, o sexo feminino era
representado como uma fraqueza da natureza. E na historiografia não era
diferente, as mulheres também eram tratadas em termos de desigualdade,
inferioridades jurídicas e políticas e de emancipação.

As mulheres e os escravos tinham um papel passivo, pois tanto na cultura


grega quanto na cultura romana o papel ativo estava associado a um homem
adulto livre.
20

Segundo Coelho, as mulheres eram condicionadas a esfera privada, tinham


protagonismo no âmbito da casa e da religião; elas eram controladas pelos
seus pais, maridos, parentes ou tutores; e várias regras lhes eram impostas,
em particular, as mulheres das boas famílias, diferente das cortesãs, servas,
prostitutas e escravas.

A autoridade maternal romana estava condicionada pelo


paterfamílias; na legislação em Roma, esse detinha o direito de
vida e morte sobre seus filhos, poderia escolher as pessoas
que ele iria se casar e tinha o direito de administrar a
propriedade de seus filhos e nomear tutores para
acompanharem seus dependentes. (COELHO, 2015, p.12)

Os estudos e a utilização de diversas fontes têm sido fundamentais para


entender a participação das mulheres romanas no espaço social. A presença
de mulheres abastadas (identificadas pelo nome de suas famílias) é, segundo
Feitosa, comprovada através da política de benefícios e de construções
públicas; no apoio financeiro a jogos e na distribuição de alimentos; nas
relações pessoais, desenvolvidas por meio do sistema de clientela; no
patrocínio a corporações de ofício e no gerenciamento de propriedades
particulares e de negócios familiares. Já as menos abastadas, possuíam
atividades como taberneiras, tecelãs, vendedoras, cozinheiras, açougueiras,
perfumistas, enfermeiras, entre outros.

Também encontram-se referências da participação feminina


em discussões políticas em escrutínios locais. (...) Essas
pesquisam ajudam a repensar a ideia do confinamento
feminino ao lar, dedicada a fiar a lã e administrar a casa e,
portanto, distante da vida pública, do fórum, do centro das
decisões políticas e de poder. A própria caracterização da casa
romana como um espaço privado, destinado ao descanso e
restrito à convivência familiar, agora é discutida sob um ponto
de vista arqueológico. Wallace-Hadrill, por exemplo, considera
que no interior dessas casas aristocráticas desenvolviam-se
articulações políticas e relações de clientelismo com pessoas
de diferentes estratos sociais, recebidas em espaços
específicos de acordo com a sua posição social. Com isso, o
próprio âmbito da casa integraria as duas extensões e levam a
21

supor que mulheres estavam mais próximas de discussões


políticas do que o imaginado. (FEITOSA, 2008, p.127)

As pesquisas atuais ajudam a repensar a ideia do confinamento feminino ao


lar, dedicada a casa e, distante da vida pública e do centro das decisões
políticas e de poder. Como era comum as pessoas trabalharem e morarem no
mesmo local, homens e mulheres permaneciam juntos grande parte do tempo,
tecendo outros tipos de relações que não correspondem à divisão
tradicionalmente estabelecida. Então ou esses homens não participavam das
discussões políticas tanto quanto as mulheres que ali viviam, precisamos rever
as análises para incluir essas situações que não se enquadravam nos padrões.

Portanto, devemos sempre repensar a historiografia a partir de novos olhares e


de como interpretamos o mundo hoje, as teorias são visões sobre as
sociedades, por isso estão sempre em constante mudança, e devem sempre
mudar. Assim, compreender as relações entre homens e mulheres, a partir da
perspectiva de gênero nos leva a trabalhos que vem sendo produzidos nas
últimas décadas. (COELHO, 2015)

A discussão sobre gênero pode colaborar com a análise dos comportamentos


sociais, já que, ao contrário dos autores antigos, que utilizam a diferença
biológica para justificar a inferioridade de um dos sexos, podemos perceber
estas diferenças dentro da categoria, como situações e concepções
produzidas, reproduzidas e transformadas ao longo do tempo nos diversos
contextos sociais. E a partir disso, criar novos estudos com novos olhares e
fazer da história da mulher e de suas atividades não só uma história à parte,
mas uma um aspecto essência e inseparável da história global.

Capítulo 2 – Agripina, uma ameaça à ordem.


2.1 As mulheres romanas na constituição da família
22

Historicamente a mulher deve ser afastada das instâncias de poder e se


submeter aos trabalhos domésticos e de criação dos filhos. Essa visão persiste
até hoje. Muitas vezes, quando uma mulher consegue chegar a uma posição
de poder, é silenciada ou julgada, como se não pertencesse àquele lugar. Esse
desrespeito com a mulher é um problema histórico e reflete a desigualdade de
direitos e oportunidades entre homens e mulheres. Desde os gregos na
Antiguidade até o início do século XX, as mulheres eram representadas como
uma carência, defeito, uma fraqueza da natureza. (PERROT, 2013, p. 63).

A mulher é vista como um ser puro capaz de gerar a vida, mas se ela trabalha
e precisa tirar licença maternidade isso se torna um motivo para a diferença de
salário entre homens e mulheres. E a mulher romana também sofria diversas
injustiças e tinha seu papel determinado pela sociedade, que era basicamente
de manutenção da família.

Segundo Leda Pinho (2002), a família romana era um organismo religioso,


social, econômico e, sob certo aspecto, até militar, reunido debaixo da
autoridade de um pater familias vivo. Podemos definir a expressão família
romana como "um grupo de pessoas sob o mesmo lar, que invocava os
mesmos antepassados” (VENOSA, 2001, p. 18).

A família romana representa um padrão da entidade familiar no Ocidente. O


pater familias detinha tríplice autoridade: era chefe político, sacerdote e juiz.
Para ser pater famílias o homem tinha que gozar de plena capacidade jurídica.
Ele detinha um direito quase absoluto sobre seus filhos e descendentes diretos.
Tinha poder absoluto na família e exercia um patriarcado monogâmico e
autocrático.

A mulher normalmente era alieni iuris, que são os sujeitos subordinados aos
sui iuris, aqueles que são sujeitos de direito. Nesse contexto, o papel
designado à mulher é de inferioridade em relação ao homem. Pinho relata em
seu texto que a mulher romana não podia ser tutora de impúberes, adotar filhos
ou testemunhar um testamento. Além disso, elas estavam sempre sob tutela.
Elas "eram consideradas incapazes para a prática dos atos da vida civil;
necessitavam, sempre, de um tutor que lhes representasse os direitos na
23

sociedade romana (tutela perpétua). Jamais podiam ocupar qualquer cargo


público”.2

A situação a que estavam submetidas era sempre de


subordinação e dependência: se "solteiras, eram consideradas
alieni juris e permaneciam sujeitas ao pátrio poder do chefe
(pater) de sua família de sangue"; se casadas "saíam da esfera
do poder do pater de sua família, mas ficavam submetidas ao
manus (autoridade) do marido". Se porventura "o marido fosse,
também, o pater (chefe) de sua família, a sua mulher passava
a ser considerada sua "filha" (loci filia = no lugar de filha),
ficando em igualdade de condições com os próprios filhos. Se
o chefe da nova família fosse o sogro, ela passava a ser
considerada sua "neta" (loci nepolis)." Semelhante condição
"de dependência da mulher só desapareceu no direito
justinianeu”. Enfim, as relações pessoais entre esposos
reduziam a mulher a alieniiuri: estava sempre sujeita a um
pater familias (pai, tutor, irmão, marido, sogro etc.) (PINHO,
p.278)

Elas também eram responsáveis por auxiliar e incentivar seus maridos,


inclusive de servirem como intermediárias entre os maridos e as partes
externas, como Annelise Freisenbruch (2014) nos mostra neste trecho de seu
texto sobre as mulheres da família de Augusto:

O fato de uma mulher poder servir de guardiã do acesso ao


marido de certa forma não era algo novo na política romana.
Durante a era republicana, várias mulheres da elite de fato
agiram como patronas e intermediárias entre os maridos e
parte externas. Cícero, por exemplo, recorreu a MúciaTércia ao
buscar aliança com seu marido, Pompeu, e até mesmo
Cleópatra supostamente tentou ganhar o apoio de Lívia e
Otávia durante as negociações posteriores a Áccio com seu
captor Augusto, oferencendo-lhes joias de presente e
expressando a esperança de que elas demonstrassem
simpatia para com ela. Tais arranjos, porém, sempre haviam
conduzidos longe dos olhos do público, e mulheres como
Múcia Técia jamais teriam sonhado em receber o
reconhecimento público por seus esforços com a construção

2
Rolim, Luiz Antonio. Op. cit., p. 139.
24

de estátuas ou através de outras honras oficiais (Freisenbruch,


2014, p. 74)

Já as mulheres da Dinastia Júlio-Cláudia na Domus Caesarum, como nos


mostra Sarah Azevedo em seu texto “A Domus Caesarum e as mulheres da
Dinastia Júlio-Cláudia” (2012), tinham também a função de transmitir
legitimidade por meio do estabelecimento de casamentos e geração de filhos
legítimos.

A sucessão é uma preocupação constante no jogo político, e era uma das


funções do imperador como pater familias, já que ele determinava casamentos
e adoções.

Viúvas da Domus Caesarum, que apresentavam condições de se casar


novamente e que tinham filhos que eram potenciais herdeiros do império,
representavam, ao mesmo tempo, uma ameaça e uma garantia. (AZEVEDO,
2012). Mas por mais, que as mulheres fossem prejudicadas juridicamente, o
estudo da Domus Caesarum apresenta mulheres fortes e que “faziam política”
dentro de outras estruturas não tão formais, mas igualmente importantes. E
uma dessas mulheres foi Agripina Menor.

2.2 Agripina Menor na visão de Suetônio


Agripina nasceu no ano 15, filha de Germânico e Agripina Maior, ela foi bisneta,
filha, irmã, esposa e mãe de césares. Ela se casou três vezes: com Domício
em 28, com quem teve seu único filho, Nero; com Passieno Crispo em uma
data desconhecida; e em 49, casou-se pela terceira e última vez com o tio e
então imperador Cláudio, contra quem ela planejou um envenenamento a fim
de dar o império ao filho. “Agripina é reconhecida 3 pela sua ambição e soberba,
motivos pelos quais teria se dado sua queda, assinalada pelo matricídio. A
personagem de Agripina representa um elemento importante na elaboração da
crítica a Cláudio e Nero.” (AZEVEDO, 2012, p. 132)

3
Agripina foi alvo de vários estereótipos e descrita como uma mulher adúltera e ambiciosa nas fontes de sua época
e mesmo depois, já que Suetônio, por exemplo, escreveu sobre ela em seu livro “A Vida dos Doze Césares” 62 anos
após sua morte.
25

Os relatos que temos sobre Agripina Menor foram escritos por homens em uma
época em que as mulheres tinham poucos direitos e a desigualdade de gênero
era gritante. Um desses homens foi Suetônio.

Caio Suetônio Tranquilo nasceu entre os anos de 68 e 71 d.C. Considera-se


que tenha nascido em uma cidade no Norte da África, mas que teria ido para a
cidade de Roma, onde teria sido educado. Atuou no período de Trajano e
Adriano e ocupou cargos como o de funcionário responsável por efetuar
pesquisas para o imperador, escrever discursos e dar conselhos referentes à
oratória); a guardião da biblioteca imperial; e ainda o cargo de secretário
imperial. Escreveu o livro “As Vidas dos Doze Césares” no período que vai de
119 a 122 d.C., época na qual ele teve acesso à documentação devido aos
cargos ocupados, onde narra sobre a vida dos imperadores.

A obra de Suetônio Sobre as vidas de Césares, tradução literal do latim De vitis


Caesarum, mais conhecido em português como Vidas dos Doze Césares, é o
conjunto de doze biografias que inclui a de Júlio César e os onze primeiros
imperadores do Império Romano: Augusto, Tibério, Calígula, Cláudio, Nero,
Galba, Otão, Vitélio, Vespasiano, Tito e Domiciano.

O que se constata historicamente é que Suetônio elaborou as “Vidas do Doze


Césares” a partir das fontes retiradas do meio palaciano – ali ele buscou e
registrou o conjunto de acontecimentos do Império, os quais passa a descrever
minuciosa e detalhadamente.

A obra deve ser considerada como o amadurecimento político


do autor, que, ao fazer a histórica avaliação política do império,
representado pelas duas casas mais significativas (Júlio-
Claudiana e Flávia) pendeu muito mais para a democracia e
pela liberdade do que pela monarquia ou pela aristocracia,
talvez ainda em razão de seu espírito de “eques romanus”
oposto a esta última. A formação complexa de Suetônio,
dividido entre a origem eqüestre, a proximidade com o Senado
e a presença nos círculos aristocráticos, por força do interesse
literário, não lhe facultaram a total liberdade de se definir por
uma opção política clara. Mas, ressalte-se, aqui, o fato de não
haver nenhum indício de adesão (restrita ou irrestrita) a
26

qualquer tipo de regime totalitário na sua biografia. (SOBRAL,


2007, p.11)

Percebe-se não uma biografia isolada ou a história de um cidadão-imperador,


mas um universo de acontecimentos relativos a doze governantes, que
transformaram a vida dos povos envolvidos, no período que circunscreve a
ascensão de César ao poder até a queda de Domiciano.

Em sua obra, o papel das mulheres varia de acordo com a posição social e a
posição na família. Elas também eram usadas como forma de avaliação de um
imperador, já que um imperador avaliado de forma negativa pode ter sido
influenciado por uma mulher considerada má. Como no caso de Agripina, que
aparece na obra de Suetônio, assim como nas obras de Tácito. Ambos
possuem uma visão negativa sobre ela, mas Tácito a descreve como uma
mulher extremamente ambiciosa que fazia de tudo para obter poder. Enquanto
Suetônio tem uma visão um pouco menos agressiva e foca em sua relação
com Cláudio e Nero. Ou seja, a “mulher” pode aparecer enquanto instrumento
retórico, já que a figura da mulher aparece como uma figura narrativa nas obras
de Tácito e Suetônio. Eles não se preocupam em retratar as mulheres
enquanto indivíduos, e sim utilizá-las como uma fonte para retratar os homens
aos quais estas estavam ligadas.

Após retornar do exílio depois de ser condenada por adultério, Agripina pôde
casar-se novamente, além de receber uma herança de seu falecido marido (o
primeiro, Domício) e recuperar o filho que estava sob os cuidados de uma tia. A
primeira possibilidade de um novo matrimônio para Agripina é mostrada por
Suetônio. O homem em questão era Galba, o futuro imperador.

Ele se dedicou as leis, bem como a outros estudos liberais.


Igualmente dedicou-se ao matrimônio; mesmo depois da morte
de sua esposa Lépida e dos dois filhos que tiveram, ele
permaneceu viúvo. E ele não foi tentado por nenhuma união
posterior, nem mesmo Agripina, que não muito após a perda
de Domício tentou obviamente conquistar Galba, antes mesmo
da morte da esposa dele. A mãe de Lépida, junto de um grupo
de matronas, a repreendeu severamente e foi tão longe a
ponto de esbofeteá-la. (Suet. Galb. 5, 1)
27

Aqui, Agripina é apresentada por Suetônio como uma mulher que tentou
conquistar um homem casado. Em sua primeira aparição no livro de Suetônio,
Agripina já é retratada como uma potencial adúltera, que utilizava da sedução
como artimanha política.

Porém, o segundo casamento de Agripina é com Caio Salústio Passieno


Crispo, que morre poucos anos depois, deixando para Agripina e seu filho
Domício (Nero) uma fortuna. Agripina então é acusada de envenenar o próprio
marido para receber a herança.

Outra acusação contra Agripina são suas desavenças com outras mulheres da
corte. Essas desavenças entre mulheres são sempre usadas como forma de
apontar as futilidades femininas e a falta de capacidade de lidar com os
problemas de forma racional (como se os homens não tivessem rivalidades
entre si). Uma de suas desavenças se deu com a esposa de seu tio (o
imperador Cláudio), Messalina. Nero, filho de Agripina era considerado um rival
de Britânico, filho de Messalina, e Suetônio deixa isso claro:

Quando sua mãe [Agripina] retornou do exílio e se reinstalou,


ele [Nero] tornou-se tão proeminente devido à influência dela
que foi revelado que Messalina – esposa de Cláudio – havia
enviado um emissário para estrangulá-lo durante seu cochilo
diurno, considerando-o um rival de Britânico. Um adicional a
este boato era que o possível assassino foi afugentado por
uma cobra que saiu por baixo do travesseiro. O único
fundamento para esta narrativa era que havia sido encontrada
próxima a sua cama, perto do travesseiro, uma pele de
serpente; no entanto, pela vontade de sua mãe, ele incluiu
essa pele em uma pulseira de ouro que usou por muito tempo
em seu braço direito. Porém, quando a memória de sua mãe
tornou-se odiosa para ele jogou-a fora, posteriormente a
procurou em vão. (Suet. Nero. 6, 4)

Cláudio era visto como um imperador que se deixava influenciar pelos libertos
e por suas esposas, e Suetônio destaca essa influência em seu texto: “Porém
esses e outros atos, e de fato quase toda a condução de seu principado era
ditada não muito por seu próprio julgamento, mas por suas esposas e libertos,
tendo em vista que ele quase sempre agia em concordância com os desejos e
28

interesses destes.” (Suet. Claud. 25, 5) Por isso, tanto Suetônio quanto Tácito
retratam Cláudio como um imperador fraco, já que segundo eles, Cláudio não
conseguia controlar seus inferiores. Um bom imperador e pater famílias era
aquele que se impunha e era ativo em todos os âmbitos.

Após a execução de Messalina4, que foi sua esposa e retratada na


historiografia como uma mulher adúltera e ninfomaníaca, Cláudio foi à busca
de uma nova esposa. Ele queria provar seu pertencimento à Domus Augusta,
porém, ele não tinha um vínculo real com Augusto. Portanto, Cláudio decide
casar-se com sua sobrinha Agripina, já que esta possuía a origem nobre que
ele buscava.

Porém, Suetônio nos traz isso de outra forma, como se Cláudio tivesse sido
seduzido pela sobrinha, que se aproveitou de seu parentesco para se
aproximar do tio e se tornar sua escolhida. E destaca que a união não foi bem
aceita, por ser considerada incestuosa5

No entanto, ele não poderia privar-se de mais uma vez planejar


um novo casamento, mesmo com Petina, a quem ele tinha
anteriormente descartado e com Lólia Paulina, que tinha sido a
esposa de Caio César. Mas sua afeição foi ludibriada pelos
encantos de Agripina, filha de seu irmão Germânico, auxiliada
pelo direito de trocar beijos e as oportunidades de carinhos
oferecidas por sua relação [familiar]; e no encontro seguinte do
Senado ele subornou alguns membros a proporem que ele
deveria ser compelido a se casar com Agripina, sendo esta
união de interesse máximo para o Estado e para o restante
[dos cidadãos] estava permitido contrair matrimônio similar,
que até aquele tempo era considerado incestuoso. E ele se
casou com ela passado apenas um dia; porém nenhum outro
seguiu seu exemplo, salvo um liberto e um centurião, cujo
casamento ele compareceu em pessoa junto de Agripina.
(Suet. Claud. 26,3)

Tácito também aponta que Cláudio privilegiou Nero e deixou de lado seu
próprio filho, Britânico, devido à influência de Agripina. Ela também conseguiu o

4
Executada por traição, adultério, libertinagem e acusação de conspiração.

5
Os romanos consideravam o incesto algo indecente
29

perdão de Sêneca, que estava no exílio, para que este fosse tutor de seu filho.
Além disso, ela convenceu Cláudio a adotar Nero. Agripina tinha consciência
do funcionamento das manobras políticas do império. (AZEVEDO, 2012) Ela
sabia como funcionava o jogo político e fez tudo para conseguir chegar ao
poder, assim como muitos imperadores fizeram. Agripina era praticamente uma
pater famílias, e buscou seus objetivos através de artimanhas que foram
realizadas por muitos homens também, que inclusive foram elogiados por suas
condutas. Acontece que, por ser mulher e ter assumido papéis que eram
considerados masculinos, Agripina foi difamada e apontada como um ser
disposto a tudo para conseguir o que queria, ambiciosa e maléfica. Portanto,
ela não foi condenada por suas ações, e sim por ser mulher e ter ousado
interferir em um meio considerado masculino.

É preciso destacar aqui que Suetônio não foi contemporâneo de Agripina


Menor, ele nasceu 10 anos após sua morte e escreveu “A Vida dos Doze
Césares” na época da dinastia dos Antoninos e teve prestígio na corte do
imperador Adriano. Portanto, as críticas feitas à dinastia-claudiana não foram
contemporâneas a esses imperadores, e sim a uma dinastia que se
considerava superior.

Na tradição historiográfica vemos personagens femininas que apresentam um


comportamento louvável, enquanto outras são consideradas malignas.
Segundo Azevedo (2012), a superação da natureza feminina significa que a
mulher alcançou virtudes viris, anulando vícios próprios da natureza feminina.

Um exemplo disso são as representações de Agripina Maior e de Agripina


Menor. A primeira representa uma esposa exemplar, sempre disposta a auxiliar
o marido e visar o bem da República.

E, ao mesmo tempo em que sua figura representa um modelo


de conduta feminina, reforça a imagem positiva de Germânico.
Na narrativa taciteana, as esposas leais ao marido, por seu
comportamento leal, enfatizam as qualidades do marido que,
por ser virtuoso, estimula a esposa a um comportamento
igualmente virtuoso. (AZEVEDO, 2012, p.76)
30

“Enquanto Agripina Menor, apresentando um comportamento reprovável,


atribui um valor negativo a Cláudio, e consequentemente ao seu governo, o
comportamento de Agripina Maior reflete as qualidades de Germânico.”
(AZEVEDO, 2012)

Segundo Fischler (1994), citado por Sarah Azevedo (2012):


Os retratos destas mulheres contam-nos mais sobre atitudes
sociais dos romanos do que como viviam as mulheres da elite:
eles nos possibilitam entender, de maneira mais completa,
relações de gênero e sua ligação com estruturas de poder em
Roma, assim como atitudes masculinas a respeito de gênero e
poder que influenciaram na descrição das mulheres presentes
na literatura clássica. (FISCHLER, p.115, 1994)

Quando uma mulher da elite tinha acesso ao poder era considerada ameaça à
ordem, além disso, elas foram caracterizadas como uma forte influência ao
comportamento dos homens, sendo responsabilizadas muitas vezes pelos atos
destes.

Agripina foi acusada de desempenhar seu papel de matrona de forma errada,


ela representa uma inversão desse estereótipo, e enfatiza como a mulher podia
ser considerada símbolo de desordem e ameaça.
As mulheres contribuíam para a imagem da família e do pater famílias,
portanto, se uma mulher tivesse uma imagem negativa ela comprometia toda a
família. As difamações dessas mulheres surgiam a partir de rumores e intrigas
que acabavam sendo levadas para a literatura.
A representação da mulher como símbolo da ordem imperial,
feita através da propagação de um ideal imperial, ajuda a
explicar a existência da inversão, utilizada por historiadores em
suas narrativas deste período, fazendo delas símbolos de
desordem e fatores explicativos para a queda de imperadores.
(AZEVEDO, 2012, p.89)
Mesmo não sendo considerada natural, a intervenção feminina na política
acontecia, e muitas mulheres assumiram papéis ativos. Porém, como aponta
Nuno Simões Rodrigues em seu texto “Agripina e as outras”, a historiografia
31

oficial muitas vezes omite essas mulheres, e mesmo quando aparecem são
retratadas de forma negativa.

Uma análise dos principados de Gaio, Cláudio e Nero permite


concluir que existiam redes de poder e de intervenção política,
nas quais as mulheres se destacaram como peças
fundamentais e determinantes nos destinos do Império.
(RODRIGUES, 2008, p.283)

Uma dessas mulheres foi Agripina Maior, que além de ter tido acesso ao
campo político, encontrou apoios importantes.

É inesquecível o retrato que Tácito nos dá dessa mulher,


grávida, num acampamento militar ao lado do marido, e
intervindo na refrega como qualquer soldado, auxiliando os
feridos e todos os que caíam em combate por Roma. A mulher
no auge da sua feminilidade, como sugere o estado de
gravidez, reveste-se com uma máscara viril. (RODRIGUES,
2008, p. 285)

Agripina Menor era filha de Agripina Maior e irmã de Calígula, e até chegou a
escrever um livro de suas memórias, que chegou a ser lido por Suetônio e
Tácito, mas que se perdeu e não temos como ter acesso. Ela se dedicou à
política e conseguiu realizar muitos de seus interesses, inclusive colocar seu
filho (Nero) no poder. Porém, em 59 d.C., Agripina Menor se tornou vítima dos
interesses políticos da corte.

Apesar de ter conseguido a aliança matrimonial do filho com


Octávia, a descendente direta de Cláudio, Agripina não pôde
evitar que emergissem interesses paralelos, protagonizados
por outras figuras na corte. Essa outra facção, representada
por Tigelino, que veio a ser prefeito do pretório de Nero, não
tardou em manobrar de modo a afastar os primeiros
conselheiros do princeps, entre os quais se encontravam
Séneca e a própria Agripina. Um dos primeiros movimentos
estratégicos foi o afastamento de Britânico e Octávia. A partir
desse momento, Agripina soube que, mais cedo ou mais tarde,
chegaria a sua vez. Por outro lado, derrubada a imperatriz,
nada poderia consolidar melhor a nova facção junto do centro
do poder do que a angariação de uma nova consorte imperial.
(RODRIGUES, 2008, p.291)
32

Na historiografia antiga, as mulheres que tiveram uma vida política ativa são
normalmente tidas como figuras antipáticas, com exceção daquelas que
ficaram ao lado de seus maridos de forma submissa. Gaio, por exemplo,
chamava sua avó, Lívia de “Ulisses de saia”, já que ela ocupou papéis que
eram considerados masculinos.

2.3 Adultério na Roma Antiga


Umas das principais acusações contra Agripina foi a de ela ser uma mulher
adúltera. E o adultério da mulher é um tabu tanto na Roma Antiga quanto hoje.
Em uma entrevista para o jornal da USP, Sarah Fernandes Lino de Azevedo
conta que em seu trabalho (AZEVEDO, 2017) ela investiga um aspecto do
passado que nos ajuda a entender um pouco do comportamento da sociedade
atual: a questão do adultério. Ao estudar sobre as concepções de adultério
registradas na Lex Iulia de Adulteriis (Lei Júlia sobre adultério), Sarah
encontrou diferenças de tratamento entre gêneros naquela sociedade.

Essa lei foi promulgada por Augusto, em 18 a.C. e definia o adultério como
uma relação sexual entre uma mulher casada e um homem que não era seu
marido. Ambos eram incriminados, a esposa adúltera e o homem que cometia
a ofensa contra o marido dela. “Se condenados, a lei previa que fossem
relegados para ilhas diferentes, parte de seus bens era confiscada – ao
homem, metade de sua propriedade; à mulher, metade de seu dote e um terço
de seu patrimônio”, explica a pesquisadora durante a tese.

Aline Rousselle, em seu livro “Pornéia: sexualidade e amor no mundo antigo”,


onde ela fala sobre questões sobre o corpo feminino e as relações entre
sexualidade e sociedade, cita a uma lista de mulheres com as quais os
romanos podiam ter relações sexuais fora do casamento sem incorrer na pena
do estupro ou do adultério. Eles podiam dormir com as escravas, as prostitutas
e atrizes, os proxenetas e suas mulheres, as mulheres condenadas por
adultério, todas essas mulheres, mesmo no caso de serem concubinas de
outro homem, e finalmente, a mulher que – concubina ou esposa de seu patrão
– deixou-o por outro homem. Com exceção desses casos, um romano não
pode ter relações sexuais com uma mulher livre, a não ser que este peça que
se case com ele ou se torne sua concubina. (ROUSSELLE, 1984, p.100)
33

Já a mulher, uma matrona, é obrigada à fidelidade. Seu marido poderá acusá-


la de adultério se descobrir que ela tem amantes. Porém, ela não pode fazer o
mesmo, mesmo que ele seja realmente um adúltero: “uma mulher, em Roma
não pode promover ação na justiça em casos de adultério.” (ROUSSELLE,
1984, p.113)

O marido pode ter relações passageiras ou duradouras com


escravas ou mulheres “sobre as quais não se comete estupro”.
Pode não ter nenhuma relação e consagra-se à continência.
Pode, finalmente, ter uma ou várias concubinas. Nada disso
dará à esposa motivo justificado para um repúdio unilateral.
(ROUSSELLE, 1984, p. 114)

Precisamos ressaltar aqui também que em Roma, as esposas muitas vezes


são crianças. Os homens podiam ter relações sexuais com meninas de menos
de 12 anos, e estas eram consideradas responsáveis por seus atos, inclusive o
de consentir em dormir com homens mais velhos.

Na Roma Antiga existiam dois modos de lidar com uma mulher adúltera: pela
morte, prevista pela lei com certas condições, como o fato de somente o pai
poder matar a filha, ou pela transformação da mulher adúltera em prostituta. A
mulher condenada como adúltera não podia casar novamente com um homem
livre e mudava de estatuto jurídico. “Ela passava para a categoria jurídica dos
infames, que era a categoria jurídica das prostitutas”, aponta Azevedo (2017).

A noção do adultério em Roma é uma concepção patriarcal, que estava


registrada na legislação e restringia o campo de opções sexuais da mulher.
“Podemos ver muito bem, estudando a liberdade sexual do homem, onde se
situa a liberdade da mulher. Mas pode-se chamar de liberdade uma relação
sexual na qual uma mulher não pode escolher o seu parceiro?” (ROUSSELLE,
1984, p.112)

“O homem casado poderia ter relações sexuais fora do casamento, com


escravas, concubinas, prostitutas. Mas isso não era uma opção válida para
mulheres”, destaca Sarah na entrevista para o jornal da USP (2017).
34

Encontrar textos escritos por mulheres da época não é uma tarefa fácil,
portanto temos que nos basear nos escritos dos homens para entender um
pouco dessa questão.

Ao estudar sobre Agripina, que foi considerada uma mulher adúltera e imoral,
Sarah Azevedo compreendeu que esta havia se tornado um alvo dos
legisladores na tentativa de controlar a influência feminina na política local, já
que ela rompeu barreiras ao interferir neste espaço e também no âmbito
sexual.

Para os romanos, a castidade de uma mulher era considerada sagrada, tanto


que existiam as chamadas “virgens vestais”, sacerdotisas responsáveis pelos
cuidados do templo dedicado à deusa Vesta, a deusa dos lares, que garantia a
paz na Roma antiga. O poder destas mulheres se dava ao seu voto de
castidade. “As vestais ficavam num templo do lado do fórum e eram
responsáveis por manter o fogo aceso por meio de rituais que garantiam a
segurança da cidade”, conta Azevedo (2017) , “se elas perdessem a virgindade
e fossem julgadas culpadas, elas eram enterradas vivas”.

Havia uma dualidade na visão sobre a mulher: as puras, castas e descentes e


as adúlteras, prostitutas e imorais. A sexualidade de uma mulher refletia em
sua reputação e podia ser o motivo de sua condenação. Seu corpo era
controlado pelo Estado como se fosse um bem material. Portanto, a figura da
adúltera era uma contradição que deveria ser eliminada.

Mas isso não é algo exclusivo do passado, resquícios desse tratamento à


sexualidade mulher ainda existem. No Brasil, por exemplo, somente em 2005 o
chamado crime de adultério, previsto até então no artigo 240 do Código Penal,
foi revogado.

O adultério continua sendo motivo da maioria dos casos de violência contra a


mulher. Segundo uma pesquisa feita pelo Datafolha e encomendada pelo
Fórum Brasileiro de Segurança, divulgada no primeiro semestre de 2017, uma
em cada três mulheres sofreu algum tipo de violência no último ano. São 503
mulheres brasileiras vítimas a cada hora.
35

Uma outra pesquisa, citada na tese, realizada pela Fundação Perseu Abramo
(FPA), nos anos de 2001 e 2010, revelou que 31% (2001) e 35% (2010) dentre
as mulheres que declararam já ter tido relações fora do casamento/namoro
afirmaram que o motivo principal foi “por vingança/ porque o marido/namorado
tinha amantes/para provocar ciúmes/ porque brigaram”. Ela revelou também
que 40% dos homens que já bateram em mulheres afirmaram que o fizeram
com objetivo de “controlar a fidelidade”.

Ainda hoje, no Brasil, a infidelidade da mulher é considerada um desrespeito à


honra dos homens. Somos iguais perante a lei, mas na prática, a desigualdade
de gênero nos assombra todos os dias.

Tal como na Roma de 2 mil anos atrás, no Brasil do século 21 “a infidelidade


feminina vem justificar a violência masculina”, aponta Sarah. “A letra da lei trata
os gêneros em igualdade, mas isso não é o que a gente vê com os números de
violência contra a mulher”, argumenta.

2.4 Agripina na historiografia atual


Agripina morreu no ano de 59 d.C. e foi muito admirada e reconhecida pelos
romanos até o momento em que começou a exercer papéis considerados
masculinos. Ela se tornou um exemplo clássico da participação da mulher no
jogo político romano e foi muito difamada por isso, assim como por sua conduta
sexual.

Discutir gênero é muito importante, mas deveriam haver outra formas de se


chegar até a História da Mulheres. Não acredito que estudar as mulheres
somente através das relações de gênero nos permita chegar a todos os
âmbitos dessa discussão. Quando analisamos a vida da Agripina, por exemplo,
percebemos que além das opressões de gênero, ela foi mãe, esposa,
participou da política e enfrentou diversas acusações, enfim, foi um indivíduo
com uma história própria.

Agripina é vista como um monstro na tradição textual, uma mulher disposta a


tudo para chegar ao poder, como se os imperadores não tivessem essa mesma
ambição. Mas por ser mulher, Agripina foi usada como exemplo para
36

demonstrar o mal que as mulheres não dominadas podem fazer para a


realização dos seus desejos insaciáveis.

Agripina é apresentada na tradição textual como um verdadeiro


monstro. Criada no centro do poder, atravessou os reinados de
Calígula, Cláudio e Nero sempre no centro das disputas
sangrentas que envolveram estes imperadores. Era irmã de
Calígula, casou-se com seu tio, Cláudio, a quem assassinou
para levar seu filho Nero, que ordenou que a matassem. Foi
morta com cerca de 43 anos. Todos conhecem a fama desta
domina. A imagem que temos dela deriva desta tradição textual
e, especialmente, das leituras que foram feitas destas fontes.
Mais tradicionalmente, Agripina é retratada como uma mulher
odiosa porque buscou a todo custo o poder, especialmente
usando da sua beleza para manipular os homens e de seu
poder para aterrorizar as mulheres, os libertos e os escravos.
Assim, Agripina seria o símbolo da malícia e da desfaçatez das

mulheres em geral. (FAVERSANI, 2013, p.7)

Filósofos, médicos e poetas da antiguidade colocaram as mulheres em posição


de inferioridade em relação aos homens nos quesitos psicológico, fisiológico e
anatômico. Segundo Giulia Sissa em seu capítulo sobe a diferença dos sexos
no livro “História das Mulheres” (1993), “(...) os grandes homens dizem mal das
mulheres, as grande filosofias e os saberes mais autorizados consagraram as
ideias mais falsas e mais desdenhosas a respeito do feminino.” (SISSA, 1990,
p.86) Tudo o que se disse e se escreveu no debate sobre o feminismo de
Platão chega a esta evidência; façam elas o que fizerem, e podem tentar fazer
tudo, fá-lo-ão menos bem.(SISSA, 1990)

Enquanto o pensamento erudito se limitar a reconduzir, em forma de


certeza, o preconceito da inferioridade feminina, enquanto a
identificação com o modelo masculino servir para fazer realçar as
impotências das mulheres, cairemos na armadilha do sexismo, para o
mais ou para o menos. (SISSA, 1990, p.121)
37
38

Capítulo 3 – Gênero, sexualidade e poder


3.1 Gênero e sexualidade nos dias atuais
Tanto na Antiguidade quanto nos dias de hoje, a sexualidade faz parte das
relações sociais e é discutida de forma desigual. Lourdes Conde Feitosa traz
essa discussão em seu texto “Gênero e sexualidade no mundo romano” onde
ela propõe uma busca pela compreensão das relações estabelecidas entre os
universos femininos e masculinos, bem como das relações com o próprio
corpo, desejos e sentimentos, propiciam um conhecimento do heterogêneo, do
diverso e da complexidade que envolviam as relações sociais e históricas
romanas. (FEITOSA, 2008)

refletir sobre povos que já viveram tem sentido porque oferece


perspectivas para pensarmos a sociedade contemporânea e
avaliarmos os interesses e as motivações que estimularam as
pesquisas de outros momentos históricos.”(FEITOSA, 2008,
p.122)

Diversas denúncias contra as desigualdades sociais, sexuais e raciais e as


formas de dominação do capitalismo ampliaram-se ao longo do século XX.
Nesse ambiente, tornaram-se mais frequentes as lutas contra as diferenças de
grupos marginalizados pelas estruturas instituídas. (FEITOSA, 2008, p.123)

A partir dai (principalmente a partir da década de 1970), diversas discussões


levaram a uma desconstrução de valores que eram considerados tradicionais,
inclusive a questão da sexualidade e de gênero. E isso promoveu um
questionamento sobre as definições do que é “ser homem” e “ser mulher” já
estas são construções sociais e comportamentais, e também sobre os
diferentes tipos de sexualidade e manifestações sexuais,

Colocava-se em pauta o tema da reinvenção de si, das


possibilidades de se viver diferentemente do que se vive,
experimentando-se a si mesmo a partir de livres escolhas e de
novas interpretações, e isso resultou, também, em um novo
olhar sobre o passado e a maneira de se organizar e
desenvolver as pesquisas históricas. (FEITOSA, 2008, p.123)

E graças às abordagens feministas, o papel da mulher foi colocado em debate


e passou-se a discutir as relações de poder e a questionar a ideia de
39

inferioridade da mulher e do seu papel na sociedade. E essas discussões


também foram levadas para o campo acadêmico, já que na historiografia (e
aqui vamos falar sobre a historiografia sobre Antiguidade) até a década de
1960, as mulheres não recebiam muita atenção, já que elas não faziam parte
da “verdadeira história” (a história que trata das guerras e das disputas
políticas). Quando elas apareciam eram esposas, mães, filhas ou amantes de
homens célebres, mas nunca como sujeito que possuíam uma história própria.

Essas discussões feministas vieram acompanhadas de uma


reelaboração dos princípios teóricos das Ciências Humanas,
até então pouco atentos às experiências femininas. Alargou-se
o conceito de documento histórico e, além dos tradicionais
escritos oficiais, também ganharam valor documental a
iconografia, a numismática e muitos outros vestígios
arqueológicos, permitindo, desde então, “trazer para a História”
as experiências e os olhares femininos. (FEITOSA, 2008,
p.124)

A partir destas reflexões que valorizavam a diversidade, passou-se a aceitar


diversos perfis de feminilidade e de masculinidade e isso colocou em discussão
a noção de superioridade do “homem” sobre a “mulher”. Já a ideia da
imposição masculina não consegue responder à diversidade de
comportamentos e situações históricas.

Relembrando o conceito de gênero por Scott, percebemos que este está ligado
a questões relacionadas às mulheres, porém expressão “gênero” também nos
remete que qualquer dado sobre as mulheres nos leva a buscar informações
sobre os homens, portanto, um implica o estudo do outro em uma perspectiva
relacional. Esse estudo tornou-se em nossos dias atuais uma relevante
perspectiva teórica no interior da pesquisa histórica. Essa categoria de análise
da história é conceituada por Cemin (2003), como a construção cultural e
simbólica das relações entre homens e mulheres, indicando que existem
atribuições naturais para homens e mulheres que sejam fundadas
biologicamente, porém, ao contrário dos autores antigos, que utilizam as
diferenças biológicas para justificar as inferioridades da mulher perante o
homem, a categoria de gênero veio para mostrar que trata-se de uma
40

construção com base histórica, cultural e social, e que são diferenças culturais
que infelizmente privilegiam os homens e oprimem as mulheres.

Ao que nos parece, uma forma de fazer uma história mais


crítica sem partir do senso comum, está na tendência de levar
em consideração tanto o masculino como o feminino na análise
histórica, buscando a relação entre ambos os sexos em cada
sociedade, fazendo da história da mulher e de suas atividades
não só uma história à parte, mas sim procurando dar-lhe um
status, ou seja, seu lugar na história global. (BARBOSA, 2006,
p.362)

3.2 Discussões de gênero e sexualidade no mundo romano


A sociedade do Império Romano, o maior Estado do Mundo Antigo, foi fundada
sobre valores patriarcais e masculinos, onde a figura do homem estava sempre
acima da figura da mulher. Assim, podemos compreender o comportamento
das mulheres, em sua maioria, a partir de registros masculinos. A imagem da
mulher passou a ser feita a partir de uma construção do imaginário masculino,
já que muitas das fontes que foram produzidas por mulheres foram apagadas.
(PERROT, 2013). Além disso, no âmbito da historiografia as mulheres são
tratadas em termos de desigualdade, inferioridades jurídicas e políticas e de
emancipação (THOMAS, 1993, p. 134). Desde a Antiguidade até o início do
século XX, a mulher era representada como um defeito da natureza.

Através da análise de poesias, mitos, romances e até mesmo da arqueologia, o


estudo sobre os sexos na Antiguidade vem sendo conduzido de forma
sistemática. Existem muitos desafios no estudo sobre as mulheres, até porque
a maioria das fontes sobre elas foram produzidas por homens, provando o
privilégio que eles tinham (e ainda têm) em relação à produção de documentos
e fontes históricas.

É evidente que, tanto na historiografia, em geral, como na


Antiguidade romana, em particular, existem trabalhos sobre
mulheres ou sobre aspectos a elas relacionados, porém a
maior parte deles contempla as “mulheres célebres”, que
mantiveram relações com homens famosos, as mulheres da
casa imperial em Roma, ou, ainda, aquelas que se
destacaram, positiva ou negativamente, por “aspectos
41

especiais”, tais como beleza, bondade, fidelidade, infidelidade,


etc. (BARBOSA, 2006, p.353)

Neste trecho, Renata Cerqueira Barbosa relata um pouco de como as mulheres


eram retratadas de forma a ser sempre uma “sombra” de seus parceiros, por
fugirem dos padrões estipulados ou por estarem muito dentro deles. Essa linha
de investigação, além de marginal, não atesta na verdade o que foi a vida da
mulher ao longo da história, mas, pelo contrário, identifica-se como uma
história vista pelo olhar masculino (CIRIBELLI, 1995, p. 138).

A tradição mitológica greco-latina guardou esta visão marginal sobre a figura


feminina de forma explícita. Como exemplo, podemos recuperar a narrativa de
Prometeu (COMMELIN, 1997, p. 99-101). Este deus astuto engabelou Zeus,
retirando do carro do Sol o fogo divino, entregando-o aos humanos. Enfurecido,
Zeus ordenou que Hefesto forjasse um instrumento para sua vingança: uma
mulher dotada de todas as perfeições. Instruída pelos deuses e deusas, esta
figura feminina ganhou uma caixa bem fechada e a orientação de Zeus para
que a mesma fosse entregue a Prometeu. Esta mulher recebeu o nome de
Pandora (do grego pan, tudo, e doron, dom). Desconfiado, quando Prometeu
avistou Pandora e sua caixa misteriosa, não aceitou nenhuma corte sedutora.
Epimeteu, seu irmão, desmanchou-se diante dos encantos de Pandora,
tornando-a sua esposa. Com o tempo a caixa da danação foi aberta, liberando
todos os males possíveis como uma artimanha da vingança de Zeus pelo roubo
do fogo.

Dentro da tradição judaica, a presença feminina também recebeu uma atenção


pejorativa. Na narrativa do Gênesis, Eva é apresentada como uma dócil
personagem, mas manipulada pelo Satã, que a convenceu a comer o fruto
proibido da Árvore do Conhecimento. Eva também teria sido a responsável por
induzir Adão a cometer o mesmo delito. Como punição Deus expulsou o casal
do Édem, marcando seus descendentes com o estigma da impureza
(UNTERMAN, 1992, p. 94-95). Ainda sobre este ciclo mitológico, a posterior
tradição rabínica anotou ainda a presença perturbadora de Lilith, a primeira
esposa de Adão. Lilith reivindicou igualdade em relação ao marido; após o
fracasso de seu pleito, partiu para um ressentido exílio, convertendo-se em um
espectro demoníaco (UNTERMAN, 1992, p. 153-154). Assim, em ambas as
42

tradições antigas as mulheres foram retratadas enquanto seres malignos que


trazem aos homens a avidez do desejo, o fim do contentamento e da
autossuficiência.

Já no plano religioso, a mulher nunca ocupou o primeiro lugar, apesar de terem


um papel importante nesta área. Um exemplo disso são as Vestais, que eram
mulheres submetidas à obrigação da virgindade (já que uma mulher só era
considerada pura se fosse virgem). A sexualidade feminina sempre foi
reprimida de forma que ainda hoje uma mulher virgem é considerada uma
mulher pura.

Em relação ao comportamento sexual, a cultura romana entendia esse aspecto


a partir da passividade e da atividade, na qual este último estava sempre ligado
ao homem adulto livre, tanto nas relações heterossexuais quanto nas
homossexuais, e o papel da passividade cabia a mulher e escravos
(CARVALHO, 2012). O comportamento sexual representava status, quem
estava acima na hierarquia mantinha um papel ativo. E, naquele contexto o
termo “homossexualidade” não existia e um homem podia ter relações sexuais
com outro homem6 e isso não definia sua identidade sexual, desde que este
exercesse um papel ativo, já que a passividade sexual masculina, segundo
Sêneca, é uma “indecência e crime para os livres, fatalidade para o servo e
obrigação para o liberto”7.
No caso do adultério, as mulheres eram severamente castigadas (podendo até
serem condenadas a morte), mas o homem não era obrigado a ter relações
sexuais apenas com sua esposa. No entanto, o homem, casado ou não, deve
respeitar uma mulher casada; não por respeito a esta, e sim ao seu marido. Um
homem deveria respeitar o que era de outro, sua falta é essencialmente contra
o homem que tem poder sobre a mulher. (BARBOSA, 2006)

A sociedade romana tinha um significativo desprezo pela mulher, portanto, elas


eram condicionadas ao campo do privado, controladas pelos seus familiares ou
tutores; e uma série de proibições e deveres lhes eram impostas para que elas

6
A relação sexual entre dois homens era considerada uma prática erótica compatível com o casamento com o sexo
oposto, não excludente, pois, da relação com as mulheres.

7
Impudicitia in ingenuo crimen est, in servo necessitas, in liberto officium. SÊNECA, Des Controverses, IV, 10.
43

se tornassem mulheres das boas famílias. E, mesmo em casa, que era


considerado o lugar da mulher, a autoridade era exercida pelo pater familias; já
no casamento, Ciribelli nos relata que “[...] sem exagero nem paradoxo, a
mulher em Roma não era sujeito de direito [...] a mulher era unicamente um
objeto” (CIRIBELLI, 1995, p. 145).

A maior das virtudes entre os romanos era a virilidade, a


virtude política; os romanos desde a infância eram educados
para serem dominadores; sempre e em qualquer lugar os
romanos deveriam impor esse ideal de dominação sobre si
mesmo e sobre os outros povos; essa dominação deveria ser
até no campo sexual, pois o cidadão romano (civis romanus)
adulto nunca deveria ser submisso (CANTARELLA, 1994, p.
98).

3.3 Agripina e seus estereótipos


O estereótipo da mulher que apresenta uma sexualidade transgressora pode
ser visto na caracterização de diversas personagens romanas, como é o caso
de Agripina Menor. E esse caráter fez com que Cláudio fosse visto como um
imperador fraco que não conseguia controlar a própria esposa e estabelecer a
ordem em sua casa. A sexualidade da mulher é mostrada como um elemento
essencial na criação de sua reputação e, consequentemente, na de seu
marido.

Aqui, podemos analisar a questão do gênero através de uma perspectiva


relacional. Ao mesmo tempo que Suetônio constrói uma Agripina, ele constrói
um Cláudio. Na visão suetoniana, não há como compreender o homem sem
compreender sua relação com as mulheres, e vice e versa.

O termo “gênero”, através de uma noção relacional, não permite que se possa
compreender os sexos de maneira separada. “Segundo esta visão, as
mulheres e os homens eram definidos em termos recíprocos e não se poderia
compreender qualquer um dos sexos por meio de um estudo inteiramente
separado.” (SCOTT, 1995, p.72) Assim, Natalie Davis afirmava, em 1975:

Penso que deveríamos nos interessar pela história dos homens


como das mulheres, e que não deveríamos tratar somente do
sexo sujeitado, assim como um historiador de classe não pode
44

fixar seu olhar apenas sobre os camponeses. Nosso objetivo é


compreender a importância dos sexos, isto é, dos grupos de
gênero no passado histórico. Nosso objetivo é descobrir o
leque de papéis e de simbolismos sexuais nas diferentes
sociedades e períodos, é encontrar qual era o seu sentido e
como eles funcionavam para manter a ordem social ou para
mudá-la. (DAVIS, 1975, p.90)

Entretanto, devemos tomar cuidado, como aponta Joan Scott (1995), pois essa
visão remete a reciprocidade na interpretação dos gêneros, mas o termo
“gênero” também é utilizado como uma forma primária de dar significado às
relações de poder. Como haver uma reciprocidade justa nas interpretações de
gênero se há uma enorme desigualdade de gênero instaurada? Essa utilização
pode enfatizar o fato de que o mundo das mulheres faz parte do mundo dos
homens, que ele é criado nesse e por esse mundo masculino, como se
dependêssemos da visão dos homens para existirmos na História.

Assim, as mulheres, de maneira geral, aparecem, tanto na documentação


contemporânea, quando na antiga, sendo relacionadas aos homens célebres,
como suas esposas, filhas ou amantes, sem levar em consideração que essas
figuras masculinas devem sua ascensão a elas também. Nero só se tornou
imperador graças à mãe, assim como Cláudio só entrou para a Domus
Augusta devido seu casamento com Agripina, que tinha uma descendência
direta com Augusto. E, assim como este utilizou Agripina para conquistar seu
lugar na Domus Augusta, Agripina utilizou essa descendência para entrar no
jogo político. Ela passou por três governos de três imperadores ligados a ela:
Calígula, seu irmão; Cláudio, seu marido; e Nero, seu filho), e sempre teve um
papel ativo na política. É importante lembrar também, que as mulheres eram
essenciais na garantia das sucessões, pois a legitimidade dos filhos era
garantida pela figura feminina.

Agripina foi alvo de estereótipos na obra de Suêtonio (mulher adúltera,


ambiciosa e incestuosa) e um deles é o que indica seu comportamento sexual
desviante. Quando o historiador faz uso deste estereótipo e relaciona sexo com
política, Agripina aparece como uma ameaça à manutenção da ordem.
45

Segundo Tácito8, a conduta sexual de Agripina está relacionada com a


ambição e também é apontada por suas relações incestuosas com o irmão, o
tio e até mesmo com o filho. Seu casamento se deu por motivos dinásticos, já
que Cláudio queria dar continuidade a Domus Augusta. Porém, como Cláudio
era seu tio, e o incesto não era aceito pela opinião pública, precisou-se de uma
sanção por parte do Senado para que o casamento pudesse ser realizado. 9
Mas mesmo tendo sido aprovado, o casamento de Agripina e Cláudio contribui
para a fortalecer a imagem de Agripina como incestuosa.
A figura de Agripina como incestuosa, compreendida em um
contexto de crítica a Nero, denota a incapacidade do imperador
em manter a harmonia das relações políticas, sociais e até
sexuais dentro de sua domus. Referimo-nos às relações
sexuais porque, além da presença do tópos que relaciona sexo
e política e da recorrente crítica à interferência de Agripina na
política, as relações sexuais estabelecidas pelos membros da
domus Caesarum poderiam ter implicações políticas, na
medida em que possibilitavam a determinação de matrimônios
e sucessões. (AZEVEDO, 2012, p.135)

O fato de uma mulher utilizar sua sexualidade no jogo político ser considerado
algo repugnante, é reflexo de uma ideia da construção de gênero, que utiliza a
noção de que as motivações sexuais humanas são “instintivas” ou “naturais”,
para justificar comportamentos femininos e masculinos. Como se o homem
tivesse a necessidade de ter relações sexuais com diversas mulheres porque
faz parte de sua natureza, e como se a mulher fosse instintivamente submissa.
Até porque, não haveria como comprovar a legitimidade das sucessões e
descendências sem a garantia da fidelidade da mulher. Portanto, a sexualidade
do homem é considerada uma virtude, enquanto a da mulher, uma maldição.

3.4 Reflexões finais


Graças aos crescentes estudos sobre as mulheres podemos compreender
melhor a participação delas no espaço social. Podemos identificar as mulheres
ricas, que eram identificadas pelo nome da sua família e também por meio da
8
Tac. Ann.

9
Cabe lembrar que o incesto, para os romanos, é tido como um ato imoral, que atenta contra a harmonia das
relações humanas e divinas
46

política de benefícios e de construções públicas; no apoio financeiro a jogos e


na distribuição de alimentos; nas relações pessoais, desenvolvidas por meio do
sistema de clientela; no patrocínio a corporações de ofício e no gerenciamento
de propriedades particulares e de negócios familiares. (FEITOSA, 2008)

Já as menos abastadas, exerciam atividades como tecelãs, vendedoras,


taberneiras, açougueiras, cozinheiras, enfermeiras, perfumistas, etc. Há
também referências da participação das mulheres em discussões políticas em
escrutínios locais. Lourdes Feitosa (2008) nos prova isso através de Bernstein
(1987), que afirma que na Pompéia romana, foram encontrados cartazes de
propagandas eleitorais, denominados programmata, e grafites nas paredes
onde as mulheres indicavam os seus candidatos e manifestavam o seu apoio.
Elas também discutiam e opinavam sobre a política local, mesmo sem
poderem, legalmente, participar das eleições.

As pesquisas contemporâneas ajudam a repensar a ideia do confinamento


feminino ao lar, dedicada a fiar a lã e administrar a casa e, portanto, distante da
vida pública, do fórum, do centro das decisões políticas e de poder. Segundo
Laurence (1994), não há como separar o público do privado nas casas
menores. Muitas vezes, as pessoas trabalhavam e moravam no mesmo local, e
isso fazia com que homens e mulheres permanecessem juntos grande parte do
tempo.

Essas pesquisam ajudam a repensar a ideia do confinamento


feminino ao lar, dedicada a fiar a lã e administrar a casa e,
portanto, distante da vida pública, do fórum, do centro das
decisões políticas e de poder. A própria caracterização da casa
romana como um espaço privado, destinado ao descanso e
restrito à convivência familiar, agora é discutida sob um ponto
de vista arqueológico. (FEITOSA, 2008, p.127)

Wallace-Hadrill (1994), por exemplo, considera o âmbito doméstico um lugar


que nos mostra o quanto as mulheres estavam próximas da política, já que
muitas vezes a casa funcionava como uma espécie de comércio onde surgiam
discussões políticas e relações de clientelismo com pessoas de diferentes
estratos sociais com visões diferentes.
47

Essa discussão sobre sexualidade é uma discussão contemporânea, já que até


o século XIX essa expressão nem existia. Porém, podemos utilizá-la para
discutir questões culturais sobre a forma que as pessoas lidavam com seus
corpos, sentimentos e vontades. O estudo sobre a sexualidade permite uma
historicidade do corpo e da prática sexual e como isso se encaixava nas
relações sociais.

Assim, precisamos repensar as fontes dos trabalhos acadêmicos e parar de


enxerga-las como algo sagrado e imutável. Compreender as relações entre
homens e mulheres, a partir da perspectiva de gênero nos leva a trabalhos
fecundos e profundos que vem sendo produzidos nas últimas décadas.
(COELHO, 2015)
48

Considerações finais
Para finalizar, discutir sobre gênero e sexualidade é importante para refletirmos
sobre nossos próprios conceitos e concepções e de como podemos encontrar
na Antiguidade um repertório que nos ajudam a repensar as questões do
mundo contemporâneo.

Ser mulher, tanto na Antiguidade quanto hoje é sofrer diversas opressões e


silenciamentos, inclusive no campo historiográfico, mas, importantes
discussões filosóficas, desde a década de 1970, permitiram uma revisão de
valores tradicionais, expressaram uma vontade de libertação e promoveram
questionamentos com relação aos padrões determinados pela sociedade. Se
reinventar passou a ser uma possibilidade, e isso resultou, também, em um
novo olhar sobre o passado e a maneira de se organizar e desenvolver as
pesquisas históricas. (FEITOSA, 2008)

As discussões feministas exigiram uma revisão do papel da mulher na História,


procurando dar voz a essas personagens e permitir com que outras mulheres
pudessem se identificar com o campo historiográfico. Questionar as relações
de poder foi muito importante para que grande parte da historiografia, que até a
década de 1960 dava pouca importância às mulheres, pudesse enxerga-las
como peças essenciais para se compreender a História, como indivíduos, e
não apenas como esposas, mães ou filhas de homens considerados
importantes.

Com a influência das reflexões pós-modernistas e a


valorização do diverso e do heterogêneo no interior das
sociedades, as discussões das epistemologias femininas
ganharam complexidade e a ideia de uma essência feminina
ou masculina tornou-se insuficiente para justificar os diferentes
interesses de cada um deles em grupos socioculturais
variados. A aceitação de diversos perfis de feminilidade e de
masculinidade põe em discussão a ideia da supremacia do
poder do “homem” sobre a “mulher” à medida que a noção
generalizante de imposição masculina não pode dar respostas
satisfatórias à diversidade de comportamentos e situações
históricas. (FEITOSA, 2008, p.125)
49

Graças a esses estudos, podemos conhecer uma Antiguidade Romana mais


dinâmica, complexa e mais próxima de nós do que imaginávamos. Além disso,
as novas abordagens sobre as fontes possibilitam que enxerguemos novas
relações entre gêneros e sexualidade.

Meu interesse em discutir sobre essa questão veio de algumas decepções com
relação à retratação de personagens históricas e também pelas desigualdades
de gênero que percebemos todos os dias. Ao tentar buscar um novo olhar
sobre as mulheres do passado percebemos que elas sempre fizeram parte da
História, mesmo quando foram colocadas de lado pela historiografia. Fomos,
por muito tempo, retratadas por homens, mas hoje mostramos que somos (e
sempre fomos) capazes de contar nossa própria história.
50

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