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PORCOS AO MAR
UMA INTERPRETAÇÃO CRÍTICA SOCIAL, POLÍTICA, ECONÔMICA
E IDEOLÓGICA DE MARCOS 5,1-20
GOIÂNIA
2010
1
PORCOS AO MAR
UMA INTERPRETAÇÃO CRÍTICA SOCIAL, POLÍTICA, ECONÔMICA
E IDEOLÓGICA DE MARCOS 5,1-20
GOIÂNIA
2010
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RESUMO
ZURAWSKI, Silvio Rogerio. Porcos ao Mar: Uma interpretação crítica social, política,
econômica e ideológica de Marcos 5,1-20. Dissertação (Programa de Pós-graduação
em Ciências da Religião) – Pontifícia Universidade Católica de Goiás, Goiânia, 2010.
Esse trabalho tem por objetivo a construção de uma exegese e hermenêutica do tex-
to de Marcos 5,1-20, onde é narrada a libertação de um geraseno possesso em es-
pírito impuro. Os evangelhos sinóticos, especialmente a tradição de Marcos, apre-
sentam uma grande quantidade de narrativas onde Jesus aparece em atividade e-
xorcística. Ele liberta pessoas e comunidades da possessão de espíritos impuros
e/ou demônios. A utilização do método histórico-crítico de leitura da bíblia permite
perceber dois momentos históricos no texto de Marcos 5,1-20: a memória central da
atividade exorcistica de Jesus e o contexto da comunidade de Marcos. Nos anos 66-
70 a comunidade marcana sofre com a reocupação da Palestina por parte das legi-
ões militares romanas e enfrenta uma crise interna com a aceitação e entrada de
gentios na Igreja nascente e em sua organização. Na narrativa realista de exorcismo
de Marcos 5,1-20, por meio da atuação de Jesus, no plano simbólico-ideológico, as
forças do mal estariam sendo vencidas. Com o emprego de dados histórico-
geográficos, imagens militares e símbolos, Gerasa, Decápole, legião e porcos, as
estruturas sociais, econômicas, políticas e ideológicas do império romano parecem
ser endemoninhadas. Com o afogamento dos porcos no mar e o envio de ex-
endemoninhado geraseno, no plano das representações e do imaginário, a comuni-
dade marcana venceria o mal e proporia a entrada e envio de gentios ainda no mi-
nistério público de Jesus. A leitura fundamentalista dos textos bíblicos e o movimen-
to de demitologização deveriam manter as dimensões sociais, econômicas, políticas
e ideológicas na exegese e interpretação das narrativas de exorcismos.
ABSTRACT
ZURAWSKI, Silvio Rogerio. Pigs into the Sea: Social, Political, Economic and Ideo-
logical critical interpretation of Mark 5,1-20. Dissertation (Postgraduate program in
Religious Sciences) – Pontifical Catholic University of Goiás, Goiânia, 2010.
This work aims to build an exegesis and hermeneutics of the text of Mark 5,1-20,
which narrates the liberation of a Gerasene possessed by an unclean spirit. The syn-
optic gospels, especially Mark’s tradition, have very many stories where Jesus ap-
pears in exorcism activity. He frees people and communities from possession of un-
clean spirits and/or demons. The use of the historical-critical method of reading of the
Bible allows to see two historical moments in the text of Mark 5,1-20: the central
memory of Jesus’ exorcism activity and the context of Mark’s community. In the years
66-70, the Markan community is suffering from the reoccupation of Palestine by the
Roman military legions and faces an internal crisis with the acceptance and entry of
Gentiles into the early Church and its organization. In the realistic exorcism narrative
of Mark 5,1-20, through Jesus’ performance, on the symbolic and ideological plane,
the forces of evil were being overcome. With the use of historical and geographical
data, military images and symbols, Gerasa, Decapolis, legion and pigs, the social,
economic, political and ideological structures of the Roman Empire seem to be de-
mon-possessed. With the drowning of the pigs in the sea and the sending of the for-
mer demon-possessed Gerasene, in terms of representations and imaginative uni-
verse, the Markan community would overcome evil and propose the entry and send-
ing of gentiles still in the public ministry of Jesus. The present work also demon-
strates that a fundamentalist reading of the biblical texts, as well as some demytholo-
gizing works, helped to keep the social, economic, political and ideological dimen-
sions absent in the exegesis and interpretation of the exorcism narratives.
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO .........................................................................................8
2.2.1 Delimitação..............................................................................................17
3.4 RESUMINDO...........................................................................................69
5 CONCLUSÃO .........................................................................................89
REFERÊNCIAS.........................................................................................................94
1 INTRODUÇÃO
gelhos, para propor novas leituras e acessos às narrativas de exorcismos, que vão
simbólica que está presente neste texto bíblico. Trata-se da narrativa de um exor-
uma pessoa, próximo à região de Gerasa (Mc 5,1). De forma geral, vamos construir
simbólico-ideológicas de Jesus que nos permitem captar e ordenar a crítica que ele
deste texto que sempre ressaltou o confronto entre satanás/diabo e seus exércitos
De acordo com a visão apocalíptica, essa batalha entre o bem e o mal (Deus
grandes fileiras para o confronto escatológico. Com isso, o mal enraizado nas estru-
co-social.
Dessa forma, teremos que entrar nas discussões em torno do Jesus Histórico.
pensarmos que, pelo menos, o núcleo narrativo de Marcos 5,1-20 remonta ao minis-
tério de Jesus? Qual ou quais partes teriam sido inseridas pela comunidade e com
qual intenção?
cos 5,1-20. Lançaremos mão, mesmo que não de modo pleno, do método histórico-
texto. Com esses recursos, esperamos elaborar alguns apontamentos de crítica tex-
revelação divina na história. Esse primeiro passo pode ser nomeado de intra-textual,
cance.
mais ainda, que possa ressaltar o próprio de cada narrativa, especialmente os deta-
ser trazida para a terra e mais especificamente para o contexto histórico do tempo
Numa breve indicação extratextual, com base no historiador judeu Flavio Jo-
zada de Marcos 5,1-20. Neste contexto, poderíamos entender que o evangelista pre-
tendia apresentar a boa nova de Jesus Cristo, o Filho de Deus (Mc 1,1) também pa-
ra o universo gentílico.
zação. Trata-se de uma abordagem literária das escrituras e uma compreensão ad-
elaborar uma critica da historicidade dos eventos narrados, baseada nos avanços da
ras tradicionais, apontando novos agentes, práticas e aspectos das narrativas, mui-
da narrativa marcana.
13
Crítica Textual, Crítica Literária e Crítica das Formas, eles nos ajudam a melhor
compreender o texto em seu contexto literário, fornecendo bases para nos contra-
para o português deste texto de Marcos não apresentam grandes diferenças, pe-
mos. 4 Mesmo assim, precisávamos utilizar uma tradução mais literal. Para isso, con-
1
Definição de método retirada de Pontifícia Comissão Bíblica (2004, p. 36). Outras definições e a-
presentação dos métodos: Egger (1994, 238p); Wegner (2002 414p); Silva, (2000, 515p). O docu-
mento da Pontifícia Comissão Bíblica também discute e apresenta os métodos exegéticos.
2
Temos como modelos de interpretação tradicional o estudo de Dattler (1977, p. 25-26) que coloca
nitidamente uma leitura realista do texto: “sacrifício de vara de porcos” , “diálogo de Jesus e o demô-
nio”, “A legião de demônios é obrigada a pedir favores”. No comentário Bíblico da Loyola, Philip Van
Llinden (1999, p. 54) comenta sobre as possíveis visões do povo da cidade: além de ter visto o pos-
sesso sentado e vestido: “É de presumir que também vejam dois mil porcos flutuando no mar”. Balan-
cin (1991, p.71-73), embora reconheça a legião como as forças militares romanas, alude ao confronto
Jesus e o demônio. O próprio Harrington (1997, p. 790), apesar de trazer muitas informações históri-
cas e geográficas, constrói reflexões sobre o confronto real de Jesus com o demônio.
3
Aparato crítico são as notas explicativas colocadas na parte inferior do Novo Testamento grego, que
indicam as variantes do texto original para uma mesma passagem bíblica, conforme diferentes ma-
nuscritos, cf. Wegner (2002, p. 39).
4
Traduções comparadas: BÍBLIA DE JERUSALÉM (1994). BÍBLIA SAGRADA. Edição Pastoral
(1991). BÍBLIA SAGRADA. Antigo e Novo Testamento (1993). BÍBLIA DO PEREGRINO. Novo Tes-
tamento (2000).
14
frontamos a tradução feita por Luigi Schiavo 5 com algumas traduções interlineares 6
e elaboramos uma tradução literal do texto que será ponto de referência no decorrer
2.1.1 Texto
5
Como se trata de uma obra inédita de Schiavo (1999, p. 236), a numeração de páginas citada po-
derá não corresponder. Observação válida para todas as citações dessa obra.
6
Luz (2003, p. 123-125) utiliza o texto grego de Nestle (26 ed.), ver ainda tradução interlinear de La-
cueva (1984, p.154-156).
15
19.E não o deixou, mas lhe diz: “Volta para tua casa, para com os teus e anun-
cia a eles, quão grandes coisas o Senhor fez por ti, e como teve misericórdia
de ti”.
20. E partiu, e começou a proclamar na Decápolis, as tão grandes coisas que
Jesus fez por ele, e todos ficavam admirados.
(Gergej) (Lc 8,26) e Gadara, Gadar (Gadarhnw/n) (Mt 8,28). Como Jesus envia o ex-
fora dessa grande região, como veremos em mapas no segundo capítulo (p. 53),
21) coloca a ainda associação de Gerasa com Garash, “expulsar”, “lançar fora”, que
John P. Meier (1998, p. 171) afirma que nos manuscritos antigos de Mateus,
créscimo posterior. É com a introdução desse trecho que começam a surgir as di-
vergências, já que Gerasa ou a terra dos gerasenos ficava distante do lago e mais
7
Meier (1998, p.173) apresenta alguns autores que discutem a questão da localização geográfica.
16
Metzger (apud MEIER, 1998, p. 190, nota 17, cap. 20) cita três razões em
texto paralelo em Mateus 8,28, pois segundo ele o evangelho de Mateus era o e-
senos ser uma correção, proposta inicialmente por Orígenes, e a forma própria do
8
Ver ainda Egger (1994, p. 52 e 158) que coloca a delimitação e a estruturação do texto em unidades
menores na fase preparatória ou na primeira orientação acerca do texto. Expediente semelhante em-
prega Silva (2000, p. 67).
17
2.2.1 Delimitação
do, sentido (EGGER, 1994, p. 53). Seguiremos indicativos de tempo, tema, e princi-
tual.
“E chegaram do outro lado do mar, na terra dos Gerasenos” (Mc 5,1). Jesus,
chegar à outra margem, e são surpreendidos por fortes ventos e altas ondas no mar
de”. Neste fim de tarde, início de noite, parece que acontecerão a passagem do mar
da cura da filha de Jairo (4,21-24. 35-43) e a cura da mulher com hemorragia (4,24b-
34). Somente em 6,1 temos outro marco temporal e espacial: Jesus parte para sua
terra, e quando chega dia de sábado começa a pregar na sinagoga (Mc 6,2).
Segundo Myers (1992, p. 234. 240), os dois lados do mar da Galiléia simboli-
pelo mar na noite, nas duas tempestades que Jesus acalma (Mc 4,37; 6,48) e na
Altíssimo, (Iesú huié tu theú tu hypsístu Mc 5,7). Este último é um “título que se
27) e segundo Richter Reimer (2011, p.115 ) a expressão ‘Deus Altíssimo’ (theu
gión) como o nome dos espíritos impuros completam a apresentação de Gerasa co-
mo cidade gentílica.
esforço, a luta para unir os mundos judeu e gentio. Freyne (1996, p. 55) julga propo-
sital a utilização por Marcos do termo “mar” (thálassan) para indicar o lago de Gene-
saré, pois ele proporcionaria um padrão simbólico e mítico bem mais rico. Represen-
taria o caos e também o Mar Mediterrâneo por onde vieram as forças de ocupação
romana.
ministério de Jesus. Contudo será que ele pretendia, na sua atividade, ligar o univer-
so judaico com o gentílico? Esse é um dos elementos que apontam para um possí-
cessidades diversas.
19
perícope; e em 5,18 – “E entrando ele no barco”–, o final. Por outro lado, Mc 5,1 faz
voltado para o outro lado do mar”. Este parece ser o momento histórico da narrativa:
Jesus na sua atuação ou atividade messiânica está a sós com os discípulos, apro-
fundando em que consiste a sua messianidade, reconhecida depois por Pedro (Mc
8,29: “Tu és o Cristo”), e também pelo centurião romano após a morte de Jesus na
utilizada na metodologia popular de leitura bíblica. 9 Wegner (2002, p. 85) fala que
uma perícope tem “pé e cabeça”, ou seja, forma um todo orgânico com inicio e fim
posteriores.
mente divididas em três grupos, conforme a escolha do critério de divisão: uns op-
tam pela questão geográfica, outros autores preferem o tema do drama gerado em
torno do segredo messiânico, e ainda aqueles que utilizam como referencial a rela-
lho de Marcos em duas grandes partes, embora possam introduzir outras divisões e
9
Expressão utilizada por Mesters (1984, p. 13).
20
vangelho. Ched Myers (1992, p. 232ss), coloca nosso texto numa subdivisão que
chama de “a construção que Jesus faz de uma nova ordem social” (Mc 4,36–8,9).
ares e João Luiz Correia Júnior (2002, p. 13): 1) o desaparecimento da primeira ge-
pessoas que não conheciam a cultura judaica, e isso é motivo de crise e conflito; 3)
o judaísmo está em guerra com Roma: o texto sem dúvida está em relação com a
guerra, quer tenha sido escrito imediatamente antes da guerra, quer durante ou logo
depois.
Neste sentido, no texto de Marcos 5,1-20 aparece dois desses fatores, a atu-
ação de Jesus em região pagã ou gentílica, com a cura, acolhida e envio de um ge-
raseno como aparece ao final da pericope e também todo o conflito com as forças
Portanto, temos reflexos de duas grandes crises dos cristianismos originários: a crise
– gentios).
10
Ver formas de estrutura do evangelho de Marcos em Delorme (1982, p.13); Harrington (1997, 778);
Myers, (1992, p.147); Balancin (1991, p.7). Cássio Murilo Dias da Silva (2000, p. 275) aplica a meto-
dologia de Exegese bíblica em um texto de Marcos (Mc 4,35-41), por isso cita diversas estruturas,
formuladas por inúmeros autores. Veja ainda Kümmel (1982, p. 103) e Richter Reimer (2011, p. 80)
21
rington (1997, p. 778) propõe uma divisão em quatro partes, seguindo o conteúdo: 1)
(14-17); e 4) o homem libertado (18-20). Fossion (apud SCHIAVO, 1999, p. 40) divi-
5,14-20.
Schiavo (1999, p. 34) estrutura a perícope em cinco partes. Propõe uma or-
Schiavo.
redator, dos espíritos impuros com as legiões romanas e destas com os porcos. Esta
dade da cena e das condições da pessoa. Diversas vezes tinham tentado detê-lo
11
Myers (1992, p. 238) chama a atenção para a repetição do verbo parakelein, empregado em diver-
sas pessoas verbais e sempre seguido da expressão autón, porém não faz referência dessa recor-
rência com a estrutura da perícope.
22
para dominá-lo” (5,4) e, apesar disso, “vendo Jesus, correu e prostrou-se” (5,6). Es-
sa descrição é comovente (MEIER, 1998, p. 174), mas deve-se contar com a possi-
de libertação e cura aos gentios, executada pelo próprio Jesus, e caracterizada tam-
bloco pelo reconhecimento de seu nome e de sua condição divina por parte do espí-
rito impuro (5,7), pela ordem que ele dá ao espírito (5,8), e ainda no modo como Je-
sus consegue arrancar o nome da “legião” (5,9). Por fim, a “legião” lhe suplicava (pa-
rekálei autón) para que não a mandasse para fora da região (5,10).
A súplica (parekálei autón) dos espíritos impuros para entrarem nos porcos
(5,12) continua dando intensidade à força de Jesus, que tem seu ápice na permissão
para que os espíritos impuros entrem nos porcos (5,13), como também indica Schia-
vo (1999, p. 36).
cos com os espíritos impuros, incluindo a fuga dos porqueiros (5,14) e a repercussão
de suas ações nos campos e cidade, tanto que saíram para ver o acontecido. A no-
a suplicar para que possa continuar com Jesus (5,18), mas este não o permite, envi-
ando-lhe em missão para anunciar (apángueilon) na região o que Jesus fizera por
a morte dos porcos (5,14), o que fora endemoninhado passa a anunciar (keryssein)
ção de uma estrutura concêntrica com dois paralelismos antitéticos, ou seja, dois
soas e da ‘legião’, isto é, recusa e conflito com Jesus. Vejamos a estrutura concên-
trica e os paralelismos:
suplica a Jesus para não sair da região (b) e a coletividade suplica para que Jesus
saia (b’). O centro aponta para a identificação dos espíritos impuros com as legiões
Embora seja uma estrutura não tão bem elaborada, ela permite duas afirma-
rio romano, por meio da utilização dos termos “legião” (legion) e porcos (choiron).
Sabemos que a falta de coesão pode ser verificada nas duplicações, contra-
glosas ou adendos explicativos. Portanto, como nos diz Egger (1994, p. 160), esse
textos.
dança de conteúdo: “E chegaram do outro lado do mar”, indica a presença dos dis-
cípulos, mas estes não aparecem em momento algum na perícope. Somente Jesus
Em 5,2 temos uma palavra mencionada uma única vez no evangelho de Mar-
cos, “veio ao seu encontro” (hypéntesen). 13 Este mesmo versículo indica para a exis-
12
Ver definições e aprofundamentos em torno da coesão e integridade em Wegner (2002, p.99); Silva
(2000, p.174); e Egger (1994, p.160).
13
Detalhes da narração, como quantidade de citações de palavras, presença de hapax legómena,
veja Schiavo (2000, p. 24) e Programa Bible Works, Versão 5.0 em CD-ROM. Veja também a Con-
cordância (1994)
26
mim e ti” e no comentário do verso 8. A partir de 5,9 passam a “ser muitos”, abrindo
uma única vez no Novo Testamento: nos versículos 3 e 4: “tinha sua morada” (katoi-
de noite e de dia” (kai dia pantós nyktós kai heméras). Encontramos também repeti-
diálogo e no embate pela descoberta mútua dos nomes, temos uma glosa ou co-
mentário do narrador em Mc 5,8: “Pois de fato havia dito a ele: ’sai espírito imundo
deste homem”, único indício de ação exorcística de Jesus. O termo “sai” (exélthe)
uso de latinismo (MYERS, 1992, p. 238), termo derivado da língua latina. Volta-se à
narração descritiva a partir do versículo 11, com a entrada em cena da vara de por-
27
8,30 e Lc 8,32.
características lexicais. Os espíritos impuros não querem sair da região (5,10), entre-
mente dois mil (5,13). Trata-se de muitos porcos a serem contados em tão pouco
tempo! Gundry (apud SCHIAVO, 1999, p. 30) afirma que uma vara de porcos não
o que acontecera aos porcos e ao endemoninhado, bem como a saída das pessoas.
Por hipótese consideraremos que saíram da cidade, pois as pessoas dos campos já
estavam fora.
mesmo significado. Jesus promove uma positiva libertação, tirando o perigo de vio-
lência do endemoninhado, mesmo assim, pedem para que Jesus saia da região.
Mais adiante, teceremos uma hipótese sobre quem e por que teriam pedido para
Por fim, em 5,18-20 Jesus dialoga com aquele que fora endemoninhado e o
na Decápole as grandes coisas que o Senhor, em sua misericórdia, fez por ele (pe-
póieken kai eléesen). Aqui (Mc 5,19) Jesus é chamado de “senhor” (kyrios) e as o-
rios ou adendos ao texto de Marcos 5,1-20. Aparecem muitos comentários que pro-
narrador passa e explicar a informação dada no versículo 3 que nem mesmo com
cadeias podiam prender o homem em espírito impuro. E por isso, muitas vezes ti-
tes e ninguém era suficientemente forte para dominá-lo, porque era muito forte, a-
brindo assim caminho narrativo para a introdução de onde vinha tanta força, dos
2.000 demônios.
cas e reclamações da pessoa possuída em espírito impuro para que Jesus não a
ca tal postura, afirmando a expulsão do espírito: “De fato Jesus havia dito: Sai, espí-
soa possessa em espírito impuro, para contar a existência da manada de porcos que
narrativa com o episódio da entrada do espírito impuro nos porcos nos versículos 12
e 13.
eventos e fatos precedentes. Além disso, ele enriquece a narrativa com detalhes,
29
com uso de diferentes fontes. Meier (1998, p. 172) define Mc 5,1-20 como uma des-
Aceitando-se a teoria das duas fontes (Marcos e a fonte Q) como base para
Mateus e Lucas, é muito difícil chegar às possíveis bases literárias de Marcos. Além
seria o primeiro Evangelho, marcado por essas tradições orais e memórias. Ao lado
de Marcos haveria uma fonte independente que contém uma coleção de ditos (logia)
de Jesus (Mt 8,11-12, cf. Lc 13, 28s; Mt 6,9-13, cf. Lc 11,2-4) sugerida pela primeira
14
Sobre as teorias das fontes, ver Wegner (2002, p. 106); Theissen e Merz (2002, p. 45). Estes auto-
res chegam a propor algumas coleções de materiais tradicionais, orais e escritos, que o redator de
Marcos teria colecionado. Entre eles estaria o bloco de narrativas de milagres de Mc 4-6, no qual está
inserido nosso texto. Veja também Kümmel (1982, p. 36); Meier (1992, p. 50), entre outras inúmeras
obras que tratam do tema das fontes.
30
textos de Marcos, pois não possuímos as fontes que lhe serviram de base e em que
medida ou como essas fontes foram conservadas e modificadas pelo redator (SOA-
hipóteses. É nas reflexões sobre as fontes que vamos incluir alguns indícios do que
1998, p. 122).
Meier (1998, p. 173; p. 175) chama a atenção para o fato de que o “exorcis-
uma cidade pagã e o único milagre de Jesus vinculado concretamente a uma cidade
da Decápole. Isso o leva a afirmar que Jesus realmente teria realizado um exorcismo
Por outro lado, os detalhes da narrativa, como o episódio dos porcos e a iden-
Mais adiante vamos tentar aprofundar esse evento histórico particular não
ja, a retomada violenta de Jerusalém pelas tropas romanas entre os anos de 66-70
marcada pela tradição oral mesmo que frágil e hipotética, que por sua vez é profun-
Meier (1998, p. 192, nota 28) aponta para o texto de Is 65,1-5, especialmente
sos; come carne de porco e tem no seu prato ensopado de carne abominável”. No
de é narrada a morte dos cavalos e do exército do faraó do Egito no mar dos juncos
com a cidade desolada e as portas comidas pelo fogo, que poderia bem ser a des-
crição da tomada de cidade de Gerasa por parte das forças militares romanas, como
supostos ambientes de origem de nosso texto e marcas deixadas por seus autores.
sus. Poderia ser uma lenda popular conservada na memória e tradição oral dos dis-
cípulos. A identificação dos porcos com a ocupação militar romana com seus legio-
nários indicaria que o texto foi influenciado e construído no período da guerra judai-
ca. Além disso, Marcos 5,1-20 conteria indícios da coerção promovida por Herodes
32
Antipas para que judeus povoassem Tiberíades, cidade construída por ele nas mar-
ainda o material particular de cada narrativa Com isso, daremos seguimento às dis-
cussões acerca das fontes do texto de Marcos 5,1-20, como também abordaremos
situação.
- O rogo para que Jesus mandasse demônios, espíritos impuros, para manada de
porcos.
- Permissão de Jesus.
lago).
- O ex-endemoninhado pede para ficar com Jesus. Jesus não aceita que o ex-
- Apresentam o envio para casa daquele que fora endemoninhado para anunciar o
- A pessoa sai a proclamar, em Marcos e Lucas, tudo que o senhor fez por ele.
- Omite o noticiário do fato nos campos, somente na cidade se faz o anúncio do que
- Não descreve a situação dramática dos dois endemoninhados e não usa o termo
legião.
são/dominação, e três vezes comenta a nova situação daquele que fora endemoni-
35
nhado: eles vêem o endemoninhado sentado, vestido e sóbrio, ele que tinha tido a
- Aparece o envio do que fora endemoninhado para casa e para os seus e para pro-
clamar o que o senhor fizera por ele; o envio é feito especificamente para a Decápo-
le.
- O possesso andava sem roupas e era possuído com freqüência e impelido para
lugares desertos.
- Comentário em seguida ao termo “legião”: porque eram muitos demônios que havi-
Mateus constrói uma narrativa mais simples e objetiva. Aparecem dois ende-
moninhados furiosos que impediam que as pessoas passassem por aquele caminho.
Chamam a Jesus de Filho de Deus que veio para atormentá-los antes do tempo. A
fuga dos porqueiros se dá para a cidade, de onde saem todas as pessoas exclusi-
vamente para rogar a Jesus que se retire do território deles. Trata-se simplesmente
(Mt 8,28).
36
Não se fala nada a respeito da situação dos dois possuídos, nem da Legião, nem do
para Mt a localização geográfica e a Decápole não interessa muito: este milagre po-
ção do possesso em espírito impuro, que mais adiante é nomeado de legião. É muito
notícia se espalha tanto nos campos como na cidade, de onde saem as pessoas,
que por causa do temor, suplicam para que Jesus deixe o seu território.
dizer que a terra dos gerasenos estava do lado oposto da Galiléia. Ressalta-se que
o homem possesso em espírito impuro é da cidade, andava sem roupas e não habi-
tava em casa alguma e constantemente era impelido pelo demônio para lugares de-
sertos. Lucas mantém o termo “legião”, indicando que eram muitos demônios que
entravam na pessoa, mas não específica o seu número, 2.000, como faz Marcos. O
afogamento dos porcos com a legião se dá no lago, e por fim, Jesus insiste com a
pessoa liberta para que volte a sua casa e conte tudo o que Deus fizera por ele ou
Schiavo (1999, p. 58) afirma que casa e deserto são temas típicos da teologia
munidade e se faz presente Jesus ressuscitado (Lc 24,13-49). A pessoa, para ser
37
libertada tem que refazer o caminho do povo antigo (Êxodo), de João Batista e de
Jesus: ir para o deserto, se libertar das amarras do diabo, fazer a experiência do en-
contro com Jesus, para voltar para a cidade e nas casas anunciar tudo isso. É muito
Marcos, que foi utilizado por Mateus e Lucas. Mateus reconstruiu de forma mais bre-
ve, enquanto Lucas repete muito elementos da narrativa marcana, embora ambos
tois mnémasin) “cortar e quebrar as cadeias, gritar” (kradzon) “ferir-se com pedras”
38
Myers (1998, p. 238) chama atenção para o fato de que a narrativa de Mc 5,1-
20 está repleta de imagens ou termos militares, a começar por “legião” (legión) . Ou-
tras importantes são: “correntes ou grilhões”, possivelmente postas nos pés (pedais),
ron), “mandar, enviar, escoltar” (pémpson) “permitir, dispensar, ordem para batalha”
tantes oficiais do Império Romano. Isso pode ser verificado em At 12,6-7; 21,33;
mente em prisioneiros de guerra: prisão de Sansão por parte dos filisteus (Jz 16, 21);
o rei Davi relatando como morreu Abner sem se defender, embora não estivessem
amarradas suas mãos e nem seus pés presos em grilhões (2 Sm 3,34); prisão do
reis Sedecias por parte dos Babilônios (2 Rs 25,7); Generais Assírios puseram ferros
e cadeias em Manassés (2Cr 33, 11); No Salmo 105,18 louva a ação de Deus na
história da aliança, mesmo com José que teve os pés afligidos com grilhões e ferros
39
ao pescoço; e por fim em Jeremias 52, 11 que retoma a prisão de Sedecias que foi
atado com cadeias de bronze (MAGGI, 2003, p. 136). Em muitas dessas prisões de
olho do inimigo.
Deste modo, na região de Gerasa na Decápolis, onde Marcos situa este exor-
Outro campo semântico faz referência a Jesus, mesmo que de forma indireta
Jesus, somente o titulo dado pelo espírito impuro: Filho do Deus altíssimo. Não são
entre Jesus e o espírito impuro, e ainda a força dos verbos, demonstram a grandeza
pírito impuro e o grau de tensão que envolve todo o cenário de Mc 5,1-20. Trata-se
pessoa em espírito impuro irrompe do mundo da morte, dos sepulcros. Tem aspecto
amedrontador e ninguém pode prendê-lo. Num quadro pintado com cores tão vivas e
ros, demônios, não aparece na narrativa de Mc 5,1-20. Além de ser usado nas narra-
vação, censura. Às vezes, como vimos, para repreender quando Jesus expulsa os
demônios (Mc 1,25; 9,25), dissipar a febre (Lc 4,39); silenciar a tempestade (Mc
não anunciem ou publiquem o que Jesus fizera por eles. E ainda, epitimao se refere
quando Jesus ordena a saída do espírito impuro (Mc 5,8) é empregado unicamente
ele expulsa o espírito impuro da sinagoga. Jesus ordena a saída do espírito impuro
expulsar demônios, é empregado o termo ekballo, lançar fora, expulsar, enviar para
fora. Essa palavra tem significância teológica tão-somente com a expulsão dos de-
mônios. Jesus com a autoridade de Deus (Mc 1,24; Mt 12,28, Lc 11,20), mostrou
que era mais forte que os demônios/espíritos impuros. Eles tinham que se render e
Em Mc 5,6 diz que assim que a pessoa possessa em espírito impuro viu Je-
sus, mesmo de longe, correu e prostrou-se diante dele. Trata-se do termo grego
o reconhecimento de sua divindade, aquele que pode agir com onipotência divina. E
sesso em espírito impuro solicita, esconjura, horkídzo, para que Jesus não o ator-
demônios (MUNDLE, 1980, 1256), indicando assim seu poderio contra as forças do
mal.
das elas a súplica, pedido, rogo, apelo, é dirigido a Jesus e por diversas persona-
gens no decorrer da narrativa. Duas vezes a legião súplica a Jesus: que não a
mandes para fora da região (5,10), e outra vez, a legião implora para que Jesus a
envie para dentro dos porcos. As pessoas que saíram da cidade, depois do anúncio
feito pelos que guardavam os porcos, pedem a Jesus que ele deixe os seus confins,
fronteiras, limites (5,17). E por fim, aquele que fora endemoninhado solicita para que
possa partir junto com Jesus, mas este não o permite. Em todas as partes dos sinó-
porcos e depois eles partem em disparada para o mar. Ele sai da região conforme a
súplica das pessoas que vieram até ele depois de terem ouvido o anúncio dos por-
ao entrar na barca.
que se aloja nos porcos, das pessoas que veem o que ele fizera com os porcos e
com o que fora endemoninhado. Além, é claro, da nova condição daquele que fora
42
que foram ver o acontecido, a admiração de todos com a nova situação do que fora
aquele que recebeu o direito de agir, tem a jurisdição, as credenciais, está habilitado
pelo próprio Deus para agir em seu nome. Já dynamis é essa autoridade sendo e-
xercida com poder, capacidade, força dinâmica provinda de seu interior que cura,
liberta. Jesus com seus milagres, curas, obras e palavras faz acontecer o Reinado
2000, p. 1691).
Marcos, que inicia as frases com ‘e’, ao invés de utilizar particípios ou orações su-
bordinadas.
43
Klaus Berger (1998, p. 13) define a forma do texto como: “a soma de suas ca-
nero literário particular. Por isso inclui as diversas narrativas de milagres em outros
Para Wegner (2002, p. 165), toda comunicação, escrita ou falada, segue for-
importância ele segue a classificação das formas dos milagres de Rudolf Bultmann.
ções de origem dos textos, ele destacou como ambientes de origem: pregação co-
autores que estudam e aprofundam os gêneros literários das narrativas dos evange-
5,1-20 dentro do que ele chama de histórias de milagres, mesmo que reconheça que
autor propõe que Mc 5,1-20 se encaixaria no gênero das novelas, devido à gravida-
vada por Pesch (apud SCHIAVO, 1999, p.60). De relato de exorcismo fazem parte o
encontro de Jesus com o possuído, tentativa de defesa do demônio, ordem para sair
(Mc 5,8), saída do demônio (Mc 5,13), povo maravilhado (Mc 5, 15.20b), e também a
fama do exorcista libertador (Mc 5, 14a. 18-20a). Enquanto relato de milagre da cura
ação do que fora endemoninhado: sentado, vestido e em são juízo, e por fim a rea-
ção das testemunhas. Além disso, haveria pontos característicos e bem específicos
45
de ritual de exorcismo: pedido do nome (Mc 5,9), súplica dos demônios (Mc 5,10.12),
Por sua vez Berger (1998, p. 277-278) afirma que narrativas de milagres, tan-
pessoa de (Mc 5,2-5); 2) Luta entre o demônio e o exorcista, ambos usam a mesma
arma, sendo que em Mc 5,7-10 ocorre à tentativa da descoberta recíproca dos no-
John P. Meier (1998, p.170) identifica nas narrativas sinóticas, além das falas
Inventário mais detalhado dos elementos constituintes das narrativas de milagres, veja Theissen e
15
Mt 15,21-28.
tivas de exorcismos:
identidade;
exorcistica de Jesus;
autoridade de Jesus.
47
Annen (apud SCHIAVO, 1999, p. 62) já definia o texto de Marcos 5,1-20 como
cismos proposto mais tarde por Meier: apresentação detalhada da situação do pos-
Diante do exposto, podemos concluir com Schiavo que Marcos 5,1-20 é talvez
A pessoa que fala ou escreve almeja alcançar alguns objetivos, tem finalidades
Egger (1994, p. 133) coloca como função dinâmica das narrativas a capacidade de
narrativas se revelam como convites para a ação, ou, em outras palavras, são ‘mo-
Para Myers (1992, p. 140), Marcos atinge esses objetivos por meio da constru-
ção de narrativas realistas, nas quais ele apresenta os milagres de Jesus (curas e
exorcismos) como ações simbólicas. Como conciliar narrativa realista e ações sim-
bólicas?
aspecto popular, a vida das pessoas comuns, a fala delas e para elas, com o drama
apocalíptico situado exatamente neste mundo real no qual elas vivem. Assim, carre-
simbólico. Assim, “Também em pontos em que suas cenas e eventos podem ser
considerados até certo grau inventados, eles mantêm elevado nível de verossimi-
integridade e coesão textual (Item 2.2.3, p. 27), se mostra como mediadora. Este
faz uma seleção de fontes, com base na tradição oral, memórias, tradição vétero-
caso, uma narrativa de exorcismo. Entendemos que este exorcismo está ambienta-
do, portanto, numa narrativa realista, verossímil, plausível. Com isso, busca conven-
cer os ouvintes e leitores/as que por meio da ação de Jesus o mal está sendo venci-
do. Neste sentido, os dados históricos, geográficos, imagéticos podem ter desperta-
ras do simbólico, ou seja, dizem mais do que aquilo que mostram ou enunciam. Car-
rativa por parte dos ouvintes e leitores/as. Estes eram aspectos concretos da vida
cotidiana, que remetiam para experiências marcantes vividas pelas pessoas no con-
texto de dominação por parte das forças imperiais romanas, ou seja, conflito Palesti-
sus em Gerasa na Decápole. Partindo das teorias de Barthes, (apud MYERS, 1992,
p. 40) Myers explicita a idéia de guerra de mitos. Mito é entendido num sentido mais
16
Veja textos e interpretações de mito, no livro que registra as conferências principais no III Congres-
so Internacional em Ciências da Religião (RICHTER REIMER, Ivoni e MATOS, Keila, 2009) e nos
respectivos Anais (RICHTER REIMER, Ivoni; REIMER, Haroldo; FERREIRA, Joel A., 2010).
51
sintetizadas nas tropas militares ou legiões. São as lutas sociais e políticas articula-
dos mitos, representação, imaginário, que trazem para a realidade sofrida da domi-
nação romana a força do evangelho de Jesus (Mc 1,1) com suas palavras e ações.
Myers (1992, p. 41) além de utilizar o termo linguagem simbólica para explicitar
vas evangélicas, emprega também o termo ideologia. De início, ele reconhece que
se trata de um termo problemático que tem uma longa história de elaboração e utili-
pos humanos, ou classes, que precisam fortalecer sua condição social, tanto na di-
também indica que tal termo poderia se substituído por visão de mundo, estrutura de
discurso narrativo de Marcos 5,1-20, que brota da realidade ou eventos sociais histo-
Jesus com exorcismos e curas “eram poderosas não porque desafiavam as leis da
Como vimos, Marcos 5,1-20 é uma narrativa realista ou que possui plausibili-
tado por Wegner (2002, p. 329): “Nem tudo que se encontra escrito nos evangelhos
que medida tais dimensões históricas adquirem ou são revestidas de valor ideológi-
co/simbólico.
dicando o mais provável que tenha acontecido, mas raramente se chega a certezas
res geográficos, (Gerasa e Decápole) e das imagens militares (‘legião’ e porcos) pa-
sus e quais estariam mais vinculados ao momento vivido pelas comunidades cristãs
da palavra grega ‘Gerasa’. Ela deriva da raiz semítica GARSU (da raiz hebraica em
man. Está situada num lugar fértil, perto de um manancial chamado atualmente Ge-
Figura 1
Fonte: www.hellenica.de/.../Antike/Ort/Decapolis.gif
55
vel que Mc 5,2 não sugere uma distância tão grande da beira-mar (HARRINGTON,
1997, p. 790), pois o texto afirma que assim que Jesus desceu da barca veio ao seu
Mediterrâneo poderiam encostar-se a uma região tão longínqua? Além disso, Jesus
teria que passar antes por Gadara, talvez por Hippus e pelo Rio Yarmuk.
seu afogamento? Ou talvez quem redigiu não tinha tanto conhecimento da região?
descrição geográfica questiona a facticidade de Marcos 5,1-20. Por que, então, es-
gina-se da expressão grega deka polis e significa ‘dez cidades’. Era o nome dado ao
território situado ao oriente da Palestina, composto por uma liga de dez cidades,
ra com o deserto, como para impedir a emigração e agressão dos judeus. Tratava-se
Os nomes destas cidades sofrem muitas variações, mas a lista mais aceita é
a seguinte, que também pode ser observada no mapa acima: Damasco, Filadélfia,
Rafana, Citópolis, Gadara, Hipos, Dion, Pela, Gerasa e Canata. Citópolis é a única
56
1983, p. 224).
dânia. Seus limites são a norte o rio Yarmuk e o território da Ituréia (sul da Síria); a
oeste entra, com a cidade de Citópole, na baixa Galiléia; a sul confina com a Peréia,
e o reino Nabateu; e a oeste vai até o deserto da Arábia (SHIAVO, 1999, p. 82).
ele, uma unidade política coesa. Prova disso é que no II séc. d.C. seguiram destinos
cidades dos vizinhos judeus e árabes, junto com outros elementos, como o econô-
mico e o interesse político-estratégico dos romanos, fez com que tivessem a mesma
origem e identidade.
Vaage (1996, p. 82) comenta que cada cidade da Decápole teria sua história,
mas todas seriam marcadas pela influência do helenismo desde o tempo das con-
cialmente Gádara, Hipos, Pela e Citópolis, a Galiléia ficou exposta a tudo o que era a
cultura helenística. Assim, segundo ele, não houve uma separação ou fronteira cultu-
ral impermeável que dividisse os dois lados oeste e leste do Lago de Genessaré.
mem, segundo Rabuske (2001, p. 260), relevância política. Pois estamos num terri-
minação.
primeiro capítulo, apresentamos a tese de Meier (1998, p. 172). Ele propõe que Je-
sus teria realizado um exorcismo na região de Gerasa. Tal acontecimento foi con-
tura de Marcos, para Myers (1992, p. 67), apresenta um dilema fundamental. Encon-
tram-se representados nele dois mundos: “um mundo é o que ele narra e o outro é o
que ele vive”. Não há correspondência entre ambos, embora o contexto amplo de
cos.
Todos eles são escritos pós-pascais e por isso refletem, por um lado, a his-
tória de Jesus de Nazaré, marcada pela memória de grupos e comunidades
que criam ser ele o Messias prometido. Por outro lado, estes textos refletem
simultaneamente as realidades das comunidades, suas percepções e con-
cepções, bem como suas formas de construção de identidade e de organi-
zação eclesial na sociedade mais ampla do século I (RICHTER REIMER,
2008, p. 46)
de Jerusalém. A forte crítica ao templo presente na narrativa marcana não teria sen-
colha de Marcos por situar a narrativa do exorcismo de Jesus em Gerasa, onde ele
fato:
À luz disso, Marcos pode ter escolhido a região dos gerasenos como local do
camente político (MYERS, 1992, p. 238). Jesus enfrenta os demônios num território
sob administração direta dos romanos, no qual havia forte presença militar, conforme
forte influência e presença de tropas romanas de fronteira, por que teve que ser in-
Jerusalém. Ao menos que, animados pela Revolta Judaica, grupos rebeldes também
59
Os textos bíblicos estão marcados pelo momento histórico no qual foram for-
mados. Míguez (1990, p. 80) considera o Império Romano e suas forças de domina-
ção como o interlocutor principal dos evangelhos, pois ele determinou a estruturação
romana. A paz romana é querida e planejada pelos altos escalões, mas estabelecida
eram obrigados a se comportar, diante da força das legiões, como clientes colabora-
rebelde, fora da lei (MALINA, 2004, p. 18). Neste sentido, compreendemos a força
quando Otávio, filho adotivo de Júlio César, foi aclamado imperador e salvador que
trouxera a paz ao mundo, depois de uma década de disputas internas pelo poder
veremos, entre os símbolos postos nos estandartes das legiões estaria um porco ou
javali.
representava uma forte crítica à dominação política romana, com a formação das
póleis, a nomeação direta dos demônios com o termo “legião” (5,9) reforça a conde-
com os porcos, talvez para identificar a “legião” referida, ou aproveita para incluir em
do a permissão para tomar posse de uma vara de porcos (Mc 5,12-13). Depois de
ões”, despenhadeiro abaixo, morrendo todos afogados no Mar (Mc 5,13). Como
14,8). A explicação para tal preceito era de que, apesar de possuírem os cascos
guns indicativos bíblicos de rituais religiosos secretos, realizados com carne de por-
tura, que seriam marcados pelo helenismo. Para implementar essa política, ordenou
a imolação de porcos em Jerusalém e nas aldeias de Judá (1Mac 1,47). Certo Elea-
zar em 2Mac 6,18, prefere a morte a comer carne de porco. Da mesma forma, foram
mortos sete irmãos ao se recusarem a tocar na proibida carne suína (2Mac 7,1).
gradação possível para o filho, que humilhado retorna à casa paterna (MACKENZIE,
1983, p. 734). Portanto, a criação e o manejo de porcos não seria encontrado nas
terras de Israel.
Assim, Mc 5,1-20 destaca uma região pagã ou gentílica. Schiavo (2000, p. 83)
7,6 encontramos: "não deis aos cães o que é santo, nem atireis as vossas pérolas
aos porcos, para que não as pisem e, voltando-se conta vós, vos estraçalhem". Sen-
tido semelhante encontra-se na expressão de 2Pd 2,22: "a porca, apenas lavada,
rada. Além disso, Pesch e Derrett (apud MEIER, 1998, p. 191, nota 21) explicam que
encaminham com mais propriedade para uma leitura simbólica do episódio dos por-
cos.
caindo no mar como uma sátira ou caricatura política, que zomba das pretensões do
Império de Roma. Marcos, narrando o exorcismo de Jesus, com a expulsão dos de-
sua face epocal representada nas forças militares, políticas e econômicas do Império
REN, 2002, p. 202). Mesmo que o número de 2.000 porcos seja figurado, pois como
vimos no primeiro capítulo a quantidade máxima de animais era de 150 a 200 unida-
(1999, p. 30), sintetizando outros autores estrangeiros, propõe que 2.000 seria a
da cidade de Gerasa, contingente que acompanhou Lucio Ánio, por ordem do Impe-
rador Vespasiano, como vimos acima no relato da Guerra Judaica, redigido por Flá-
vio Josefo.
A ‘paz’ interna e nos territórios ocupados, garantida pela ação das tropas,
dos com o afogamento dos animais, correram para comunicar o acontecido, de-
monstrando grande temor. Eles provavelmente teriam que prestar contas aos pro-
Mar Mediterrâneo. Por ele, chegava grande quantidade de produtos a Roma, capital
mental. O poder militar garantia o domínio político (pax romana), a ampliação territo-
17
Informações sobre a economia vigente no Império Romano da época, veja Richter Reimer (2006, p.
72-89), com vasta bibliografia.
18
Richter Reimer (2005, p. 91), partindo do de Lc 16,1-8, esclarece a escravidão como instituição
jurídico-legal no Império Romano, que incluía a existência de administradores (oikónomos/epítropos)
encarregados de cuidar e de fazer aumentar o capital de seu senhor. No nosso texto, os porqueiros
poderiam ser esses administradores preocupados com a sua condição após as perdas reais (os 2000
porcos) de seus senhores. Possivelmente eles não conseguiriam manter a função de administradores
e seriam rebaixados em sua condição socioeconômica. Por isso, a tamanha preocupação, pois esta-
vam atrelados à lógica do sistema de dominação imperial.
65
tarização ou presença de moedas nas mais longínquas regiões. Elas eram cunhadas
imagens.
comércio, garantidas pela força do exército, a figura do porco era utilizada como
dade de Gerasa (WARREN, 2002, p. 282). Além disso, Carter Warren cita que o
nam as estruturas imperiais. Com a destruição dos animais, o evangelista quer res-
de interpretação?
ro, pela legião (de demônios), por espíritos imundos ou por um demônio em especifi-
co, já que por três vezes, na parte final da narrativa, é chamado como endemoni-
Crossan (1994, p. 352) percebe e exterioriza essa dupla leitura: pelo critério li-
terário, temos a cura de um indivíduo, mas é difícil não perceber o simbolismo embu-
humano oprimido.
Para Maggi (2003, p.135), a situação da pessoa que vai ao encontro de Jesus
e tal que pode ser considerado três vezes impuro: como pagão (habitante da gerasa
tante dos sepulcros, lugares considerados de maior impureza para a religião hebrai-
ca.
universo ritual ou cultual (DATTLER, 1977, p. 32). Será que Marcos mantém essa
5,15.16.18), termo que aparece 13 vezes no Novo Testamento e que significa: “ser
possuído por um demônio ou espírito impuro” (HÜTTER, 2000, p. 339). Hütter vai
Alguém com um espírito imundo ou impuro não é mais senhor de si, outro age por
tentava a ordem social judaica dominante (MYERS, 1992, p. 183). Mateos e Cama-
1,21-28. Estes seriam: “forças ou princípios ativos que procedem do exterior do ho-
mem; se este aceita sua influência, eles agem em seu interior”. São forças ideológi-
sepulcros), possuídos de uma violência fanática (em espírito impuro). Marcos estaria
bocava na autodestruição (ferindo-se a si mesmo com pedras), sem com isso abalar
teriam tentado a libertação, mas são esmagados pelas forças militares de Vespasia-
cos 5,1-20 liberta os dominados que tentam usar das mesmas armas de destruição
dos dominadores. Contudo, nos relatos da Guerra Judaica, elaborados por Flávio
possibilidade. A pessoa em espírito impuro seria um dos judeus que viviam na De-
cápole. Ele apresenta que desde os tempos dos asmoneus, quando Alexandre Ha-
neu ocupou a região oriental do Jordão, começou uma intensa judaização, várias
Seria ele, portanto, um destes judeus, talvez do interior mais do que da cida-
As cadeias, com as quais tentam amarrá-lo, não apontam para uma situação de es-
entre um indivíduo, com suas crenças, tradições, trabalho, família e uma sociedade
pela força repressora romana, mediante a utilização das legiões ou poderio militar.
das pequenas aldeias, explorados como mão de obra escrava, representados nos
69
porqueiros da nossa narrativa. Aqui também se inserem os grupos rebeldes que ten-
que ninguém podia dominar esse espírito impuro: “Este exorcismo constitui, assim,
outro episódio-chave na luta de Jesus, o mais forte, para ‘amarrar o homem forte’.
3.4 RESUMINDO
primeiro capítulo, que abordou a questão da critica literária, quanto a análise da his-
Marcos 5,1-20.
concretos, nos quais Jesus teria realizado um exorcismo. São recursos redacionais
com as legiões romanas. Ele também antecipa a missão junto aos gentios, propondo
que o próprio Jesus realizou sua atividade messiânica em terras pagãs e enviou um
de Marcos.
gando seus representantes no mar (Mc 5,13). Ele alarga os horizontes de Israel, a-
firmando que o Messias veio para todos os povos (5,18-20). “Por meio de seu evan-
simbólica narrativa do que em usar nomes de lugares reais” (MYERS, 1992, p. 235).
cipalmente do século II a.C. ao século I d.C. Além disso, desde os inícios do cristia-
discípulos, baseadas em mandato do próprio Jesus (Mc 3,15; 6,7; 16,17). Tudo isso
Histórico (MEIER, 1997, p. 224). Qual seria o significado dos exorcismos para Jesus
e seus seguidores?
por Jesus nos Evangelhos sinóticos, das quais podemos citar: Mc 1,23-28 par.; Mc
3,24-30 par.; Mc 5,1-20 par.; Mc 7,24-30 par.; Mc 9,14-29 par.; Mt 12, 22-23; Lc
xorcismos propriamente ditos (1,23-28; 5,1-20; 7,24-30; 9,14-29); três sumários que
apresentam Jesus como aquele que expulsa muitos demônios (1,34. 39; 3,11); al-
gumas cenas de envio, nas quais ele confere tal poder a outros (3,15; 6,7. 13; 9,38-
41; 16,17). Theissen e Merz (2002, p. 305) consideram que, assim como o Reino de
19
Ver quadros completos das narrativas de milagres e exorcismos nos evangelhos, acompanhados
ou não de curas, em Rabuske (2001, p. 38); VV. AA (1982, p. 32); Schiavo e Silva (2000, p. 125);
Richter Reimer (2008, esp. p. 90-115).
72
Jesus. Marcos, escrito bem perto dos acontecimentos da guerra judaica, conserva,
ria, com o confronto decisivo entre o bem e o mal, Deus e o Demônio, os grupos ju-
da Reinado de Deus, que com seu poder vem para governar seu povo. A prática e-
xorcista, junto com toda a atividade milagrosa, era necessária para demonstrar que
cidade dos detalhes da narrativa, que estão muito ligados aos motivos, temas e for-
tipos de milagres:
mundo dos meios populares do século I. A maior parte dos males que se abatiam
73
Jesus, havia uma proliferação demoníaca sem precedentes” (BIELER apud RA-
Deus, através de Jesus, estaria libertando as pessoas dos poderes demoníacos que
Jesus foi um exorcista judeu do século I. A expulsão dos demônios fazia parte
nios, Jesus operava de forma diversa dos exorcistas de sua época. Ele não impunha
as mãos, nem empregava fórmulas mágicas, rituais ou objetos religiosos. Jesus re-
Deus.
ralela em Mt 3,28) tem sua autenticidade confirmada ou aceita pela maioria dos críti-
cos (MEIER, 1997, p. 224. 227). Nela, temos a fundamentação da autoridade de Je-
diam, e sim fazer penitências, orações e sacrifícios: “Pois os homens ficam doentes
religioso judaico ou meios instituídos para tal, ou seja, as curas aconteceriam atra-
de terapias e exorcismos, comprova que havia uma tríplice exclusão das pessoas
possuídas e ou doentes, como também uma tríplice inclusão construída por Jesus
temos primeiramente a doença (exclusão da saúde física), a doença por sua vez era
75
antigo e novo testamento, apresenta a doença como punição divina ou castigo, prin-
cipalmente as doenças mais visíveis como a lepra, que geravam enorme exclusão e
marginalização.
uma tríplice inclusão. Ele cura (devolve a saúde física) perdoa e liberta em nome de
Deus (Mc 2,1-9), liquidando com a noção de culpa e castigo. Jesus questiona os có-
simbólica individual, Theissen (1989, p. 82) e Myers (1992, p.187, 239) os interpre-
tam como ações simbólicas públicas. Seriam a forma que Jesus encontrou para fa-
zer frente à miséria enfrentada pelo povo simples da época, na sua maioria campo-
neses endividados pela carga tributária exigida pelas diversas camadas de gover-
toridade com a qual ele expulsa os demônios. Essas lideranças judaicas o acusam
reino ou casa dividida subsistirá, reponde Jesus, e completa: “Ninguém pode entrar
então poderá roubar a sua casa”. Expulsando os demônios, Jesus amarra “o homem
356).
Deus. “O tempo está realizado e o reino de Deus está próximo, convertei-vos e cre-
expulsão dos adversários, são os primeiros sinais realizados por Jesus em uma ci-
levantar os fracos e com eles fazer acontecer uma ordem alternativa” (WENGST,
1991, p. 100).
78
comunidades, com suas memórias das ações de Jesus, ocupam papel fundamental
situações de conflito socioculturais. Elas servem para construir e legitimar uma nova
exércitos romanos.
14). O Evangelho de Marcos teria sido redigido durante a revolta judaica 66-70,
cos 5,1-20 que Jesus Cristo, na sua atividade messiânica, atua em terra pagã, con-
nal, e Horsley (2004, p. 74) fala em sul da Síria, Vaage (1998, p. 13) propõe a região
sirio-palestina. 20
Richter Reimer (2011, p. 69-70) afirma que nas últimas décadas tem sido co-
gitada a possibilidade de Pella ter sido a cidade/o lugar, onde esse evangelho foi
para a práxis de Jesus, de acordo com o evangelho de Marcos. Além disso, contem-
narrativa marcana.
Jesus veio de Nazaré da Galiléia e foi batizado por João no Rio Jordão (Mc
1,9), depois que João foi preso Jesus veio para Galiléia proclamando o Evangelho
Galiléia (Mc 1,28) e uma grande multidão da Galiléia o seguia (Mc 3,7). Jesus pro-
mete que depois de ressuscitar precederá aos discípulos na Galiléia (Mc 14, 28). No
20
Cf. Kümmel (1982, p. 117) em relação à datação da escrita, se diz satisfeito por situá-la por volta do
ano 70. Vemos um pouco da controvérsia em torno da data e local da redação do evangelho de Mar-
cos nos seguintes autores: Clévenot (1979, p. 71), seguindo a leitura materialista do Evangelho de
Marcos elaborada por Fernando Bello, coloca Roma como o local da escrita e especifica o ano de 71,
logo após a destruição de Jerusalém. Neste ponto, ambos recebem críticas de Myers (1992, p. 549):
“Existem, contudo sérias falhas e incoerências na maneira como Bello aplica seu método materialista.
Por exemplo, depois de empregar boa dose de esforço na descrição social da Palestina, Bello nos diz
que o Evangelho de Marcos foi escrito em Roma!” Delorme (1982, p. 10-11) confirma que o evange-
lho de Marcos foi escrito por pessoas vindas do paganismo, assume uma data anterior ao ano 70, em
torno do ano 64, porém afirma a cidade de Roma como local da redação. Esse autor nos coloca no
centro das discussões sobre a datação, que seria o capítulo 13 de Marcos. Para alguns autores, esse
capítulo teria sido redigido antes do ano 70 e, para outros, depois.
80
dia da ressurreição, um Jovem vestido de uma túnica branca e sentado sobre o tú-
mulo de Jesus, pede às mulheres que anunciem aos discípulos e a Pedro, que Je-
sus os precede na Galiléia. E lá na Galiléia eles o verão, assim como ele os tinha
dito (Mc 16, 7). Essas eram as mulheres que serviam a Jesus enquanto esteve na
da Palestina por parte das tropas romanas, chefiadas por Vespasiano e depois por
5,1-20 em Gerasa (5,1) na Decápole (5,20) e a utilização do termo “legião” (5,9) se-
lemento forte de nosso texto é o envio da pessoa que fora endemoninhada em mis-
sein, Mc 5,19-20).
ra endemoninhado, para que ele retorne a sua casa e anuncie todas as coisas que o
senhor fizera por ele. Encontramos aqui também o termo senhor (kyrios), citado no
evangelho de por Marcos 18 vezes. Trata-se de um termo que tem uma diversidade
Javé/Deus com sua vitória sobre as forças que atormentam e alienam as pessoas
e sua disposição para salvar, manifestada em Jesus cristo. Principalmente nas nar-
vão à cidade anunciar (apégeilan) a morte dos porcos e o que acontecera com o en-
p. 224) consideram que numa primeira redação, a atividade dos guardadores dos
porcos, era simplesmente contar ou dar noticias do que aconteceu. Na redação final,
todos ficam maravilhados. Esse termo, no contexto de Marcos indicaria que o anún-
cio estava ligado a uma experiência interior, que tornava a proclamação uma neces-
sidade. No encontro com Jesus a misericórdia de Deus ficou sendo uma experiência
real para os que foram curados e libertados. A força desse encontro era suficiente
para compeli-los a contar aos outros, sem qualquer ratificação, reconhecimento ofi-
cial para tal proclamação (COENEN, 2000, p. 1866). Proclamar a boa nova de Jesus
não é uma doutrina, mas a narração de acontecimentos históricos nos quais se faz a
experiência da vitória de Deus (SOARES e CORREIA, 2002, p. 227). O que fora en-
cimento de Jesus, está preparado para proclamar as grandes coisas que Deus reali-
anterior à páscoa, ou à morte e ressurreição de Jesus Cristo. Ela teria sido aplicada
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5,1-20. Essa constatação aponta para um momento de tensão entre campo e cidade
com os arredores judeus, tanto fora quanto dentro da Palestina. Herodes Antipas
meio social onde Jesus atuou. Contudo, não é narrada nenhuma visita de Jesus a
essas cidades helenizadas; mais que isso, há um absoluto silêncio sobre elas nos
léia, Judéia e região. O redator de Marcos deixa claro que Jesus não penetrou em
grandes cidades, sobretudo nas marcadas pela cultura grega: ele vai para as aldeias
de Felipe (Mc 8,27), a terra de Tiro (Mc 7,24.31), a terra dos gerasenos (5,1) e atra-
vessa a Decápole sem entrar nas cidades. E Jerusalém, o centro urbano do poder,
principalmente do poder religioso, conserva sua condição de cidade santa, mas que
precisa de purificação, pois se tornou covil de ladrões (11,15) e o Templo daria lugar
lém, fato evidenciado no relato da paixão. Ele foi acolhido na entrada da Cidade
próprio Jesus.
que sai para ver o acontecido com o endemoninhado e com a manada de porcos.
Mesmo percebendo a total libertação promovida por Jesus junto ao que fora possuí-
do, suplicam a Jesus para que saia da Região. “O dinheiro do comércio e a proteção
dos romanos vale mais que a pessoa” (MATEOS e CAMACHO, 1998, p. 141). Pen-
samos que talvez o temor das represálias, por parte das tropas romanas, impedia a
Jesus Cristo.
existia há muito tempo. Numa cultura marcada pela idéia do combate constante en-
estavam vencendo a batalha contra Deus. A guerra judaica, período histórico vivido
romanas, o redator de Marcos constrói uma narrativa realista com uma ação simbóli-
rência de impulsos violentos: “A guerra contra os romanos parece ter sido deslocada
no movimento cristão. Jesus envia o ex-possesso para junto dos familiares e com-
panheiros, para anunciar-lhes o que o Senhor, pela sua compaixão, fez por ele
imer (1995, p. 56), analisa eleemosyne poiein “fazer obras de misericórdia”, partindo
do exemplo da Tabita (At 9, 36). Segundo ela, essa expressão é ampla e abarca
múltiplas ações. Tem a ver com justiça e o colocar-se à disposição das pessoas em-
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ra que todos possam sobreviver no mundo injusto. Falando das pessoas que prati-
cam obras de misericórdia, a autora ilumina a que tipo de discipulado a pessoa liber-
“Pessoas praticantes sabem-se ser os braços de Deus que as coloca ao lado das
justiça. Assim, o evangelista Marcos antecipou a missão junto aos gentios, e o pró-
prio Jesus se torna o promotor da boa nova junto ao universo gentílico. Eles assu-
tica de Jesus, narrada nos Evangelhos, no nosso momento histórico. Como identifi-
são da Igreja e dos seus seguidores junto aos endemoninhados de nosso tempo?
ocupação da Palestina por parte das tropas romanas). Isso implica ou permite que
sessão e os exorcismos realizados por Jesus, conservados nas narrativas das Sa-
textos sagrados. Não existe espaço para interpretações. Para eles, as possessões e
que permanecem fechados para outras explicações. Todo o mal, como a doença,
vícios, problemas financeiros, brigas familiares, etc, é explicado pela ação dos de-
mances exorcísticas iguais às realizadas por Jesus, como estão narradas nos Evan-
gelhos, exercendo assim grande influência sob diversas camadas sociais, especial-
ção do indivíduo e da sociedade. Em ações públicas ele liberta, cura, perdoa e inclui,
duo. Theissen (1989, p. 83) observa que as possessões no Novo Testamento acon-
Richter Reimer (2008, p. 53) afirma que: “As narrativas evangélicas sobre curas e
século I”.
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Este dado foi comprovado por nós na análise de Marcos 5,1-20. Devemos,
seguidoras de Jesus, atender bem ao indivíduo e também promover a luta pela justi-
ninhado (Mc 5,18-20) coloca uma tarefa aos seguidores de Jesus, reunidos na Co-
junto com ele a libertação, principalmente nos espaços onde a vida está mais nega-
vá além dos rituais religiosos de exorcismos, com uso de água benta e esconjuros, e
nem libertam.
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5 CONCLUSÃO
duo e na esfera religiosa, nas quais espíritos impuros, encostos, demônios, seriam
dão suporte aos evangelhos sinóticos (Mateus, Marcos e Lucas). Cada qual retoma
contexto das comunidades cristãs nascentes com suas dificuldades e desafios. Essa
dupla dimensão temporal dos textos neo-testamentários pode ser percebida e apro-
com coerência de conteúdo, mas que teve construção literária a partir de diversas
com início e fim identificados e interligada com o todo da narrativa de Marcos, mas
ção do Império Romano, por meio da utilização dos termos legião e porcos.
dimensões sociais, políticas, econômicas e militares de seu tempo. Faz uma crítica
importantes a cada um. Mateus, com uma construção narrativa sucinta, mantém o
dades. Lucas repete muitos pontos da narrativa marcana, mas os amplia com locais
cismo.
Império Romano. A disputa escatológica entre Deus e Satanás adquire feições reais,
e pela atuação e palavras de Jesus, Deus estaria vencendo a batalha final contra os
e da história.
ra da Boa Nova de Jesus Cristo, o Messias Filho de Deus, ao mundo gentílico, justi-
marcana num contexto de crises e conflitos, propondo uma alternativa às forças de-
cismo, que vai além de milagre ou ação terapêutica, com seleção de dados, fontes,
memórias e imagens que mostram mais do que aquilo que anunciam. No mundo do
para os diversos trabalhos. A legião Fretensis, estacionada da Síria, que tinha como
econômicas e ideológicas.
co, com a libertação de um gentio, acolhida e seu envio em missão, temos a abertu-
e convidado a anunciar tudo o que Jesus fizera por ele junto dos seus e por toda a
Decápole.
Por isso, no contexto histórico-eclesial atual não basta fazer leituras funda-
vas a serem superados não contribui para a vitalidade das narrativas evangélicas.
comunitárias e societárias.
Com esta dissertação esperamos ter contribuído para o alargamento dos ho-
rizontes de interpretação da atuação do Jesus exorcista. Ele atua para além do âm-
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