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Elementos
Conceituais para a
Compreensão da
Psicomotricidade
Nesta unidade, estudaremos os funda-
mentos da psicomotricidade, porém, realçando um
elemento essencial (e problemático) para a nossa
análise: a ênfase exacerbada nos aspectos psicoló-
gicos do indivíduo, como referência fundamental
para a compreensão, e consequente diagnóstico do
aluno, e como fundamento epistemológico para a
solução dos problemas educacionais.
Ou seja, este tópico pretende realçar uma
problemática que está presente no processo educa-
cional, porém é pouco ou quase nunca discutida: a
excessiva “psicologização” do processo educacio-
nal, o que pode ser entendido como uma tentativa,
a meu ver, insuficiente de resolver os problemas
pertinentes ao processo educacional nos marcos
das teorias psicológicas. É preciso ficar absoluta-
mente claro que não se trata de negar a importân-
cia da análise psicológica no contexto educacional;
trata-se, no entanto, de ampliar as possibilidades
de análise da figura do aluno, buscando no con-
texto histórico-cultural, e não apenas no campo da
psicologia comportamental e/ou cognitiva. Outras
possibilidades de apreensão do seu perfil.
Uma árdua tarefa, instigante e enriquece-
dora de possibilidades analíticas. Vamos a ela.

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1 - Breves Consi-
derações sobre
Psicomotricidade
Antes de passarmos à identificação das
principais categorias da psicomotricidade, é fun-
damental compreendermos a gênese histórica do
termo, posto que, é a sua origem que definirá o
perfil da área e os fundamentos teóricos que lhe
servem de sustentação.
Os antecedentes históricos listados por
Ricardo Martins Porto Lussac, no interessante
trabalho: Psicomotricidade: história, desenvolvi-
mento, conceitos, definições e intervenção profis-
sional, podem contribuir para o enriquecimento
da questão, para o que transcrevemos passagem
interessante, a seguir:
Quando queremos explicar o desenvolvi-
mento de algo é comum iniciarmos pela gênese
do fenômeno. Em todas as culturas isto é um fato
corriqueiro e é conhecido academicamente como
Cosmogonia. Deste modo, iniciaremos pela histó-
ria da Psicomotricidade.
Historicamente, o termo “psicomotrici-
dade” aparece a partir do discurso médico, mais
precisamente neurológico, quando foi necessário,

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no início do século XIX, nomear as zonas do cór-
tex cerebral situadas mais além das regiões moto-
ras. Com o desenvolvimento e as descobertas da
neurofisiologia, começa a constatar-se que há dife-
rentes disfunções graves sem que o cérebro este-
ja lesionado ou sem que a lesão esteja claramente
localizada. São descobertos distúrbios da atividade
gestual, da atividade práxica.
Portanto, o “esquema anátomo-clínico”
que determinava para cada sintoma sua corres-
pondente lesão focal já não podia explicar alguns
fenômenos patológicos. É, justamente, a partir da
necessidade médica de encontrar uma área que ex-
plique certos fenômenos clínicos que se nomeia,
pela primeira vez, o termo Psicomotricidade, no
ano de 1870. As primeiras pesquisas que dão ori-
gem ao campo psicomotor correspondem a um
enfoque eminentemente neurológico (SBP, 2003).
A Psicomotricidade no Brasil foi norteada
pela escola francesa. Durante as primeiras décadas
do século XX, época da primeira guerra mundial,
quando as mulheres adentraram firmemente no
trabalho formal enquanto suas crianças ficavam
nas creches, a escola francesa também influenciou
mundialmente a psiquiatria infantil, a psicologia
e a pedagogia. Em 1909, a figura de Dupré, neu-
ropsiquiatra, é de fundamental importância para
o âmbito psicomotor, já que é ele quem afirma a

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independência da debilidade motora, antecedente
do sintoma psicomotor, de um possível correlato
neurológico. Neste período, o tônus axial começa-
va a ser estudado por André Thomas e Saint-Anné
Dargassie. Em 1925, Henry Wallon, médico psi-
cólogo, ocupa-se do movimento humano dando-
-lhe uma categoria fundante como instrumento na
construção do psiquismo. Esta diferença permite
a Wallon relacionar o movimento ao afeto, à emo-
ção, ao meio ambiente e aos hábitos do indivíduo, e
discursar sobre o tônus e o relaxamento. Em 1935,
Edouard Guilmain, neurologista, desenvolve um
exame psicomotor para fins de diagnóstico, de in-
dicação da terapêutica e de prognóstico. Em 1947,
Julian de Ajuriaguerra, psiquiatra, redefine o con-
ceito de debilidade motora, considerando-a como
uma síndrome com suas próprias particularidades.
É ele quem delimita com clareza os transtornos
psicomotores que oscilam entre o neurológico e o
psiquiátrico. Ajuriaguerra aproveitou os subsídios
de Wallon em relação ao tônus ao estudar o diálogo
tônico. A relaxação psicotônica foi abordada por
Giselle Soubiran (SBP, 2003 e ISPE-GAE, 2007).

(http://www.efdeportes.com/efd126/
psicomotricidade-historia-e-intervencao-
-profissional.htm).

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Vimos, portanto, que a gênese da aborda-
gem psicomotora situa-se no campo da Medicina,
em especial nos distúrbios neurológicos, o que
confere à psicomotricidade uma especificidade
de ordem médica, importantíssima para a Edu-
cação, porém, insuficiente para compreendermos
as múltiplas determinações que engendram a vida
acadêmica do aluno.

2 - Como se
Constitui a Proposta
Psicopedagócica?
A Psicopedagogia tem-se constituído
como o arcabouço teórico da Educação Básica
e o suporte para a tomada de decisões e encami-
nhamentos das instâncias gerenciais da Educação.
Dito de outra forma: as decisões de ordem peda-
gógica nas escolas públicas e privadas do país têm
sido adotadas, em grande parte dos casos, com
base nos conceitos psicopedagógicos, com o cará-
ter mais de “tratamento clínico” do que como uma
vertente teórica que busca compreender a totalida-
de das relações socioeconômicas que determinam
o comportamento e as reações dos alunos.

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Ortopedia Pedagógica
É o caso de questionar-se: o que leva gran-
de parte de professores a encaminhar crianças/
alunos a uma forma de “tratamento” que, por si
só, afirma o caráter “patológico” daquelas pessoas,
sem sequer a preocupação de verificar se aquilo
que parecia ser um distúrbio de ordem psicológica
não poderia, na realidade, ser resolvido com mais
atenção, observação e algumas estratégias extraí-
das do arsenal da Pedagogia?
Tal situação exige pensar sobre o fator
estigmatizante que está subjacente, para a criança,
quando “o seu caso só pode ser resolvido pela es-
pecialização clínica”. Como esta criança sente-se
em relação aos seus colegas de sala, de bairro, en-
fim, perante às pessoas de suas relações?
Qual a perspectiva que se projeta para esta
criança quando ela é considerada fora dos padrões
normais de conduta?
Para muitos educadores, a origem do
problema situa-se na exacerbação do processo de
“psicologização da Educação”, em que o objeto
do saber do professor transfere-se das disciplinas
teóricas para os alunos. Com isso, os professores
passam a exercitar capacidades que não dominam
e deixam de exercer aquelas que deviam dominar.
É preciso, então, que se reencontre um equilíbrio
entre os novos saberes, os desafios da inclusão, e a

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função de transmissão do conhecimento.
Vejamos o que dizem especialistas so-
bre o assunto. Caro leitor, atente para a lingua-
gem do especialista...

“A concepção de corpo na qual o saber psico-


motor focaliza seu objeto de estudo, caminha
em direção de uma imagem corporal em cons-
tante processo de atualização, onde o corpo
por nós percebido apresenta-se como fruto de
sensações e vivências individuais, provenientes
das zonas sensoriais de nosso organismo, so-
mados a uma complexa rede de estruturação
libidinal que se constrói em torno das zonas
erógenas, concretizando desta maneira, a ela-
boração de uma imagem espacial do corpo,
verificando-se assim, uma pluralidade de su-
jeitos juntamente com uma pluralidade de re-
presentações corpóreas, denotando a cada ser
humano um ritmo e uma vivência corporal
singulares.” (Érica Gomes Pontes é psicóloga
institucional e educacional – PUC/MG)

Acabamos de ler as palavras de uma es-


pecialista em psicomotricidade, absolutamente
competentes e coerentes com a sua área. Leiamos,
agora, em uma perspectiva histórica:

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“O movimento humano não resulta da interação
de estímulos isolados, mas das situações concre-
tas que o determinam, ocupando grande parte
das manifestações da história biopsicossocial do
indivíduo. Não esquecendo que a vida, como
campo de experiências adquiridas, constitui uma
sucessão ininterrupta de atitudes corporais e de
movimentos expressivos e representativos. O
indivíduo, quando está em movimento, não é
um espectador desinteressado, mas o agente re-
presentativo do seu ser, o que exige a compreen-
são psicológica a partir de uma consciência vivi-
da e refletida, tendo assim um comportamento
significativo, intencional e consciente, e não um
puro processo corporal; assim, todo o seu apara-
to neuropsíquico funcional está em prontidão e
manutenção.” (Vânia Ramos – psicomotricista,
psicopedagoga e professora de Educação Física
e Artística – PUC/SP)

Em síntese, podemos afirmar que a aná-


lise psicopedagógica enfatiza o aspecto “singular”
do ser humano, em detrimento do seu caráter de
“universalidade”. Evidentemente, isso não signifi-
ca a negação absoluta da Psicopedagogia (ou mes-
mo da Psicologia) como referência teórica funda-
mental para a Educação. Trata-se, aqui, de alertar o
caro leitor para os efeitos limitantes que as teorias

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apresentam, ao abordar o ser humano em uma ou
outra característica da sua personalidade, perden-
do a perspectiva de totalidade histórica que é, esta
sim, determinante para a compreensão da comple-
xidade do Homem.

3 - A Análise Psico-
pedagógica e a
Educação Especial
Em um trabalho desse porte, não pode-
mos deixar de referirmo-nos, ainda que de forma
bastante sintética, à Educação Especial, no con-
texto da Educação em geral, considerando a sua
importância e as suas especificidades.

Estabelecendo um
ponto de partida
Parcela majoritária de formadores de opi-
nião promove a ideia da inevitabilidade das atuais
relações socioeconômicas, nas quais predominam
os princípios:
a) Do mercado como regulador social;
b) Do estímulo exacerbado à individuali-
dade do ser humano.

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Os dois aspectos citados, apenas para
atermo-nos a eles, estabelecem o padrão de “nor-
malidade” que se espera dos indivíduos socialmen-
te e psicologicamente saudáveis. O que abre uma
nova linha de investigação para os educadores:
• O que define o padrão de normalidade?
• Em qual instância histórica foi produzi-
da a figura do “anormal”?
• Quais as implicações que essas catego-
rias provocam no processo educacional?
A Educação Especial adquire este com-
ponente de “atendimento às excepcionalidades”
e configura-se como a vertente por excelência
da análise psicomotora e das intervenções psi-
copedagógicas.
Por tratar de assuntos específicos que, na
maior parte das vezes, extrapolam a ação pedagó-
gica no interior das instituições escolares, a Edu-
cação Especial, segundo Elisane Maria RAMPE-
LOTTO, pesquisadora da Universidade Federal
de Santa Maria, “ainda hoje é tratada como tópi-
co sub-teorizado e como um espaço especializa-
do da Educação.”
Neste contexto, a Educação Especial é
uma Educação marcada pela inserção médico-
-pedagógica e determinada frequentemente por
modelos clínico-terapêuticos, em que as práticas
pedagógicas têm a tarefa da correção e da nor-

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malização. É uma prática de intervenção tera-
pêutica orientada para o cuidado e o tratamento
com a intenção de oferecer uma ortopedia dos
corpos e das mentes.
Ela vale-se de oposições, como “perfeito/
imperfeito, normalidade/anormalidade, de racio-
nalidade/irracionalidade e de completude/incom-
pletude como elementos centrais na produção e
práticas pedagógicas.
É o caso de perguntar-se: a) qual o propó-
sito de institucionalizar-se uma forma especial de
atender determinados sujeitos, por intermédio de
uma maneira própria de educar? Em que contexto
surge a ideia de “normalidade” e o seu correspon-
dente antagônico “anormalidade”?
Enfim, pretende-se para esses sujeitos
“especiais” realizar um processo educacional ou
uma intervenção terapêutica?

4 - Antecedentes
Históricos da
Educação Especial
Até o século XVIII, a “deficiência”
estava ligada ao misticismo e ocultismo. A re-

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ligião, ao colocar o homem como imagem e
semelhança de Deus, inculcava a ideia de con-
dição humana como incluindo perfeição física
e mental. Caso não fossem “parecidos” com
Deus, os “portadores de deficiência”, ou “im-
perfeitos”, eram colocados à margem da condi-
ção humana.Em consequência disso, não havia
preocupação em organizar serviços para atendi-
mento ao “incapacitado”, ao “deficiente”.
Serviços especializados, portanto, ainda
não eram considerados necessários num perío-
do relativamente próximo dos tempos atuais. O
século XVIII, uma vez que, para a crendice da
época, a “imperfeição” contrariava o princípio
religioso que colocava o homem como imagem
e semelhança de Deus. A deficiência física ou
mental era, em consequência, motivo de margi-
nalização social.

A título de curiosidade, os critérios


medievais de excepcionalidade compu-
nham um amplo leque de opções de en-
quadramento dos “anormais”. São famosas
as perseguições (e morte) às bruxas apenas
porque contrariavam os cânones cristãos
da época.

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Caso do menino
selvagem de Aveyron
Do século XVIII para o século XIX,
surge, nas matas do sul da França, o famoso
caso do menino de Aveyron, com hábitos selva-
gens e destituído do uso da palavra, que é moti-
vo de curiosidade da comunidade em geral e de
grande interesse entre filósofos e cientistas.
As conclusões do médico Philippe Pi-
nel, que compara o caso do menino aos de ou-
tros indivíduos que estão em Bicêtre, são de que
o selvagem de Aveyron era idiota, motivo pelo
qual foi abandonado na floresta. Para o médico,
era impossível sua recuperação e educação.
Mas, um aluno de Pinel, o médico Jean
Marc-Gaspard Itard (1774 -1838), examina o
selvagem de Aveyron e interessa-se pela ideia
de educá-lo e integrá-lo à sociedade. Com os
mesmos princípios epistemológicos do profes-
sor Pinel, Itard diagnostica o estado do menino
como privação da convivência social.
Jean Itard foi o médico responsável
pela possibilidade de educação do selvagem e
foi também quem inaugurou o campo denomi-
nado de médico-pedagógico, mais conhecido
como Educação Especial.
Percebemos que a Educação Especial

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surge, portanto, no entrecruzamento da abor-
dagem médico-clínica, com uma intenção de
prática pedagógica, com o objetivo de “nor-
malizar” o indivíduo portador de necessidades
especiais e trazê-lo para o convívio com a socie-
dade “normal”.
Considerando que a formação da so-
ciedade brasileira dá-se, historicamente, pela
incorporação do padrão de vida europeu, já no
século XVII, segundo RAMPELOTTO, a Edu-
cação especializada começa no Brasil Colônia
com o “Deficiente Físico”, sendo assim consi-
derado aquele que possuísse qualquer tipo de
deficiência, inclusive a surdez.
A Constituição Política do Império do
Brasil, de 25 de março de 1824, no artigo 8º,
item 1º, excluía o adulto deficiente afirmando:
“suspende-se o exercício dos direitos políticos:
por incapacidade física ou moral.”
Com o surgimento da escola pública
obrigatória, no final do século XIX, com o pro-
pósito de tornar-se um “espaço de civilização
da criança operária”, e talvez por isso mesmo,
agravam-se as dificuldades das crianças em
acompanhar os conteúdos escolares, daí surge a
necessidade de criarem-se locais e saberes, onde
se possa controlar, disciplinar e ortopedizar o
diferente – esse outro que deve ser normalizado.

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O termo “normalização” tem uma co-
notação bastante importante no contexto origi-
nal da Educação Especial. Informa o sentido de
“tornar normal”, dentro da média, regularizar a
convivência entre os “normais”, “recuperar” o
deficiente, o que implica participar das institui-
ções (escolares, por exemplo) e da vida social
de maneira geral.
Posteriormente, o termo “normaliza-
ção” foi substituído por “integração”, que pas-
sou a ser utilizado no sentido de ter-se acesso
ao sistema de ensino e não exclusivamente ao
ensino regular. Hoje, utiliza-se, em lugar de “in-
tegração”, “inclusão”, que pressupõe o acesso
ao ensino regular mantendo-se os serviços de
apoio da Educação Especial.

4 - Fundamentos da
Metodologia do Movi-
mento à Luz da Abor-
dagem Psicomotora
Antes de qualquer análise, uma refle-
xão: O corpo na sociedade contemporânea.
Estamos falando de certo tipo (abstra-

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