Você está na página 1de 23

Ficha Catalográfica

LEAL, Elisabete da Costa


Filósofos em Tintas e Bronze: arte, positivismo e política
na obra de Décio Villares e Eduardo de Sá. Rio de
Janeiro, 2006. 298 f.: il.

Tese (Doutorado em História)


Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de
Filosofia e Ciências Sociais, 2006.

Orientador: José Murilo de Carvalho

1. História do Brasil
2. História da Arte
3. Positivismo
4. Esculturas e Monumentos Públicos

I. CARVALHO, José Murilo (Orientador).


II. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Instituto de
Filosofia e Ciências Sociais
III. Título.
13

Introdução

Sabe-se que o positivismo foi um conjunto de idéias alastrado no país. Misturado


a outras filosofias, com contradições e incoerências, disseminou-se no meio cultural,
acadêmico, militar, legislativo, nos governos federal e estaduais. Livros de Comte foram
importados da França, e a Igreja Positivista do Brasil – IPB – fez algumas traduções. Os
únicos dois prédios construídos especificamente para o culto positivista foram erguidos no
Brasil. De letra de samba a nome de farmácia e de modelo constitucional a filosofia de vida, o
positivismo se manifestou pelo país de forma sistemática e eficiente.
Havia positivistas religiosos, agremiados na IPB; religiosos independentes, como
Benjamin Constant; os científicos, que liam Comte para embasar seus argumentos ou
explicações da realidade social brasileira, como Aníbal Falcão, Pereira Barreto; os militares,
como Lauro Sodré, Aníbal Eloi Cardoso, Ximeno de Villeroy, Gomes de Castro. Outros liam
de Comte o que os ajudava a pensar uma solução política, uma estrutura administrativa ou
políticas públicas, como Júlio de Castilhos, Candido Rondon, Demétrio Ribeiro. Também
havia aqueles que não se consideravam positivistas, mas realizavam uma leitura seletiva da
obra de Comte, mesclando idéias ou apenas empregando um vocabulário útil e da moda;
realizavam uma vulgarização do vocabulário positivista, com a repetição ingênua de clichês,
frases soltas, fórmulas e conceitos, segundo Boeira.1 Da mesma maneira, Carvalho entende
que o positivismo é um exemplo de importação de idéias, em que muitas vezes foi importado
apenas o vocabulário, algumas palavras-chave empregadas para “se autodefinir positivamente,
ou definir negativamente o adversário”.2
No que se refere à difusão do positivismo no Brasil por meio de textos, a
historiografia já abordou o assunto, embora não se tenha investigado ainda o real impacto da
intensa atividade editorial da IPB nesse meio difuso de positivistas. O certo é que havia um
público leitor e produtor de literatura positivista, seja religiosa ou genérica, seja carregada de
ortodoxia ou mesclada a outras filosofias.
Se os textos positivistas eram relativamente familiares aos grupos já referidos,

1
BOEIRA, Nelson F. O Rio Grande do Sul de Augusto Comte. In: DACANAL, S. & GONZAGA, S.
(org.) RS: cultura e ideologia. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1980. p. 45.
2
CARVALHO, José M. O positivismo brasileiro e a importação de idéias. In: LEAL, Elisabete;
GRAEBIN, Cleusa (org.). Revisitando o positivismo. Canoas: Editora La Salle, 1998. p. 15.
14

pode-se dizer o mesmo a respeito das imagens? Se havia “consumidores” de escritos


positivistas, havia também “consumidores” de imagens alusivas ao positivismo? A
bibliografia sobre este aspecto do positivismo no Brasil não é extensa. Em geral, os trabalhos
se atêm à estatuária pública e funerária, e menos a gravuras e pinturas. Em maior medida
existem trabalhos acadêmicos que tratam dos encomendantes de obras de arte, que, por sua
simpatia ao positivismo, estimularam uma produção visual afinada e inspirada por essa
doutrina. Há também estudos que se centram nas imagens que revelam aspectos do
positivismo, ou no conteúdo das obras. Foi localizado apenas um trabalho que se ateve aos
artistas que produziram imagens alusivas ao positivismo. A literatura que trata do assunto
arte-positivismo analisa, assim, a doutrina, os encomendantes, os artistas e as imagens
individualmente e não as relações entre esses aspectos.
Visa-se mostrar que havia um mercado de arte positivista. Sua compreensão exige
que se saiba quem eram os encomendantes ― que apropriação fizeram do positivismo ―,
quem eram os artistas ― como o positivismo os inspirou ― e que obras de arte foram
executadas ― de que maneira o positivismo foi mostrado visualmente. Considera-se que
vários tipos de atores sociais estão envolvidos na produção artística e que não se pode
prescindir de nenhum deles.
A abordagem geral é inspirada em Howard Becker, que considera que o estudo da
produção de representações visuais deve envolver seus produtores e usuários.3 O autor
entende a arte como um trabalho e a analisa como uma forma de organização social. Ele não
está interessado na produção artística segundo os valores estéticos, mas nas formas de
cooperação que o trabalho artístico engendra entre todos os envolvidos na sua produção e
consumo. Becker busca compreender o “mundo da arte” como ação coletiva.4 Desta sua
abordagem, absorve-se a noção mais geral de mundo da arte, no qual produtores e
consumidores estão unidos em um trabalho comum cooperativo para a realização de uma obra
de arte. No caso desta tese, considera-se os artistas como produtores e os encomendantes
como usuários, já que não se tem como objetivo analisar a recepção destas imagens por parte
de um público mais amplo, fora do círculo positivista. Mas se está atento para o fato de que,
embora haja cooperação, este mundo não está isento de conflitos e negociações.
Vários concursos de maquetes e encomendas de monumentos serão analisados
neste trabalho. Estudar estes tipos de eventos que envolvem a confecção de um monumento

3
BECKER, Howard S. Falando sobre a sociedade. In: Métodos de Pesquisa em Ciências Sociais. São
Paulo: Hucitec, 1993.
4
BECKER, Howard S. Les Mondes de L´Art. Paris: Flammarion, 1988. p. 21-23.
15

nos permite compreender a relação, nem sempre harmoniosa, entre encomendante e artista, o
gerenciamento das divergências no interior da negociação e o resultado plástico ― a obra.
Estar-se-á atento então ao seguinte: O concurso permite que se percebam os diferentes grupos
que se aliam e se dissolvem, tentando gerir seus conflitos políticos e simbólicos; a comissão
julgadora nem sempre consegue gerenciar ou traduzir os distintos desejos em jogo no
concurso; as lutas no interior da comissão servem para consolidar redes de relações pessoais e
de interesses; os artistas envolvidos no concurso, vencedores ou não, quase sempre integram
essas redes; a confecção de um monumento é algo muito dispendioso, e, portanto, existem
interesses financeiros ligados à execução do projeto; e a obra de arte pode traduzir ou não o
que os encomendantes desejavam.
Essa abordagem se valida ao se levar em conta o alerta de Ulpiano Bezerra de
Menezes, em balanço da produção sobre cultura visual: as imagens devem ser estudadas como
objetos materiais, “nas diversas formas e contingências de uso e apropriações”; ele completa
mais adiante que “é possível ir além da ideologia e do imaginário/mentalidades” nos estudos
sobre imagens.5

Os encomendantes e a “influência positivista”

Boa parte da bibliografia apresentada abaixo afirma a influência positivista sobre


intelectuais ou dirigentes políticos locais envolvidos na produção de monumentos públicos e
fúnebres; também afirma a existência de um ambiente cultural receptivo a tal doutrina. É
grande o número de teses e dissertações no Rio Grande do Sul que analisa a influência
positivista na confecção de imagens. Tais trabalhos discutem essa produção como um
fenômeno local. Um levantamento das teses e dissertações produzidas nos programas de Pós-
graduação da UFRJ, UFF, Unicamp e USP revelou a ausência de trabalhos sobre positivismo,
política e arte.
O trabalho de Bellomo sobre arte funerária em Porto Alegre de 1900 a 1950
discute a ligação da elite dirigente gaúcha, de orientação política positivista, e a produção de
objetos artísticos e imagens em geral. A dissertação de mestrado apresentada na PUC/RS em
1988 tem como eixo duas hipóteses: que é possível estabelecer uma tipologia para os
monumentos fúnebres, dada a sua variedade de conteúdo, e que a produção artística estava
ligada à ideologia positivista dos grupos dominantes no Rio Grande do Sul.

5
MENESES, Ulpiano Bezerra de. Fontes visuais, cultura visual, história visual: Balanço provisório,
propostas cautelares. Revista Brasileira de História. v. 23, n. 45, p. 29, jul. 2003.
16

O autor define os parâmetros da estética neoclássica e a positivista, pois ambas as


concepções marcaram a produção funerária em Porto Alegre. Tal produção foi dividida pelo
autor em cristã, alegórica e cívico-celebrativa. Vários túmulos foram citados nesta tipologia
cívico-celebrativa, e alguns foram identificados como encomendas do governo estadual.
O primeiro apresentado é o de Pinheiro Machado, que, para o autor, foi construído
totalmente dentro dos cânones clássico-acadêmicos: o morto é representado como um herói
romano, e as várias alegorias são hierarquizadas por tamanho, sendo a República a maior
figura. Para ele, este túmulo é exemplar ao mostrar “os valores ideológicos e políticos do
momento histórico em que foi construído, traduz toda a visão positivista do governo Borges
de Medeiro.”6 No túmulo de Júlio de Castilhos, o autor também destaca o patrocínio do
governo do estado e o conteúdo da obra: figura feminina que segura a bandeira nacional,
imagem do morto e inscrição do lema positivista “Os vivos são sempre e cada vez mais
guiados pelos mortos.”7 Otávio Rocha também teve um túmulo nesta categoria, cujo conteúdo
é composto de uma figura feminina e um baixo relevo representado a Avenida Borges de
Medeiros, uma das grandes obras de reforma urbana empreendida quando prefeito de Porto
Alegre. Também pago pelo governo do estado, o túmulo de Maurício Cardoso teve
influências do estilo monumental alemão e tem como representação principal a Justiça e o
Direito, pois o homenageado fora um advogado.
O conteúdo dos túmulos citados pelo autor apresenta uma variação que vai das
figuras clássicas da Justiça e da República às figuras que representam as atividades do
homenageado. Em dois deles o morto é representado. Não há um elemento recorrente em
todos os túmulos analisados, que nos permita entendê-los como cívico-celebrativos
positivistas a partir de seu conteúdo. O aspecto comum reconhecido pelo autor é o fato de
terem sido encomendados pelo governo do estado do Rio Grande do Sul. Esta é a evidência da
qual o autor parte para analisar tais obras como positivistas. Outro ponto comum, não
destacado, é que os quatro homenageados com túmulos foram figuras proeminentes no
Partido Republicano Rio-Grandense – PRR.
O autor define que estética positivista é um conjunto de idéias acerca do papel
social das artes: educação moral, inspiração de valores altruístas e de sentimentos para o bem,
moralização das instituições, imortalização de indivíduos como exemplos a serem seguidos. O
autor definiu a função social e moral das artes na proposta estética comtiana associado ao

6
BELLOMO, Harry Rodrigues. A estatuária funerária em Porto Alegre ― 1900-1950. Porto Alegre:
PUC/RS, 1988. (Dissertação de Mestrado) p. 155.
7
BELLOMO, Harry Rodrigues. A estatuária... p. 163.
17

“pensamento individualista e autoritário da doutrina [que] levou os artistas positivistas a uma


constante glorificação artística das lideranças.”8 No entanto, a proposta comtiana é baseada no
passado e na coletividade, abrindo brechas para a exaltação de homens que contribuíram para
a evolução social humana. Não são suas características individuais ou as de sua personalidade
que o definem como exemplo, mas sua obra à coletividade humana é que determina se merece
ser imortalizado em obras de arte. Portanto, características como individualismo e
autoritarismo, geralmente apontadas ao castilhismo, não são propriamente comtianas, mas
mostram como o positivismo foi apropriado pela elite dirigente gaúcha.
A afirmação a respeito do pensamento comtiano individualista e autoritário se
reforça quando o autor aborda a tipologia dos túmulos cívico-celebrativos. No Rio Grande do
Sul, esses túmulos decorrem da ascensão do grupo político positivista liderado por Júlio de
Castilhos, com a proclamação da República. O acesso desse grupo ao governo estadual e a
conseqüente disponibilização de verba para investimentos em obras públicas permitiram o
patrocínio de monumentos tumulares que reafirmassem “o princípio positivista de culto cívico
ao líder e da conservação de sua memória, única imortalidade possível ao ser humano”9. Os
encomendantes ― políticos gaúchos ― e o momento histórico impregnado de positivismo são
os elementos que definiram o caráter positivista dos túmulos. O autor acrescenta que, pela
função tumular e celebrativa de individualidades, os túmulos costumam representar o morto
acompanhado de alegorias que lembram suas atividades ou sua ideologia. Assim, neste
trabalho, dois aspectos definem o que é uma obra positivista: a ideologia dos encomendantes e
o conteúdo da obra.
Com o mesmo encaminhamento, a dissertação de mestrado de Sérgio Roberto
Rocha da Silva, apresentada ao PPG/História da UFRGS, em 2001, analisa a arte funerária no
Rio Grande do Sul. O trabalho tem como foco as representações do herói na arte funerária, e
para tanto, cria uma tipologia que difere da de Bellomo. Os heróis representados nos túmulos
se dividem em: familiar, político e cultural. Argumenta o autor que o positivismo exerceu
grande influência no culto aos heróis e que não por acaso o surto da arte cemiterial coincide
com os primeiros 30 anos do século XX, período de predomínio político do PRR.10
Apoiando-se na idéia de Pierre Bourdieu de que o poder simbólico é invisível e
que necessita da cumplicidade dos envolvidos, o autor destaca a importância dos artistas ao
interpretarem simbolicamente a ideologia dos encomendantes e o papel da doutrina positivista
8
BELLOMO, Harry Rodrigues. A estatuária... p. 39.
9
BELLOMO, Harry Rodrigues. A estatuária... p. 154.
10
SILVA, Sérgio Roberto Rocha da. A representação do herói na arte funerária do Rio Grande do Sul
(1900-1950). Porto Alegre: UFRGS, 2001. (Dissertação de Mestrado)
18

do governo estadual, que também se apropriou dos símbolos para se propagandear. O autor
chama atenção para a importância do artista como negociador dos valores, símbolos e
ideologias que serão “impressos” na obra tumular. No entanto, o único artista nomeadamente
positivista – Décio Villares – e que poderia, em tese, melhor negociar as representações do
positivismo não integrou o capítulo destinado à análise dos ateliês e artistas.
Foi na tipologia do herói político que a ideologia positivista do PRR pôde mais se
manifestar. Três aspectos são requeridos pelo autor para enquadrar os túmulos nesta categoria:
o morto deve ter sido considerado um herói; o homenageado deve ter pertencido aos quadros
políticos do PRR; e os mausoléus devem ter sido financiados pelos cofres públicos.
Diferentemente de Bellomo, o autor não propôs estudar a estética positivista e
tampouco entende que as obras tenham conteúdo positivista. Para ele, elas foram produzidas
durante o período de predominância política do PRR e representam simbolicamente o desejo
de dar visibilidade ao poder e ao positivismo.
Ambos os trabalhos ressaltam a importância dos governos do PRR para a
construção de túmulos que teriam então recebido influência do positivismo. O termo
“influência do positivismo”, largamente utilizado na historiografia gaúcha, é impreciso e não
explica os elementos formais e simbólicos das obras artísticas. Contudo, restam algumas
questões: Quem define o sentido das obras de arte? Uma obra de arte é positivista porque seus
encomendantes (o governo do estado) são positivistas? Ela é positivista porque homenageia
políticos afinados com o positivismo? Ela é positivista porque seu conteúdo alude a termos do
positivismo?
Um terceiro trabalho que também trata de arte funerária busca analisar a
influência do positivismo na construção da memória farroupilha, inicialmente por meio da
literatura e, por fim, materializada no monumento-túmulo de Bento Gonçalves, erguido na
cidade de Rio Grande. Juarez José Rodrigues Fuão, em sua dissertação de mestrado em
História na Unisinos, argumenta que a produção literária e historiográfica em fins do século
XIX sobre a Revolução Farroupilha permitiu a formação de uma mentalidade favorável à
construção do monumento-túmulo nos anos dez do século XX. O positivismo no Rio Grande
do Sul, reapropriado e reinterpretado não somente nos quadros do PRR, mas também entre os
historiadores e literatos, contribuiu para a formação de um imaginário no qual os grandes
homens, ou os heróis, encontraram espaço privilegiado para serem cultuados. A construção do
19

monumento-túmulo de Bento Gonçalves se deu neste ambiente.11


Além do imaginário gaúcho favorável ao positivismo, o autor também discutiu as
negociações para a confecção do monumento-túmulo. Utilizando-se de ampla documentação
sobre a encomenda, o autor analisou o processo de construção da obra, destacou a subscrição
popular, a composição da comissão promotora, a escolha do artista e as controvérsias de seu
conteúdo. Trabalhou as disputas e negociações entre os grupos em embate na comissão
promotora, entre esta e o artista e a participação da imprensa. Evidencia-se que,
diferentemente dos túmulos citados pelos outros autores, o de Bento Gonçalves foi construído
por iniciativa de uma comissão representativa de variados setores da sociedade riograndina,
inclusive maçons e monarquistas, e a possibilidade de negociação da obra era supostamente
maior do que nos túmulos encomendados pelo governo estadual.
Mesmo em um monumento feito com suposta maior autonomia, como o analisado
por Fuão, a mentalidade positivista inspiradora de homenagens aos grandes homens
permanece como vetor explicativo. A questão que fica é esta: por que o positivismo teve
exclusividade nesse imaginário? Não seria possível pensar que o culto aos grandes homens
fosse produto de uma concepção mais ampla de política, na qual a estatuária tinha importância
determinante? As análises de Maurice Agulhon para a estatuária francesa, produzida
sobretudo nos oitocentos, apontam nesse sentido. No Brasil, a moda escultórica ganhou
impulso com a República, e o positivismo foi apenas uma das muitas outras doutrinas que
estimularam esse movimento.
O positivismo na estatuária empregada nos prédios públicos, nos monumentos e
túmulos erguidos por iniciativa dos governos federal, estadual e municipal é tema também
abordado na dissertação de mestrado de Arnoldo Walter Doberstein, defendida na PUC/RS e
publicada em 1992. O autor tem como hipótese que, dada a orientação positivista do poder
político estadual e municipal, esta se plasmou na estatuária, só que de forma menos “rígida e
inflexível que quando inspiradora dos métodos de governo desse grupo”12.
Para o autor, assim como na política estadual positivista marcada por
deslocamento de sentido e ênfase (não foi rígido, nem ortodoxo), também na arte e na
arquitetura a estética se mostrou aberta e flexível quanto aos diferentes estilos empregados.
Isto estava associado à multiplicidade de gostos e intenções dos encomendantes. Também se

11
FUÃO, Juarez José Rodrigues. Monumento-túmulo ao general Bento Gonçalves da Silva: da
fundação à materialização do mito na sociedade sul-rio-grandense. São Leopoldo: Unisinos, 2003.
(Dissertação de Mestrado)
12
DOBERSTEIN, Arnoldo W. Estatuária e Ideologia. Porto Alegre 1900-1920. Porto Alegre: SMC,
1992. p. 02.
20

explica, afirma o autor, pela inexistência de um “corpo de críticos que vigiasse pela ditadura
de um estilo oficial”13, pela formação principalmente francesa dos arquitetos ligados à
Secretaria de Obras Públicas do Estado do Rio Grande do Sul – SOP e pela finalidade do
prédio ou do monumento. Parece adequado o elenco de elementos usados pelo autor para sua
análise: gosto dos encomendantes, crítica de arte, formação artística, função da obra; no
entanto, tudo isto se inviabiliza em termos analíticos quando se considera o positivismo como
uma ideologia de Estado, permeando todas as etapas de confecção das obras.
Nas análises sobre o positivismo no Rio Grande do Sul realizadas nas últimas
décadas, os autores tomaram essa doutrina como única, coerente e transpassável a todas as
esferas de poder do PRR, nos governos estadual e municipal. Já em 1980, Nelson Boeira, em
texto que analisa as formas de manifestação do positivismo no Rio Grande do Sul, alertava
para apropriação desta filosofia por parte de variados setores sociais gaúcho de forma
dinâmica e sincrética. Para ele, não foi uma manifestação de rigidez filosófica, mas um
exercício de tolerância doutrinária, no qual os desvios de sentido e as deformações fazem
parte da apropriação de idéias. “Os sistemas de idéias não guardam, no contato com o
dinamismo e a diversidade da vida social, a coerência interna que buscam ou apregoam na
inércia das páginas impressas.”14 É na apropriação do positivismo que está a potencialidade
de análise de sua manifestação.
Nesta produção historiográfica sobre o positivismo, alguns trabalhos buscaram
mostrar a coerência doutrinária das ações do poder público nos governos do PRR e os textos
comtianos; outros quiseram mostrar que a elite política gaúcha não era tão ortodoxa assim,
mas continuam recorrendo somente aos escritos do filósofo francês. Os trabalhos sobre arte e
arquitetura comentados consideram que a presença das idéias positivistas nos governos do
PRR ou na cultura em geral, com os escritores, marcou a produção de imagens e que estas
representavam o desejo dos encomendantes de fixar heróis, de criar uma memória
republicana/farroupilha e de dar visibilidade ao poder autoritário do PRR. Chamado de
ideologia no primeiro momento, de mentalidade e imaginário, mais tarde, o positivismo de
Comte, e não o dos influenciados por ele, foi tomado como ponto de partida para a análise de
imagens.
Na conceituação de Panofski, o significado intrínseco ou conteúdo são “[...]
princípios subjacentes que revelam a atitude básica de uma nação, de um período, classe
social, crença religiosa ou filosófica – qualificados por uma personalidade e condensados

13
DOBERSTEIN, Arnoldo W. Estatuária... p. 07.
14
BOEIRA, Nelson. O Rio Grande... p. 34.
21

numa obra.”15 Por exemplo, para compreender o sentido iconográfico de um quadro da última
ceia, o historiador deveria estar familiarizado com os textos do evangelho e também procurar
saber o que os autores dessas representações leram ou conheceram.16 A análise do significado
ou conteúdo seria, na proposição do autor, o ponto de partida da análise das artes visuais. Por
analogia, estudar o positivismo como ponto de partida implica abandonar a prática de tomá-lo
como dado, como conhecido. Implica desconfiar das explicações que parecem coerentes entre
intenções e práticas artísticas e considerar a importância das negociações entre artista e
encomendante.
Mas a influência do positivismo na produção artística não foi uma prerrogativa
somente do Rio Grande do Sul, embora os trabalhos sobre este estado aqui discutidos sejam
numericamente superiores. A historiografia gaúcha demonstra uma predileção pelo assunto,
pois o positivismo estruturou as bases da política governamental gaúcha, quando foi
promulgada a Constituição Estadual, redigida por Júlio de Castilhos, em 1891. Mas Belém do
Pará também teve um presidente de província positivista ― Lauro Sodré ―, que assumiu
publicamente que seguia a Religião da Humanidade e que publicava textos de propaganda do
positivismo, no entanto, o interesse da historiografia pelo positivismo é menor, exceto na
análise do monumento à República.
A construção do monumento à República, em Belém do Pará, também teve o
positivismo como pressuposto ideológico. O livro de Geraldo Mártires Coelhos, publicado em
2002, buscou explicar como o erguimento do primeiro monumento à República no Brasil
obedeceu às demandas ideológicas republicanas, dentro dos cânones da escultura monumental
européia, sobretudo francesa. Para o autor, a “intelligentsia brasileira” marcada pela cultura
francesa desenvolveu um ideário político à luz do positivismo. O cruzamento destes dois
elementos – cultura francesa e ideologia positivista de Progresso – marcou a iniciativa e
execução do monumento.
Justo Chermont, primeiro governador republicano do Pará, era um simpatizante
do positivismo, sensível à herança política da Revolução Francesa e um exemplar
representante da elite culta republicana; foi ele que teve a idéia de erguer o monumento. O
edital do concurso internacional saiu pela Intendência Municipal, e vários artistas italianos se
inscreveram, um número menor de franceses e dois estrangeiros radicados no Brasil; nenhum
brasileiro. Mesmo com a cultura francesa a impregnar a intelligentsia brasileira e paraense, o

15
PANOFSKY, Erwin. Significado das artes visuais. 3. ed. São Paulo: Perspectiva, 1991. p. 52.
16
PANOFSKY, Erwin. Estudos de iconologia – temas humanísticos na arte do renascimento. 2. ed.
Lisboa: Estampa, 1995. p. 25.
22

projeto vencedor foi o de um artista italiano. Porém, alerta o autor, os artistas italianos eram,
no final dos oitocentos, alheios à monarquia de seu país, e sua arte era influenciada pela
francesa, pela estética política da Terceira República. O projeto vencedor, explica Coelho,
“sinalizava as mentalidades dominantes da elite política paraense do começo da República,
em cujo quadro ideológico era flagrante a presença do positivismo e sua religião laica de
adoração da Pátria e do Progresso”17.
É corrente na bibliografia sobre política e República no Brasil, a absolutização do
positivismo em decorrência disso, a associação entre promoção do civismo e adoração de
heróis. Nesta tese, não se negará a contribuição do positivismo para essas práticas, mas se
questionará se foi sua única matriz filosófica. As práticas cívicas francesas e norte-americanas
não tiveram por base doutrinária o positivismo, exclusivamente. A historiografia mostra que o
Brasil tem uma longa tradição na realização de festas e comemorações cívicas e religiosas,
que, aperfeiçoada durante a monarquia ― facilitada pela centralidade do imperador e pelo uso
do aparelho estatal ―, contribuiu para a continuação de tais práticas na República, com outros
heróis a serem reverenciados.
O positivismo é voltado para o passado, reverencia os mortos e os heróis e
estimula o patriotismo em todos os níveis. Mas qual das doutrinas do século XIX que
serviram de base ao republicanismo não era assim? Patriotismo, adoração de heróis, práticas
republicanas cívicas e laicas não são prerrogativas exclusivas do positivismo.
O autor analisa os projetos franceses e italianos com o intuito de mostrar como o
modelo escultórico vigente nas propostas remontava à simbologia francesa de 1848, só que
destituído de seu caráter revolucionário, portanto político. O projeto vencedor seguiu essa
fórmula. Coelho revela como a comissão julgadora era, de certa forma, despreparada para
julgar os trabalhos e vulnerável às opiniões alheias e às pressões da imprensa. Destacou-se, no
episódio do concurso, a interferência do cônsul do Brasil em Gênova (mesma cidade do artista
vencedor), o paraense J. A. Rodrigues Martins, que não só influenciou o júri na escolha do
projeto, como orientou o artista em algumas modificações da obra. Coelho demonstra
surpresa pelo resultado do concurso e se questiona como o projeto do renomado escultor
francês Jules Roulleau não foi o vencedor.
É compreensível a surpresa do autor, pois tem como argumento que os
republicanos paraenses eram muito familiarizados com a simbologia cívica francesa e que os
artistas italianos a reproduziam em suas obras. Mas parece ter imperado na escolha do artista

17
COELHO, Geraldo Mártires. No coração do povo: o monumento à República em Belém do Pará,
1891-1897. Belém: Paka-Tatu, 2002. p. 27.
23

italiano o jogo dos interesses e influências pessoais, onde há pouco espaço para idealismos
doutrinários.
As mudanças no projeto, as pessoas que estiveram envolvidas em influenciá-lo e
os interesses que atendiam também são reveladores das escolhas visuais. Durante a execução,
o projeto foi alterado para incluir os nomes de Benjamin Constant, na face principal,
Tiradentes e José Bonifácio, nas faces laterais, e Floriano Peixoto, na face posterior do
monumento. Chama-se a atenção que os seis anos de execução da obra permitiram não só o
envolvimento de novos indivíduos interessados no projeto, bem como novos interesses
políticos que deveriam ser traduzidos visualmente. Com isso, alerta-se para o quanto é
revolucionário, a partir de 1895, incluir o nome de Floriano no monumento e o quanto é
político deixar Deodoro da Fonseca de fora. Tal decisão está relacionada a batalhas políticas
travadas na Primeira República, em que diversos grupos lutavam por suas idéias, traduzidas
em poder de intervenção política. Com isso, é importante saber quais pessoas influenciaram
para definir essas novas inscrições no monumento, quais eram suas idéias, o que pretendiam
com a obra, se eram positivistas, militares ou dirigentes políticos. Tais respostas elucidariam
os anseios de seus encomendantes e a obra, e qual era o papel do positivismo na sua
promoção.
Em outro livro, Coelho analisa o encontro entre romantismo e positivismo na
criação de uma estética da morte de Carlos Gomes: uma série de eventos que visavam
despertar a afeição pública para o maestro tornado herói. Sob a liderança de Lauro Sodré,
então governador do Pará, Carlos Gomes viveu seus últimos meses de vida sob patrocínio
oficial e teve seu funeral também financiado pelo estado. Para o autor, Lauro Sodré,
“reverente a religião cívica comtiana e a exaltação de seus novos santos, os grandes
homens”18, foi figura central nos eventos que se sucederam à morte do maestro. O argumento
de Coelho é que a Religião da Humanidade se fundava na reverência ao passado e na morte,
como forma de um culto social a alguns grandes homens. Essa religião, somada a princípios
nacionalistas também de exaltação a heróis, inspirou Lauro Sodré a homenagear Carlos
Gomes.
Pode-se acrescentar que a acolhida de Carlos Gomes pelo governo estadual
paraense para dirigir o Conservatório de Música, especialmente criado para o maestro,
enquadra-se em um conceito de mecenato oficial às artes discutido no início da República,
inclusive por positivistas. Lauro Sodré se reconhecia como positivista, e teria sido valioso

18
COELHO, Geraldo Mártires. O brilho da super nova: a morte bela de Carlos Gomes. Rio de
Janeiro: Agir, 1995. p. 31.
24

para o argumento do autor analisar os inúmeros textos do militar e a documentação de sua


administração no governo estadual concernente ao patrocínio artístico ao maestro e depois a
seus funerais. As idéias de Sodré, publicadas em livros, em artigos na Revista do Instituto
Histórico Paraense, em opúsculos e em textos jornalísticos, poderiam desvendar as leituras
que fez do positivismo e como o adequou para tais práticas cívicas que envolviam arte,
acomodação mais necessária ainda por tratar-se de um herói não republicano; Carlos Gomes
foi fiel à monarquia até sua morte. Tais escritos revelariam, é provável, como o positivismo
foi reprocessado no ambiente cultural paraense, porque as idéias são mutantes quando
apropriadas.

As disputas políticas nacionais e as representações do positivismo

Se os trabalhos discutidos anteriormente tratam da produção de imagens do


positivismo como um fenômeno local, alguns poucos trabalhos analisam essas imagens
integradas ao movimento republicano nacional. Discutindo a formação de um imaginário
republicano e como se deu o extravasamento de modelos de República para a população, José
Murilo de Carvalho analisa a contribuição dos membros da IPB. O livro A Formação das
Almas19 foi pioneiro no estudo do papel das imagens positivistas no movimento republicano
nacional. Diferentemente dos trabalhos antes comentados, seu objetivo não foi analisar o
positivismo dos encomendantes de imagens, mas os grupos envolvidos em uma luta
simbólica, promovendo modelos de República e de sociedade para o Brasil: o liberalismo à
americana, o jacobinismo à francesa e o positivismo. Nesta disputa por uma definição do
imaginário, foram elencados os heróis brasileiros a serem cultuados e, em suas
representações, os grupos envolvidos na sua exaltação via imagens. O autor discute os
conflitos gerados pela busca ou definição do panteão nacional. Para ele, foi o grupo da IPB
que participou ativa e beligerantemente nessa batalha simbólica pela República.
Buscando desvendar a tática política dos positivistas religiosos, que estava longe
de ser apenas fanatismo, como afirmavam seus opositores, Carvalho percebe que fazia parte
da dedicação apostólica o convencimento intelectual da classe média pela palavra escrita e
falada e a sensibilização de proletários e mulheres pelas imagens e rituais. Para ele, coube aos
positivistas ortodoxos o “mérito de ter contribuído de maneira substantiva para a construção

19
CARVALHO, José M. de. A formação das almas: o imaginário da República no Brasil. São Paulo:
Cia. das Letras, 1990. p. 40.
25

do pouco que subsiste do imaginário republicano”20 no Brasil. Porém, o alcance dessa


construção junto à população foi restrito. Nem voltado às mulheres, nem atingindo os
operários, no Brasil a popularização do positivismo buscada pela IPB teve seus limites e se
restringiu às classes médias, como explica Carvalho. Portanto, propaganda às elites
escolarizadas e limitada em seu caráter popular.
Neste aspecto, questionaríamos se obras de arte, mesmo monumentos públicos,
ilustrações em livros e caricaturas em jornais, são bons indícios de popularização de idéias.
Podem ser formas de divulgação a um grupo restrito, escolarizado, politicamente mobilizado,
portanto uma divulgação às elites, mas não uma popularização. Ainda que restrita, uma parte
dessa popularização poderia ser avaliada com um inventário de objetos decorativos nas
fachadas de residências e de casas comerciais, revelando a escolha por imagens alusivas à
República ou não. Corroboraria isto um estudo dos ateliês que produziam tais imagens.
Destacar-se-iam três importantes aspectos apresentados no livro de Carvalho que
ajudam a pensar o argumento desta tese. 1 ― Os grupos políticos mobilizados pela República
no Brasil eram variados e em embate, inclusive com diferentes tipos de positivistas, e suas
atividades militantes não se davam somente via textos, mas também no âmbito da produção
de imagens. Visa-se mostrar que, assim como não havia unanimidade nas estratégias políticas,
nem nas doutrinas assumidas, não havia nas imagens produzidas. 2 ― Os positivistas da IPB
eram militantes políticos estrategicamente organizados; não era um grupo inconseqüente de
fanáticos. Tal estratégia de ação incluía a produção de imagens. Portanto, se o uso de imagens
fazia parte da tática política positivista, é fundamental conhecer a função da arte para este
grupo, por meio de seus textos. 3 ― Na batalha simbólica republicana, somente alguns heróis
venceram, e isto variou conforme o grupo. A produção de imagens se voltou para estes heróis.
No grupo dos positivistas, somente algumas figuras se destacaram e tiveram suas imagens
produzidas para propaganda. O grupo, mesmo que não uníssono, ao qual pertencem os
encomendantes, ajuda a definir o caráter positivista ou não de uma imagem. Portanto, não é
qualquer imagem que tem aspectos do positivismo e não é qualquer encomendante que lhe dá
este caráter.

20
CARVALHO, José M. de. A formação... p. 40.
26

Os artistas positivistas

A tese de doutorado de Maria A. Milliet – Tiradentes: o corpo do herói endossa


muito dos resultados apresentados por Carvalho, sobretudo a construção do mito Tiradentes e
sua ascensão a herói nacional. Destacar-se-á em sua contribuição a discussão sobre as
representações positivistas de Tiradentes, os artistas mobilizados para realizá-las e a função da
arte na síntese religioso-política do positivismo.
Milliet realça os artistas que produziram imagens de Tiradentes, dentre eles Décio
Villares, que recebeu capítulo próprio, dada a importância da contribuição do artista na
construção visual do herói inconfidente. Para a autora, Décio Villares contribuiu de forma
eficiente na construção de uma “imagem roubada”: Tiradentes – representado, em um pseudo-
retrato, assemelhado a Jesus Cristo –, com uma aura de santidade que causou forte impressão,
acabando por criar uma identidade ao herói. Foi a imagem que permaneceu colada ao
personagem histórico, e foram inúteis as tentativas de mudá-la, diz a autora.
Tal construção visual de Tiradentes se explica pela intensionalidade do artista, que
sendo positivista, procurou popularizar o herói, associando-o à iconografia cristã; esta, além
de familiar aos brasileiros, tocava a sensibilidade e “alimentava a espiritualidade piegas do
catolicismo”21, facilitando a aceitação do herói. A autora resume a função sócio-sentimental
da arte para o positivismo dizendo que “na contaminação do político com o religioso
confunde-se imagem de representação com imagem de culto”22.
Para os positivistas da IPB, o caro princípio de transição sem violência e
revolução se revela nas imagens que Villares criou diz Milliet: a imagem da humanidade –
Clotilde por volta dos 30 anos, com uma criança no colo – que se assemelha à Virgem dos
católicos; os heróis da humanidade, com seus bustos colocados nos retábulos do Templo da
Humanidade, que lembram os santos; e Tiradentes, que se assemelha a Cristo. Este uso de
imagens e signos é uma forma do positivismo operacionalizar uma conciliação entre o
religioso e o profano, afirma a autora. Para ela, a construção do herói-martir Tiradentes e de
sua imagem cristianizada foi um procedimento sincrético dos positivistas, visando à
impregnação do político pelo religioso. Embora sem explicar como Villares se apropriou
desta concepção para as artes, a autora reconhece a estratégia da IPB ao cooptá-lo, para
converter sua obra em objetos de culto religioso e também cívico.

21
MILLIET, Maria Alice. Tiradentes: o corpo do herói. São Paulo: USP, 1998. p. 140. (Tese de
Doutorado)
22
MILLIET, Maria Alice. Tiradentes... p. 140.
27

Outro trabalho, que analisa a construção da cidade de Belo Horizonte, também


foca a discussão sobre o artista e a obra positivista, melhor dizendo, o arquiteto e o projeto
urbanístico, considerando-o uma forma de imagem. Para Beatriz A. Magalhães e Rodrigo F.
Andrade, o modelo barroco de cidade – espaço racionalizado, higiênico, grande, visível – se
combinou às idéias positivistas do arquiteto Araão Reis, ao idealizar Belo Horizonte.
A primeira característica positivista apontada no projeto urbanístico de Belo
Horizonte é sua topomínia, que tem um conteúdo nacionalista, ufanista e republicano. As ruas
foram organizadas de forma geométrica, paralelas e em ordem crescente NS e EO. Além
desse caráter sistemático, os autores ressaltam o laicismo da topomínia – “não se vê uma
única referência religiosa”23. São referidas as datas históricas caras ao positivismo e à
República, os heróis nacionais, nomes de rios, de estados, de tribos, de minerais e de fatos
históricos mineiros. A numeração das casas também foi racionalizada por um sistema métrico
crescente no sentido NS e EO. A sistematização, a materialização do espaço, a busca por uma
racionalidade científica são o “verdadeiro aspecto positivista da topomínia”24.
O positivismo como reflexo do desejo de conservação do poder por um grupo
político também é apontado, tanto no projeto urbanístico, quanto nas mensagens iconográficas
e decorativas dos prédios oficiais e privados. A iconografia cristã foi negada, e os elementos
decorativos aludem ao repertório pagão da Revolução Francesa, reinterpretados pelo
“racionalismo do café” e pelo positivismo, afirmam os autores. Quanto a esta última
influência, é recorrente o tema da bandeira nacional, com o lema Ordem e Progresso ou
apenas a esfera.
Os autores ressaltam ainda que o caráter racional, funcionalista e utilitário do
positivismo na construção da nova cidade foi abandonado pela busca de expressividade e de
espetáculo, ou seja, dos elementos que mobilizavam as emoções. Mas o argumento deve ser
inverso. Ao lermos os textos de Comte que tratam especificamente das criações artísticas, vê-
se que são entendidas como um somatório de realismo e emoção. O objetivo básico das artes

23
MAGALHÃES, Beatriz de A. ANDRADE, Rodrigo F. Belo Horizonte – um espaço para a
República. Belo Horizonte: UFMG, 1989. p. 89.
Outros trabalhos que também relacionam positivismo à arquitetura e urbanismo são estes: GUN,
Philip. Projeto e planejamento: o peso do positivismo brasileiro. In: Seminário natureza e prioridades
de pesquisa em arquitetura e urbanismo. São Paulo: USP/FAU/FAPESP, 1990; PIRES, Mário J.
Idéias de ordem e progresso na arquitetura paulistana. In: AVIGHI, Carlos M. (org.) Comunicações e
artes no nascimento da República brasileira. São Paulo: USP/ECA, 1990; WEIMER, Gunter. A
capital do positivismo. In: PANIZZI, Wrana; ROVATTI, João (org.). Estudos urbanos, Porto Alegre e
seu planejamento. Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS; PMPA, 1993; WEIMER, Gunter. O
positivismo gaúcho e sua arquitetura. Porto Alegre: UFRGS/Faculdade de Arquitetura, 1985.
24
MAGALHÃES, Beatriz de A. ANDRADE, Rodrigo F. Belo Horizonte... p. 89.
28

para o positivismo é mobilizar os sentimentos, e, para isso, o recurso é justamente um


espetáculo de cores e formas e a abundância visual associada à loquacidade retórica. O
positivismo tem aspectos racionais, científicos, sistêmicos, mas também tem características
que visam ao subjetivo e ao emocional. Uma pesquisa sobre as idéias de Araão Reis talvez
mostre que a apropriação que fez do positivismo visou aos aspectos científicos e, quem sabe,
que não leu ou ignorou o texto comtiano sobre as artes.
Nenhum dos trabalhos apresentados, nem o de Milliet, examina a formação dos
artistas positivistas, tampouco suas redes pessoais, sua adesão ao positivismo e as
conseqüências para sua produção artística. Décio Villares e Eduardo de Sá, os dois principais
artistas tratados nesta tese, foram estudantes da Academia Imperial de Belas Artes, formados
na concepção acadêmico-neoclássica de artes e com estágio na Europa (Itália ou França). O
que os distingue dos outros artistas da época é a adesão à doutrina positivista como religião e
como filosofia estética. Assim, é fundamental saber: qual é o significado de ser positivista
para ambos os artistas? Aderir ao positivismo interferiu na condição de artista e na obra?
Uma obra de arte é mais positivista quando realizada por estes dois artistas? Os artistas se
valeram de suas redes pessoais, repletas de positivistas, para conseguir encomendas?
Encontram-se poucas referências a Décio Villares e Eduardo de Sá na
historiografia da arte. Duas hipóteses podem explicar por que eles não mereceram a atenção
dos críticos e estudiosos da arte: havia preconceito contra eles por serem positivistas; e suas
obras foram consideradas de má qualidade estética, principalmente as ligadas ao positivismo.
Percebe-se que a opção positivista dos artistas determinou o julgamento que os críticos e
historiadores da arte fizeram de seus trabalhos. Corrobora isto o fato de que os estudos de
história e crítica de arte estiveram por muito tempo voltados para a análise da qualidade
estética e do estilo do artista, o que não é objetivo desta tese, e os artistas em foco não se
encaixavam no padrão de excelência visual requerido pelos apreciadores e críticos de arte. Por
exemplo, avaliando a trajetória de Villares, Campofiorito afirma que o positivismo
disciplinou esteticamente o artista e que seus quadros passaram a ser simples esboços25, ou
seja, não eram obras de arte acabadas e, portanto, não mereciam análise. Gonzaga-Duque,
crítico de arte contemporâneo de Villares, tece críticas às suas opções estéticas, sua maneira
de pintar e seus temas, dizendo que o artista tem talento evidente, o que faz muitas pessoas

25
CAMPOFIORITO, Quirino. História da pintura brasileira no século XIX. Rio de Janeiro:
Pinakotheke, 1983. p. 111.
29

esquecerem “a sua pequena observação da realidade e a sua leve orientação intelectual.”26


Interessa-nos compreender como essas críticas estéticas influenciaram o meio artístico no qual
Villares e Sá atuavam, o sistema de contratação dos artistas e a concepção estética das obras.

A controvérsia entre positivismo político e positivismo religioso

É recorrente, na bibliografia sobre o positivismo, a oposição entre religião e


política, ou a alusão de que o positivismo político não comportou o religioso e que a Religião
da Humanidade era apenas um culto no Templo, praticado por um reduzido e fanático grupo
de adoradores de Comte e Clotilde de Vaux. É importante frisar que esta divisão não é própria
do comtismo, mas da apropriação que seus seguidores fizeram da obra de Comte. É certo que,
ao final da vida, Comte criou a Religião da Humanidade, mas todo seu sistema filosófico ―
científico e político ― convergiu para a síntese religiosa. Como mostra Annie Petit, em texto
que trata da sistematicidade do pensamento comtiano, desde os primeiros escritos até a
criação da Religião da Humanidade, são os adeptos do positivismo que se dividiram quanto a
aceitar as proposições religiosas de Comte ou não.27 No Brasil, tal divisão também ocorreu
com a fundação da IPB e a contínua radicalização ortodoxa de seus diretores, cuja militância
angariou inúmeros dissidentes e inimigos. Era recorrente a frase: “Sou positivista..., mas não
religioso.”
Fruto desse ambiente de cizânia, surgiu entre as décadas de 40 a 60 do século XX
uma bibliografia sobre o positivismo (que chamaremos de clássica) que estabeleceu uma
classificação/diferenciação entre positivismo religioso e político. Tal controvérsia, como
mostra Ângela Alonso, era própria dos envolvidos no debate acerca do positivismo e não do
pensamento de Comte. Ela evidencia que grande parte da bibliografia acadêmica sobre o
positivismo no Brasil adotou de forma acrítica as nomeações dos positivistas da época,
principalmente as categorias de quatro autores, alguns deles envolvidos com a própria
doutrina: Cruz Costa, Antonio Paim, Silvio Romero e Clovis Beviláqua.28 Acrescentaria ainda
a esta lista de autores, Ivan Lins.29 Esses autores seguiram influenciando a produção
acadêmica, e hoje se encontra consolidada a idéia do caráter político, científico e sistêmico do

26
GONZAGA-DUQUE, Luis. A arte brasileira. Campinas: Mercado de Letras, 1995. p. 189. (1. ed.
1888).
27
PETIT, Annie. História de um sistema: o positivismo comtiano. In: TRINDADE, Hélgio (org.). O
Positivismo – teoria e prática. Porto Alegre: Ed. da Universidade/UFRGS, 1999. p. 13-47.
28
ALONSO, Ângela M. Idéias em movimento: a geração 1870 na crise do Brasil-Império. São Paulo:
Paz e Terra, 2002. p. 21-49.
29
LINS, Ivan. História do Positivismo no Brasil. 2ª. Ed. São Paulo: Cia. Ed. Nacional, 1967.
30

positivismo como sinônimo de laicidade e anti-religiosidade. Contudo, muitas das práticas


culturais apontadas nos textos comentados aqui ― comemorações fúnebres, erguimento de
monumentos, exaltação a heróis, festas cívicas ― são uma síntese de atividades religiosas com
fins políticos, se foram inspiradas de fato pelo positivismo. Esta discussão é importante aqui
porque não há religião sem culto, e não há culto sem imagens, mesmo na religião cívica dos
positivistas.
Realizando um grande inventário dos positivistas no país e de suas ações como
intelectuais, profissionais liberais, dirigentes políticos, essa bibliografia clássica destacou as
atividades políticas, legislativas e administrativas e pouco (para não dizer nada) revelou sobre
as práticas culturais de cunho cívico. Grande número de positivistas promoveu atividades de
culto a heróis nacionais, festas e cortejos cívicos nas datas dos feriados nacionais,
comemorações fúnebres e uma conseqüente produção de imagens, suporte visual a estas
atividades; e estas formas de manifestações do positivismo não foram abordadas por esta
bibliografia. Entende-se que estas práticas culturais muito se aproximaram do positivismo
religioso, e as pesquisas para esta tese apontam que a IPB não teve exclusividade em sua
promoção, tampouco esteve isolada ao realizá-las. A ausência de referências a estas atividades
sugere que os críticos do positivismo, imersos no debate doutrinário, como destaca Alonso,
visaram minimizar a presença do positivismo religioso no país e, com isso, reproduzir a
divisão dos seguidores entre ortodoxos e os apenas simpáticos. Não se está afirmando que
todos os positivistas brasileiros foram religiosos, mas alertando que esta classificação
dicotômica não permite que se perceba o mundo político impregnado de religiosidade cívica.
A conseqüência dessas tendências de análise sobre o positivismo para os estudos
sobre arte positivista é que se carece de um inventário de obras, que os artistas positivistas não
foram biografados e que se desconhecem os textos produzidos por Décio Villares e Eduardo
de Sá. Agravando as dificuldades, a documentação do governo federal na Primeira República
sobre a produção artística ainda não foi organizada no Arquivo Nacional, permanecendo em
um fundo não identificado.
A cultura política brasileira da Primeira República, sobretudo, é apresentada pela
historiografia ainda mais como cívico/laica positivista quando as análises convergem para
explicações sobre o nacionalismo e o sentimento patriótico, amparando-se nas indicações de
Hobsbawn acerca da invenção das tradições, de Anderson sobre a formação de comunidades
imaginadas e de Ozouf sobre festas cívicas nascidas na Revolução Francesa. O positivismo de
Comte serve para explicar tais atitudes nacionalistas expressas na cultura política da Primeira
República, mas não é sua única matriz. Se a cultura cívico/patriótica brasileira assumiu um
31

caráter nacionalista, isto ocorreu por conta da apropriação e adequação das idéias positivistas.
A doutrina positivista, em sua essência, não é nacionalista. Comte foi um crítico
contemporâneo das ações colonialistas das nações européias nos continentes africano e
asiático no século XIX, censurou também as festas revolucionárias francesas organizadas por
David, os grandes homens reverenciados no Calendário Positivista não eram somente
franceses e a tarefa final do positivismo convergia para a comunhão de uma sociedade
universal e única, acima das diferenças nacionais.30 Portanto, recorrer a positivismo comtista
exclusivamente para explicar tais fenômenos é procedimento inconsistente. É necessário se
conhecer a apropriação que os diferentes positivistas brasileiros fizeram das idéias comtianas
no que concerne à promoção cívica e às idéias nacionalistas.
O culto cívico positivista, pelo menos aquele propugnado por Comte, não é
nacionalista porque cultua os grandes homens e não é individualista porque reverencia a
heróis nacionais. Desse modo, é necessário ler Comte e ler os leitores de Comte; estes
últimos, no desejo de encontrar uma solução civilizatória para o Brasil recém republicano,
misturavam ao comtismo idéias também contrárias a ele. Ao realizar um balanço sobre as
pesquisas no tema “positivismo no Rio Grande do Sul”, nas últimas três décadas, Boeira
alerta para o perigo do assunto parecer familiar demais ao historiadores, obliterando um real
questionamento sobre a natureza desse fenômeno, suas transformações e diferentes formas de
apropriações.31
Problema recorrente encontrado nos trabalhos aqui discutidos é certa confusão
entre o positivismo de Comte e o positivismo dos brasileiros. A situação se agrava quando se
pretende abordar o positivismo sem ler Comte e seus leitores. Tal procedimento é necessário
não para provar uma coerência entre doutrina e a aplicação de modelos, mas para entender
como as idéias se transformam. Portanto, seria proveitoso ler o que os funcionários da SOP
escreveram sobre os prédios e monumentos construídos pelo poder público estadual do Rio
Grande do Sul, o que Justo Chermont ou a comissão promotora do monumento à República
em Belém do Pará escreveram para justificar a obra, o que disse Lauro Sodré sobre Carlos
Gomes, o que Décio Villares e Eduardo de Sá escreveram sobre Tiradentes, o que Araão Reis
disse ao idealizar a cidade de Belo Horizonte. É nesses registros que se pode apreender algo
sobre o pensamento positivista, impregnado nas obras artísticas. O interessante seria não

30
TODOROV, Tzvetan. Nous et les autres ― la réflexion française sur la diversité humaine. Paris:
Seuil, 1989. p. 52.
31
BOEIRA, Nelson. O Positivismo do Rio Grande do Sul ― questões pendentes e temas para pesquisa.
RECKZIEGEL, Ana Luiza Setti; FÉLIX, Loiva Otero (org.). RS: 200 Anos ― definindo espaços na
história nacional. Passo Fundo: UPF Editora, 2002. p. 238-246.
32

medir coerência doutrinária, mas entender os ajustes quando as idéias são apropriadas.

Os capítulos

Percebe-se que a historiografia que tratou do tema da produção artística positivista


o fez em três tópicos, geralmente os abordando de forma separada, sem estudar as relações
entre eles: os encomendantes, os artistas e as obras. Variadas combinações foram possíveis: às
vezes, era a obra e o artista positivista que expressavam o positivismo, independentemente do
que professasse seu encomendante; em outras, era o positivismo assumido pelo encomendante
que legava o atributo de positivista à obra, à revelia de seu conteúdo ou do artista a
confeccioná-la; outras vezes, apenas a obra aludia ao positivismo, e nem o encomendante nem
o artista eram positivistas.
Parece que nenhuma dessas combinações é prescindível para a análise se tivermos
como foco a produção de arte positivista. Estudar a produção implica considerar uma contínua
influência recíproca entre três elementos: artista, encomendante e obra. Acrescenta-se ainda a
importância de inserir essa produção no mundo das artes, não positivista, buscando entender
os elementos da crítica, da incompreensão e da iconoclastia.
No primeiro capítulo, busca-se explicar a proposta estética de Comte, cuja
intenção final era desencadear um “renascimento positivista.” Visa-se explicar a proposta
estética comtiana, integrada ao conjunto de idéias acerca das artes de meados do século XIX.
Esta proposta estética pode ser melhor compreendida se analisarmos os artistas homenageados
por Comte no Calendário Positivista e os autores de história da arte recomendados na
Biblioteca Positivista. O mundo das artes francês de meados dos oitocentos ajuda a elucidar as
críticas comtianas a alguns artistas e a certas políticas das artes. Foi na observação desse
universo cultural artístico que Comte balizou sua proposta estética, sobretudo na função social
das artes; afinal, o positivismo era um projeto de regeneração social. A base deste capítulo
será o texto comtiano Aptitude Esthétique du Positivisme (doravante denominado apenas
Aptitude Esthétique), publicado no primeiro volume do Système de Politique Positive.32
Comte, em menor medida, e seus seguidores na França estiveram envolvidos na
promoção de obras de arte alusivas ao positivismo. Este será o tema do segundo capítulo, que
focaliza as iniciativas artísticas dos positivistas franceses. Visa-se saber que obras tiveram o
patrocínio desse grupo, como foram as campanhas de subscrição, como seus integrantes

32
COMTE, Auguste. Aptitude Esthétique du Positivisme. In: Système de Politique Positive. Tomo I.
Paris: Librairie Positiviste, 1912.
33

estabeleceram as escolhas dos artistas e as discussões em torno do seu conteúdo. A principal


fonte, neste capítulo, são os artigos sobre arte publicados em revistas positivistas francesas: na
Revue Occidentale Philosophique Sociale et Politique, dirigida inicialmente por Pierre
Laffitte, e na revista dirigida por Émile Littré, chamada La Philosophie Positive. Com este
capítulo, visa-se principalmente responder se e como os franceses foram sensíveis a esta parte
do pensamento comtiano referente à promoção artística.
Dois artistas brasileiros se assumiram como artistas positivistas: Décio Villares e
Eduardo de Sá. Visa-se compreender, no capítulo III, como eles se tornaram positivistas, e,
para isso, realiza-se uma pequena biografia de ambos, destacando principalmente aspectos
que revelam seus estudos de arte, suas redes profissionais/pessoais, a forma de adesão ao
positivismo e suas intervenções políticas, tentando estimular também no Brasil um
“renascimento positivista.” Qual o status destes artistas no seu meio profissional antes de se
tornarem positivistas? Por quais mestres-artistas foram influenciados? Como a crítica de arte
os considerava? Essas são algumas perguntas que balizam esse capítulo.
No quarto capítulo, buscaremos analisar o meio artístico no Rio de Janeiro, onde,
primeiro, a Academia Imperial de Belas Artes ― AIBA, e, depois, a Escola Nacional de Belas
Artes ― ENBA, centralizavam boa parte do ensino artístico e eram núcleos da formação de
redes pessoais que integravam governo e mundo artístico. Visa-se responder qual o status
profissional dos artistas positivistas nesse meio. Norteia este capítulo o episódio chamado,
pela historiografia, disputa entre Modernos X Positivistas, no qual Décio Villares teve papel
decisivo ao propor a extinção da ENBA.
Quem eram os encomendantes de Décio Villares e Eduardo de Sá? Essa é a
questão que responderemos no capítulo cinco. O mundo artístico brasileiro, principalmente
nos primeiros anos republicanos, era bastante competitivo. Os contratos para obras artísticas
oficiais se ampliaram, e associações, clubes e governos estaduais e municipais passaram a
contratar artistas, mas as oportunidades estavam vinculadas às redes pessoais. Com quem os
artistas positivistas se relacionavam? Visa-se saber quais suas ligações com pessoas dos
setores públicos e esferas políticas com capacidade decisória para encomendar obras de arte.
Destacam-se três tipos de encomendantes de obras vinculadas ao positivismo: alguns
militares, membros da IPB e governantes do Rio Grande do Sul. Leva-se em conta, por
exemplo, que havia competição entre alguns positivistas na promoção de certas obras. Estes
são encomendantes que, além de estarem no círculo de influência dos artistas positivistas e
apreciarem a doutrina, muitas vezes conheciam a proposta estética de Comte, chegando a citá-
la em seus textos. A questão aqui é esta: O que esses encomendantes conheciam e produziam
34

sobre o positivismo e como essas idéias influenciaram as negociações sobre o conteúdo das
obras de arte que promoviam? Visto que se analisa o positivismo como prática política,
também se tem por objetivo situar as atividades cívicas desses diferentes encomendantes e os
usos de objetos artísticos para realizá-las.
Chega-se então às obras. No sexto capítulo, procurar-se-á discutir as negociações
entre encomendantes e artistas para definir o conteúdo das mesmas. Selecionou-se um
conjunto de obras, principalmente monumentos públicos confeccionadas pelos artistas Décio
Villares e Eduardo de Sá. Serão analisados os monumentos a Benjamin Constant, Tiradentes e
Floriano Peixoto, no Rio de Janeiro, e a Júlio de Castilhos, em Porto Alegre. Discute-se que
os encomendantes, algumas vezes, tinham condições de negociar o conteúdo das obras; em
outras, os artistas conseguiam expressar o positivismo de forma sutil. Em outros casos, as
obras poderiam não expressar o positivismo explicitamente, mas seus usos políticos poderiam
lhes atribuir valores da doutrina. Este capítulo também tratará das práticas culturais em que
essas obras de arte estão imersas: cortejos cívicos e fúnebres, inaugurações, decoração de
prédios públicos.

Você também pode gostar