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O presente trabalho tem como objetivo refletir sobre o lugar que o psicomotricista ocupa
na clínica em estimulação precoce. Para isso, primeiramente, foi feito um estudo bibliográfico
a respeito do contexto histórico da psicomotricidade e da estimulação precoce. Em seguida,
analisou-se a relação mãe-bebê a partir do referencial teórico das funções materna e paterna
para a psicanálise no que se refere ao tratamento do bebê. Neste momento, foi acrescentado um
recorte clínico a fim de estabelecer uma relação entre a teoria estudada e a prática clínica.
Finalmente, fez-se uma reflexão a respeito do lugar em que se situa o psicomotricista na
estimulação precoce. Conclui-se que o psicomotricista deve compreender e voltar-se para o
potencial psicomotor do bebê, observando cada sujeito em sua singularidade e as relações que
ele estabelece. Para isso, o profissional deve manter uma postura interdisciplinar em seu fazer,
reconhecendo as carências e as lacunas dessa clínica, além de se manter construindo perguntas
que o permitam constantemente reavaliar sua posição diante do bebê.
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Acadêmica do curso de especialização em Estimulação Precoce. E-mail:isadorarietjensoliveira@gmail.com.
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Orientadora Dra. Ivy Dias.
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1 INTRODUÇÃO
movimento do espírito. Aristóteles afirmava que o homem era feito de corpo e alma e valorizava
a ginástica por conta de “[...] dar graça, vigor, e educar o corpo” (Levin, 1998, p. 36
René Descartes, outro filosofo que é de origem francesa, no século XVIII, estipula
"princípios fundamentais" a partir dos quais se evidencia a dicotomia: o corpo, "que é apenas
uma coisa externa que não pensa", e a alma, substância pensante por excelência que "não
participa de nada daquilo que pertence ao corpo" (Levin, 1998, p. 25). Esse duelo entre corpo
e alma marca uma separação, mas ao mesmo tempo uma união desses dois elementos, para os
quais damos seguimento e conexão conforme a evolução histórica. Segundo Levin (1998), são
separações e uniões que formam uma continuidade e se articulam ao longo da história, buscando
explicações sobre o corpo e a "alma" do sujeito.
Os primeiros estudos referentes à psicomotricidade aparecem no final do século XIX,
na França, quando o "discurso médico" começa a nomear as zonas do córtex cerebral situadas
nas regiões motoras. Com a descoberta da neurofisiologia, foi possível verificar disfunções
graves sem que o cérebro esteja lesionado ou que claramente fosse possível constatar alguma
lesão. E, assim, foram descobertos distúrbios a partir de atividades gestuais práticas. Portanto,
segundo Morizot (2018), o "esquema anátomo-clínico" que determinava para cada sintoma sua
correspondente lesão focal já não podia explicar alguns fenômenos patológicos.
Para este campo de conhecimento, um homem é um corpo. Este corpo é simbólico, pois
é marcado enquanto se constrói e se desenvolve ao longo de sua própria história. Este corpo
que, pela psicomotricidade, é observado, analisado, organizado, só é assim visto diante de um
"olhar" que o outro tem sobre ele.
Ainda de acordo com Morizot (2018), o principal iniciador da psicomotricidade na
criança abalou um dogma, com a introdução genérica da debilidade psicomotora e suas relações
com a deficiência mental.
Por outro lado, Henry Wallon, filósofo, médico e psicólogo francês, aborda o
movimento humano conferindo-lhe uma categoria fundamental como instrumento na
construção do psiquismo. Essa diferença de ideias permite a Wallon (1995) relacionar o
movimento ao afeto, à emoção, ao ambiente e aos hábitos do indivíduo, tornando-se, assim,
provavelmente o pioneiro da psicomotricidade. Wallon afirma que "o movimento é a expressão
única e a primeira ferramenta do psiquismo" (Wallon, 1995, p. 10). Enquanto o movimento é
uma ação — ou seja, o ato de fazer —, o ato de pensar é um movimento sem efeitos visíveis.
Na década de 70, devido à grande influência dos estudos de Wallon, surgem os
trabalhados da educação Psicomotora por Le Boulch, que, desde 1966, em seu livro A Educação
pelo Movimento, tinha por objetivo influenciar os professores da época a pensarem em
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estratégias a serem desenvolvidas com as crianças. Le Boulch afirma ainda que decidiu
desenvolver uma teoria cujo aspecto central priorizasse o movimento, buscando uma educação
global do ser humano, uma educação perceptiva e baseada no conhecimento do corpo (Le
Boulch, 1983).
Ao trabalho de Wallon também se uniram os pesquisadores franceses L. Pick, P. Vayer,
André Lá Pierre, Bernard Auconturier, De Fontaine e J.C. Coste, os quais percebiam a educação
psicomotora enquanto um modo primordial de auxiliar a criança incapaz a desenvolver suas
potencialidades e a ingressar no ambiente escolar (Falcão; Barreto, 2009). A partir daí, começa
a ser delimitada uma diferença entre uma postura reeducativa mecanizada focada no movimento
e uma terapêutica que, ao se despreocupar da técnica instrumentalista, passa a se ocupar do
"corpo de um sujeito", que então vai dando progressivamente maior importância à relação, à
afetividade e ao emocional do sujeito.
Dessa forma, os estudos realizados de forma sistemática pela psicomotricidade ao longo
da história têm como objetivo atender às necessidades apresentadas pela área da Educação —
especialmente a Educação Infantil e as Séries Iniciais — de encontrar maneiras de promover a
integração entre motricidade, afetividade e inteligência, alinhando-se às perspectivas
apresentadas, principalmente pela psicologia do desenvolvimento.
Os temas e formas de mediação da história da psicomotricidade são divididos em três
períodos essenciais — Corpo Hábil, Corpo Consciente e Corpo com Significante. Corpo Hábil:
período que o francês Le Camus (1986) identifica como o "nascimento" da psicomotricidade,
no final do século XIX. Este marco ocorre porque o autor considera a psicomotricidade como
um conhecimento derivado das ciências médicas, e não das ciências humanas. De acordo com
os estudos sistematizados por Le Camus, o início da psicomotricidade se deve às experiências
de Broca (1861, apud Le Camus, 1986), que descobriu a conexão entre uma lesão cerebral
localizada e os sintomas da afasia. Isso levou o conhecimento médico da época a reconhecer a
estreita relação entre movimento e processos cerebrais, estabelecendo o que foi chamado de
paralelismo psicomotor. Este primeiro período descrito por Le Camus (1986), em que
predominam práticas corporais voltadas para a criação de um Corpo Hábil, abrange desde o
final do século XIX até aproximadamente 1940. O termo utilizado para se referir às diversas
teorias e às práticas desenvolvidas neste período é o paralelismo psicomotor, que se baseia na
evidência de uma interdependência entre ação cerebral e a musculação, que concebia o corpo
como um receptáculo passivo da tradição.
Seguindo-se a isso, influenciado principalmente pela psicologia do desenvolvimento, os
estudos sobre o corpo, denominados por Le Camus (1986) de Corpo Hábil, passaram a ser
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chamados de Corpo Consciente (1940–1975); criou-se assim uma nova versão que se afastou
da concepção predominantemente neurológica (paralelismo psicomotor) e passou-se a adotar
uma concepção de movimento "consciente", na qual o próprio indivíduo colabora
voluntariamente para a integração do seu próprio corpo. Nesse sentido, o autor denominou esse
período de Corpo Consciente, que consiste em uma sistematização científica do corpo em que
essa dimensão humana é concebida como receptora dos estímulos externos, assimilando-os,
acomodando-os e produzindo um equilíbrio adaptativo diante do corpo. Uma das primeiras
análises das contribuições da psicologia do desenvolvimento para a "ciência" hoje chamamos
de esquema corporal. Retomando, o corpo consciente é aquele capaz de absorver, organizar e
preservar as informações provenientes de seu próprio funcionamento e do ambiente (físico e
humano) em que está inserido. Se, no primeiro período (O corpo hábil), o corpo era dominado
pela neurologia, agora uma psicologia mais autônoma se tornará a principal referência teórica
para pesquisadores e profissionais da psicomotricidade. A psicomotricidade do segundo
período, descrita por Le Camus (1986), se estabeleceu como a ciência do Esquema Corporal
ou, como preferido pelo autor, do Corpo Consciente. O Esquema Corporal foi concebido como
uma dimensão do corpo que organiza as experiências humanas no tempo e espaço presentes.
As técnicas relacionadas ao corpo buscam priorizar o desenvolvimento da percepção e o
controle do próprio corpo, ou seja, a internalização das sensações relativas a cada parte
específica do corpo e a compreensão do todo; a conquista de um equilíbrio postural eficiente;
uma lateralidade clara e afirmada; uma independência dos diferentes segmentos do corpo em
relação ao tronco e entre si; o domínio das pulsões e inibições intimamente ligadas ao controle
da respiração e os elementos emocionais.
Entre os autores que influenciaram os profissionais e estudiosos neste segundo período
da história da psicomotricidade, destacamos as contribuições de Wallon (1879–1962) e Piaget
(1896–1980). Para Wallon:
[...] esquema corporal não é “um dado inicial, nem uma entidade biológica ou
psíquica”, mas uma construção. [...] Estudar a gênese do esquema corporal na
criança, é indagar-se como a criança chega “à representação mais ou menos
global, específica e diferenciada de seu corpo próprio”. [...] Esta aquisição é
importante. “É um elemento básico indispensável à construção da
personalidade da criança [...]. É o resultado e a condição de legítimas relações
entre o indivíduo e seu meio” (Wallon, apud Le Camus, 1986, p. 37).
A criança trabalha com o seu próprio desejo, escolhendo suas atividades, com
liberdade para vivenciar a agressividade, excitação, desejo, emoção ou desenvolver
sua sensibilidade através de um contato corporal mais profundo. A formação pessoal
do terapeuta se torna imprescindível (Morizot, 2018).
O terapeuta passa a fazer parte do brincar com uma interação contínua e progressiva de
forma verbal e não verbal, diferentemente do que até então se acreditava que era a atuação do
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A estimulação precoce surgiu na Argentina pelas mãos da Dra. Lydia Coriat, médica
neurologista pediatra, que convocou outros profissionais de outros campos teóricos e
metodológicos para abordarem questões do desenvolvimento infantil, mas, principalmente, no
que se refere ao campo de bebês com transtornos orgânicos, genéticos, neurológicos, sensoriais,
de maturação e de conexão com o meio. Foi fundada, assim, essa disciplina que faz limite com
a medicina, a educação e a psicologia, e na qual podemos encontrar as variações teóricas mais
diversas. Contudo, é necessário lançar um breve olhar histórico para que possamos entender de
que lugar foi pensada essa proposta de modelo de terapia, elaborada unicamente para bebês e
crianças pequenas.
Iniciamos essa história tomando conhecimento do chefe Dr. Florêncio Escardó, médico
neuropediatra que foi um dos principais médicos pediatras na Argentina — famoso por sua
clínica que se posicionava no sentido de que o pediatra não deve só levar em conta questões
estritamente médico-orgânicas, mas também o conjunto de fatores que interferem na vida de
um bebê. Esse foi o cenário inicial na formação da Dra. Lydia Coriat, neuropediatra argentina.
No prefácio de seu livro Maturação psicomotora no primeiro ano da criança, a Dra.
Coriat escreve:
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Após a formatura, exploramos o amplo campo da pediatria clínica por alguns anos.
Depois, passo a passo, caminhamos para a neuropediatra. Discípulos de Florêncio
Escardó, conhecemos o contexto altamente estimulante de sua equipe médica na Sala
XVII do Hospital Infantil Dr. Ricardo Gutiérrez, [...] da qual fizemos parte de 1956 a
1959. Todos os dias, em cada exame, em cada comentário ou leitura, pudemos
descobrir com alegria o processo de crescimento e maturação do homem e a sua
expressão através dos comportamentos das crianças. Com esta abordagem
deslumbrante, as crianças doentes perderam a condição de objetos de estudo, de
“casos clínicos” e voltaram a ser inteiramente crianças (Coriat, 2001, p. 13).
Portanto, o Hospital Infantil de Buenos Aires teve a honra de ter sido o primeiro lugar
no mundo em que, na década de 60, uma nova disciplina foi idealizada e implementada: a
estimulação precoce. Uma conquista e tanto, já que, nessa época (1956 a 1960), as crianças
ainda eram vistas apenas como adultos ainda imperfeitos e que não precisavam de profissionais
especialistas para cuidar de seu desenvolvimento.
Em 1971, foi fundado o Centro de Neurologia Infantil, formado pela mesma equipe que
trabalhava no Hospital de Buenos Aires. Em 1980, ano do falecimento da Dra. Coriat, o Centro
recebeu o nome, em homenagem a ela. Porém, mais do que uma homenagem, a escolha do
nome também passa pela decisão da equipe em continuar avançando no trabalho clínico e na
produção teórica que realizava, essa que se caracterizava por ser uma equipe interdisciplinar e
que se mantém até os dias atuais, tanto para a clínica de bebês quanto para a clínica de crianças
com problemas no seu desenvolvimento, visando à necessidade de que todos os profissionais
da infância conheçam o desenvolvimento neurológico da primeira infância.
Em uma carta, a Dra. Lydia Coriat destaca a importância da psicologia e da psicanálise:
Nas minhas primeiras tentativas fora dos medicamentos habituais, foi uma paciente
decidida, Chichí, quem acendeu uma luz que me indicou o caminho: uma menina de
dois anos, moderadamente afetada, sem complicações que agravassem o quadro, filha
de um casal que cuidou bem dela e a cercou de carinho, ela foi a primeira das minhas
pacientes que, ao longo de seis meses, em vez de baixar o QI como de costume, subiu
20 pontos: de 55 para 75. Qual foi a diferença com as outras crianças? Que estava nas
mãos de um psicólogo, e não exclusivamente de um reeducador fonético ou motor
(Coriat, 1996, p. 64).
Com isso, Dra. Lydia Coriat fez um pedido à Diretoria de Educação Diferenciada da
Província de Buenos Aires, reconhecendo a diferença no desenvolvimento dessas crianças
quando são estimuladas desde os primeiros anos de vida, para que ela pudesse assessorar
psicólogos e fonoaudiólogos de educação de Buenos Aires, na condução de casos de crianças
com deficiência de dois a cinco anos.
Desde o início, a tarefa era transmitir o que se descobria e também de formar
profissionais. A Dra. Coriat e sua equipe foram convidadas a apresentar conferências e a
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ministrar cursos nos mais diversos locais do país e do exterior. Dessa forma, o trabalho de
Coriat chega até o Brasil.
Ao longo dos anos, muitos colegas que trabalham com a infância passaram a
compartilhar o referencial de "Lydia Coriat”, um significante que nomeia todo um corpus
teórico-clínico, articulando-o ao estilo singular de diferentes equipes clínicas no Brasil e na
América Latina, entre as quais a equipe de Porto Alegre, fundada em 1978 — uma equipe que
continua levando os ensinamentos de Coriat para profissionais aprenderem a intervir nas
problemáticas das infâncias, tendo como base teórica a prática psicanalítica.
Atualmente, quando falamos em estimulação precoce, estamos falando em uma clínica
com bebês e crianças pequenas com problemas de desenvolvimento. De maneira quase
inevitável, precisamos falar sobre o termo estimulação, que pode ser pensado a partir de
diferentes significações, como atenção e intervenção, mas que não fogem do termo estímulo.
Como contraponto, o termo “precoce” é um adjetivo masculino e feminino que significa “que
se amadureceu antes da estação própria; que ficou maduro antes do tempo ideal; prematuro”
(Precoce, 2023), o que, no campo de trabalho com os bebês, não cria tantas opções, já que se
fala em uma clínica que é feita para os bebês com problemas de desenvolvimento, sendo um
deles a prematuridade. Mas também há casos de atraso do desenvolvimento pela paralisia
cerebral, por questões maturacionais, sensoriais e orgânicas, para os quais se estabelece até hoje
a necessidade de uma equipe interdisciplinar. Sobre essa questão, Coriat enfatiza que:
Para trabalhar com a EP, o psicomotricista também precisa entender de conceitos como
função materna e paterna, uma vez que estará trabalhando em um campo para além dos cuidados
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físicos, ao qual se agrega o valor da função afetiva necessária para sustentar o desejo da
produção dos papéis de uma mãe, um pai e também de um filho (Levin, 2001).
O conceito de função materna surgiu no contexto freudiano-lacaniano a partir da
descrição feita por Winnicott em 1965 e vai além do simples cuidado biológico do bebê. Trata-
se também da produção de uma relação afetiva que parte de um adulto em direção ao bebê. A
função materna é um outro que lhe garante todo o suporte, que investe tanto nos cuidados quanto
no afeto em relação ao bebê. Por questões culturais e históricas, o termo é associado à figura da
mãe, daí o nome função materna, mas pode ser feito por outra pessoa. Nessa mesma lógica, o
conceito de "função paterna" está relacionado à existência de uma função simbólica chamada
"Nome-do-Pai". Essa metáfora representa o registro de que o bebê não é tudo e não pertence
exclusivamente à mãe. A função paterna leva a mãe a compreender que o bebê também pertence
ao social, por isso é um sujeito que se insere na cultura. Assim, ele não é passivo, mas tem algo
a dizer e a fazer em relação ao ambiente que o cerca e que o transforma.
Considerando as configurações familiares atuais, é relevante ressaltar que essas funções
podem ser exercidas por um mesmo indivíduo. Por isso, o termo "função" é de muita relevância:
é possível assumir ambos os papéis, independentemente do sexo. No entanto, para que isso
ocorra, é necessário que o sujeito adulto também tenha passado ou passe por um processo de
assimilação cultural. Dessa forma, o nascimento de uma criança implica, para uma mulher e
um homem, a reflexão sobre sua condição de cumprir o papel materno e paterno, o qual, às
vezes, também se vê abalado pelos diagnósticos e prognósticos de risco de vida do bebê (devido
à prematuridade e a outras patologias) e por transtornos em seu desenvolvimento.
O tratamento em EP deve seguir um caminho clínico que leve em consideração as
responsabilidades parentais como um espaço para construção de um novo tipo de investimento,
tanto afetivo como de cuidado com o filho que apresenta algum prognóstico.
No entanto, o acompanhamento em EP também precisa identificar a maneira única pela
qual o bebê reage aos estímulos ambientais, levando em consideração suas habilidades e
recursos, incluindo sua condição psicomotora. O tema da relação mãe/bebê tem sido defendido
pelos terapeutas em estimulação precoce como uma das bases desse tipo de tratamento. As
interações espontâneas entre a mãe e seu filho são de grande importância para conectá-los com
os primeiros atos operados pela mãe na relação com o seu bebê, que possuem um efeito
simbólico primordial; entretanto, quando consideramos um bebê que nasce com dificuldades, é
preciso encarar que é de fato diferente do bebê esperado pelos pais e que isso traz uma nova
perspectiva. O nascer de um filho deficiente confronta a imagem do filho imaginado e o que
acaba de nascer, afetando centralmente a função materna, já que a mãe se debate com o luto da
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perda do filho imaginado e sente o recém-chegado como um impostor ou, no melhor dos casos,
como um verdadeiro desconhecido.
Nestes casos, a mãe precisa reconectar-se com a comunicação não verbal de seu bebê,
o que requer uma realocação dos códigos. Para isso, é essencial que a mãe vivencie o luto pelo
filho idealizado, para então construir uma relação com o bebê que está ali, levando em
consideração suas necessidades específicas, para que ele possa verdadeiramente desempenhar
seu papel como filho.
A vinheta a seguir descreve um atendimento: uma jovem mãe de 20 anos com seu bebê
de oito meses com diagnóstico de paralisia cerebral em decorrência da prematuridade extrema.
Em uma das sessões, ela diz que não consegue acalmar seu bebê. Nas palavras dela: passo a
maior parte do tempo chorando ou dormindo. Ela conta do alívio que sente quando o bebê está
dormindo. Nas palavras dela: ele só para de chorar quando está dormindo, eu acho que ele
cansa! Eu por algumas horas consigo ser a mãe de um bebê “normal” e dar carinho, suprindo
o que sei lá... o que ele quer de mim. Eu choro enquanto ele dorme, pela culpa de ainda
idealizar que venha o filho que eu esperava, mas, ao mesmo tempo, amar tanto aquele bebê,
esse aqui, eu acho que ele sabe que só eu não sou capaz de cuidá-lo sozinha.
Era notória a dificuldade que a mãe tinha em compreender e olhar para aquele bebê.
Então, começamos tentando dar possibilidades de comunicação para esse choro, como “estou
frustrado, mamãe”, “estou entediado”, “estou com dor” e “estou com fome”. Entendeu-se que
a mãe não conseguia interpretar o choro e os gestos do filho porque foi privada de uma visão,
focando-se somente no diagnóstico.
De acordo com Levin (2001), o nascimento de um filho possui três funções estruturantes
para um pai e uma mãe, que são o de convocar a mulher e o homem a abandonarem a posição
de filhos e assumirem a posição de pais; confrontá-los com a representação de sua linhagem,
que vai além deles e legitima sua própria filiação e a do filho; e confrontá-los com a cronologia
do tempo, que sinaliza o limite temporal dos pais.
Quando o bebê tem um atraso em seu desenvolvimento, a questão não é só diagnosticar,
mas sim entender esse sintoma em comum que pode o estar moldando, que pode ser algo
referente à relação discursiva com os seus pais.
O invisível ou abstrato é o incomum, o que não é avaliado como um marco de
desenvolvimento, mas sim como uma expressão afetiva do bebê, elaborada em seu corpo a
partir das representações parentais, chamadas de "cadeia significante" por Levin (2001). Ou
seja, os pais recorrem às suas experiências pessoais, seus desejos de serem pais, suas
expectativas futuras para o bebê e atribuem significado (conteúdo simbólico) aos movimentos
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motores do bebê, transformando-os em linguagem. Esses movimentos, por sua vez, após serem
registrados pelo bebê, passam a compor seu repertório de linguagem, o de diálogo tônico, que
é a principal e primeira forma de comunicação do bebê com seus pais.
No entanto, a maneira como o bebê se expressa para o outro, em sua comunicação, pode
revelar quais recursos de seu repertório estrutural e instrumental (o concreto, o esquema
corporal) estão disponíveis ou não devido a alguma deficiência de funcionamento psicomotor.
É importante ressaltar que essa linguagem é única para cada bebê e seus pais, pois vem das
experiências e desejos de cada um em assumir seus papéis na família.
Refletir sobre a clínica com bebês significa destacar algo que está em jogo desde o
início: um bebê deixa de ser apenas um montinho de carne quando há um Outro com desejo
sobre ele. É isso que possibilita a emergência de uma criança onde antes havia um bebê. Grande
parte dos conhecimentos em neurociência destacam a importância dos primeiros anos de vida
na formação do sistema nervoso, assim como os efeitos que as influências do ambiente têm
sobre o processo de amadurecimento. A psicanálise aborda questões fundamentais para a
constituição de um sujeito. Assim, ela também é uma ciência que se tornou útil no tratamento
de distúrbios motores, em que se consideram as influências do ambiente, da cultura, das
relações afetivas e emocionais. Consideramos a terapia em estimulação precoce como uma
forma de tratamento destinada a bebês que apresentam dificuldades em seu desenvolvimento,
considerando a criança como uma totalidade, um ser biológico, cognitivo, psíquico e social.
É assim que os pais devem ser encorajados a enxergar seu filho (independentemente do
diagnóstico), a partir de uma perspectiva que lhes permita deixar uma marca simbólica, em vez
de apenas observarem os marcos do desenvolvimento e as características de sua patologia.
Por isso, é nos encontros e desencontros entre a expectativa dos pais e o filho que nasceu
que o terapeuta em EP, em suas sessões clínicas, ajuda os pais, ou quem cuida dessa criança
com dificuldades, a elaborar novas oportunidades, abrindo pequenas possibilidades antes
inexistentes ou não elaboradas. Quando mencionamos dificuldades no desenvolvimento,
estamos nos referindo àquelas que surgem devido a uma interrupção causada por uma condição
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genética, uma lesão cerebral, uma anomalia física ou situações que às vezes o bebê carrega em
seu organismo e que levam os pais a perceberem uma diferença que faz com que o bebê se sinta
deslocado.
Concordando com Terzaghi e Coriat (2000), existe uma falha que dificulta o processo
de filiação. Em alguns momentos, o terapeuta em EP assume o papel de apoiar as funções
parentais, permitindo que os pais se reconheçam novamente como "mãe" e "pai" com
habilidades para criar o seu filho, em vez de apenas "tratar" uma patologia. As autoras mostram
que a clínica com bebês em estimulação precoce pressupõe adotar uma forma específica de
observação.
É exatamente essa forma especial de observação que estabelece a especificidade da
estimulação precoce. Trata-se de um espaço singular que requer uma abordagem específica de
questões estruturais, construtivas e de aprendizado. É importante considerarmos a possibilidade
de estarmos prontos para sermos intérpretes e ouvintes deste diálogo nas atividades cotidianas
e no brincar, oferecendo situações motoras, cognitivas e afetivas, para que as capacidades do
bebê e de quem o cuida sejam elaboradas sob novas perspectivas através dessa interação.
Terzaghi e Coriat (2000) enfatizam que é por ter nascido com algo que a medicina
identifica como diferente ou porque qualquer evento de forma inesperada ou prematura altera
o seu desenvolvimento ou também, em algumas circunstâncias, porque os pais não conseguem
se refletir nele, que o bebê se sente deslocado. Algo que está quebrado dificulta a sua posição
como filho. O desejo de ter um filho, que também é o desejo do outro, não pode ser incorporado
nesse indivíduo que, de alguma forma, é visto como um impostor. Portanto, ele pode encontrar-
se em diferentes lugares.
Ainda de acordo com Terzaghi e Coriat (2000), há certas ocasiões em que se coloca o
bebê em uma posição de incerteza, de questionamento, em que nada pode se manter, em que há
uma hesitação constante, em que nada pode ser fixado, e que nele não pode haver aposta. Assim
sendo, cada gesto, cada cuidado, cada palavra dirigida ao bebê se torna complicada.
Sendo assim, cabe ao terapeuta promover e construir um outro tipo de relação com a
família, destacando a importância das questões subjetivas para a formação psíquica dos bebês.
Como psicomotricista, quando tratamos da clínica em estimulação precoce, ressalta-se a
importância de também abordar questões motoras e cognitivas. Além disso, cabe ao terapeuta
possibilitar uma organização do corpo do bebê, de maneira a promover e facilitar as tentativas
de alcançar os marcos do desenvolvimento, como rolar, sentar, fazer posição de esfinge, pivotar,
engatinhar e andar. Da mesma forma, é fundamental que ele comece a fazer as primeiras
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explorações corporais, dificultadas pelo padrão motor resultante, como, por exemplo, no
diagnóstico de paralisia cerebral.
É o lugar do psicomotricista como terapeuta em EP auxiliar os pais a encontrarem na
criança a singularidade da relação. De acordo com Terzaghi e Coriat (2000), podemos refletir
sobre os pais que frequentemente adotam a deficiência, a síndrome ou a associação como uma
forma de buscar reconhecimento para si mesmos em relação ao filho que carregam. Isso muitas
vezes acaba sendo uma tentativa frustrada de conexão com a criança, na qual não apenas não
conseguem os benefícios desejados, mas também são obrigados a manter o diagnóstico dentro
de certos parâmetros, pois isso se torna essencial para que os pais possam continuar avançando.
Dessa forma, ocorre uma inversão de papéis, transformando a problemática enfrentada pela
criança em um aspecto de "filiação" para os pais.
O psicomotricista na estimulação precoce exerce o papel de articulador, um agente
facilitador na construção de possibilidades para fortalecer o vínculo entre o bebê e seus pais,
para que o bebê seja estimulado a ser brincado pelo seus pais, para posteriormente brincar com
seus outros pares e a explorar os brinquedos, pois é nesse campo do desejo e da curiosidade que
a pequena criança encontrará forças para movimentar seu corpo enfraquecido pelas questões do
seu diagnóstico, quando for o caso. Lembrando o fato de que eventualmente não há um nome
para o diagnóstico, isso não anula o terapeuta em EP de buscar compreender o que a linguagem
desse bebê quer nos dizer e para que ele assim consiga se constituir como sujeito em sua função
de filho, para além de suas limitações.
Por isso que Terzaghi e Coriat (2000) nos dizem que é justamente essa ruptura, esse
registro de diferença, esse desafio difícil de superar, que coloca em jogo a formação subjetiva,
sendo esse o motivo pelo qual a clínica de estimulação precoce se torna um espaço necessário
para que os pais possam procurar por respostas e refletir sobre seu filho. Nesse espaço também
são avaliadas pelo psicomotricista as áreas psicomotoras, como o tônus, o equilíbrio e a
lateralidade, questões essas que um especialista em estimulação precoce se vê compelido a
questionar a respeito do bebê. Isso faz parte do seu trabalho e dos fundamentos de sua clínica.
Na cena da clínica, o bebê está em destaque, não apenas como uma mera presença,
confirmam Terzaghi e Coriat (2000), mas também porque as questões se dirigem a ele, o bebê,
presumindo-se como interlocutores os pais. Essa posição faz sentido porque os pais estão
presentes na cena clínica, possibilitando o circuito de transferência no qual o bebê está presente.
Surge então um espaço de ressonâncias nos pais.
Este é o caminho que o psicomotricista trabalhando em EP percorre em suas sessões,
pela análise do potencial psicomotor do bebê, pela promoção de forma instrumental de seu
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desenvolvimento e pelo entendimento de que isso não acontecerá sem que esse bebê seja
inserido na ordem de uma linguagem endereçada a alguém — aos pais ou a quem o cuida. Isso
quer dizer que um bebê com alguma patologia, lesão cerebral ou transtorno do
neurodesenvolvimento poderá, sim, vir a sentar, andar e brincar, logo, também, a se tornar um
sujeito constituído. Porque alguém exerceu as funções parentais e esse alguém aposta nele e
espera isso dele.
Por isso, antes mesmo de um terapeuta em EP pensar em movimentos, posturas ou
atividades, é preciso pensar em um corpo em relação, intervindo no que o provoca. Levin (2001)
fala que o sintoma psicomotor é um dar-se a ver. Isso quer dizer que a forma como o bebê dá-
se a ver pelo e para o Outro, sua imagem, poderá anunciar quais recursos de suas habilidades
do seu esquema corporal está utilizando e também indicará sua interpretação sobre o
investimento do Outro. Afinal, como muitos autores dizem, o corpo fala. É através disso que a
clínica da EP pode supor um caminho para o processo terapêutico de bebês que estejam em
situação de risco em seu desenvolvimento psíquico: o bebê precisa ser um corpo compreendido
como campo de expressão, esse que, em muitos casos, pode ser um pedido de socorro do bebê
para que compreendamos algo que o angustia e que não está sendo entendido na prática cultural
e no decorrer da sua história dentro do contexto social.
O terapeuta em EP precisa entender que o sintoma psicomotor é a condição de encontros
e desencontros entre o bebê e seus pais e que, quando a criança chega em cena na EP, sabemos
que, assim como para o bebê pode haver faltas, para os pais também pode haver, mas que isso
caracteriza possibilidades de construções e encontros, através da fala carregada de afeto que no
discurso vai marcando o seu corpo e o encorajando para novas experiências. Sabemos que não
temos todas as respostas e que é exatamente isso que permite avançar; para isso, o terapeuta em
EP precisa adotar uma postura interdisciplinar, a fim de continuarmos construindo novas
perguntas que nos permitam constantemente reavaliar nossa posição diante do "bebê". Sem
esquecer que a clínica que envolve os bebês é entrelaçada por uma certa temporalidade de
amadurecimento, que se assemelha, em alguns aspectos, ao processo lógico de estruturação
subjetiva. A inclusão do aspecto cronológico do desenvolvimento também diz respeito à
especificidade de uma clínica que, baseada na ética psicanalítica, não pode excluí-lo deste
processo. É esse tempo de amadurecimento que cria obstáculos. Obstáculos que se tornam
pontos de trabalho na clínica. Os pontos de urgência e emergência do processo de
amadurecimento, que são impostos pelo discurso médico como algo que deve ser alcançado "o
mais cedo possível", exerce uma grande influência no trabalho com bebês. É nesse momento
que questionar a pediatria e a neurologia nos permite sustentar uma abordagem clínica
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5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Cada ação direcionada a um bebê na vida cotidiana parte de uma suposição de sujeito
presente ali. O desejo dos pais ou de quem cuida dessa criança é a antecipação necessária para
a formação do sujeito. Um bebê precisa ser olhado para aprender a olhar, tocado para aprender
a tocar, falado para aprender a falar. Uma vez que a pediatria e a neurologia impõem limites, o
terapeuta passou a buscar ferramentas teóricas e metodológicas em outras áreas da ciência para
abordar o desenvolvimento infantil. Os limites da reabilitação surgem quando não há espaço
para as possibilidades de desenvolvimento das suas capacidades e habilidades psicomotoras. A
psicanálise também encontra seus limites na clínica com bebês. Portanto, estamos dentro de um
campo não unificado, em que podemos encontrar uma ampla variedade de posturas teóricas de
uma mesma ciência.
Analisando o que foi pesquisado e abordado neste escrito, pode-se dizer que este artigo
apresenta um estudo sobre o trabalho que é desenvolvido pelo psicomotricista na clínica da
estimulação precoce, com o objetivo de compreender e explorar as possibilidades deste. Por
isso que, nas primeiras seções, foram apresentados os contextos históricos da psicomotricidade,
seguidos do contexto histórico da estimulação precoce. A partir desses contextos, é possível
entender que essa relação com o corpo, com o movimento, é de uma conotação histórica, e que,
à medida que o tempo foi passando, criou-se o entendimento de que o meio em que o sujeito
está inserido contribuiu positivamente ou negativamente para o seu desenvolvimento, que
depende do âmbito em que ele está inserido, que também tem a conotação psicológica e
constitutiva do sujeito.
Quanto ao papel do psicomotricista na estimulação precoce, trata-se de um processo
único e que envolve a participação de quem cuida dessa criança, ou seja, seus pais ou
responsáveis. É um processo atravessado por inseguranças e vazios, mas que, quando em
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transferência com a psicanálise, encontra uma forma de transmitir as questões que permeiam a
clínica da estimulação precoce. Essa temática sempre irá gerar interrogações, pois sempre será
necessário observar cada sujeito na sua forma mais singular. O terapeuta em EP deve sempre
buscar a melhor forma de trabalhar a fim de entender cada caso; no entanto, sabe-se que não é
dever do terapeuta em EP chegar a uma conclusão, mas seguir buscando caminhos e, juntamente
a uma equipe interdisciplinar, orientar para questões pertinentes a cada caso, sempre
ressignificando nosso olhar a partir do bebê.
Portanto, sabendo-se da complexidade deste tema e da necessidade de uma abertura a
outros saberes, enfatizamos a importância da continuidade e do aprofundamento desses estudos.
Afinal, se falamos de elaboração de novas oportunidades e de abertura de possibilidades ao
bebê em atendimento, podemos estender esse olhar para o próprio campo da psicomotricidade,
no sentido de se manter atento a novas possibilidades que se abrem quando há um estudo
continuado do que se faz.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CORIAT, Elsa. Psicanálise na clínica de bebês e crianças pequenas. Buenos Aires: Ed. de
la Campana, 1996.
MOLINA, Silvia E. O bebê da estimulação precoce. In: CENTRO LYDIA CORIAT. Escritos
da Criança, v. 5. Porto Alegre: Linus Editores, 1998. p. 11–20.
PIAGET, Jean. Problemas de psicologia genética. In: PIAGET, Jean. Os Pensadores. São
Paulo: Abril Cultural, 1978.
PRECOCE. In: DICIO: Dicionário Online de Português. Porto: 7 Graus, 2023. Disponível
em: https://www.dicio.com.br/precoce/. Acesso em: 22 set. 2023.
WALLON, Henry. As origens do caráter na criança. São Paulo: Ed. Nova Alexandria,
1995.