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UNIVERSIDADE DO VALE DO RIO DOS SINOS - UNISINOS

UNIDADE ACADÊMICA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA
NÍVEL MESTRADO

PRISCILLA ALMALEH

Ser Mulher:
Cotidianos, Representações e Interseccionalidades da Mulher Popular (Porto
Alegre 1889 – 1900)

São Leopoldo
2018
15

1 COMEÇANDO UM QUEBRA-CABEÇAS

Essa dissertação tem como tema central as mulheres populares na cidade de


Porto Alegre, na década final do século XIX. As motivações que levaram ao
investimento nesta temática são acadêmicas e pessoais. Acadêmicas, pois
precisamos saber e descobrir muito mais sobre as rotinas e as vivências que as
mulheres das diversas classes, etnias e idades experimentaram ao longo da história.
Muito se avançou na escrita sobre as mulheres nos últimos anos, mas ainda há
muitas lacunas as quais devemos preencher. Acreditamos1 que a cidade de Porto
Alegre, como capital do estado, é ainda um ótimo lócus para a pesquisa sobre as
mulheres populares, principalmente se pensarmos na junção das fontes que
utilizamos, as quais nos permitem ter um acesso privilegiado a fragmentos de vida
de algumas mulheres, mas que não deixa de contemplar uma mentalidade e uma
cultura compartilhadas por outras da mesma época.
Cada pesquisa acadêmica que surge sobre a temática das mulheres
compreende para a história maior conhecimento sobre as experiências e práticas de
vidas femininas. Com isso, aos poucos, vamos conseguindo encaixar essas
investigações, independente do foco que o pesquisador dê a sua escrita, como se
cada uma delas fosse uma peça de quebra-cabeças, sendo essenciais para o
conhecimento do ‘todo’ e para a formação de um panorama geral do que era ser
mulher nos diversos tempos e locais da história. Cada pesquisador carrega em sua
escrita, suas experiências de vida e de pesquisa e isso gera uma fascinante
variação de trabalhos de conclusão de curso, dissertações e teses sobre essa
temática, que aos poucos vai surgindo como tema recorrente nos programas de
graduação e de pós-graduação. Infelizmente, ainda não são todas as universidades
que trabalham com temas relacionados a gênero ou História das Mulheres, tornando
essas pesquisas marginalizadas e vistas como não tão importantes em comparação
a outros assuntos. Mas aos poucos vamos conquistando nosso lugar nos programas
e na sociedade.

1
Ao longo da dissertação o leitor observará a utilização da escrita na primeira pessoa do plural. Isso
se deve ao fato de que há muitas contribuições que ocasionaram a finalização desse texto, seja pelas
leituras de meu orientador, das disciplinas feitas ao longo do mestrado, como também auxílios
diversos de amigos e familiares. A utilização dessa narrativa não deixa de ser uma forma de
agradecimento a todos que me auxiliaram de alguma forma.
16

Ser mulher e estudar outras mulheres faz com que essa pesquisa se torne
pessoal e especial. Vivenciamos hoje diversos retrocessos sobre direitos
conquistados na nossa sociedade, especialmente sobre avanços que nós feministas
conseguimos sobre o direito de se falar sobre as diferenças e desigualdades de
gênero no espaço escolar, buscando entender o ser humano nas suas diferentes
sexualidades e a entender a construção cultural que se fez/faz presente sobre ser
mulher e ser homem. Esse fato e tantas outras facetas políticas que remetem a
retrocessos, além da atuação das mídias e religiões que estabelecem padrões sobre
o “ser feminina“, o “ser mulher“ e a estereótipos de conduta, fazem com que
olhemos a um passado, não tão distante, diga-se de passagem, onde as diferenças
de gênero eram justificadas cientificamente e naturalizadas. Isso se assemelha e
muito, com o nosso dia-a-dia. Muitas mulheres ainda são vítimas de um sistema
machista, seja em casa ou no espaço público, onde as desigualdades de gênero
recaem sobre o feminino de uma forma que mata, oprime e subjuga. Mas ainda há
esperanças, e a história tem um papel fundamental para a compreensão do passado
e na aquisição de expectativas para o futuro, pois vemos diversas mulheres
conquistando espaços que não eram originalmente seus e que hoje podemos
usufruir sem que haja tanta repressão. O estudo da história das mulheres é
fundamental para uma sociedade mais justa e igualitária.
Como pesquisadora, iniciei minha trajetória no ano de 2013, quando entrei no
programa de iniciação científica do curso de Licenciatura em História/Unisinos, como
bolsista CNPq, sob a orientação do Professor Doutor Paulo Roberto Staudt Moreira,
meu orientador desde então. A partir do início da pesquisa, transcrevemos e
problematizamos os dados registrados nos Livros de Matricula Geral de Enfermos
da (LMGE) da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre (SCMPA) até o ano de
1895, o que adiante explicaremos mais detalhadamente, com a minha colega de
vida e curso Giane Flores.
Estudar as mulheres começou a ser arquitetado como possibilidade de
pesquisa no período em que me inscrevi na disciplina de introdução ao trabalho de
conclusão de curso (TCC) e, a partir de então, comecei a formular um pré-projeto
que se tornou minha monografia, intitulado “Pobres Mulheres ou Mulheres Pobres?
Uma análise da condição de vida feminina no século XIX (1889 – 1895)”. Com o
levantamento dos dados dos LMGE consegui obter informações sobre as mulheres
que frequentavam a instituição nos anos de 1889 a 1895, mapeando o perfil das
17

enfermas que se internavam na SCMPA. Além de perceber quem eram as mulheres


que frequentavam a instituição, suas idades, estados civis, cores, origens, doenças
e condições de saída, a fonte possibilitou um acesso a uma parte das camadas
populares da sociedade de Porto Alegre. Foram transcritos para aquela pesquisa
12.632 dados referentes a todos os enfermos da instituição, homens e mulheres,
após foi feita uma filtragem apenas das mulheres, totalizando o número de 2.887
enfermas.2
Desde então comecei a aprofundar as leituras sobre mulheres populares,
pensando nas questões que a fonte remetia, tais como trabalho, cor e estado civil,
mas principalmente sobre as experiências cotidianas, o ser mulher e o ser pobre na
capital do Rio Grande do Sul, em fins do século XIX. Especialmente após a
realização da monografia, surgiram outros problemas de pesquisa, que deram
origem a essa dissertação, pois, apesar da renovação historiográfica ocorrida das
últimas décadas e do afloramento de temáticas antes consideradas sem relevância,
como a história das mulheres e de outros considerados “excluídos”, persistem
muitas lacunas, sendo ainda reproduzidos conceitos não problematizados ou tidos
como naturais pela sociedade da época e a de hoje. Como dito, aos poucos os
programas de graduação e pós-graduação no Rio Grande do Sul vão aderindo à
história das mulheres, porém, ainda há poucos trabalhos especializados em
mulheres na região, apesar de sabermos a importância que esses estudos carregam
para a história, mas principalmente para as mulheres na nossa sociedade. Temos e
devemos saber mais sobre nossas antecessoras, mudar o aspecto das oposições
binárias encontradas no senso comum, “santas x putas e recatas x mulheres
públicas”, por exemplo, desnaturalizando essas dualidades. Devemos, como
pesquisadores financiados por órgãos públicos, mudar o que é transmitido nas
escolas/universidades sobre as mulheres e sobre o gênero, aliás, devemos começar
a falar sobre estas temáticas ainda esquecidas ou pouco mencionadas.
Foram as lacunas deixadas pela monografia que me fizeram e fazem
(re)pensar as mulheres populares do final do século XIX, em suas singularidades e
2
A Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre era a principal instituição de auxílio, caridade e
assistência dos considerados pobres e o perfil dos doentes que atendia abrangia não somente a
capital, mas todos aqueles que precisassem de algum auxílio, como mostram diversas bibliografias,
tais como as das historiadoras Yonissa Marmitt Wadi (2009); Nikelen Acosta Witter (2007); Beatriz
Teixeira Weber (1999) e Cláudia Tomaschewski (2007). Contudo, pensando que a instituição era
localizada na cidade de Porto Alegre e considerando questões de locomoção e de cura da época
estudada, acreditamos que a maioria das enfermas fosse da capital do estado, porém, não podemos
descartar a hipótese de que algumas mulheres vieram de outras regiões.
18

totalidades, seus problemas diários, experiências sociais, ações, lutas e conquistas.


Infelizmente, ainda se vê a mulher a partir de discursos marcados por naturalizações
sociais e biológicas, pois vivemos em uma sociedade construída, historicamente, por
heranças machistas e patriarcais. Essas concepções se reproduziram/em pela
literatura, historiografia e pelas gerações seguintes, ou seja, o papel da mulher e
suas funções foram se impregnando nas mentalidades e na cultura da nossa
sociedade e a nossa intenção com essa dissertação é mostrar que as mulheres
tinham atuações sociais além do que era esperado e, em alguns momentos, faço
analogias de como ações passadas refletem em problemas atuais, pois acredito
que, além de historiadora, também sou professora e a profissão docente deve refletir
sobre essas questões.
Tentando compreender mais profundamente e além do que a bibliografia
atual escreve sobre as mulheres, pretendemos mostrar certas vivências de mulheres
populares na cidade de Porto Alegre, remontando alguns aspectos do cenário da
cidade e das mentalidades3, tendo como problema central a sua cotidianidade,
explorando a diferença de caminhos que podiam seguir em vários âmbitos de suas
vidas. Para tanto, a ideia é apresentar ações, agências, formas de sustento e
trabalho, relacionamentos, oposições de classes e raças, estereótipos e discursos,
fatores ligados à vida diária, nada ordinária, destas mulheres.
Ao chegar na SCMPA homens e mulheres deixaram registrados dados
extremamente importantes e ricos que podem ser analisados principalmente
quantitativamente, mostrando algumas peculiaridades sobre estes frequentadores e
moradores da capital, no geral. Estes dados são: seu nome, idade, cor, origem,
filiação, estado civil, classe, doença, trabalho e situação quando da saída da
instituição. Vemos estas fontes como um observatório das pessoas da cidade de
Porto Alegre e as usamos na intenção de ajudar a compreender o perfil dos seus
moradores. Analisar os frequentadores da instituição (os enfermos) também nos
ajuda a refletir sobre os que não procuravam a SCMPA, ou melhor, sobre como as
práticas de cura ainda eram marcadas pela privacidade, pela sociabilidade primária
da vizinhança, da parentela, questões abordados no começo do texto.
Importante citar que, apesar da fonte estar relacionada à medicina e a
doença, essa dissertação não tem a intenção de trabalhar com a história da

3
Quando falamos sobre mentalidades nos referimos de maneira coloquial. Não é nossa intenção falar
sobre a história das mentalidades.
19

medicina feminina. Compreendemos a importância destas pesquisas para a história


da mulher e observamos que a fonte é excelente para essas investigações, mas
esta não é nossa intenção. Utilizamos de uma fonte médica para compreender
cotidianos, relações e ações, devido a outros dados (além dos médicos) que
podemos encontrar nela e ao potencial que verificamos nestes documentos como
propiciadores de cruzamentos.
Apesar da rica documentação, gostaria de ter um acesso ainda mais profundo
aos entraves que essas mulheres tinham em seu dia-a-dia e, para tanto, estou
utilizando os processos judiciais destes mesmos anos (1889 – 1900).
Metodologicamente, selecionei apenas os documentos judiciários em que mulheres
constam como rés, relacionando-os constantemente com a bibliografia, sendo
analisados cerca de 20 processos criminais. A escolha dessa metodologia foi
baseada na tentativa de escrever uma história em que a mulher não fosse só a
vítima, nem que se reproduzisse o discurso da mulher vitimizada, passiva e do lar.
Mostraremos o quanto a moral da época afetou os julgamentos dos magistrados em
relação às mulheres, os estereótipos que foram manejados por elas como
estratégia, ou não, e ainda acessaremos as situações vividas por estas mulheres,
entre outras peculiaridades da vida cotidiana. Por meio da análise dos processos
criminais podemos ver relações de poder entre vários âmbitos e as experiências
sociais dessas agentes no dia a dia, além disso, como testemunhas e rés, essas
mulheres em seus depoimentos podem nos transmitir perspectivas próprias, uma
espécie de escritas de si, mesmo que sujeitas a filtros repressivos.4

4
Importante lembrar que os relatos que chegaram à esfera judicial são aqueles que não tiveram
solução no âmbito doméstico. Sobre a justiça e o uso dos processos judiciais como fontes históricas,
ver: CAMPOS, Adriana Pereira. Nas barras dos tribunais: direito e escravidão no Espírito Santo do
século XIX. 2003. (Tese de Doutorado) Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2003.
; ROSEMBERG, André. Ordem e burla: processos sociais, escravidão e justiça, Santos, década de
1880. São Paulo: Alameda, 2006; SANCHES, Nanci Patrícia Lima. O crime e a história na jurisdição
do Império do Brasil. Cadernos de Pesquisa do CDHIS. Nº 38, ano 21, p. 29-44; FLORES, Mariana
Flores da Cunha Thompson. Crimes de Fronteira: a criminalidade na fronteira meridional do Brasil
(1845-1889). 2012. (Tese de Doutorado) Pontifícia Universidade Catolíca, Porto Alegre, 2012;
CANCELLI, Elizabeth. A cultura do crime e da lei: 1889-1930. Brasília: Editora Universidade de
Brasília, 2001; CORRÊA, Mariza. Morte em Família: representações jurídicas de papéis sexuais. Rio
de Janeiro: Graal, 1983; FAUSTO, Boris. Crime e cotidiano: a criminalidade em São Paulo (1880-
1924). 2. ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2001; GRINBERG, Keila. A história
nos porões dos arquivos judiciários. In: PINSKY, Carla B.; LUCA, Tania R. de. (orgs.) O historiador e
suas fontes. São Paulo: Contexto, 2009; ZENHA, Celeste. As práticas da Justiça no cotidiano da
pobreza. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 5, n. 10, março/agosto de 1985, pp. 123-146;
GINZBURG, Carlo. O inquisidor como antropólogo. In. ______. O fio e os rastros: verdadeiro, falso e
fictício. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 280-292.
20

O período que a dissertação abordará (1889-1900) compreende uma época


de profundas mudanças no mercado de trabalho, de governo, economia,
sentimentos de privacidade5 e da valorização da família e do lar. Sabendo disto,
pretendo observar o impacto que essas situações tiveram na vida cotidiana daqueles
que frequentavam a SCMPA, como também das mulheres encontradas nas fontes
judiciais. Contudo, não há nenhum marco fundamental para a escolha destes anos,
obviamente levamos em consideração essas modificações sociais citadas, mas a
principal escolha foi o tempo que uma pesquisa de mestrado (além da redação final)
tem para se efetivar.
Porto Alegre tem importância não só como capital do estado, centro
administrativo, econômico ou portuário, mas, principalmente, por que foi palco de
moradia de minhas, talvez nossas, avós e bisavós e ao reconstruir o cenário da
cidade e de algumas mulheres, faço jus e dou vida às mulheres que foram julgadas
por suas escolhas, muitas vezes, nem tão escolhas assim, e que pagaram um preço
muito alto, ou ainda pagam nas memórias alheias. Mostrar que seus
comportamentos não eram tão diferentes naquela sociedade e algumas de suas
escolhas como mulheres e pobres acabavam sendo consenso por elas, se tornou
uma tarefa pessoal.
Esses pequenos rastros6 que as fontes comportam acabam trazendo indícios
de desconstrução de conceitos enraizados na sociedade, mostrando que o
considerado natural não existe como verdade, mas que é uma construção com
bases na dominação de um sexo sobre o outro, através dos tempos, das heranças
não materiais que vão de geração para geração. Importante esclarecer que apesar
de falarmos sobre mulheres, não enxergamos os homens como se fossem “vilões”
dessa história, ou àqueles que marginalizaram as mulheres a determinados setores
sociais de forma consciente. Aliás, conceitos como machismo e patriarcado não
estão presentes apenas na cultura masculina, as próprias mulheres
reproduzem/reproduziram esses conceitos. Aos poucos (em detalhes, em gestos,

5
Gonçalves (2006) explica que o século XIX estimulou a criação de mecanismos de controle sobre
sensações, sentimentos e de privacidade, fruto do individualismo burguês e suas noções de
intimidade.
6
De acordo com Pesavento (2008, p.11): “Tais rastros são, pois, representações do ocorrido, tanto
na sua feitura original, a trazer a marca da temporalidade que os construiu no passado, como fato ou
personagem, em um momento dado, quanto na sua construção desde o presente, a participar de uma
rede de possíveis e plausíveis para a elucidação de um problema. Se tais fontes são portadoras de
razões, intenções, estratégias e sensibilidades de uma outra época, tais elementos presidem também
o olhar do historiador que, desde o presente, os vai manipular e analisar”.
21

palavras, explicações e tantas outras formas de reproduções sociais e culturais) que


foram se formando o que hoje temos como educação7 que forma uma sociedade em
que mulheres recebem menos salários do que os homens, que mães são julgadas e
culpabilizadas por serem solteiras e por não seguirem os padrões de maternidade,
ou ainda, em que mulheres são abusadas verbalmente, mentalmente e fisicamente
por serem consideradas sexo frágil e passíveis destes abusos. Em curtas palavras,
uma educação desigual e formadora de papéis específicos.
A partir de alguns procedimentos da Micro história Italiana8, mais
precisamente da redução de escala de análise, da maleabilidade das normas
sociais, da percepção das práticas sociais como estratégias, da compreensão das
agências humanas como ações desenvolvidas em campos de incertezas, a Micro
História nos auxilia a fazer uma articulação entre os comportamentos, normas,
sujeitos e contextos. Assim, teremos informações mais específicas do que
totalizantes, que vão além dos discursos e análises generalizantes e que se
integram a diferentes dimensões da experiência social, recriando assim, o passado a
partir de novos questionamentos.
A escolha dos processos criminais e dos documentos da SCMPA é devido as
suas excepcionalidades, baseada na visão de Edoardo Grendi, que define o
excepcional ligado ao documento e a partir do que ele expressa e revela, assim o
historiador trabalha com uma série de evidências indiretas e nesta situação, o
documento excepcional pode ser excepcionalmente ‘normal’, exatamente porque
relevante. 9

Assim, sua afirmação alude à frequente inevitabilidade do uso de


documentos indiretos diante da falta de informações de primeira
mão. Neste caso, o excepcional pode revelar em negativo aquilo que
se definiria como normal, mas isto não implica necessariamente, que
ele estivesse defendendo a adoção de casos excepcionais para o
estudo histórico. (SERNA; PONS, 2012, p.43)

7
Educação aqui não é compreendida como apenas a escolar, mas uma troca de conhecimento entre
pessoas e que pode ser transmitidas em diversos locais.
8
De acordo com Levi (1992) a micro-história, foi uma proposta nova na verificação de materiais, uma
reordenação de dimensões, de personagens, de perspectivas. E também da valorização da história
dos pequenos e excluídos, ou seja, dos momentos, das situações, das pessoas que indagadas com
um olhar analítico, em âmbito circunscrito, recuperam peso e cor.
9
Ver mais em: SERNA, Justo; PONS, Anaclet. O buraco da agulha. Do que falamos quando falamos
de micro-história? In: MARTINS, Maria Cristina Bohn; MOREIRA, Paulo Roberto Staudt (Orgs.). Uma
história em escalas: A microanálise e a historiografia latino-americana. Editora Oikos: São Leopoldo,
2012.
22

Carlo Ginzburg, no seu artigo “Sinais. Raízes de um Paradigma Indiciário”


argumenta que é possível reconstruir traços culturais e sociais a partir de indícios,
detalhes e sinais existentes nas fontes que parecem, inicialmente, não ter
importância, mas que são ótimos para compreender diversos aspectos históricos. O
historiador italiano nomeou esse método de pesquisa de “paradigma indiciário”. Tal
método é semelhante ao usado pela Antropologia Interpretativa, pois identifica os
“indícios” presentes nas fontes, os pormenores, pequenos traços antes
negligenciados, mas que agora podem servir e revelar para o historiador grandes
significações a partir de uma visão interdisciplinar.10
Outro viés presente em nossa abordagem diz respeito às trajetórias pessoais,
pois ao escolhermos certos percursos de vida e histórias particulares conseguimos
analisar questões sociais e culturais mais amplas, podendo visualizar uma
sociedade repleta de estratégias e tramas de vidas.

O caso em análise, ou o fato-micro torna-se um poço que permite


descer aos subterrâneos da urbe, compondo também, talvez uma
espécie de janela, da qual se aprecia todo o desfilar dos atores
sociais, ou ainda uma lupa, através da qual se revelam as
minúsculas tramas e estratégias para a manutenção de uma ordem
dada. (PESAVENTO, 2008, p. 16)

Natalie Zemon Davis (1987), em seu livro “O Retorno de Martin Guerre”11,


utiliza de diversas estratégias narrativas e conjecturais, demarcadas pelo uso de
expressões como: talvez e pode ser. A historiadora, diante da impossibilidade de
afirmação e da documentação ambígua ou insuficiente, recorre a essa narrativa
cheia de possibilidades e poucas certezas. Como aborda Carlo Ginzburg (1989),
Natalie Davis não se baseia na contraposição da verdade e nem do imaginado, mas
da realidade e das possibilidades subjacentes a ela, partindo de uma imaginação
histórica orientada por outras fontes, autores e por sua experiência como
pesquisadora.12 Inspirada nesta autora, portanto, pretendo traçar uma narrativa

10
Ver mais em: GINZBURG. Sinais, raízes de um paradigma indiciário. In: ______, Carlo. Mitos,
emblemas e sinais. Morfologia e história. São Paulo: Companhia das letras, 1989. (p.143 – 179).
11
O Retorno de Martin Guerre aborda a história de Martin Guerre, um camponês francês do século
XVI que abandona a família e fica sem dar notícias durante anos. Contudo, após algum tempo um
falsário que se auto denomina Martin Guerre se estabelece na família. Após algum tempo e por
desconfiança de alguns, o falsário é levado a julgamento, onde divide as opiniões dos camponeses e
da própria família. Por fim, o verdadeiro Martin retorna e o falsário é julgado a pena de morte. Ver
mais em: DAVIS, Natalie Zemon. O retorno de Martin Guerre. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
12
Pensando que a verdade é subjetiva e que esta é baseada em diversas perspectivas, a rejeito da
minha narrativa.
23

ancorada às variadas possibilidades de ação e comportamento das mulheres do


final do século XIX em diversos aspectos da sua vida, lembrando que essas
hipóteses são voltadas a um público e localidade específicos a partir de um tempo
histórico, mas que não são isolados e podem ser repensados para outros contextos.
A partir desses autores associados a Micro História e desses conceitos,
pretendo analisar as fontes, mas não esquecendo o que Donna Haraway (1995)
chama de saber localizado, ou seja, que a escrita e a pesquisa não é isenta de uma
perspectiva pessoal dos autores. A autora fazendo uma crítica à perspectiva
masculina na ciência acredita que o lugar de onde se vê e se fala determina a visão
de fala e mundo. Portanto, para a autora é imprescindível deixar claro para o leitor
quem sou, ou minha visão de mundo, pois isto influencia diretamente em minhas
formulações, pensamentos e escrita. Portanto, apesar de estar estudando o passado
(um segmento de uma classe popular, no fim do século XIX), carrego bagagens
pessoais e experiências de vida como acadêmica, mãe e mulher branca de classe
média. A partir disso, devo esclarecer que possivelmente (ou provavelmente) não
sofri o que essas mulheres sofreram em uma sociedade marcada pelo domínio
masculino, contudo, a intenção não é me colocar em seus lugares, mas tentar
analisar suas experiências sociais como também as situações que as motivaram a
tais comportamentos.
Nosso local de fala, muitas vezes, acaba limitando ou expandindo nossas
escritas, dependendo do contexto e do objeto que está sendo estudado. Um
exemplo da importância de deixar claro meu lugar de fala: por ser branca não
significa que não posso estudar e compreender as mulheres negras, contudo, não
sinto o preconceito diário que as mulheres negras carregam em seus corpos, apesar
de ter conhecimento sobre isto. Quando nós pesquisadoras temos uma visão mais
parecida com nossos objetos de pesquisa, nosso comprometimento, engajamento e
compreensão mudam, pois o conhecimento de qualquer fenômeno depende da
interpretação dentro de um contexto do mundo material e social.13

13
Mary Gergen (1993, p.112 – 113), ao estudar sobre as metodologias feministas e citando os
psicólogos como exemplo, explica que esses profissionais tradicionalmente defenderam a
necessidade de manter a objetividade em suas pesquisas. “Para atingir esse objetivo, idealmente, o
cientista é um observador independente, que minimiza qualquer relacionamento entre si e o objeto do
estudo. Pensa-se que na medida em que o cientista está distante, não envolvido e neutro, os
objetivos não serão influenciados pelo cientista e dados confiáveis serão recolhidos. Se existe alguma
forma de relacionamento pessoal entre o cientista e o sujeito, essa interação irá, como se diz,
‘contaminar as descobertas’. Muitos escritores feministas criticaram essa perspectiva (Chodorow
1978; Gilligan 1982; Harding 1986; Keller 1982). Eles sugeriram que, por diversas razões, essa visão
24

Adriana Piscitelli (2008), Kimberlé Crenshaw (2002) e Angela Davis (2016)


observam a importância de não esquecer outras categorias interseccionais que
permeiam o gênero. Essas três autoras auxiliam a identificar as várias formas de
subordinação que refletem os efeitos interativos das discriminações sobre gênero,
sendo a raça e a classe categorias de diferenciação preconizadas por elas. Além
disso, Adriana Piscitelli (2008) chama a atenção para o conceito de agency ou
agência – as possibilidades no que se refere à capacidade de agir, mediadas pela
cultura e pelo social.14 Esses conceitos serão abordados ao longo do texto de uma
forma intrínseca, contemplando as diferentes formas de agir e de diferenciação
dessas mulheres.
No decorrer do texto haverá espaços onde falaremos sobre as cores ou raças
das pessoas. Raça, de acordo com Antônio Sérgio Guimarães (2008, p.66), é uma
construção social, compondo: “Discursos sobre as origens de um grupo, que usam
termos que remetem à transmissão de traços fisionômicos, qualidades morais,
intelectuais, psicológicas, pelo sangue [...]”. A raça também foi uma construção
social usada para dar sentido a um modelo escravista e excludente, alocando as
pessoas em diferentes posições sociais devido as suas origens e cor. Como raça, a
cor das pessoas refletia/reflete significados e hierarquias sociais. Utilizamos muito a
nomenclatura cor pelo fato das fontes denominarem o tom de pele das pessoas
dessa maneira e pela sociedade da época também utilizar o termo no cotidiano.15
Rodrigo Weimer (2013) em sua tese observa que apesar de alguns
documentos não mostrarem a cor do indivíduo, ou da sociedade ter deixado

é limitada e androcêntrica. Por exemplo, Nancy Chodorow (1978) argumentou que os homens
desenvolveram uma identidade pessoal através da separação e diferenciação em relação a seus
agentes maternais. Esse padrão de separação estimula o desenvolvimento de uma preferência mais
geral pela separação ao invés da interdependência. Muitas feministas acreditam que aquilo que boa
parte dos cientistas considera o método adequado para organizar a realidade social é simplesmente
uma extensão do desenvolvimento masculino. É claro, a ironia está em que no argumento tradicional
qualquer forma de relacionamento, próximo ou distante, entre cientista e o objeto de estudo constitui
uma mensagem de relação, independentemente do contexto, com o objeto. [...] A possibilidade
alternativa, talvez mais harmoniosa em relação desenvolvimento feminino, é a que admite a conexão
entre as pessoas. Desse ponto de vista, a abordagem mais viável para a pesquisa científica é
reconhecer esse laço entre as pessoas nos contextos sociais e construir métodos científicos nessas
bases”.
14
Obviamente, quando se fala em agência nos estudos históricos, não se pode escapar de destacar
a influência do (neo)marxista inglês E. P. Thompson. Sobre isso, ver: MÜLLER, Ricardo Gaspar.
Razão e utopia: Thompson e a história. Tese de Doutorado. São Paulo, PPGH/Universidade de São
Paulo, 2002.
15
De acordo com Guimarães (2008) a categoria predominante em termos de classificação social
passou a ser cor e não raça, possivelmente pela pressão e pelo avanço social dos ex-libertos e
descendentes.
25

subentendido não haver preconceitos raciais, a realidade era outra. Hierarquias


raciais eram vivenciadas pelos personagens históricos (e presentes, visto que o
autor aborda até a atualidade) diariamente, seja na escola, nos bailes ou no
trabalho, marcando uma sociedade fortemente racializada, onde a cor age como
fator de hierarquização social a partir de categorias historicamente construídas.
Rodrigo Weimer (2013) observa que a cor dos indivíduos pode mudar conforme
fossem se alterando seus lugares sociais, mas também de acordo com aspectos
relacionais, no sentido de a quem cabia determinar a cor de outros.16
Ana Maria Rios e Hebe Maria Mattos (2004. p.170) explicam que até a década
de 1990 apenas a marginalização dos libertos no mercado de trabalho era
enfatizada nas análises. No pós a abolição, “os escravos pareciam ter saído das
senzalas e da história, substituídos pela chegada em massa de imigrantes e
europeus”. Inúmeros trabalhos se dedicaram a estudar os projetos das elites a
respeito dos libertos e dos chamados “nacionais livres” como mão-de-obra e suas
visões, esquecendo-se de contemplar a visão dos libertos sobre o período. O pós-
abolição como um problema de análise social e histórico nos permite estabelecer
novas perspectivas sobre os considerados “novos cidadãos”, resgatando a agência
dos libertos na construção da sociedade neste período, suas alternativas em uma
conjuntura altamente racializada, suas relações familiares e laborais. 17 Contudo,
pretendo analisar essas questões cotidianas em um âmbito feminino, ou seja, como
as mulheres descritas como negras/mulatas/morenas, entre outras designações
encontradas nas fontes, agenciavam seu cotidiano. Para que seja possível essa
forma de análise é importante ressaltar que a fonte produzida pela SCMPA traz
dados importantíssimos. As autoras apontam para a dificuldade dos pesquisadores
encontrarem nos documentos (principalmente judiciários) dados sobre a cor dos
indivíduos envolvidos.

No Brasil, entretanto, é especialmente acentuada, não apenas pela


inexistência de práticas legais, baseadas em distinções de cor e raça
ou pela presença demograficamente expressiva, e mesmo
majoritária, de negros e mestiços livres, antes da abolição, mas pelo
desaparecimento, que se faz notar desde meados do século XIX, de

16
Como no caso de Manoel, personagem estudado pelo autor, que teve muitas cores ao longo da
vida. Em um momento foi considerado pardo, mas não por sua epiderme, mas pelo lugar em que ele
ocupava socialmente e por suas condições financeiras.
17
Os novos estudos de pós-abolição mostram o ex-escravizado ativo, em busca de seus próprios
interesses, cheios de experiências culturais e sociais que não se resumiam a vitimização do cativeiro.
26

se discriminar a cor dos homens livres nos registros históricos


disponíveis. (RIOS, MATTOS, 2004, p.176)

É importante ressaltar que, apesar da cor ser inexistente em algumas fontes,


ela não deixava de ter relevância no estabelecimento de hierarquias sociais e de ter
significações no dia a dia das pessoas. Os significados da liberdade estão
relacionados à falta de menção das cores nas fontes, relacionado com a inserção do
negro na sociedade como um cidadão. Apesar de a sociedade ter sido hierarquizada
e desigual, tentou-se “democratizar”18, pelo menos nas fontes, a população,
embranquecendo os registros ou invisibilizando as cores.

***

Muito se vem problematizando sobre as mulheres nas ciências sociais e com


isso, novas visões sobre o assunto vão surgindo, mas nem sempre foi assim. De
acordo com Joana Pedro (2005) a antiga forma de escrever a história, chamada de
“positivista”, dava destaque a personagens, em geral masculinos, não havendo
espaço neste tipo de história para as mulheres. Nesta perspectiva masculina de
“governantes e de batalhas”, conforme denomina a autora, as mulheres só
participavam quando ocupavam, eventualmente, o trono (e ainda em casos de
ausência do filho varão) ou então numa clara insinuação sensual/sexual que
acredita(va) que as coisas são/eram decididas nos leitos de amantes. Estas histórias
reforçaram mitos carregados de estereótipos de diversos tipos (santidade x
malvadez, por exemplo), a respeito das poucas mulheres que ocupavam algum
cargo de influência. Michelle Perrot (2007) complementa que quando eram citadas,
as mulheres eram vistas pelas perspectivas dos homens, sob a forma de como eles
as enxergavam, além de serem personagens que se sobressaíram por algum de
seus atos, ou seja, não eram mulheres ditas “comuns”, populares, como as
trabalhadoras, mães e donas de casa, as quais essa dissertação pretende
privilegiar.19

18
Essa democratização não é no sentindo pleno da palavra, de tornar acessível algo, mas carregada
de um silenciamento, ou seja, silenciar o racismo e a sociedade hierarquizada das fontes oficiais.
19
Michelle Perrot (2007, p.16) observa que na sociedade oitocentista, a invisibilidade e o silencio das
mulheres faziam parte da ordem natural das coisas, garantindo uma cidade tranquila, pois de certa
forma, a mulher causava medo, visto que era comparada a desordem. Essa indecência da mulher
aparecer em público sozinha, ou a justificativa para não deixar uma mulher no controle da situação,
vem sendo argumentada há muitos anos pela bíblia, o apóstolo Paulo já dizia “que a mulher conserve
o silencio”. A justificativa era porque primeiro foi formado Adão, depois Eva “e não foi Adão que foi
seduzido, mas a mulher que, seduzida, caiu em transgressão” (primeira epístola a Timóteo 2, 12-14).
27

Mas a história das mulheres vem se modificando. Partindo de uma história do


corpo e dos papéis desempenhados na vida privada para chegar aos espaços
públicos, contemplando a cidade, trabalho e criação, essa temática abrange vários
campos e ambientes. Não é apenas uma história de grandes mulheres ou daquelas
que marcaram a sociedade da época pelos seus feitos, apesar de reconhecermos o
valor deste tipo de pesquisa, mas uma história de mulheres ativas, comuns, imersas
em múltiplas interações, que vêm provocando mudanças na forma de estudar e
entender as experiências femininas e suas singularidades. Hoje, além das histórias
das mulheres, encontramos histórias de gênero, que insiste nas relações entre os
sexos e integra a masculinidade, alargando suas perspectivas culturais. As
mulheres, na nova historiografia20, deixaram de estar apenas no cenário como
coadjuvantes, para integrar os papéis principais.
Foi a Escola dos Annales, constituída por March Bloch21 e Lucien Febvre em
torno da revista Annales, que rompeu com a visão da história dominada pelo
exclusivismo político, gerando outros campos de pesquisas historiográficas.
Portanto, após os Annales os grupos considerados subalternos, começaram a
emergir na historiografia, ocasionando uma análise diferenciada das fontes.
O uso da palavra gênero tem uma história que é tributária de movimentos
sociais de mulheres, feministas, gays e lésbicas, como aborda Joana Maria Pedro
(2005) no artigo intitulado “Traduzindo o debate: o uso da categoria gênero na
pesquisa histórica”, acompanhada por lutas de diversos direitos e respeito que esses
grupos conquistaram e vêm conquistando. Para o feminismo22, a palavra gênero

Ou seja, a mulher sempre foi causadora da desordem humana e ela deveria ser confinada a exclusão
de certos âmbitos da sociedade, pois não teria capacidade para tais cargos e papéis.
20
Quando falo em nova historiografia quero remeter as pesquisas feitas desde o ano de 1980,
quando a abordagem feminina começa a desenvolver um papel decisivo na história. Maria Odila Leite
da Silva Dias tornou-se base e uma das precursoras para os estudos femininos no Brasil e para uma
nova historiografia em seu livro “Quotidiano e Poder em São Paulo no século XIX”, se propondo
buscar as minúcias e de ler nas entrelinhas das fontes .
21
Marc Bloch no seu livro-testamento “o ofício do historiador”, permite-nos pensar no passado não só
pelas questões do presente, como, também, observar outras fontes, além das unicamente oficiais e
narrativas. Ver mais: BLOCH, Marc Leopold Benjamin. Apologia da história ou O ofício de historiador.
Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
22
O feminismo, de acordo com Pedro (2005), é dividido em duas “ondas”. A primeira se desenvolveu
em fins do século XIX, para reivindicar direitos como o voto, trabalho remunerado, estudo,
propriedade e herança, já a “segunda onda” surgiu após a Segunda Guerra Mundial, reivindicando
direitos associados ao corpo e ao prazer e lutando contra o patriarcado (entendido como o poder dos
homens na subordinação das mulheres). O presente trabalho dialoga bastante com o que ficou
convencionado chamar-se de feminismo negro: “um campo epistemológico e político que não apenas
pode ser vinculado à negritude, mas faz parte da sua matriz de experiência. Movimento surgido nos
Estados Unidos (Black Feminist Moviment) nos anos 1970 e desenvolvido no Brasil a partir da
28

passou a ser usada no interior dos debates que se travaram dentro do próprio
movimento, que buscava uma explicação para a subordinação das mulheres.
Gênero só foi introduzido nos debates acadêmicos a partir da Segunda
Guerra Mundial23, mais precisamente nos anos 1960 nos Estados Unidos,24 para
reivindicar o que se fazia em nome da “mulher”, e não do “homem”, pois elas
acreditavam que a linguagem e consequentemente as ações sociais mostravam
apenas uma abordagem, a do “homem universal”, não representando questões e
ações que eram específicas das mulheres. Joana Pedro (2005, p.79) complementa:
“era como ‘Mulher’ que elas reafirmavam uma identidade, separada da de ‘homem’”.
A grande questão que as feministas queriam responder e que buscavam nas várias
ciências era o porquê de as mulheres, em diferentes sociedades, serem submetidas
à autoridade masculina e porque essas atividades destinadas às mulheres eram
sempre desqualificadas em relação àquilo que os homens desta mesma cultura
faziam. Joan Scott (1990) argumenta dizendo que as feministas também queriam
enfatizar o caráter fundamentalmente social das distinções baseadas no sexo,
indicando uma rejeição do determinismo biológico e características sociais implícitas
em termos como a própria palavra “sexo”. Joan Scott (1988) ao explicar a diferença
entre os sexos observa que o significado é construído através do contraste e que
uma definição positiva se apoia na negação ou na representação do oposto, de
acordo com a autora:

Cualquier análisis de significado implica desmenuzar estas


negaciones y oposiciones, descubriendo como están operando em
contextos específicos. Las oposiones se apoyan em metáforas y
referencias cruzadas; y em el discurso patriarcal, com frecuencia la
diferencia sexual (el contraste entre masculino y feminino) sirve para

década seguinte, o feminismo negro desafia as formas de dominação de uma sociedade


tradicionalmente branca e masculina e coloca em tensionamento a produção de conhecimento deste
grupo. Um dos conceitos chave do feminismo negro é a interseccionalidade. Para Kimberle Crenshaw
(2002, p. 8), a interseccionalidade ‘pode servir de ponte entre diversas instituições e eventos e entre
questões de gênero e de raça [...] – uma vez que [...] visa incluir questões raciais nos debates sobre
gênero e direitos humanos e incluir questões de gênero nos debates sobre raça e direitos humanos’”
(WESCHENFELDER, 2018, p.20) Ver também: CRENSHAW, Kimberlé. Documento para o encontro
de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero. Estudos Feministas. Ano
10, p.171 – 188, semestre de 2002; CARNEIRO, Sueli. Mulheres em movimento. Estudos Avançados,
v. 17, n. 49, p. 117-132, 2003.
23
Michelle Perrot (2007) afirma que a modificação da história das mulheres ocorreu entre as duas
guerras, pois a partir daí as mulheres começaram a ter acesso às universidades e acabaram se
interessando por suas histórias.
24
De acordo com Pedro (2005, p.79): “Tiveram como liderança o trabalho de Betty Friedan, ‘A mística
feminina’; publicado nos Estados Unidos em 1963, e a organização, em 1966, do NOW – National
Organization of Women. Na França, o trabalho de Simone de Beauvouir, ‘O segundo Sexo’, publicado
em 1949, também repercurtiu no ressurgimento do movimento feminista francês”.
29

codificar o estabelecer significados que no están relacionados com el


género o el cuerpo. (SCOTT, 1988, p.91)

Dessa forma, os significados de gênero se vinculam com demasiados tipos de


representações culturais e se estabelecem como as relações que homens e
mulheres se organizam e são entendidos em cada cultura. Margareth Mead (1988),
antes de Joan Scott ou Joana Pedro, já demonstrou uma análise interessante sobre
o temperamento dos sexos. Ao fazer uma etnografia com três diferentes tribos,
chega a seguinte conclusão:

Se aquelas atitudes temperamentais que tradicionalmente reputamos


femininas – tais como passividade, suscetibilidade e disposição de
acalentar crianças – podem tão facilmente ser erigidas como padrão
masculino numa tribo, e na outra ser prescritas para a maioria das
mulheres, assim como para a maioria dos homens, não nos resta mais
a menor base para considerar tais aspectos de comportamento como
ligados ao sexo. (MEAD, 1988, p.268)

Ou seja, a cultura que afirmaria e diferenciaria os papéis sociais, ou em outras


palavras, o temperamento, está totalmente separada do fator biológico. Contudo,
autoras como Joana Pedro (2005) e Chandra Mohanty (2008) recordam que ao
trabalhar com questões de gênero ou história das mulheres, devemos prestar
atenção para que as explicações não se tornem as mesmas, ou seja, a
subordinação não era/é a mesma para todas as mulheres, e nem aceita por todas,
tudo depende do contexto histórico, cultural e social de cada região.
O final do século XIX é um período marcado por diversas transições no
âmbito social, cultural e político.25 A abolição da escravatura, a industrialização, a
urbanização, o advento da República e os grandes empreendimentos científicos e
tecnológicos com certeza dividiram opiniões entre a população, mesmo para aqueles
que não estavam diretamente envolvidos nessas discussões. Acreditamos que
grande parte da população, apesar de não ter um saber dito letrado, possuía outros
meios de educação, informação e aprendizagem, como a própria circulação de
ideias via a oralidade, a leitura de jornais em voz alta nos bares, ruas ou praças
entre outras. Portanto, homens e mulheres estavam atentos ao discurso de

25
No final do século XIX temos o início da República e a então recente abolição, além de fatores
ligados ao caráter positivista da época, discurso relacionado a uma nova ordem moral e civilizatória
voltada ao progresso. Havia, também, uma ação higienista que visava à limpeza da sociedade, tanto
no âmbito físico, mas principalmente no moral. Esta política era gerida e pensada pelos médicos,
governantes e intelectuais do período que acreditavam serem os pobres, por exemplo, o problema
central da sociedade, dificultando o almejado progresso.
30

comportamento dos gêneros, mesmo os que não soubessem de sua imposição, se


apropriando e discutindo-os (mesmo que através de suas práticas cotidianas), suas
situações específicas. Mesmo que suas vidas não coubessem nos padrões de
comportamentos e que a cotidianidade fosse marcada por outras formas de
condutas, estes discursos acabam ficando estabelecidos como naturais, balizando
várias formas de controle social.
O discurso de comportamento dos gêneros, de acordo com Fabíola Rohden
(2001), foi paulatinamente firmado na sociedade a partir da cientificidade médica e
do poder que ela começou a exercer sobre as pessoas. O século XIX foi marcado
por saberes ditos científicos26 criados por médicos que se afirmavam e expandiam a
partir da diferença, separação, oposição e hierarquia, produzindo o contexto das
significativas transformações socioeconômicas que caracterizariam o século. Esta
mesma autora, ao analisar os escritos médicos deste período, percebe um esforço
por parte desta classe em propor uma clara distinção das funções e das
características socialmente aceitas dos sexos, tratando a diferença entre eles como
algo natural e intrínseco, esclarecendo as razões de suas existências e redefinindo,
só que agora pautado num discurso científico e biológico em base das diferenças de
papéis e gêneros como naturalmente distintos em suas características físicas,
morais, sociais e psicológicas.
A partir destas afirmações científicas e médicas e do rumo que a sociedade
com pensamentos positivistas27 se encaminhava, desígnios naturais do papel da
mulher teriam como resultado uma boa preparação para assumir seu papel de mãe
e esposa, com características ligadas a fragilidade, a docilidade e a sensibilidade,
devido a sua natureza física e psicológica. Sendo assim, eram reservadas a esfera

26
Acredito que seja importante para o entendimento deste texto o que considero como ciência. De
acordo com Novaes (2015, p.50): “Descartes no berço das descobertas científicas do século XVII,
colocou em dúvida o conhecimento, propondo um método que fosse científico, destruindo as certezas
para reconstruí-las inteiramente por meio de um processo metódico e único. A partir disto, a busca da
verdade passou a se fundamentar numa separação entre sujeito e objeto, considerando que o polo
que irradia a certeza é o sujeito que pensa e que produz o conhecimento. Portanto, podemos pensar
que a ciência foi uma criação humana e quem irradiava a ciência era um seleto grupo formado por
homens de elite e brancos”. Se pensarmos por este ângulo, as perspectivas femininas não eram/são
vistas. Este método coloca/va as suas perspectivas como uma verdade já que seria “comprovado”.
27
O positivismo é baseado nas ideias de Augusto Comte. O Rio Grande do Sul com a República
estava embebido nos ideais de ordem e progresso e para tanto o governo, como os intelectuais,
promulgavam a organização da sociedade a partir de novos hábitos disciplinadores pautados na
razão e na ciência, os quais levariam o Estado e o país ao rumo da modernidade e da civilização. Céli
Pinto (1986) ao estudar o Partido Republicano Rio-grandense diz que o positivismo adotado pelo
Estado eram caracterizados como ideológicos das leis de evolução natural, garantindo o sucesso do
grupo mais desenvolvido, deixando, portanto, os populares distantes das ações do Estado.
31

do lar e os afazeres domésticos como ações naturais e normais, ideais e


recomendados moralmente para a mulher honrada socialmente e virtuosa
moralmente.28 Vemos um discurso pautado em uma esfera binária de oposições:
cultura e natureza versus razão e emoção, o que acaba por justificar relações
exploratórias por características inatas e predeterminadas femininas e masculinas.
Emoção e natureza reservadas às mulheres e razão e cultura para os homens, com
isto o lar está socialmente aceito para as mulheres como a rua para os homens.
Contudo, Elizabete Novaes (2015) nos recorda que as pessoas se relacionam
intermediadas pelas suas próprias culturas, crenças e pelas representações que
possuem sobre as suas realidades sociais. Ou seja, elas próprias, conscientes ou
não, se apropriavam do discurso, conforme suas possibilidades de ações e
interpretações. Seria ilusório e ingênuo pensar que mulheres e homens seguiam
padrões de conduta definidos e definitivos. Suas ações eram norteadas de acordo
com as possibilidades encontradas em cada situação e crença particular. Por mais
que houvesse um discurso determinador de comportamentos, as vivências
cotidianas poderiam levar para outros caminhos, muitas vezes não os idealizados. 29
Devemos compreender que falamos de mulheres populares, que precisavam na
maioria das vezes, trabalhar, andar pelas ruas e se relacionar. Suas vidas eram
diferentes do que era esperado por estes padrões, pensados por uma classe
abastada de recursos em que os estereótipos e padrões até poderiam se manter,
diferente da popular, que possuíam outros meios de vida.
Importante é compreender que além destes padrões e estereótipos, ainda
havia mentalidades imaginadas e criadas a partir destas características do sexo
feminino. Sandra Pesavento (2008) lembra que o poder de sedução era
caracterizado como um atributo próprio da mulher, desencadeando instintos e
impulsos, onde os homens perderiam a sua capacidade de ser racional. Nessa via
de pensamento, o ato de seduzir, imputado a mulher, promove o alerta e o perigo
em relação às artimanhas femininas.30 A autora explica que “deixado à solta, sem

28
Ver mais em: ROHDEN, Uma ciência da diferença: sexo e gênero na medicina da mulher. Rio de
Janeiro: Editora Fiocruz, 2001.
29
Não podemos esquecer de que havia um discurso de comportamentos ideais e que isso de alguma
forma interferia em suas vidas.
30
Sandra Pesavento (2008, p.81) explica que o autor Michelet foi um dos precursores no resgate
desta dimensão do imaginário social sobre a mulher: “Na sua conhecida obra La sorcière, Michelet
indica que foi a Natureza que fez da mulher feiticeira. Sem querer cair na questão levantada pelo
autor – os mistérios do corpo feminino e suas funções – que acaba por opor a mulher-natureza ao
homem-cultura, entendemos que o que se poderia chamar de natureza feminina, ou o feminino é uma
32

controle, este traço identificador do feminino é capaz de privar o homem de sua


racionalidade, e desviá-lo de uma conduta regrada e ordeira” (PESAVENTO, 2008,
p.65). Ou seja, a mulher era culpabilizada pela sua sedução, era ela que levava o
homem ao mau caminho, que por seus instintos desviava o homem da sua conduta
moral, fator que responde o porquê da mulher ser socialmente desclassificada pela
sua condição de prostituta, já que esta profissão era/é símbolo do desregramento,
da perdição, da destruição da família e do homem.

***

Os personagens que dão vida a essa dissertação tiveram suas vivências no


contexto urbano de uma capital, que estava em plena mudança, crescimento,
modernização, se tornando um lugar da diferença, de etnias, cores, classes, sexos,
representações, ou seja, da novidade e do enfrentamento com o outro. As mulheres,
como veremos, ficavam expostas aos perigos da vida urbana, que iam desde a sua
conhecida feição moralizante até os perigos diários que uma cidade em crescimento
como Porto Alegre pode acarretar.31
José Geraldo Moraes (1994) em “Cidade e cultura urbana na Primeira
República” explica que as cidades brasileiras nas últimas décadas do século XIX e
nos primeiros anos do século XX, passaram por grandes transformações, tais como
a intensa imigração, a abolição da escravidão, a decadência da monarquia e a
proclamação da república, o início da industrialização e a formação dos centros
urbanos de maior porte. Mas essas transformações se concretizavam na realidade
nacional de forma contraditória e invertida.

construção simbólica. E esta, no caso, é dada pelo olhar e pelo julgamento dos homens sobre
mulheres. Com propriedade, Jacques Le Goff afirma que Michelet enfoca bem a questão quando
centraliza sua análise num aparente paradoxo: é justamente no momento em que a mulher emerge
como uma personagem de maior presença na história que é preciso diabolizá-la. É neste momento,
na passagem do século XIV para o século XV, em que se acentua a sua faceta de bruxa, de
sexualidade desregrada, dotada de malícia, capaz de realizar sortilégios e malefícios. Mais do que
isso, esta representação feminina trabalha com a ideia de que a mulher é perigosa, por ser capaz de
trair e seduzir”.
31
Não estamos com isso defendendo que tais representações sobre o feminino não circulassem e
influenciassem também as áreas rurais. Ou que nessas zonas a racialização e o controle sobre as
mulheres fossem mais amenos e imperceptíveis. Apenas estamos considerando que os centros onde
a urbanização era mais acentuada essas ideias circulavam com mais facilidade, seja pelos jornais ou
pelas sociedades literárias. Assim, parte dos letrados que saiam dos centros universitários
encontravam maiores possibilidades de inserção profissional nesses centros urbanos, seja nas
instituições hospitalares, seja nos serviços públicos, que estavam em franco crescimento.
33

No campo político, a República prometia, inspirada na tradição liberal


francesa e norte-americana, liberdade, igualdade, participação e
democracia. Por diversos motivos, essas bandeiras republicanas
foram rapidamente frustradas. Para a maioria da população, o
exercício da cidadania ainda era algo distante, uma vez que o direito
básico ao voto era restrito aos homens alfabetizados e as pressões
políticas sobre os eleitores eram uma constante. Além disso, a
República também afastava de seus centros de poder grande parte
dos brasileiros, pois sua estrutura federativa descentralizada foi
dirigida por décadas pelos cafeicultores paulistas e mineiros e
reforçou o poder das oligarquias regionais. (MORAES, 1994, p.5)

A partir da segunda metade do século XIX, as cidades acompanharam um


crescimento urbano32, as pequenas vilas transformaram-se em pequenas cidades, os
pequenos e médios centros urbanos evoluíram, e as grandes cidades cresceram
ainda mais, devido a fatores que evoluíram na mesma velocidade, como o avanço
da medicina, saneamento básico33, a industrialização, revolução nos transportes e o
avanço da ciência e da tecnologia. Tudo isso com a intenção de criar uma cidade
mais moderna, conforme os centros europeus.34 Esse crescimento inspirava uma
população que tinha a intenção de obter melhorias de vida, como a possibilidade de
trabalho regular e remunerado, o acesso mais rápido e fácil às mercadorias, uma
vida cotidiana menos monótona e com mais atrativos. Mas também, não deixava de
ser uma cidade onde a vizinhança se pronunciava, contando o que havia visto,
espiando pelas frestas, se policiando, onde tudo era visto e registrado, como
veremos.

32
Dóris Bittencourt (2013, p. 189) explica que no ano de 1890 a cidade de Porto Alegre possuía:
“9 fabricas de cerveja, 7 de sabão e velas, 18 de charutos e cigarros, 6 de chapéus, 6 de banha, 51
de calçados, 62 de olarias, 6 armadores, 6 refinarias de banha e 51 curtumes”. Ver mais:
BITTENCOURT, Dóris Maria Machado de. Casa, alcova e mulher. Santa Cruz do Sul: EDUNISC,
2013. SINGER, Paul. Desenvolvimento e evolução urbana: análise da evolução econômica de São
Paulo, Blumenau, Porto Alegre, Belo Horizonte e Recife. 2ed. São Paulo: nacional, 1977.
33
O serviço de limpeza das ruas passou a ser feito por máquinas varredoras Sohy, precedido por
uma irrigação feita com irrigadores a tração animal. “No Império existiam leis e posturas que
regulamentavam a vida das cidades. Entretanto, pode-se afirmar que a emergência
do regulamentarismo no sentido do saneamento da cidade surgiu no final do século XIX,
intensificando-se nas duas primeiras décadas do século XX. Na gestão do espaço público e na
arquitetura houve progressos que atestaram o avanço do projeto de desodorização” (BITTENCOURT,
2013, p. 146)
34
José Geraldo Moraes (1994, p.21) explica que: “[...] as ideias de progresso, civilização, moderno e
bom-gosto eram representadas pela Europa, sobretudo por Paris e Londres, ‘berços da
modernidade’. Essas ideias, criadas e assumidas principalmente pelo imaginário da elite brasileira,
iriam marcar definitivamente as características, a vida e as construções das principais cidades de
nosso país. O desejo incontido de se parecer com a Europa, na forma e no conteúdo, se revelaria de
maneira espantosa no Brasil, influenciando profundamente o modo de vida de muitos brasileiros do
início deste século”.
34

Contudo, a expansão e o crescimento urbano foram repletos de situações que


mostraram que as cidades não estavam preparadas estruturalmente para receber
tamanha população. Problemas como a falta de moradia, abastecimento de
alimentos e de água, a insalubridade geradora de doenças e epidemias, o
subemprego ou desemprego, a violência e a mendicância também foram partes
constitutivas do quadro urbano, principalmente para uma população sem recursos
de ordem material.35 Porém, como uma consequência leva a outra, e a falta de
recursos financeiros, de trabalho e da precariedade nos transportes geraram para
aqueles que queriam um centro urbano moderno, limpo, ou seja, sem os pobres,
uma cidade repleta de moradias coletivas (cortiços),36 próximas ao centro da cidade
(ou no próprio centro) que desafiavam a elite, a policia, os médicos e os políticos
pela aglomeração das gentes, mas que deve ser visto como um local de resistência
e luta diária.
Além dos cortiços, Sandra Pesavento (2008) aponta, ao estudar o caso de
Catharina Palse e José Ramos, o açougueiro da Rua do Arvoredo que a partir de
“crendices populares” supostamente vendia carne humana 37, que havia uma prática,
de certa forma comum entre alguns setores da população, onde indivíduos de pouca
renda albergavam terceiros, às vezes por cumplicidade, favor ou questões
econômicas, onde uma espécie de aluguel deveria ser pago, como se a casa fosse
uma hospedaria para pessoas de poucos recursos e ocupação incerta. É comum
nas fontes judiciais encontrarmos mulheres que residiam em quartos localizados em
quintais, casas de pasto e edifícios/sobrados que sublocavam peças, mostrando as

35
José Geraldo Moraes (1994) explica que a política pública e privada procurou disciplinar e ‘educar’
essa população, através do controle de natalidade, discursos médicos que operavam como propulsor
da família ‘limpa’ e honesta, do trabalho como moralizador, das entidades assistenciais, casas do
trabalhador e de correção, reformatórios, e outros. Ou, ainda, por uso da repressão e políticas contra
‘vadiagem’, uso da violência e reformas nas cidades. Nos meios urbanos em crescimento o principal
veículo de controle social passou a ser a polícia. Ver: MAUCH, Cláudia. Dizendo-se autoridade:
polícia e policiais em Porto Alegre, 1896-1929. Porto Alegre, PPGH/Universidade Federal do Rio
Grande do Sul, 2011; MAUCH, Cláudia. Ordem Pública e moralidade: imprensa e policiamento
urbano em Porto Alegre na década de 1890. Santa Cruz do Sul: EDUNISC/ANPUH-RS, 2004.
36
Dóris Bittencourt (2013) define o cortiço como local de moradia daqueles que não possuíam
condições financeiras, sendo o terror dos arquitetos e médicos, devido a grande aglomeração de
pessoas era considerado um local de total promiscuidade e falta de higiene.
37
Ver mais em: PESAVENTO, Sandra. Os sete pecados da capital. São Paulo: Hucitec, 2008;
ELMIR, Cláudio Pereira. A história devorada: no rastro dos crimes da Rua do Arvoredo. Porto Alegre,
Escritos, 2004; MOREIRA, Paulo Roberto Staudt; ELMIR, Cláudio. Odiosos Homicídios: O Processo
5616 e os crimes da Rua do Arvoredo. São Leopoldo : Oikos Editora / Editora UNISINOS, 2010.
35

alternativas encontradas de vivência, mas também as formas de socialização


peculiares que ali ocorriam.38
A vida nos grandes centros urbanos mudou o homem e suas relações sociais
a partir do século XIX. O trabalho, o lazer, o comportamento, as relações com a
natureza, a política, a literatura, o tempo, enfim, os mundos materiais e culturais,
foram profundamente afetados pelas novas experiências de vida urbana, implicando,
também, toda uma mudança nas avaliações e formas de proceder, em um contexto
onde se fixavam normas e condutas, onde o progresso enfrentava a tradição, onde
os comportamentos mudavam, e com eles os valores e as expectativas, redefinindo
os papéis sociais (Pesavento, 2008). Pobres e ricos, intelectuais e analfabetos,
jovens e velhos, homens e mulheres, ninguém escapou a essas transformações e
todos acabavam se relacionando de uma forma ou outra em diferentes relações de
poder.
No centro da cidade recaíam as vigilâncias, pois ali estavam os famosos
“becos”, estavam localizadas as ”bodegas”, prostíbulos, casa de jogos, ou seja, onde
todo o mal social estava reunido. Os jornais regularmente denunciavam os becos, de
acordo com Dóris Bittencourt (2013), a Rua General Paranhos era um foco de
meretrizes, como a “caxixa” ou a “china”, que se relacionavam de forma violenta com
os vizinhos. O jornal “A gazetinha” desde 1891 alertava sobre as ruas que
precisavam constantemente da visita dos fiscais, que são: Rua Clara, Arroio Bela,
Vasco Alves, Ponte, Becos do Fanha, Poço, Rua da Ladeira, e outras que eram
caracterizadas por possuir odores considerados pútridos e que grudavam
simbolicamente nos seus moradores, que eram tratados pelas autoridades e pelos
jornais como também sujeitos a higienização médico-moral. O jornal também
documentava e denunciava sobre um dos mais famosos bordéis da cidade, “a Flor

38
A partir da segunda metade do século XIX, segundo Silvia Arend (2001), o espaço urbano no Rio
Grande do Sul adquiriu maior relevância devido, principalmente, a transformações comerciais. Nos
anos de 1870 e 1900, as primeiras fábricas foram instaladas em Porto Alegre, transformando o
núcleo urbano em um grande espaço de atuação econômica capitalista. Sobre os serviços urbanos
em Porto Alegre, por exemplo, a expansão ocorreu na passagem da década de 1860-70, iniciando-se
com a rede de água encanada (1861), as linhas de bondes puxadas por animais (1872) e a
implantação da iluminação pública a gás (1874). Do início da década de 1880 até os últimos anos do
século, começaram a despontar nas cidades alguns símbolos da modernidade, como o sistema
telefônico e escolas de engenharia (1896) e Medicina (1899). Pesavento (2008, p.26) mostra que na
segunda metade do século XIX, Porto Alegre já tinha, pois, um certo ar cultural: “Um belo teatro, um
Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul, criado por intelectuais da província em 1860 e
que estendeu suas atividades até o ano de 1864, o Liceu D. Afonso, prestigiosa escola secundária da
capital da província, que desde 1846 funcionava na esquina da Rua da Ladeira (atual Rua General
Câmara) com a rua do Cotovelo, no local que é hoje a Biblioteca Pública do Estado”.
36

da Mocidade”, de propriedade da preta Anna Fausta Marçal. Como veremos, as


mulheres construíam propriedades e acumulavam capital por seus próprios meios
(às vezes ilícitos), mas demonstrando que nem só sob a dominação masculina
viviam, pelo contrário. Os processos judiciários vão demonstrar as agências
femininas, trabalhos, relacionamentos e sociabilizações.
Outro ponto importante para a pesquisa é o conceito de classe social:

A classe acontece quando alguns homens, como resultado de


experiências comuns (herdadas ou partilhadas), sentem e articulam a
identidade de interesse entre si, e contra outros homens cujos
os interesses diferem (e geralmente se opõem) dos seus. A
experiência de classe é determinada, em grande medida, pelas
relações de produção em que os homens nasceram – ou entraram
involuntariamente. A consciência de classe é formada como essas
experiências são tratadas em termos culturais: encarnadas em
tradições, sistema de valores, ideias, formas institucionais. Se a
experiência aparece como determinada, o mesmo não ocorre com a
consciência de classe (THOMPSON, 1987, p. 10).

Para Thompson as experiências comuns são fundamentais para a formação


de classe, no seu caso, da classe operária inglesa, pois produziram uma identidade
de interesses e experiências entre os indivíduos. Contudo, Silvia Arend (2001)
explica que:

[...] a elaboração simultânea de diferentes identidades pelos


membros do grupo leva-nos a afirmar que os populares não
constituíam uma classe como define E.P. Thompson. Para o
historiador inglês, a classe acontecia quando predominava enquanto
identidade, sobre as demais identidades. Por esse motivo, tratamos
os populares como um grupo social. (AREND, 2001, p. 48)

Avrah Brah (2006) em “Diferença, diversidade, diferenciação” alerta para as


variáveis em tono das relações sociais, classe, raça e gênero, que são algumas
articulações que devem ser ponderadas ao se trabalhar com um grupo social e suas
identidades. Em outras palavras, um mesmo grupo se identifica e cria identidades
através do viés econômico, contudo, outras experiências são formadoras de
exclusão e inclusão, como as citadas variáveis, não sendo fixas, mas marcadas pela
multiplicidade de posições que constituem o sujeito ao longo da vida, em processo.
Por popular compreendemos todos aqueles sujeitos com condições de vida comuns,
com estratégias de sobrevivência ligadas ao trabalho. Maria Paula Parolo (2008)
ainda esclarece:
37

Podemos identificar lo popular, entonces, com aquello que no


formaba parte de la elite, de la cultura letrada ni del mundo de lós
privilegios. Aplicado a La sociedade, se trataria, em general, del
variado universo social que se caracterizaba por hallarse excluido
del mundo del privilégio y del ejercicio del poder, es decir, um amplio
sector de la sociedad que no estaba em uma posición dominante em
ló econômico, ló político y ló social. Em El habria, por ló tanto, uma
enorme diversidad ocupacional, de tradiciones culturales, em
riqueza e prestígio, las que permitirian establecer diferentes
segmentos. (PAROLO, 2008, p. 25)39

Sandra Pesavento (1994, p.8) na introdução de sua obra “Os pobres da


cidade” nos auxilia a traçar um perfil comum desses populares. A historiadora
considera os populares como cidadãos, mas de segunda ordem: “[...] se o discurso
liberal afirma que todos os homens são iguais, a dura realidade do mundo urbano
demonstra que ‘uns são mais iguais que os outros’”. Sobre subalternidade Sandra
Pesavento (1994, p.13) explica que os populares são os economicamente pobres,
com acesso ao consumo limitado, poucos meios de subsistência, com meios de
trabalho não formais e geralmente empregados de alguém, como também com
relações ligadas a dominação em vários âmbitos sociais, como na “[...] ausência ou
presença pouco significativa de direitos frente o grande acúmulo de deveres”.
Porém, esses conceitos não devem ser vistos de uma forma plastificada, aliás, todos
os conceitos usados nessa dissertação são maleáveis e elásticos, não há uma regra
imposta a eles e todos podem contar com exceções.
Com Silvana Santiago (2006) e Giovana Cortês (2012) vemos como foram
constituídos estereótipos relacionados à sensualidade, beleza e sexualidade da
mulata e da mulher negra a partir da literatura e de processos criminais. Para
Silvana os estereótipos são os resultados de processos de fixar significados às
coisas

[...] passível de gerar identidades contraditórias, constantemente


recriadas e contestadas e incapazes de existir fora de um sistema de
significação. Os estereótipos em relação aos negros de modo geral, e
às mulheres foram construídos a partir de uma circulação de
pensamentos provenientes de diferentes segmentos da sociedade,
cruzando pensamentos do universo letrado com o iletrado e todas as

39
Segundo a historiadora Martha Abreu (1999, p. 28 - 29): “cultura popular não é um conjunto fixo de
práticas ou textos, nem um conceito definido aplicável a qualquer período histórico. Neste sentido,
cultura popular não se conceitua, enfrenta-se. [...] O conceito emerge na própria busca de como as
pessoas comuns, as camadas pobres ou os populares (ou pelo menos o que se considerou como tal)
criavam e viviam seus valores [...] considerando sempre a relação complexa, dinâmica, criativa e
política mantida com os diferentes segmentos da sociedade: seus próprios pares, representantes do
poder, setores eruditos e reformadores”.
38

camadas sociais. Os estereótipos surgem nos mais diversos discursos


sociais, são lidos e relidos das mais diversas formas.” (SANTIAGO,
2006, p.1)

Essas autoras enfatizam que dentro das discussões de gênero da época (final
do século XIX e início do XX), esses estereótipos aparecem diretamente atrelados
com os discursos acerca da moralidade, mas também da sexualidade,
principalmente quando se trata de mulheres negras, lembrando que o corpo é tido
como portador de características definidoras de caráter e comportamento.40
Nossos capítulos não apresentam uma rígida separação no que diz respeito à
utilização das fontes. A abordagem é construída de plurais maneiras, a critério da
pesquisa e da fluidez do texto. Após a leitura detalhada das fontes por nós
investigadas, selecionamos alguns eixos temáticos que consideramos (com grau
consciente de arbitrariedade) com a finalidade de adensar nosso entendimento das
agências femininas do período e das suas cotidianidades, e das representações
sobre o Ser Mulher.

***

No capítulo “Da caridade ao protagonismo feminino na SCMPA” o leitor


encontrará uma maior contextualização sobre a SCMPA. Acreditamos ser de suma
importância o leitor ser inserido nessa historicização da instituição, já que alguns dos
dados apresentados ao longo da dissertação são provenientes dessa fonte.
Também atribuímos importância à instituição por ser o único serviço de recolhimento
e assistência existente em POA ao longo do século XIX para as mulheres populares,
nosso alvo de pesquisa, fazendo parte de suas vidas e cotidianos, como também por
sua trajetória na cidade e na vida da população como meio de amenização de
doenças e cuidados diversos, até os dias atuais.41 Apesar da SCMPA estar
caracterizada pela historiografia como espaço masculino, devido aos envolvidos com

40
Silvana Santiago (2006) explica que esses critérios raciais de identificação também funcionariam
como uma forma de distinguir as brasileiras negras das brasileiras de cor branca, sendo as primeiras
consideradas sexualmente disponíveis, enquanto que as outras eram consideradas merecedoras de
respeito.
41
Antes de ser uma potência médica, como é hoje, a SCMPA era instituição de origem portuguesa,
oriunda do período colonial, tendo como finalidade funções de caridade e assistência, recolhendo os
alienados, menores abandonados, doentes e necessitados que não tivessem para onde ir e enterrar
os mortos indigentes, ou seja, todos aqueles que eram considerados incapazes de cuidar de si ou
não tivesse quem os amparasse. Começaremos nossa dissertação abordando sobre a criação e o
protagonismo feminismo na instituição de Porto Alegre, como as mulheres se fizeram presentes em
meio a um campo masculinizado.
39

o gerenciamento e direção da instituição serem homens, as mulheres ali marcaram a


história e nesse capítulo serão representadas.
Relacionando os dados entre homens e mulheres, veremos que a
porcentagem de mulheres era relativamente menor da que a dos homens e com
este capítulo trataremos de identificar as razões que causavam essa disparidade. É
de extrema importância, como veremos ao longo do texto, compreender porque as
mulheres frequentavam menos a instituição, já que os motivos identificados são
extremamente ligados com a cultura e a cotidianidade da época.
Nosso capítulo “Nem recatadas, nem putas: a maternidade e as
representações femininas” prezará pelo estudo das representações femininas. A
maternidade como função atrelada ao dever feminino atribuiu características
próprias e consideradas inatas, ligadas ao ser mulher no século XIX. A partir disso
apresentaremos dados sobre partos, abortos e gravidezes que nos auxiliarão a
compreender como as mães lidavam com a maternidade e a prenhes indesejada,
relacionando com itens ligados a compreensão sobre ser mulher, estereótipos e
imagens das mulheres. Buscando entender sobre representação, mostraremos
como os discursos sobre o feminino podem ser modificados em um único processo
criminal, pois as imagens são construídas a partir de condutas ligadas a um padrão
de ser feminino, que mudam a partir da perspectiva de quem o atribui.
O capítulo “Diferentes e únicas: diversos cotidianos” compreenderá aspectos
vitais das vivências de nossas personagens. Serão abordados temas que envolvem
as dinâmicas de interdependências sociais, tais como o “ouvi dizer”, ou seja, modos
que essas pessoas encontravam para circular pensamentos, ideias e fofocas que
serviam tanto para atribuir qualidades quanto para manchar a imagem das pessoas.
Tudo isso se relaciona com o modo de socialização destas mulheres/homens, o
modo como moravam. Buscando compreender as cotidianidades da vida dessas
mulheres populares o capítulo também tratará sobre os relacionamentos. Como o
amasiamento ou o casamento se faziam presentes na vida de nossas personagens?
A masculinidade para o entendimento da relação entre homens e mulheres também
é fundamental para perceber como essas relações estavam fundamentadas.
O mundo do trabalho também será explorado no capítulo “Reflexões e
experiências de serviços femininos: Todas somos trabalhadoras!” . Apresentaremos
os dados extraídos da SCMPA sobre o trabalho feminino relacionando com o
masculino, buscando entender as variáveis profissões encontradas. Desvinculando
40

de questões moralistas, buscaremos vincular a prostituição como uma relação


legítima de trabalho e sobrevivência que proporcionava redes de sociabilidade e
mesmo de mobilidade social para algumas mulheres.
O último capítulo “Mulheres negras ativas: Representações sobre raça e
gênero” será exclusivo para a compreensão de questões raciais. Apresentaremos
processos criminais em que as cores das rés e das testemunhas são evidenciadas,
buscando compreender o porquê destas caracterizações. Iremos trabalhar com os
processos de Anna Fausta Marçal, negra e proprietária de um famoso bordel da
cidade, Joanna Eiras, famosa estelionatária da cidade de Porto Alegre, e Januária,
uma criada negra acusada de roubo e incendiária. Buscaremos, a partir dos dados
da SCMPA, compreender as cores e nacionalidades daquelas mulheres,
identificando os seus significados através de bibliografias e autores como Paulo
Moreira; Hebe Mattos; Marcus Rosa; Giovana Xavier; Adriana Dantas e Rodrigo
Weimer. Ao analisar essas mulheres negras buscamos atribuir autonomia as suas
vivências e evidenciar os marcadores de diferenciação, como gênero e raça, através
dos quais foram representadas. A partir dessas interseccionalidades veremos que as
mulheres negras oitocentistas gerenciavam suas vidas não só a partir de formas
subalternizadas de trabalho ou a partir da sexualização de seus corpos.
Ao mergulhar no cotidiano das mulheres populares do século XIX,
conseguimos imaginar as ruas de Porto Alegre cheias de mulheres, trabalhadoras,
prostitutas ou serviçais, negras ou brancas, em busca de uma vida melhor, de um
sustento ou apenas vivendo a vida. Com essas palavras desejamos uma boa
aventura nesse cotidiano repleto de autônimas. Boa leitura!42

42
Ao longo dessa dissertação procuro fazer uma escrita que envolva não somente historiadores, mas
interessados nos estudos sobre as mulheres, de uma forma não tão formal e que busque dar
visibilidade ao nome dos autores.

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