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PONTÍFICIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE GOIÁS

DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA E TEOLOGIA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU


EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO

PORCOS AO MAR
UMA INTERPRETAÇÃO CRÍTICA SOCIAL, POLÍTICA, ECONÔMICA
E IDEOLÓGICA DE MARCOS 5,1-20

SILVIO ROGERIO ZURAWSKI

GOIÂNIA
2010
1

PONTÍFICIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE GOIÁS

DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA E TEOLOGIA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU


EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO

PORCOS AO MAR
UMA INTERPRETAÇÃO CRÍTICA SOCIAL, POLÍTICA, ECONÔMICA
E IDEOLÓGICA DE MARCOS 5,1-20

SILVIO ROGERIO ZURAWSKI

Dissertação apresentada para o Programa de


Pós-Graduação stricto sensu em Ciências da
Religião, da Pontifícia Universidade Católica
de Goiás, como requisito parcial para obten-
ção do título de mestre.

Orientadora: Profª. Drª Ivoni Richter Reimer

GOIÂNIA
2010
2
3

Aos meus familiares,


que apesar da distância sempre se mostram como um porto seguro.
Aos meus confrades, Cônegos Regulares da Imaculada Conceição,
que me ensinam a cada dia o que é conviver e respeitar as diferenças.
Agradeço aos professores,
e demais colaboradores,
ao Claude Detiene, pela tradução,
especialmente Ivoni R. Reimer,
pela paciência e dedicação na orientação e leitura deste trabalho
e pela forma como tem me ensinado a ler a Bíblia.
Muito obrigado a todos!
4

RESUMO

ZURAWSKI, Silvio Rogerio. Porcos ao Mar: Uma interpretação crítica social, política,
econômica e ideológica de Marcos 5,1-20. Dissertação (Programa de Pós-graduação
em Ciências da Religião) – Pontifícia Universidade Católica de Goiás, Goiânia, 2010.

Esse trabalho tem por objetivo a construção de uma exegese e hermenêutica do tex-
to de Marcos 5,1-20, onde é narrada a libertação de um geraseno possesso em es-
pírito impuro. Os evangelhos sinóticos, especialmente a tradição de Marcos, apre-
sentam uma grande quantidade de narrativas onde Jesus aparece em atividade e-
xorcística. Ele liberta pessoas e comunidades da possessão de espíritos impuros
e/ou demônios. A utilização do método histórico-crítico de leitura da bíblia permite
perceber dois momentos históricos no texto de Marcos 5,1-20: a memória central da
atividade exorcistica de Jesus e o contexto da comunidade de Marcos. Nos anos 66-
70 a comunidade marcana sofre com a reocupação da Palestina por parte das legi-
ões militares romanas e enfrenta uma crise interna com a aceitação e entrada de
gentios na Igreja nascente e em sua organização. Na narrativa realista de exorcismo
de Marcos 5,1-20, por meio da atuação de Jesus, no plano simbólico-ideológico, as
forças do mal estariam sendo vencidas. Com o emprego de dados histórico-
geográficos, imagens militares e símbolos, Gerasa, Decápole, legião e porcos, as
estruturas sociais, econômicas, políticas e ideológicas do império romano parecem
ser endemoninhadas. Com o afogamento dos porcos no mar e o envio de ex-
endemoninhado geraseno, no plano das representações e do imaginário, a comuni-
dade marcana venceria o mal e proporia a entrada e envio de gentios ainda no mi-
nistério público de Jesus. A leitura fundamentalista dos textos bíblicos e o movimen-
to de demitologização deveriam manter as dimensões sociais, econômicas, políticas
e ideológicas na exegese e interpretação das narrativas de exorcismos.

Palavras chave: Marcos 5,1-20, exegese, hermenêutica, exorcismos, Jesus.


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ABSTRACT

ZURAWSKI, Silvio Rogerio. Pigs into the Sea: Social, Political, Economic and Ideo-
logical critical interpretation of Mark 5,1-20. Dissertation (Postgraduate program in
Religious Sciences) – Pontifical Catholic University of Goiás, Goiânia, 2010.

This work aims to build an exegesis and hermeneutics of the text of Mark 5,1-20,
which narrates the liberation of a Gerasene possessed by an unclean spirit. The syn-
optic gospels, especially Mark’s tradition, have very many stories where Jesus ap-
pears in exorcism activity. He frees people and communities from possession of un-
clean spirits and/or demons. The use of the historical-critical method of reading of the
Bible allows to see two historical moments in the text of Mark 5,1-20: the central
memory of Jesus’ exorcism activity and the context of Mark’s community. In the years
66-70, the Markan community is suffering from the reoccupation of Palestine by the
Roman military legions and faces an internal crisis with the acceptance and entry of
Gentiles into the early Church and its organization. In the realistic exorcism narrative
of Mark 5,1-20, through Jesus’ performance, on the symbolic and ideological plane,
the forces of evil were being overcome. With the use of historical and geographical
data, military images and symbols, Gerasa, Decapolis, legion and pigs, the social,
economic, political and ideological structures of the Roman Empire seem to be de-
mon-possessed. With the drowning of the pigs in the sea and the sending of the for-
mer demon-possessed Gerasene, in terms of representations and imaginative uni-
verse, the Markan community would overcome evil and propose the entry and send-
ing of gentiles still in the public ministry of Jesus. The present work also demon-
strates that a fundamentalist reading of the biblical texts, as well as some demytholo-
gizing works, helped to keep the social, economic, political and ideological dimen-
sions absent in the exegesis and interpretation of the exorcism narratives.

Keywords: Mark 5,1-20, exegesis, hermeneutics, exorcisms, Jesus.


6

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO .........................................................................................8

2 O ENDEMONINHADO GERASENO: TEXTO.........................................13

2.1 CRÍTICA TEXTUAL .................................................................................13

2.1.1 Texto .......................................................................................................14

2.1.2 As Principais Variantes Textuais .............................................................15

2.2 CRÍTICA LITERÁRIA...............................................................................16

2.2.1 Delimitação..............................................................................................17

2.2.2 Estrutura de Marcos 5,1-20 .....................................................................21

2.2.2.1 Jesus encontra o homem em espírito impuro (Mc 5,1-6) ........................21

2.2.2.2 Jesus encontra a legião (5,7-10) .............................................................22

2.2.2.3 Os espíritos impuros encontram a legião de porcos (5,11-13) ................22

2.2.2.4 A coletividade encontra Jesus (5,14-17) .................................................22

2.2.2.5 O ex-endemoninhado encontra Jesus (5,18-20) .....................................23

2.2.3 Integridade e Coesão do Texto ...............................................................25

2.2.4 Fontes e Tradições..................................................................................29

2.2.5 Comparação Sinótica ..............................................................................32

2.2.5.1 Elementos comuns às três narrativas

(Mt 8, 28-34; Mc 5,1-20; Lc 8,26-39) .......................................................32

2.2.5.2 Afinidades de Marcos e Lucas – (Mc 5,1-20; Lc 8,26-39) .......................33

2.2.5.3 Específico de Mateus (Mt 8, 28-34).........................................................34

2.2.5.4 Específico de Marcos (Mc 5,1-20) ...........................................................34


7

2.2.5.5 Específico de Lucas (Lc 8,26-39) ............................................................35

2.2.6 Tecendo a Análise Sinótica .....................................................................35

2.2.7 Estudando o Vocabulário .......................................................................37

2.3 CRÍTICA DA FORMA...............................................................................43

2.3.1 Gênero Literário Exorcismo .....................................................................43

2.3.2 Narrativa Realista e Ações Simbólias e ideológicas................................47

3 PORCOS AO MAR: CRÍTICA DA HISTORICIDADE .............................53

3.1 CRÍTICA DA HISTORICIDADE................................................................53

3.2 UMA GEOGRAFIA SUSPEITA: A TERRA DOS GERASENOS............. 54

3.3 IMAGENS MILITARES SUSPEITAS .......................................................59

3.3.1 “Legião é Meu Nome”..............................................................................59

3.3.2 Porcos ao Mar .........................................................................................61

3.3.3 O Endemoninhado: Possuídos Pelo Demônio do Imperialismo ..............66

3.4 RESUMINDO...........................................................................................69

4 POSSESSÃO E LIBERTAÇÃO! UMA BUSCA DE SENTIDO ...............71

4.1 O JESUS EXORCISTA............................................................................71

4.2 MARCOS 5,1-20: POSSESSÃO E LIBERTAÇÃO ...................................78

4.3 A LEITURA DE EXORCISMOS HOJE .....................................................85

5 CONCLUSÃO .........................................................................................89

REFERÊNCIAS.........................................................................................................94

ANEXO 1 – Comparação Sinótica ..........................................................................100


8

1 INTRODUÇÃO

Nas performances de grupos religiosos a prática exorcistica de Jesus volta a

ser acessada e propagada por meios de comunicação, como televisão e internet. O

Jesus exorcista é utilizado para a libertação ou solução de inúmeros problemas,

possessões demoníacas e encostos que prejudicariam a vida financeira, familiar e

emocional dos fiéis. Faz-se necessário aprofundar as dimensões sociais, políticas e

econômicas e ideológicas presentes nos exorcismos de Jesus, narrados nos Evan-

gelhos, para propor novas leituras e acessos às narrativas de exorcismos, que vão

além da esfera pessoal/individual e do âmbito religioso.

Com intuito de participar desse processo de construção de leituras das nar-

rativas de exorcismos, deter-nos-emos no estudo do texto bíblico de Marcos 5,1-20,

procurando perceber e aprofundar a crítica social, política, econômica e ideológico-

simbólica que está presente neste texto bíblico. Trata-se da narrativa de um exor-

cismo, ou da ação de Jesus de expulsar espíritos impuros que se apoderaram de

uma pessoa, próximo à região de Gerasa (Mc 5,1). De forma geral, vamos construir

uma exegese e propor uma interpretação para a referida passagem bíblica.

A narrativa de Marcos 5,1-20 nos fornece imagens, figuras, posturas e ações

simbólico-ideológicas de Jesus que nos permitem captar e ordenar a crítica que ele

faz à dominação romana na Galiléia e região. O problema é a tradição interpretativa

deste texto que sempre ressaltou o confronto entre satanás/diabo e seus exércitos

com Deus, atuando através de Jesus Cristo.

De acordo com a visão apocalíptica, essa batalha entre o bem e o mal (Deus

X satanás/diabo) se daria primeiramente, e de forma preponderante, na esfera celes-

tial. A humanidade e a história do universo estariam à mercê desses seres superio-


9

res. Os enviados de satanás/diabo e de Deus estariam, inicialmente, disputando o

domínio sobre as pessoas, seus corpos e grupos humanos, formando assim as

grandes fileiras para o confronto escatológico. Com isso, o mal enraizado nas estru-

turas sociais, políticas e econômicas e ideológicas ficam livres de toda e qualquer

crítica por parte do Jesus exorcista.

A partir de Marcos 5,1-20, pretendemos participar da superação ou descons-

trução dessas interpretações. Desconstrução e reconstrução são termos que carre-

gam em si o objetivo de decompor teorias para recompô-las de forma mais dinâmica,

a fim de ampliar seu potencial explicativo dentro de um determinado contexto históri-

co-social.

Nesta pesquisa, primeiramente, apresentaremos o texto de Marcos 5,1-20, in-

terligando-o com o todo da narrativa do Evangelho de Marcos, buscando distinguir e

aprofundar o momento histórico da narrativa e o momento histórico do evangelista e

de sua comunidade. Neste sentido, ganhará importância fundamental o acirramento

do conflito Roma-Palestina entre os anos 66 e 70 e também os conflitos internos nos

cristianismos originários entre judeus e gentios.

Dessa forma, teremos que entrar nas discussões em torno do Jesus Histórico.

Ou seja, a ação de Jesus de expulsar demônios ou espíritos impuros narrada em

Marcos 5,1-20 seria invenção da comunidade ou Igreja primitiva de Marcos ou foi

parte integrante da atividade e do ministério histórico de Jesus? Existem razões para

pensarmos que, pelo menos, o núcleo narrativo de Marcos 5,1-20 remonta ao minis-

tério de Jesus? Qual ou quais partes teriam sido inseridas pela comunidade e com

qual intenção?

A força das narrativas de exorcismos, e mesmo das demais narrativas evan-

gélicas, está restrita à historicidade do evento ou á aproximação do seu sentido?


10

Que significado teológico possuíam os exorcismos no ministério de Jesus, para seus

discípulos e discípulas, seguidores e seguidoras? E com os acréscimos feitos pelo

evangelista, redator ou pela comunidade de Marcos, que significados teológicos,

sociais, políticos, econômicos e ideológicos foram agregados?

Na busca de respostas para essas inúmeras questões, no primeiro capítulo,

vamos utilizar alguns passos da metodologia exegética na análise do texto de Mar-

cos 5,1-20. Lançaremos mão, mesmo que não de modo pleno, do método histórico-

crítico ou análise diacrônica do texto. Entendemos por método exegético um conjun-

to de procedimentos científicos empregados para explicar e aprofundar determinado

texto. Com esses recursos, esperamos elaborar alguns apontamentos de crítica tex-

tual, literária e da redação, aproximando-nos mais do sentido do texto bíblico no seu

contexto, percebendo e aprofundando a compreensão sobre o que poderia ser uma

revelação divina na história. Esse primeiro passo pode ser nomeado de intra-textual,

ou seja, aprofundar o texto apontando suas (in)coerências, delimitação, fontes e al-

cance.

Inteirando-nos da construção narrativa de Marcos, vamos gradativamente to-

mando posse do seu discurso simbólico-ideológico e do significado desse discurso

para os ouvintes/leitores de sua comunidade. Para ressaltar o próprio da comunida-

de marcana, ainda no primeiro capítulo, faremos uma comparação sinótica, identifi-

cando os pontos comuns, as divergências e as particularidades das narrativas do

mesmo episódio em Mateus, Marcos e Lucas. Trata-se de uma abordagem intertex-

tual que favorece a percepção das diferenças entre as narrativas evangélicas, e

mais ainda, que possa ressaltar o próprio de cada narrativa, especialmente os deta-

lhes presentes no texto de Marcos 5,1-20.


11

Verificaremos como em Marcos 5,1-20 se concilia a dimensão realista da nar-

rativa, com personagens e lugares reais, e o emprego da linguagem ideológica e

simbólica. Logo, precisamos conceituar e aprofundar a relação entre narrativa realis-

ta e ação simbólica/ideológica. A “guerra do céu”, que nós referíamos acima, parece

ser trazida para a terra e mais especificamente para o contexto histórico do tempo

de Marcos, ou seja, período de forte dominação romana no século I e crise da guerra

judaica com a reocupação de Jerusalém.

Os dados geográficos e as imagens militares que aparecem na narrativa mar-

cana servirão de base para que, no segundo capítulo, se aprofunde o significado

simbólico/ideológico dessa ação exorcística de Jesus em particular, e como a comu-

nidade ou o redator de Marcos insere nele a crítica social, política, econômica e

ideológica às estruturas imperiais ou à pax romana. As conclusões nos permitirão

entrar no debate sobre o local e a data de redação do Evangelho de Marcos, eviden-

temente que de forma sucinta.

Numa breve indicação extratextual, com base no historiador judeu Flavio Jo-

sefo, podemos encontrar elementos literários que possibilitam a leitura contextuali-

zada de Marcos 5,1-20. Neste contexto, poderíamos entender que o evangelista pre-

tendia apresentar a boa nova de Jesus Cristo, o Filho de Deus (Mc 1,1) também pa-

ra o universo gentílico.

Finalizando, no terceiro capítulo, após nossa própria analise da narrativa, fa-

remos duas indicações breves de hermenêuticas contemporâneas dos exorcismos

ou da atividade exorcística de Jesus: hermenêutica fundamentalista e da demitologi-

zação. Trata-se de uma abordagem literária das escrituras e uma compreensão ad-

vinda, particularmente, da medicina e psicologia, que restringiriam a libertação e a

cura dos endemoninhados à esfera religiosa e ou individual.


12

De forma sucinta, no primeiro capítulo faremos a abordagem literária de Mar-

cos 5,1-20, nos alongando na definição de narrativas de exorcismos e na relação

entre narrativa realista e discurso simbólico-ideológico. No segundo, pretendemos

elaborar uma critica da historicidade dos eventos narrados, baseada nos avanços da

analise exegética. E no terceiro capítulo, apontar possíveis interpretações para a

prática exorcistica de Jesus em seu ministério, para a comunidade marcana que

constrói a narrativa de exorcismo de Marocs 5,1-20, e por fim, apresentaremos inter-

pretações contemporâneas, fundamentalista e da demitologização, que deveriam

manter em suas análises as dimensões sociais, políticas, econômicas e ideológicas

presentes nas narrativas de exorcismos.

Com essa pesquisa pretendemos contribuir com o processo de disseminação

do emprego da metodologia exegética histórico-crítica e histórico-social na aborda-

gem da Literatura Sagrada, especialmente no Programa de Mestrado em Ciências

da Religião da Pontifícia Universidade Católica de Goiás. Esse método permite fun-

damentar novas leituras bíblicas e expandir a reserva de sentido ou dinamizar leitu-

ras tradicionais, apontando novos agentes, práticas e aspectos das narrativas, mui-

tas vezes esquecidos em processos exegéticos e hermenêuticos.

As reflexões elaboradas também permitem a avaliação das narrativas dos

evangelhos sinóticos como fontes históricas. Suscitam discussões sobre a relação

entre historicidade dos eventos narrados e a intencionalidade narrativa do narrador,

redator ou comunidade de suporte das narrativas, que empregariam linguagem sim-

bólico-ideológica. Além disso, retomamos no nosso trabalho o processo histórico de

formação das narrativas de Mateus, Marcos e Lucas, em nosso caso, principalmente

da narrativa marcana.
13

2 O ENDEMONINHADO GERASENO: TEXTO

Neste primeiro momento do trabalho empregaremos alguns passos exegéti-

cos do método histórico critico 1 na análise do texto de Marcos 5,1-20, incluindo a

Crítica Textual, Crítica Literária e Crítica das Formas, eles nos ajudam a melhor

compreender o texto em seu contexto literário, fornecendo bases para nos contra-

pormos a modelos tradicionais de interpretação das narrativas de exorcismos, parti-

cularmente a narrada em Marcos 5,1-20. 2

2.1 CRÍTICA TEXTUAL

Não temos condições de elaborar ou construir uma tradução própria de Mar-

cos 5,1-20, com a necessária e conseqüente leitura do aparato crítico. 3 As traduções

para o português deste texto de Marcos não apresentam grandes diferenças, pe-

quenas variações na construção dos períodos e na escolha de termos ou sinôni-

mos. 4 Mesmo assim, precisávamos utilizar uma tradução mais literal. Para isso, con-

1
Definição de método retirada de Pontifícia Comissão Bíblica (2004, p. 36). Outras definições e a-
presentação dos métodos: Egger (1994, 238p); Wegner (2002 414p); Silva, (2000, 515p). O docu-
mento da Pontifícia Comissão Bíblica também discute e apresenta os métodos exegéticos.
2
Temos como modelos de interpretação tradicional o estudo de Dattler (1977, p. 25-26) que coloca
nitidamente uma leitura realista do texto: “sacrifício de vara de porcos” , “diálogo de Jesus e o demô-
nio”, “A legião de demônios é obrigada a pedir favores”. No comentário Bíblico da Loyola, Philip Van
Llinden (1999, p. 54) comenta sobre as possíveis visões do povo da cidade: além de ter visto o pos-
sesso sentado e vestido: “É de presumir que também vejam dois mil porcos flutuando no mar”. Balan-
cin (1991, p.71-73), embora reconheça a legião como as forças militares romanas, alude ao confronto
Jesus e o demônio. O próprio Harrington (1997, p. 790), apesar de trazer muitas informações históri-
cas e geográficas, constrói reflexões sobre o confronto real de Jesus com o demônio.
3
Aparato crítico são as notas explicativas colocadas na parte inferior do Novo Testamento grego, que
indicam as variantes do texto original para uma mesma passagem bíblica, conforme diferentes ma-
nuscritos, cf. Wegner (2002, p. 39).
4
Traduções comparadas: BÍBLIA DE JERUSALÉM (1994). BÍBLIA SAGRADA. Edição Pastoral
(1991). BÍBLIA SAGRADA. Antigo e Novo Testamento (1993). BÍBLIA DO PEREGRINO. Novo Tes-
tamento (2000).
14

frontamos a tradução feita por Luigi Schiavo 5 com algumas traduções interlineares 6

e elaboramos uma tradução literal do texto que será ponto de referência no decorrer

das nossas reflexões. Manteremos o marco referencial de numeração em versículos.

2.1.1 Texto

1. E chegaram do outro lado do mar, na terra dos Gerasenos.


2. E tendo ele saído do barco, imediatamente veio dos sepulcros a ele uma
pessoa em espírito impuro;
3. que tinha sua morada nos sepulcros, e nem mesmo com uma cadeia nin-
guém podia prendê-lo,
4. por causa disso, muitas vezes com correntes e cadeias fora preso, e foram
cortadas por ele as correntes e as cadeias foram quebradas, e ninguém era
suficientemente forte para dominá-lo.
5. E sempre, noite e dia estava nos sepulcros e nas montanhas, gritando e fe-
rindo a si mesmo com pedras.
6. E, vendo Jesus de longe, correu e prostrando-se, o adorou.
7. E gritando com voz alta, diz: “O que há entre mim e ti, Jesus filho do Deus o
Altíssimo? Te imploro, por Deus, não me atormentes.”
8. Pois de fato havia dito a ele: “Sai, espírito imundo, desta pessoa.”
9. E o interrogava: “Qual o teu nome?” E respondeu-lhe: “Legião é o meu no-
me, porque somos muitos”.
10. E lhe suplicava com insistência para que não os mandasse para fora da
região.
11. Havia naquele lugar, perto da montanha, uma grande manada de porcos,
pastando.
12. E suplicaram-lhe, dizendo: “manda-nos aos porcos, para que neles entre-
mos”.
13. E permitiu-lhes. E tendo saído os espíritos imundos, entraram nos porcos e
do abismo a manada lançou-se no mar, cerca de 2.000, e afogaram-se no
mar.
14. E os que os apascentavam fugiram e foram contar na cidade e nos cam-
pos. E saíram para ver o que tinha acontecido.
15. E chegam até Jesus, e eles vêem o endemoninhado sentado, vestido e só-
brio, ele que tinha tido a legião, e ficaram com temor.
16. E os que viram contaram-lhes como aconteceu ao endemoninhado e sobre
os porcos.
17. E começaram a suplicar-lhe para que saísse de suas fronteiras [limites,
confins].
18. E entrando ele no barco, suplicava-lhe o que fora endemoninhado para que
estivesse com ele.

5
Como se trata de uma obra inédita de Schiavo (1999, p. 236), a numeração de páginas citada po-
derá não corresponder. Observação válida para todas as citações dessa obra.
6
Luz (2003, p. 123-125) utiliza o texto grego de Nestle (26 ed.), ver ainda tradução interlinear de La-
cueva (1984, p.154-156).
15

19.E não o deixou, mas lhe diz: “Volta para tua casa, para com os teus e anun-
cia a eles, quão grandes coisas o Senhor fez por ti, e como teve misericórdia
de ti”.
20. E partiu, e começou a proclamar na Decápolis, as tão grandes coisas que
Jesus fez por ele, e todos ficavam admirados.

2.1.2 As Principais Variantes Textuais

Luigi Schiavo (1999, p. 20) apresenta as diversas variantes ou pontos críticos

do texto. Para nós, o principal problema está relacionado à localização geográfica da

passagem: Gerasenos (Gerashnw/n) (Mc 5,1), Gergesa em alguns manuscritos

(Gergej) (Lc 8,26) e Gadara, Gadar (Gadarhnw/n) (Mt 8,28). Como Jesus envia o ex-

endemoninhado para a Decapóle (Mc 5,20), descarta-se Gergesa, por se localizar

fora dessa grande região, como veremos em mapas no segundo capítulo (p. 53),

embora, pela distância do mar da Galiléia, é a única variante que possibilitaria a

“disparada” e o “afogamento” dos porcos. Entre Gerasa e Gadara, Schiavo (2000, p.

21) coloca a ainda associação de Gerasa com Garash, “expulsar”, “lançar fora”, que

tem a ver com a história do exorcismo. 7

John P. Meier (1998, p. 171) afirma que nos manuscritos antigos de Mateus,

Marcos e Lucas aparece uma diversidade de topônimos ou locais colocados no inicio

da narrativa desse episódio: gerasenos, gadarenos, gergesenos, gergesinos, gerse-

senos e gersistenos. Ele leva em consideração a possibilidade do trecho da narrativa

que conta o episódio da manada de porcos, que se afogam no mar/lago, ser um a-

créscimo posterior. É com a introdução desse trecho que começam a surgir as di-

vergências, já que Gerasa ou a terra dos gerasenos ficava distante do lago e mais

ainda do mar mediterrâneo. Forçava-se, assim, aos redatores sinóticos, copistas e

tradutores, a missão de tornar factível o afogamento dos porcos no mar ou no lago

7
Meier (1998, p.173) apresenta alguns autores que discutem a questão da localização geográfica.
16

da Galiléia, também chamado de Mar da Galiléia, colocando o episódio em Gedara,

mais próxima do lago e ou Gergesa, situada á margem leste do lago.

Metzger (apud MEIER, 1998, p. 190, nota 17, cap. 20) cita três razões em

preferir gerasenos: 1) as provas de textos ou códigos superiores da tradição alexan-

drina e também da assim chamada tradição ocidental; 2) A probabilidade de garade-

no, em alguns manuscritos marcanos, representar a assimilação à leitura original do

texto paralelo em Mateus 8,28, pois segundo ele o evangelho de Mateus era o e-

vangelho sinótico preponderante no período patrístico; 3) a probabilidade de gerge-

senos ser uma correção, proposta inicialmente por Orígenes, e a forma própria do

códice W “gergistenos” representar um idiossincrasia do escriba.

Acrescentamos a essas razões, em situar o exorcismo em Gerasa, como

sendo algo diretamente vinculado ao contexto histórico da comunidade de Marcos,

como veremos mais adiante.

2.2 CRÍTICA LITERÁRIA

A crítica literária procura estudar os textos como unidades literariamente for-

muladas e acabadas (WEGNER, 2002, p.84) 8 , almejando definir a delimitação do

texto, sua possível estruturação em partes menores, o nível de coesão interna do

texto, a possível utilização e identificação de diferentes fontes.

8
Ver ainda Egger (1994, p. 52 e 158) que coloca a delimitação e a estruturação do texto em unidades
menores na fase preparatória ou na primeira orientação acerca do texto. Expediente semelhante em-
prega Silva (2000, p. 67).
17

2.2.1 Delimitação

Precisamos estabelecer e justificar a exata extensão do texto que vamos e-

xaminar, interligando-o com a estrutura maior do Evangelho de Marcos. Esse recorte

na narrativa global é chamado de perícope, seguimento textual dotado de significa-

do, sentido (EGGER, 1994, p. 53). Seguiremos indicativos de tempo, tema, e princi-

palmente, de lugar ou topografia como critérios para estabelecer a delimitação tex-

tual.

“E chegaram do outro lado do mar, na terra dos Gerasenos” (Mc 5,1). Jesus,

em Mc 4,35-36, convida os discípulos para passarem para a outra margem do mar e

deixando a multidão, partem de lugar indeterminado. Estão eles na barca, antes de

chegar à outra margem, e são surpreendidos por fortes ventos e altas ondas no mar

(4 37-38). Jesus é acordado e repreende os ventos, o mar e os discípulos pela falta

de fé (4 39-40). Os discípulos ficaram possuídos de grande temor (Mc 4,41). Este é

o contexto narrativo antecedente.

O único marco temporal encontra-se em Mc 4,35: “Naquele dia, sendo já tar-

de”. Neste fim de tarde, início de noite, parece que acontecerão a passagem do mar

(4,35-41), a libertação do “endemoninhado geraseno” (5,1-20), cura e constatação

da cura da filha de Jairo (4,21-24. 35-43) e a cura da mulher com hemorragia (4,24b-

34). Somente em 6,1 temos outro marco temporal e espacial: Jesus parte para sua

terra, e quando chega dia de sábado começa a pregar na sinagoga (Mc 6,2).

Segundo Myers (1992, p. 234. 240), os dois lados do mar da Galiléia simboli-

zam um território judaico e um território gentílico. O lado gentílico, o outro lado do

mar, representa o desconhecido, o estrangeiro, o caos; ele está descrito na viagem


18

pelo mar na noite, nas duas tempestades que Jesus acalma (Mc 4,37; 6,48) e na

situação do endemoninhado (Mc 5,3-5) que Jesus liberta.

Outros elementos caracterizam o lado gentílico: homem em espírito impuro

(ánthropos em pnéumati akathárto Mc 5,2), a sua morada nos sepulcros (mnémasin

Mc 5,2-3), a definição de Jesus por parte do endemoninhado: Jesus, Filho de Deus o

Altíssimo, (Iesú huié tu theú tu hypsístu Mc 5,7). Este último é um “título que se

encontra na linguagem helenística para designar a divindade” (DELORME, 1982, p.

27) e segundo Richter Reimer (2011, p.115 ) a expressão ‘Deus Altíssimo’ (theu

hypsistos) é conhecida no mundo greco-romano e se refere ao Deus de Israel.

Temos ainda a criaçao de porcos, (chóiron 5,11-13) e a identificação de “legião” (le-

gión) como o nome dos espíritos impuros completam a apresentação de Gerasa co-

mo cidade gentílica.

Assim, as travessias do mar (Mc 4,35-36; 5,1.18; 6,45; 8,10) representam o

esforço, a luta para unir os mundos judeu e gentio. Freyne (1996, p. 55) julga propo-

sital a utilização por Marcos do termo “mar” (thálassan) para indicar o lago de Gene-

saré, pois ele proporcionaria um padrão simbólico e mítico bem mais rico. Represen-

taria o caos e também o Mar Mediterrâneo por onde vieram as forças de ocupação

romana.

Na narrativa marcana, Jesus se mostra como senhor do mar, e as diversas

travessias colocam a reconciliação entre o lado judaico e gentílico diretamente no

ministério de Jesus. Contudo será que ele pretendia, na sua atividade, ligar o univer-

so judaico com o gentílico? Esse é um dos elementos que apontam para um possí-

vel processo de construção da narrativa de Marcos 5,1-20 a partir de fontes e ne-

cessidades diversas.
19

Temos, em Mc 5,2 – “E tendo ele saído do barco” – o início da narrativa da

perícope; e em 5,18 – “E entrando ele no barco”–, o final. Por outro lado, Mc 5,1 faz

a ligação com todo o Evangelho de Marcos: “Chegaram à outra margem” Em 5,21 a

continuação ou retomada da narrativa da atividade messiânica de Jesus: ”Tendo

voltado para o outro lado do mar”. Este parece ser o momento histórico da narrativa:

Jesus na sua atuação ou atividade messiânica está a sós com os discípulos, apro-

fundando em que consiste a sua messianidade, reconhecida depois por Pedro (Mc

8,29: “Tu és o Cristo”), e também pelo centurião romano após a morte de Jesus na

Cruz (“Verdadeiramente este homem era o filho de Deus,” Mc 15,39).

Portanto, as delimitações assinalam que Marcos 5,1-20 compõe uma unidade

textual completa dotada de sentido, com “porta de entrada e de saída”, expressão

utilizada na metodologia popular de leitura bíblica. 9 Wegner (2002, p. 85) fala que

uma perícope tem “pé e cabeça”, ou seja, forma um todo orgânico com inicio e fim

perfeitamente identificados. Mesmo interligado no contexto narrativo de Marcos,

nosso texto apresenta um tema próprio e independente das narrativas anteriores e

posteriores.

Há muitas estruturas gerais propostas para o Evangelho de Marcos, geral-

mente divididas em três grupos, conforme a escolha do critério de divisão: uns op-

tam pela questão geográfica, outros autores preferem o tema do drama gerado em

torno do segredo messiânico, e ainda aqueles que utilizam como referencial a rela-

ção de Jesus com seus discípulos (DELORME, 1982, p. 13).

Seguindo de forma breve o critério geográfico, os autores dividem o Evange-

lho de Marcos em duas grandes partes, embora possam introduzir outras divisões e

subdivisões: a primeira apresenta a atividade de Jesus na Galiléia e região (1,14–

9
Expressão utilizada por Mesters (1984, p. 13).
20

9,50) e a segunda grande parte (10,1–16,8) mostra a subida e o ministério de Jesus

em Jerusalém. Além disso, temos uma pequena introdução (1,1-13) e um acréscimo

posterior (16,9-20). 10 Logo, nossa perícope está localizada na primeira parte do e-

vangelho. Ched Myers (1992, p. 232ss), coloca nosso texto numa subdivisão que

chama de “a construção que Jesus faz de uma nova ordem social” (Mc 4,36–8,9).

O surgimento do texto marcano está relacionado a três fatos importantes, se-

gundo o comentário ao Evangelho de Marcos de Sebastião Armando Gameleira So-

ares e João Luiz Correia Júnior (2002, p. 13): 1) o desaparecimento da primeira ge-

ração de discípulos e discípulas de Jesus; 2) as comunidades já acolhiam gentios,

pessoas que não conheciam a cultura judaica, e isso é motivo de crise e conflito; 3)

o judaísmo está em guerra com Roma: o texto sem dúvida está em relação com a

guerra, quer tenha sido escrito imediatamente antes da guerra, quer durante ou logo

depois.

Neste sentido, no texto de Marcos 5,1-20 aparece dois desses fatores, a atu-

ação de Jesus em região pagã ou gentílica, com a cura, acolhida e envio de um ge-

raseno como aparece ao final da pericope e também todo o conflito com as forças

imperiais romanas, presente nos termos legião, porcos e na condição do possuído.

Portanto, temos reflexos de duas grandes crises dos cristianismos originários: a crise

ou conflito externo (Roma – Palestina) e a profunda crise ou conflito interno (judeus

– gentios).

10
Ver formas de estrutura do evangelho de Marcos em Delorme (1982, p.13); Harrington (1997, 778);
Myers, (1992, p.147); Balancin (1991, p.7). Cássio Murilo Dias da Silva (2000, p. 275) aplica a meto-
dologia de Exegese bíblica em um texto de Marcos (Mc 4,35-41), por isso cita diversas estruturas,
formuladas por inúmeros autores. Veja ainda Kümmel (1982, p. 103) e Richter Reimer (2011, p. 80)
21

2.2.2 Estrutura de Marcos 5,1-20

Para estudo de nossa perícope, temos poucas estruturas de referência. Har-

rington (1997, p. 778) propõe uma divisão em quatro partes, seguindo o conteúdo: 1)

o endemoninhado (5,1-10); 2) o bando de porcos (11-13); 3) as pessoas da região

(14-17); e 4) o homem libertado (18-20). Fossion (apud SCHIAVO, 1999, p. 40) divi-

de o texto em dois grandes blocos, marcados por inúmeros paralelismos: 5,1-13 e

5,14-20.

Schiavo (1999, p. 34) estrutura a perícope em cinco partes. Propõe uma or-

ganização concêntrica em todo o texto, construída em torno de versículo 13: “E per-

mitiu-lhes”, mostrando Jesus como o Senhor! Essa lógica concêntrica ou quiásmica

pode ser encontrada em todas as subdivisões da perícope, segundo o estudo de

Schiavo.

A estrutura que propomos não abarca tantas pretensões. Dividiremos o texto

também em cinco partes, ressaltando a seqüência narrativa, o conteúdo e a utiliza-

ção constante do verbo suplicar/exortar (parekalei) 11 , o poderio ou autoridade de

Jesus e, numa formação concêntrica, a identificação, por parte de Evangelista ou

redator, dos espíritos impuros com as legiões romanas e destas com os porcos. Esta

estrutura está assim representada:

2.2.2.1 Jesus encontra o homem em espírito impuro (Mc 5,1-6)

O poder (dynamis) de Jesus é ressaltado pela gravidade e dramatici-

dade da cena e das condições da pessoa. Diversas vezes tinham tentado detê-lo

11
Myers (1992, p. 238) chama a atenção para a repetição do verbo parakelein, empregado em diver-
sas pessoas verbais e sempre seguido da expressão autón, porém não faz referência dessa recor-
rência com a estrutura da perícope.
22

(5,3), no entanto, “ninguém podia prendê-lo”, ou “ninguém era suficientemente forte

para dominá-lo” (5,4) e, apesar disso, “vendo Jesus, correu e prostrou-se” (5,6). Es-

sa descrição é comovente (MEIER, 1998, p. 174), mas deve-se contar com a possi-

bilidade de ser argumento narrativo e também teológico: a chegada da mensagem

de libertação e cura aos gentios, executada pelo próprio Jesus, e caracterizada tam-

bém pelo envio, em 5,19.

2.2.2.2 Jesus encontra a legião (5,7-10)

A partir desse momento, passa a ser recorrente o verbo suplicar/exortar (pa-

rekalein), marcando fortemente a autoridade de Jesus, a qual é ressaltada neste

bloco pelo reconhecimento de seu nome e de sua condição divina por parte do espí-

rito impuro (5,7), pela ordem que ele dá ao espírito (5,8), e ainda no modo como Je-

sus consegue arrancar o nome da “legião” (5,9). Por fim, a “legião” lhe suplicava (pa-

rekálei autón) para que não a mandasse para fora da região (5,10).

2.2.2.3 Os espíritos impuros encontram a legião de porcos (5,11-13)

A súplica (parekálei autón) dos espíritos impuros para entrarem nos porcos

(5,12) continua dando intensidade à força de Jesus, que tem seu ápice na permissão

para que os espíritos impuros entrem nos porcos (5,13), como também indica Schia-

vo (1999, p. 36).

2.2.2.4 A coletividade encontra Jesus (5,14-17)


23

A atuação de Jesus foi grandiosa, provocou fuga e morte da “legião” de por-

cos com os espíritos impuros, incluindo a fuga dos porqueiros (5,14) e a repercussão

de suas ações nos campos e cidade, tanto que saíram para ver o acontecido. A no-

va condição do que fora endemoninhado - sentado, vestido e sóbrio – desperta te-

mor, bem como a concretização do poderio (dynamis) de Jesus, como instaurador

de uma nova ordem (5,15). As pessoas da região passam a suplicar-lhe (parekálei

autón) para que deixe as fronteiras da região de Gerasa (5,17).

2.2.2.5 O ex-endemoninhado encontra Jesus (5,18-20)

A transformação da pessoa que fora endemoninhada é completa. Ela começa

a suplicar para que possa continuar com Jesus (5,18), mas este não o permite, envi-

ando-lhe em missão para anunciar (apángueilon) na região o que Jesus fizera por

ela (5,19). O sucesso de sua empreitada, e conseqüentemente a de Jesus, é garan-

tido pelo espanto de todos (5,20). Enquanto os porqueiros anunciaram (apéngueilan)

a morte dos porcos (5,14), o que fora endemoninhado passa a anunciar (keryssein)

– típico verbo de envio ou missionário que aparece também em Mc 1,45; 3,14 – o

que Jesus, na sua misericórdia, fez por ele (5,20).

Numa visão global da perícope como veremos abaixo, percebemos a forma-

ção de uma estrutura concêntrica com dois paralelismos antitéticos, ou seja, dois

membros ou grupos de expressões equivalentes em alguns traços, mas que indicam

uma contradição ou um sentido contrário (WEGNER, 2002, p. 91).

No centro estão à conexão dos espíritos impuros com as ‘legiões’ e estas se

entrelaçam com os porcos. Os paralelismos mostram a mudança no ser do geraseno

que fora endemoninhado, e também apresentam as posturas convergentes das pes-


24

soas e da ‘legião’, isto é, recusa e conflito com Jesus. Vejamos a estrutura concên-

trica e os paralelismos:

a - Jesus encontra o homem em espírito impuro

b - Jesus encontra a legião

c - Os espíritos impuros encontram a legião de porcos

b’- A coletividade encontra Jesus

a’- O que fora endemoninhado encontra Jesus

Por esta estrutura deduzimos que a condição inicial do homem em espírito

impuro é de possuído (a) e a final é de pessoa libertada e libertadora (a’); a legião

suplica a Jesus para não sair da região (b) e a coletividade suplica para que Jesus

saia (b’). O centro aponta para a identificação dos espíritos impuros com as legiões

romanas (c), aspecto que aprofundaremos mais a diante.

Embora seja uma estrutura não tão bem elaborada, ela permite duas afirma-

ções: o contexto geral do texto de Marcos 5,1-20 segue a intencionalidade de mani-

festar o poder e autoridade de Jesus (dynamis, exousia) com um exorcismo em regi-

ão gentílica. Não seria essa uma memória central do ministério de Jesus?

Por outro lado, a estrutura narrativa final aponta um trabalho redacional do

evangelista, redator ou da comunidade de Marcos, no sentido de vincular os espíri-

tos impuros, ou forças demoníacas, com as forças militares de dominação do impé-

rio romano, por meio da utilização dos termos “legião” (legion) e porcos (choiron).

Além disso, chama atenção o envio de um missionário gentio em região gentí-

lica para anunciar o Evangelho (apangueilon, keryssein). Vamos aprofundar essas


25

discussões no estudo da coesão textual, do vocabulário e na abordagem das possí-

veis fontes de nosso texto.

2.2.3 Integridade e Coesão do Texto

A apreciação da integridade e da coesão do texto nos ajuda a identificar pos-

síveis alterações e o alcance da formulação originária que se manteve no texto, a-

proximando-nos o máximo possível de sua forma primitiva. 12

Sabemos que a falta de coesão pode ser verificada nas duplicações, contra-

dições, quebras na linha argumentativa, mudanças abruptas de conteúdo ou estilo,

glosas ou adendos explicativos. Portanto, como nos diz Egger (1994, p. 160), esse

passo da crítica literária está baseado em critérios de incoerência. Vamos procurar

alguns elementos indicadores de incoerência narrativa em Marcos 5,1-20, que apon-

tem para um possível processo de redação, realizado em diversos momentos e con-

textos.

O versículo Mc 5,1 parece um elemento redacional ou ao menos sugere mu-

dança de conteúdo: “E chegaram do outro lado do mar”, indica a presença dos dis-

cípulos, mas estes não aparecem em momento algum na perícope. Somente Jesus

retorna ao barco em 5,18.

Em 5,2 temos uma palavra mencionada uma única vez no evangelho de Mar-

cos, “veio ao seu encontro” (hypéntesen). 13 Este mesmo versículo indica para a exis-

tência de um espírito impuro, impressão retomada no versículo 7, “o que há entre

12
Ver definições e aprofundamentos em torno da coesão e integridade em Wegner (2002, p.99); Silva
(2000, p.174); e Egger (1994, p.160).
13
Detalhes da narração, como quantidade de citações de palavras, presença de hapax legómena,
veja Schiavo (2000, p. 24) e Programa Bible Works, Versão 5.0 em CD-ROM. Veja também a Con-
cordância (1994)
26

mim e ti” e no comentário do verso 8. A partir de 5,9 passam a “ser muitos”, abrindo

possibilidade literária para a identificação deles com a “legião” e o episódio da ma-

nada dos porcos no em Mc 5,11.

Encontramos diversos hapax legómena, palavra ou expressão que aparecem

uma única vez no Novo Testamento: nos versículos 3 e 4: “tinha sua morada” (katoi-

kesin); “fora preso” (dedésthai), “foram cortadas” (diespásathi), “foram quebradas”

(syntetrífthai) (CONCORDÂNCIA, 1994, p. 433).

Além disso, ocorre uma descrição minuciosa da situação do homem em espí-

rito impuro, como se o narrador tivesse presenciado um longo processo de sofrimen-

tos, ferimentos, loucuras e tentativas de prisão. Por exemplo, a utilização do termo

“muitas vezes” (pollákis) e a dupla indicação temporal do versículo 5: “todo o tempo,

de noite e de dia” (kai dia pantós nyktós kai heméras). Encontramos também repeti-

ções dos vocábulos “correntes” e “cadeias” e o uso da expressão “ferindo a si mes-

mo com pedras” (katakópton heautón líthois), utilizada somente em Mc 5,5.

Em Marcos 5,6, a pessoa em espírito imundo está tranqüila, numa atitude de

submissão a Jesus: “prostrou-se e o adorou”. Já no versículo 7, o clima de tensão

retorna e passa-se do estilo narrativo para o dialógico (5,7-10). Porém, no meio do

diálogo e no embate pela descoberta mútua dos nomes, temos uma glosa ou co-

mentário do narrador em Mc 5,8: “Pois de fato havia dito a ele: ’sai espírito imundo

deste homem”, único indício de ação exorcística de Jesus. O termo “sai” (exélthe)

também é utilizado em Mc 1,25, na sinagoga de Cafarnaum, e em Mc 9,25, na cu-

ra/exorcismo do filho com espírito mudo.

A definição do nome do espírito impuro como ‘legião’ (legión), em 5,9, aponta

uso de latinismo (MYERS, 1992, p. 238), termo derivado da língua latina. Volta-se à

narração descritiva a partir do versículo 11, com a entrada em cena da vara de por-
27

cos pastando (boskoménen), expressão somente utilizada nos textos paralelos de Mt

8,30 e Lc 8,32.

Ocorrem várias imagens militares em Mc 5,11-13, como veremos a seguir nas

características lexicais. Os espíritos impuros não querem sair da região (5,10), entre-

tanto, somente entram nos porcos precipitam-se no abismo, morrendo afogados no

mar. Outro comentário do redator identifica a quantidade de porcos: aproximada-

mente dois mil (5,13). Trata-se de muitos porcos a serem contados em tão pouco

tempo! Gundry (apud SCHIAVO, 1999, p. 30) afirma que uma vara de porcos não

superaria a 150-200 unidades, extraordinariamente 300.

Em 5 14-17 narra-se a fuga dos porqueiros a anunciar pelos campos e cidade

o que acontecera aos porcos e ao endemoninhado, bem como a saída das pessoas.

Por hipótese consideraremos que saíram da cidade, pois as pessoas dos campos já

estavam fora.

Em 5,15 utiliza-se o vocábulo endemoninhado (daimonizdómenon), aludindo à

atuação do demônio simultaneamente com o espírito impuro, ou que possuam o

mesmo significado. Jesus promove uma positiva libertação, tirando o perigo de vio-

lência do endemoninhado, mesmo assim, pedem para que Jesus saia da região.

Mais adiante, teceremos uma hipótese sobre quem e por que teriam pedido para

que Jesus saísse.

Por fim, em 5,18-20 Jesus dialoga com aquele que fora endemoninhado e o

envia, empregando termos missionários (apángueilon, keryssein). Este proclamaria

na Decápole as grandes coisas que o Senhor, em sua misericórdia, fez por ele (pe-

póieken kai eléesen). Aqui (Mc 5,19) Jesus é chamado de “senhor” (kyrios) e as o-

bras que fez (epóiesen) são retomadas no final do texto (5,20).


28

Schiavo (1999, p. 46) chama atenção para a presença constante de comentá-

rios ou adendos ao texto de Marcos 5,1-20. Aparecem muitos comentários que pro-

vocam uma interrupção no curso da narrativa. Como por exemplo, no versículo 4 o

narrador passa e explicar a informação dada no versículo 3 que nem mesmo com

cadeias podiam prender o homem em espírito impuro. E por isso, muitas vezes ti-

nham tentado prendê-lo, mas em vão porque o endemoninhado quebrava as corren-

tes e ninguém era suficientemente forte para dominá-lo, porque era muito forte, a-

brindo assim caminho narrativo para a introdução de onde vinha tanta força, dos

2.000 demônios.

Em 5,8 aparece outro comentário explicativo ou como justificativa das súpli-

cas e reclamações da pessoa possuída em espírito impuro para que Jesus não a

atormentasse, narradas no versículo 7. Temos o comentário que volta atrás e justifi-

ca tal postura, afirmando a expulsão do espírito: “De fato Jesus havia dito: Sai, espí-

rito imundo, dessa pessoa”!

Em 5,11 interrompe-se bruscamente o diálogo-embate entre Jesus e a pes-

soa possessa em espírito impuro, para contar a existência da manada de porcos que

se alimentava nas proximidades, perto da montanha, permitindo a continuidade da

narrativa com o episódio da entrada do espírito impuro nos porcos nos versículos 12

e 13.

E por fim, em 5,20 encontramos o comentário: e todos ficaram admirados,

marcando a autoridade/força de Jesus na total transformação da situação, segundo

os olhares, sentimentos e reconhecimentos de muitos espectadores.

Feitas essas observações, percebemos a força do redator/autor que adentra

na narrativa, como alguém que tivesse presenciado os acontecimentos e sabe de

eventos e fatos precedentes. Além disso, ele enriquece a narrativa com detalhes,
29

comentários explicativos que envolvem o leitor na manifestação do poder das pala-

vras e ações realizadas por Jesus.

Podemos concluir, de forma geral, que há no texto de Marcos 5,1-20 diversas

repetições, duplicações, uso de estilos literários diversos, adendos ou comentários

do redator e a utilização de alguns hapax legómena. Trata-se de um texto com coe-

são de conteúdo, mas que sofreu longo processo de construção, aparentemente

com uso de diferentes fontes. Meier (1998, p. 172) define Mc 5,1-20 como uma des-

conexa, às vezes incoerente, porém concreta e bizarra narrativa:

Os muitos problemas, conflitos e mesmo as contradições dessa história


sem dúvida refletem uma evolução complicada, ao longo de décadas, de
uma narrativa mais simples para o relato barroco que Mc 5,1-20 nos apre-
senta.

2.2.4 Fontes e Tradições

Aceitando-se a teoria das duas fontes (Marcos e a fonte Q) como base para

Mateus e Lucas, é muito difícil chegar às possíveis bases literárias de Marcos. Além

disto, as tradições orais e memórias precedentes ao processo de redação são fontes

frágeis e hipoteticamente levantadas pelos estudiosos contemporâneos. 14 Marcos

seria o primeiro Evangelho, marcado por essas tradições orais e memórias. Ao lado

de Marcos haveria uma fonte independente que contém uma coleção de ditos (logia)

de Jesus (Mt 8,11-12, cf. Lc 13, 28s; Mt 6,9-13, cf. Lc 11,2-4) sugerida pela primeira

vez por Schleiermacher em 1832, chamada de Q do alemão Quelle, fonte.

14
Sobre as teorias das fontes, ver Wegner (2002, p. 106); Theissen e Merz (2002, p. 45). Estes auto-
res chegam a propor algumas coleções de materiais tradicionais, orais e escritos, que o redator de
Marcos teria colecionado. Entre eles estaria o bloco de narrativas de milagres de Mc 4-6, no qual está
inserido nosso texto. Veja também Kümmel (1982, p. 36); Meier (1992, p. 50), entre outras inúmeras
obras que tratam do tema das fontes.
30

Portanto, a maior dificuldade para se efetuar o estudo da redação está nos

textos de Marcos, pois não possuímos as fontes que lhe serviram de base e em que

medida ou como essas fontes foram conservadas e modificadas pelo redator (SOA-

RES e CORREIA, 2002, p. 15).

Assim sendo, Marcos é o mais antigo evangelho canônico escrito, e quando

tratamos das fontes de passagens particulares da narrativa marcana, lidamos com

hipóteses. É nas reflexões sobre as fontes que vamos incluir alguns indícios do que

se chama de crítica da tradição e da redação (EGGER, 1994, p. 166; WEGNER,

1998, p. 122).

Meier (1998, p. 173; p. 175) chama a atenção para o fato de que o “exorcis-

mo” do endemoninhado geraseno é o único e genuíno relato de exorcismo ligado a

uma cidade pagã e o único milagre de Jesus vinculado concretamente a uma cidade

da Decápole. Isso o leva a afirmar que Jesus realmente teria realizado um exorcismo

nesta região, informação conservada na tradição oral.

Se a imaginação cristã primitiva quisesse criar uma história fictícia para o


exorcismo de Jesus, é estranho que tenha acertado com a dupla raridade fi-
lológica de território dos gerasenos na Decápole. A absoluta originalidade
da designação geográfica – sem paralelo na bíblia e na primitiva tradição
cristã – talvez reflita um evento histórico singular (MEIER, 1998 p. 175).

Por outro lado, os detalhes da narrativa, como o episódio dos porcos e a iden-

tificação do espírito impuro com a “legião”, segundo ele pertenceriam ao nível de

redação de Marcos, ou seja, seriam acréscimos posteriores (MEIER, 1998, p. 174).

Mais adiante vamos tentar aprofundar esse evento histórico particular não

como um milagre de exorcismo de Jesus realizado na Decápole ou especificamente

em Gerasa, e sim como um evento marcante para a comunidade de Marcos, ou se-

ja, a retomada violenta de Jerusalém pelas tropas romanas entre os anos de 66-70

d.C., compartilhamos assim a teoria de Myers (1992, p. 237):


31

A conclusão é irresistível: a de que encontramos imagens que visam recor-


dar a ocupação militar romana da Palestina. Tendo sido enfrentado pela
classe dirigente judaica na sinagoga controlada pelos escribas, Jesus ai en-
contra a “outra metade” do condomínio colonial: o demônio agora represen-
ta o poder militar romano.

O processo de elaboração de Marcos 5,1-20, como vimos, tem sua trajetória

marcada pela tradição oral mesmo que frágil e hipotética, que por sua vez é profun-

damente influenciada pelos textos veterotestamentários.

Meier (1998, p. 192, nota 28) aponta para o texto de Is 65,1-5, especialmente

o versículo 4: “que mora entre as sepulturas e passa as noites em lugares misterio-

sos; come carne de porco e tem no seu prato ensopado de carne abominável”. No

contexto do profeta Isaias trata de ritos e costumes de povos estrangeiros que

O afogamento da “legião” de porcos no mar (Mc 5,13) evoca Ex 14,15ss, on-

de é narrada a morte dos cavalos e do exército do faraó do Egito no mar dos juncos

(RABUSKE, 2001, p. 262). Nesta direção podemos acrescentar também Ne 2,3-5 e

sua preocupação com os sepulcros/memorial de seus pais em Judá (mneméion) e

com a cidade desolada e as portas comidas pelo fogo, que poderia bem ser a des-

crição da tomada de cidade de Gerasa por parte das forças militares romanas, como

veremos na crítica da historicidade de Marcos 5,1-20.

Além dessas tradições veterotestamentárias, Schiavo (1999, p.70) enumera

supostos ambientes de origem de nosso texto e marcas deixadas por seus autores.

Apresenta a possibilidade da existência de um núcleo advindo da atividade de Je-

sus. Poderia ser uma lenda popular conservada na memória e tradição oral dos dis-

cípulos. A identificação dos porcos com a ocupação militar romana com seus legio-

nários indicaria que o texto foi influenciado e construído no período da guerra judai-

ca. Além disso, Marcos 5,1-20 conteria indícios da coerção promovida por Herodes
32

Antipas para que judeus povoassem Tiberíades, cidade construída por ele nas mar-

gens do lago de Genesaré, sobre um antigo cemitério.

E ainda, a comunidade de Marcos teria deixado sua marca missionária nos

versículos 18-20, colocando em Jesus o início na missão cristã na Decápole. De

qualquer forma, o nosso texto contém uma diversidade de pequenas tradições e

memórias que, agrupadas, constituíram uma densa narrativa.

2.2.5 Comparação Sinótica

Na comparação sinótica pretendemos olhar de forma conjunta, ou simultânea,

a narrativa da ação exorcistica de Jesus em Gerasa/Gedara nos três evangelhos:

Mateus, Marcos e Lucas (Ver Anexo 1, p. 100). O problema sinótico consiste em a-

veriguar a simultaneidade narrativa dos três primeiros Evangelhos, destacando as

afinidades, semelhanças ou concordâncias, detalhes comuns e as divergências ou

ainda o material particular de cada narrativa Com isso, daremos seguimento às dis-

cussões acerca das fontes do texto de Marcos 5,1-20, como também abordaremos

elementos do universo vivencial do texto, percebendo no próprio da narrativa marca-

na elementos que caracterizavam o momento e o contexto históricos, necessidades

e objetivos em reconstruir essa narrativa.

2.2.5.1 Elementos comuns às três narrativas (Mt 8, 28-34; Mc 5,1-20; Lc 8,26-39)

- Travessia de barco e chegada do outro lado.

- Endemoninhado ou endemoninhados que veem ao encontro de Jesus.

- Túmulos como morada do endemoninhado (os).


33

- Descrição breve ou mais longa da condição do endemoninhado e dramaticidade da

situação.

- Grita (gritam) a Jesus em alta voz.

- Jesus representa em todas as narrativas uma ameaça de tormentos.

- Havia ali, não muito longe, uma manada de porcos.

- O rogo para que Jesus mandasse demônios, espíritos impuros, para manada de

porcos.

- Permissão de Jesus.

- Saída dos espíritos/demônios e entrada deles nos porcos.

- Manada de porcos se precipita precipício abaixo e morrem afogados na água (mar,

lago).

- Fuga dos porqueiros para contar na cidade o acontecido.

- As pessoas saíram para ver o acontecido.

- Testemunho: os porqueiros contam o que aconteceu com o que fora endemoni-

nhado e com a manada de porcos.

- Pedido para que Jesus saísse do território.

2.2.5.2 Afinidades de Marcos e Lucas – (Mc 5,1-20; Lc 8,26-39)

- O episódio acontece na região dos gerasenos.

- A pessoa possuída chama a Jesus de filho do Deus altíssimo.

- Narram o processo de conquista do nome do espírito impuro por parte de Jesus –

eles se definem como Legião, porque são muitos.

- Os porqueiros contam o acontecido nas cidades e nos campos.


34

- O ex-endemoninhado pede para ficar com Jesus. Jesus não aceita que o ex-

endemoninhado entre no barco com ele.

- Apresentam o envio para casa daquele que fora endemoninhado para anunciar o

que o senhor fez por ele.

- A pessoa sai a proclamar, em Marcos e Lucas, tudo que o senhor fez por ele.

2.2.5.3 Específico de Mateus (Mt 8, 28-34)

- O episodio acontece no território dos gadarenos.

- Mateus apresenta dois endemoninhados.

- Ninguém podia passar pelo caminho onde estavam os endemoninhados.

- Os possessos gritam Jesus Filho de Deus.

- Jesus é apresentado como aquele que pode atormentar fora do tempo.

- Omite o noticiário do fato nos campos, somente na cidade se faz o anúncio do que

aconteceu com o porcos e os endemoninhados.

- Não descreve a situação dramática dos dois endemoninhados e não usa o termo

legião.

- Não aparece o envio missionário na região.

2.2.5.4 Específico de Marcos (Mc 5,1-20)

- O homem em espírito impuro é descrito com muitos detalhes e, no fim, o espírito

impuro se torna uma legião, porque são muitos.

- Aparece três vezes o termo “espírito impuro” em relação à força de posses-

são/dominação, e três vezes comenta a nova situação daquele que fora endemoni-
35

nhado: eles vêem o endemoninhado sentado, vestido e sóbrio, ele que tinha tido a

legião, e ficaram com temor (Mc 5, 15).

- Situação de pesar e sofrimentos do possuído de espírito impuro.

- O número de 2.000 porcos que morrem afogados no mar.

- Aparece o envio do que fora endemoninhado para casa e para os seus e para pro-

clamar o que o senhor fizera por ele; o envio é feito especificamente para a Decápo-

le.

2.2.5.5 Específico de Lucas (Lc 8,26-39)

- O homem possesso por demônios é identificado como sendo da cidade.

- O possesso andava sem roupas e era possuído com freqüência e impelido para

lugares desertos.

- Comentário em seguida ao termo “legião”: porque eram muitos demônios que havi-

am entrado nele. Mas não específica a quantidade como faz Marcos.

- Os demônios pedem que Jesus não os mande para os abismos.

2.2.6 Tecendo a Análise Sinótica

Mateus constrói uma narrativa mais simples e objetiva. Aparecem dois ende-

moninhados furiosos que impediam que as pessoas passassem por aquele caminho.

Chamam a Jesus de Filho de Deus que veio para atormentá-los antes do tempo. A

fuga dos porqueiros se dá para a cidade, de onde saem todas as pessoas exclusi-

vamente para rogar a Jesus que se retire do território deles. Trata-se simplesmente

da ação de Jesus de expulsar demônios (Mt 8,30) ou de libertar endemoninhados

(Mt 8,28).
36

Sobre a narrativa de Mateus podemos concluir com Schiavo (1999, p. 57):

Não se fala nada a respeito da situação dos dois possuídos, nem da Legião, nem do

anúncio missionário do homem libertado à região da Decápole. A impressão é que

para Mt a localização geográfica e a Decápole não interessa muito: este milagre po-

dia ser situado em qualquer lugar geográfico!

A narrativa de Marcos é rica em detalhes, descrição pormenorizada da situa-

ção do possesso em espírito impuro, que mais adiante é nomeado de legião. É muito

presente o aspecto militar de opressão, dominação. A cidade de Gerasa tem muita

importância, como também o anúncio do evangelho de Jesus Junto aos gentios. A

notícia se espalha tanto nos campos como na cidade, de onde saem as pessoas,

que por causa do temor, suplicam para que Jesus deixe o seu território.

Na narrativa de Lucas encontramos muitos elementos comuns com o texto

marcano. De particular na narrativa lucana percebemos a necessidade de Lucas em

dizer que a terra dos gerasenos estava do lado oposto da Galiléia. Ressalta-se que

o homem possesso em espírito impuro é da cidade, andava sem roupas e não habi-

tava em casa alguma e constantemente era impelido pelo demônio para lugares de-

sertos. Lucas mantém o termo “legião”, indicando que eram muitos demônios que

entravam na pessoa, mas não específica o seu número, 2.000, como faz Marcos. O

afogamento dos porcos com a legião se dá no lago, e por fim, Jesus insiste com a

pessoa liberta para que volte a sua casa e conte tudo o que Deus fizera por ele ou

em seu favor como em Marcos.

Schiavo (1999, p. 58) afirma que casa e deserto são temas típicos da teologia

lucana: o deserto é o lugar da tentação, e a morada do diabo (Lc 4,1-13), a casa é o

lugar da comunhão, do pão repartido, da fraternidade, da missão, onde nasce a co-

munidade e se faz presente Jesus ressuscitado (Lc 24,13-49). A pessoa, para ser
37

libertada tem que refazer o caminho do povo antigo (Êxodo), de João Batista e de

Jesus: ir para o deserto, se libertar das amarras do diabo, fazer a experiência do en-

contro com Jesus, para voltar para a cidade e nas casas anunciar tudo isso. É muito

presente neste esquema a experiência das primeiras comunidades cristãs, assim

como são descritas em Lucas e nos Atos dos Apóstolos.

Levando em consideração a teoria das duas fontes (Mc e Q) que comporiam

os evangelhos sinóticos, mais o material específico ou próprio das Fontes M (Ma-

teus) e L (Lucas) conclui-se:

O texto de Mc 5,1-20 não aparece na fonte Q, que é uma fonte de sentenças

e ditos e não de milagres, curas e exorcismos de Jesus. Assim, a fonte primeira é

Marcos, que foi utilizado por Mateus e Lucas. Mateus reconstruiu de forma mais bre-

ve, enquanto Lucas repete muito elementos da narrativa marcana, embora ambos

introduzam temas caros a cada um (SCHIAVO, 1999, p 48).

2.2.7 Estudando o Vocabulário

Com a aproximação ao vocabulário e seu significado, passamos a conectar a

estrutura narrativa e o ambiente externo ou vital da comunidade marcana. No texto

de Mc 5,1-20, encontramos três grupos maiores de palavras, um ligado ao âmbito da

pessoa do endemoninhado, outro que aponta para imagens militares e um terceiro

que indicam Jesus e seu poder e autoridade.

Entre os termos ligados à pessoa podemos citar: “homem em espírito impuro’”

(ánthropos em pnéumati akathárto), “morada em sepulcros” (katóikesin éichen em

tois mnémasin) “cortar e quebrar as cadeias, gritar” (kradzon) “ferir-se com pedras”
38

(katakópton heautón líthois) “sentado, vestido, são juízo” (kathémenon himatisménon

kai sofronúnta) e “enviado a anunciar” (apángueilon, keryssein).

Myers (1998, p. 238) chama atenção para o fato de que a narrativa de Mc 5,1-

20 está repleta de imagens ou termos militares, a começar por “legião” (legión) . Ou-

tras importantes são: “correntes ou grilhões”, possivelmente postas nos pés (pedais),

“cadeia” (halyseis), “dominar, domar, prender, subjugar” (dédesthai, damásai), “ma-

nada/vara de porcos” também compreendida como bando de recrutas (anguéle chói-

ron), “mandar, enviar, escoltar” (pémpson) “permitir, dispensar, ordem para batalha”

(enétrepsen, hórmesen) (PEREIRA, 1984, p.443).

Podemos concluir os dois primeiros grupos de palavras ou vocábulos com as

afirmações de Schiavo (1999, p. 43):

Há uma forte acentuação na opressão física, no corpo machucado e corta-


do, no desespero da pessoa, que beira a loucura. Isso pode estar ligado à
questão militar e social. A ação de Jesus visa restabelecer o indivíduo na
sua dignidade de pessoa e na liberdade de suas ações.

Os termos cadeias, grilhões e correntes em outras passagens bíblicas estão

diretamente vinculados a experiências de prisão, algumas efetuadas pelos represen-

tantes oficiais do Império Romano. Isso pode ser verificado em At 12,6-7; 21,33;

28,20; Ef 6,20; 2 Tm 1,16; Ap 20,1.

No primeiro Testamento grilhões, ferros e correntes são utilizados especial-

mente em prisioneiros de guerra: prisão de Sansão por parte dos filisteus (Jz 16, 21);

o rei Davi relatando como morreu Abner sem se defender, embora não estivessem

amarradas suas mãos e nem seus pés presos em grilhões (2 Sm 3,34); prisão do

reis Sedecias por parte dos Babilônios (2 Rs 25,7); Generais Assírios puseram ferros

e cadeias em Manassés (2Cr 33, 11); No Salmo 105,18 louva a ação de Deus na

história da aliança, mesmo com José que teve os pés afligidos com grilhões e ferros
39

ao pescoço; e por fim em Jeremias 52, 11 que retoma a prisão de Sedecias que foi

atado com cadeias de bronze (MAGGI, 2003, p. 136). Em muitas dessas prisões de

guerra acompanhava o uso das cadeias, grilhões e correntes, o hábito de vazar o

olho do inimigo.

Deste modo, na região de Gerasa na Decápolis, onde Marcos situa este exor-

cismo de Jesus, havia uma situação ou contexto de aprisionamento. Devido à forte

presença de termos militares, provavelmente as forças de ocupação, dominação e

aprisionamento dos gerasenos eram as tropas romanas.

Outro campo semântico faz referência a Jesus, mesmo que de forma indireta

ou com referência a ele. O texto de Mc 5,1-20 não faz qualquer apresentação de

Jesus, somente o titulo dado pelo espírito impuro: Filho do Deus altíssimo. Não são

citados os termos que caracterizam o agir e o ser de Jesus: dynamis, exousia. A

descrição da gravidade do cenário, cenas, da personagem possessa, do confronto

entre Jesus e o espírito impuro, e ainda a força dos verbos, demonstram a grandeza

de Jesus e de sua atuação no território gentílico de Gerasa na Decápole.

Soares e Correia (2002, p. 221) descrevem bem a situação da pessoa em es-

pírito impuro e o grau de tensão que envolve todo o cenário de Mc 5,1-20. Trata-se

do outro lado do mar, lugar do desconhecido, do caos. Local de impureza radical. A

pessoa em espírito impuro irrompe do mundo da morte, dos sepulcros. Tem aspecto

amedrontador e ninguém pode prendê-lo. Num quadro pintado com cores tão vivas e

dramáticas a atuação de Jesus será grandiosa.

Observamos que o verbo ordenar, epitimao, encontrado nas narrativas de

exorcismos em Marcos (1,25; 9,25), para caracterizar a expulsão de espíritos impu-

ros, demônios, não aparece na narrativa de Mc 5,1-20. Além de ser usado nas narra-

tivas de exorcismo, epitimao, ordenar, repreender é empregado em muitas passa-


40

gens do novo testamento, especialmente nos sinóticos, com o sentido de desapro-

vação, censura. Às vezes, como vimos, para repreender quando Jesus expulsa os

demônios (Mc 1,25; 9,25), dissipar a febre (Lc 4,39); silenciar a tempestade (Mc

4,39). Jesus Censura também discípulos, doentes, ex-endemoninhados para que

não anunciem ou publiquem o que Jesus fizera por eles. E ainda, epitimao se refere

a censuras ou castigos administrados pela igreja na discíplina congregacional, no

sentido de exortar/exortação, repreensão (ANGEL, 2000, p. 769).

Assim em Mc 5,6-10, onde se dá o confronto/embate/diálogo de Jesus com

o(s) espírito(s) impuro(s), não encontramos o verbo epitimao. Especificamente,

quando Jesus ordena a saída do espírito impuro (Mc 5,8) é empregado unicamente

o verbo no imperativo sai (exelthe), que se encontra também em Mc 1,25, quando

ele expulsa o espírito impuro da sinagoga. Jesus ordena a saída do espírito impuro

da pessoa unicamente com a sua palavra de ordem.

Em Mateus e Lucas, nos comentários sobre a autoridade/poder de Jesus em

expulsar demônios, é empregado o termo ekballo, lançar fora, expulsar, enviar para

fora. Essa palavra tem significância teológica tão-somente com a expulsão dos de-

mônios. Jesus com a autoridade de Deus (Mc 1,24; Mt 12,28, Lc 11,20), mostrou

que era mais forte que os demônios/espíritos impuros. Eles tinham que se render e

se curvar diante de Jesus (BIETENHARD, 2000, p. 518).

Em Mc 5,6 diz que assim que a pessoa possessa em espírito impuro viu Je-

sus, mesmo de longe, correu e prostrou-se diante dele. Trata-se do termo grego

proskyneo que expressa o sentido de adorar, prestar homenagem, prostrar-se, fazer

reverência. Nos evangelhos sinóticos, quando se faz qualquer reverência a Jesus, é

o reconhecimento de sua divindade, aquele que pode agir com onipotência divina. E

denota adoração exclusiva que se dirige a Deus ou a Jesus Cristo (SCHÖNWEISS e


41

BROWN; 2000, p. 1455). Portanto, no contexto de Marcos 5,1-20 refere-se ao reco-

nhecimento da divindade de Jesus Cristo (5,7). Com reverência e humildade o pos-

sesso em espírito impuro solicita, esconjura, horkídzo, para que Jesus não o ator-

mente, basanises, basanos. O encontro com Jesus é causa de tormentos para os

demônios (MUNDLE, 1980, 1256), indicando assim seu poderio contra as forças do

mal.

Em Marcos 5,1-20 aparece por 4 vezes o verbo suplicar, parakaleo, e em to-

das elas a súplica, pedido, rogo, apelo, é dirigido a Jesus e por diversas persona-

gens no decorrer da narrativa. Duas vezes a legião súplica a Jesus: que não a

mandes para fora da região (5,10), e outra vez, a legião implora para que Jesus a

envie para dentro dos porcos. As pessoas que saíram da cidade, depois do anúncio

feito pelos que guardavam os porcos, pedem a Jesus que ele deixe os seus confins,

fronteiras, limites (5,17). E por fim, aquele que fora endemoninhado solicita para que

possa partir junto com Jesus, mas este não o permite. Em todas as partes dos sinó-

ticos parakaleo significa pedir, implorar, em contexto de pessoas necessitadas que

chegam diante de Jesus com os seus pedidos (BRAUMANN, 2000, p. 768).

Depois de dirigidas as súplicas, indicando a capacidade ou condições de Je-

sus em atendê-las, ocorrem as respostas. Jesus permite que a legião vá para os

porcos e depois eles partem em disparada para o mar. Ele sai da região conforme a

súplica das pessoas que vieram até ele depois de terem ouvido o anúncio dos por-

queiros. E terminando, Jesus não permite que o ex-endemoninhado o acompanhe

ao entrar na barca.

Jesus é o centro das atenções, do possesso em espírito impuro, da legião

que se aloja nos porcos, das pessoas que veem o que ele fizera com os porcos e

com o que fora endemoninhado. Além, é claro, da nova condição daquele que fora
42

possesso em espírito impuro: sentado, vestido e sóbrio (5,15), atestando assim, a

autoridade/poderio de Jesus em dissipar com a situação dramática em que se en-

contrava no inicio da narrativa. A expulsão do espírito impuro, o afogamento da legi-

ão com os porcos, a saída do porqueiros a anunciar o que aconteceu, o temor dos

que foram ver o acontecido, a admiração de todos com a nova situação do que fora

endemoninhado ressaltam a autoridade/poderio de Jesus.

A autoridade e o poderia de Jesus Cristo são apresentados por dois termos

gregos: exousia e dynamis. Exousia mostra Jesus como o portador de autoridade,

aquele que recebeu o direito de agir, tem a jurisdição, as credenciais, está habilitado

pelo próprio Deus para agir em seu nome. Já dynamis é essa autoridade sendo e-

xercida com poder, capacidade, força dinâmica provinda de seu interior que cura,

liberta. Jesus com seus milagres, curas, obras e palavras faz acontecer o Reinado

de Deus. Como representante de Deus amarra o mais forte, expulsa sata-

nás/demônios, perdoa pecados, cura e liberta endemoninhas e doentes (BETZ,

2000, p. 1691).

Além dos três grupos lexicais e semânticos apresentados, descrição da situa-

ção do possesso em espírito impuro, termos militares e apresentação da autorida-

de/poderio de Jesus, há a recorrência da conjunção aditiva ‘e’ (kai), usada 41 vezes

em Mc 5,1-20. Segundo Wegner (2002, p. 146), esse emprego pertence ao estilo de

Marcos, que inicia as frases com ‘e’, ao invés de utilizar particípios ou orações su-

bordinadas.
43

2.3 CRÍTICA DA FORMA

Klaus Berger (1998, p. 13) define a forma do texto como: “a soma de suas ca-

racterísticas de estilo, sintaxe e estrutura; isto é, sua configuração lingüística”. Para

ele, as narrativas de milagres, no nosso caso de exorcismo, não indicariam um gê-

nero literário particular. Por isso inclui as diversas narrativas de milagres em outros

gêneros literários do Novo Testamento.

Para Wegner (2002, p. 165), toda comunicação, escrita ou falada, segue for-

mas, conforme o momento e a situação de quem a formula. As formas ajudam a i-

dentificar o lugar vivencial do redator do texto ou a situação geratriz, possibilitando

também uma aproximação da intencionalidade do autor/redator, por causa desta

importância ele segue a classificação das formas dos milagres de Rudolf Bultmann.

Bultmann (apud WEGNER, 2002, p. 170) classifica os gêneros do material

narrativo e discursivo dos Evangelhos sinóticos a partir da reconstrução das situa-

ções de origem dos textos, ele destacou como ambientes de origem: pregação co-

munitária e missionária, atividade dos escribas cristãos, apologia e a polêmica, a

instrução comunitária e disciplina.

2.3.1 Gênero Literário Exorcismo

O texto de Marcos 5,1-20, na sua construção literária, apresenta elementos

de narrativas de milagre/curas e ainda detalhes que fundamentam a existência da

chamada narrativa de exorcismos. Vamos aprofundar os aspectos de cada forma,

privilegiando a explicitação das narrativas de exorcismos. Schiavo (1999) elenca os


44

autores que estudam e aprofundam os gêneros literários das narrativas dos evange-

lhos, dentre os quais destacamos os que seguem:

Bultmann (apud SCHIAVO, 1999, p. 59) compreende a narrativa de Marcos

5,1-20 dentro do que ele chama de histórias de milagres, mesmo que reconheça que

o texto de Marcos contenha traços próprios de exorcismos. Bultmann destaca algu-

mas características: o encontro com o demônio, descrição da gravidade da situação

do doente/possesso, o demônio revela a identidade do exorcista (Jesus Filho do

Deus altíssimo), exorcismo com a saída do demônio/espírito impuro, admiração dos

que presenciam o fato.

Schiavo (1999, p. 59) explicita também as considerações de Dibelius. Este

autor propõe que Mc 5,1-20 se encaixaria no gênero das novelas, devido à gravida-

de e dramaticidade da descrição do texto marcano, como: descrição da periculosi-

dade do sofredor e insucesso de todos os métodos de cura e controle do doen-

te/endemoninhado, técnica de cura, a pergunta sobre o nome do demônio/espírito

impuro, fórmula de expulsão, sucesso da empreitada, efeito na testemunhas, admi-

ração, espanto temor.

A junção de relato de exorcismo, cura milagrosa e ritual exorcistico é obser-

vada por Pesch (apud SCHIAVO, 1999, p.60). De relato de exorcismo fazem parte o

encontro de Jesus com o possuído, tentativa de defesa do demônio, ordem para sair

(Mc 5,8), saída do demônio (Mc 5,13), povo maravilhado (Mc 5, 15.20b), e também a

fama do exorcista libertador (Mc 5, 14a. 18-20a). Enquanto relato de milagre da cura

encontramos: descrição da gravidade da doença e das tentativas fracassadas de

curar o enfermo, demonstração e apresentação da cura acontecida com a nova situ-

ação do que fora endemoninhado: sentado, vestido e em são juízo, e por fim a rea-

ção das testemunhas. Além disso, haveria pontos característicos e bem específicos
45

de ritual de exorcismo: pedido do nome (Mc 5,9), súplica dos demônios (Mc 5,10.12),

expulsão dos demônios/espíritos impuros.

Por sua vez Berger (1998, p. 277-278) afirma que narrativas de milagres, tan-

to curas como exorcismos, estão subordinadas ao contexto geral e ao intento maior

das construções e objetivos narrativos de cada evangelista, teriam, portanto, um ca-

ráter dependente e secundário. Para ele, o contexto narrativo geral de Mc 5,1-20

precisava de uma demonstração de poder de Jesus, legitimando assim a missão que

se dirige e se abre ao universo gentio.

Theissen e Merz (2002, p. 316) distinguem, nas histórias de milagres, os e-

xorcismos e as terapias, e propõem algumas características, para o que poderíamos

chamar de forma das narrativas de exorcismo. As características que encontramos

em Marcos 5,1-20 são: 1) Entrega da pessoa ao demônio, este assume o lugar da

pessoa de (Mc 5,2-5); 2) Luta entre o demônio e o exorcista, ambos usam a mesma

arma, sendo que em Mc 5,7-10 ocorre à tentativa da descoberta recíproca dos no-

mes, como forma de um dominar o outro; 3) Atividade destruidora do demônio fora

da pessoa, como a morte da vara de porcos, em Mc 2,13. Podemos encontrar ainda

dois elementos típicos das narrativas de milagres: a constatação da libertação (Mc

6,15) e admiração dos expectadores e ouvintes do relato (5,15b.20). 15

John P. Meier (1998, p.170) identifica nas narrativas sinóticas, além das falas

de Jesus sobre exorcismos e sumários de atividades que envolviam exorcismos,

sete episódios distintos em que Jesus aparece realizando exorcismos. 1) O ende-

moninhado na sinagoga de Cafarnaum: Mc 1,23-28 // Lc 4,33-37; 2) O endemoni-

nhado geraseno: Mc 5,1-20 // Mt 8,28-34 // Lc 8,26-39; 3) O menino possuído: Mc

9,14-29 // Mt 17,14-21 // Lc 9,37-42; 4) O endemoninhado mudo (e cego?): Mt 12,22-

Inventário mais detalhado dos elementos constituintes das narrativas de milagres, veja Theissen e
15

Merz (2002, p. 308) e Wegner (2002, p. 191).


46

23a // Lc 11,14; 5) O exorcismo de um endemoninhado mudo: Mt 9,32-33; 6) A refe-

rência a Maria Madalena: Lc 8,2; 7) A história da mulher siro-fenícia: Mc 7,24-30 //

Mt 15,21-28.

No Evangelho de João não existem narrativas de exorcismos e praticamente

todas as demais histórias completas de exorcismos provêm da tradição marcana.

Partindo assim das principais histórias completas de exorcismos em Marcos, Meier

(1998, p. 177) aponta em linhas gerais os componentes ou formas básicas de narra-

tivas de exorcismos:

1) Jesus chega ao local;

2) O endemoninhado o enfrenta ou é trazido a ele;

3) Em quase todos os episódios, com mais ou menos detalhes, é apresentada

a situação do endemoninhado ou possuído;

4) Tentativa do demônio de repelir Jesus, gritando ou revelando sua verdadeira

identidade;

5) Manifestando sua supremacia, Jesus conjura (epitimêsem) os demônios ou

espíritos impuros e lhes ordena que saiam (exelthe);

6) A saída dos demônios é descrita causando uma perturbação no endemoni-

nhado ou a sua volta;

7) As vezes encontramos uma declaração ou comentário em separado indi-

cando o bem-estar do endemoninhado, confirmando assim o sucesso da atividade

exorcistica de Jesus;

8) E por fim, temos a reação dos circundantes, espanto, temor, admiração,

comentários reafirmando a nova situação do que fora endemoninhado e também a

autoridade de Jesus.
47

Annen (apud SCHIAVO, 1999, p. 62) já definia o texto de Marcos 5,1-20 como

um exorcismo segundo um esquema próprio que ia além das histórias de mila-

gres/curas propostas no esquema de Bultmann, e de novelas, segundo a teoria de

Dibelius. Conteria muitos elementos que se encaixam no padrão de relato de exor-

cismos proposto mais tarde por Meier: apresentação detalhada da situação do pos-

suído antes e depois do exorcismo, diálogo entre Jesus e os demônios/espíritos im-

puros, poder de Jesus ordenando que os demônios saíssem e na permissão deles

entrarem nos porcos, perturbação geral e destruição da legião de demônios, da vara

de porcos, espanto e admiração das testemunhas da ação de Jesus e da nova con-

dição daquele que fora endemoninhado.

Diante do exposto, podemos concluir com Schiavo que Marcos 5,1-20 é talvez

um dos mais clássicos relatos de exorcismo.

2.3.2 Narrativa Realista e Ações Simbólicas e ideológicas

A pessoa que fala ou escreve almeja alcançar alguns objetivos, tem finalidades

ou intencionalidades, e para atingi-las, lança mão de determinada estratégia, no

nosso caso, de estratégia literária, especificamente de uma narrativa de exorcismo.

Egger (1994, p. 133) coloca como função dinâmica das narrativas a capacidade de

envolver o leitor/ouvinte, levando-o a refletir sobre o próprio comportamento, a co-

nhecer e buscar alternativas, a compartilhar alegrias, dores, e principalmente, as

narrativas se revelam como convites para a ação, ou, em outras palavras, são ‘mo-

delo de ação’ (RICHTER REIMER, 2009, p. 46).


48

Portanto, é necessário que o leitor/ouvinte se identifique e se perceba na nar-

rativa. Como Marcos envolve o leitor e a leitora, e como transmite a mensagem do

evangelho a seus ouvintes?

Para Myers (1992, p. 140), Marcos atinge esses objetivos por meio da constru-

ção de narrativas realistas, nas quais ele apresenta os milagres de Jesus (curas e

exorcismos) como ações simbólicas. Como conciliar narrativa realista e ações sim-

bólicas?

A conceituação de “narrativa realista”, o novum literário de Marcos, conciliaria o

aspecto popular, a vida das pessoas comuns, a fala delas e para elas, com o drama

apocalíptico situado exatamente neste mundo real no qual elas vivem. Assim, carre-

garia a plausibilidade histórica, chamado aqui de “realismo”, ou seja, a narrativa está

enraizada na situação histórica concreta, assumindo neste mesmo espaço um valor

simbólico. Assim, “Também em pontos em que suas cenas e eventos podem ser

considerados até certo grau inventados, eles mantêm elevado nível de verossimi-

lhança histórica, geográfica e social” (MYERS, 1992, p. 140).

A figura do narrador/redator, que marca profundamente o texto de Mc 5,1-20

com comentários, presença extra-temporal à narrativa, como vimos na análise da

integridade e coesão textual (Item 2.2.3, p. 27), se mostra como mediadora. Este

narrador/redator realizaria uma seleção de dados históricos, geográficos, sociais,

imagéticos, dando uma coerência, sequência narrativa e inteligibilidade ao texto. Pa-

ra compreendermos a importância desse sujeito em perspectiva da plausibilidade

histórica, Pesavento (2004, p. 50), assim se expressa:

O narrador é aquele que se vale da retórica, que escolhe as palavras e


constrói os argumentos, que escolhe a linguagem e o tratamento dado ao
texto, que fornece uma explicação e busca convencer.
49

O narrador/redator de Marcos, como fundamentaremos no próximo capítulo,

faz uma seleção de fontes, com base na tradição oral, memórias, tradição vétero-

testamentária e acontecimentos da vida de pessoas e comunidades, e constrói, no

caso, uma narrativa de exorcismo. Entendemos que este exorcismo está ambienta-

do, portanto, numa narrativa realista, verossímil, plausível. Com isso, busca conven-

cer os ouvintes e leitores/as que por meio da ação de Jesus o mal está sendo venci-

do. Neste sentido, os dados históricos, geográficos, imagéticos podem ter desperta-

do o imaginário dos ouvintes, adquirindo neste universo um valor simbólico.

Pesavento (2004, p. 42) articula diversas reflexões em torno do conceito de

imaginário, ligado às mudanças epistemológicas da História Cultural: “Entende-se

por imaginário um sistema de idéias e imagens de representação coletiva que os

homens, em todas as épocas, construíram para si, dando sentido ao mundo”.

Como construtor de sentido, o imaginário necessita apresentar certa sistema-

ticidade, coerência, articulação e vinculação com uma realidade. Assim sendo, o i-

maginário, como construção de sentido se prende em um mundo social e histórico e

é vasto na sua construção.

O imaginário é histórico e datado, ou seja, em cada época os homens cons-


troem representações para conferir sentido ao real. Essa construção de
sentido é ampla, uma vez que se expressa por palavras/discursos/sons, por
imagens, coisas, materialidades e por práticas, ritos, performances. O ima-
ginário comporta crenças, mitos, ideologias, conceitos, valores, é construtor
de identidades e exclusões, hierarquiza, divide, aponta semelhanças e dife-
renças no social. Ele é um saber-fazer que organiza o mundo, produzindo a
coesão ou o conflito (PESAVENTO, 2004, p. 43).

As representações, o imaginário, que aparecem nas narrativas, são portado-

ras do simbólico, ou seja, dizem mais do que aquilo que mostram ou enunciam. Car-

regam sentidos ocultos construídos e percebidos num determinado momento históri-

co e contexto. Neles se dá a correspondência entre o discurso e as imagens. É ne-


50

cessário, portanto, do conhecimento e decifração de códigos de interpretação (PE-

SAVENTO, 2004, p. 41; RICHTER REIMER, 2008, p. 47-52).

Na linguagem da experiência religiosa, o simbólico traz consigo essa dupla

realidade: experiência humana vivida e um objeto, espaço, narrativa, que reativa a

memória e remete para tal experiência vivida. Somente a capacidade de reativar a

memória, estabelecer vínculos e relações, é que confere a força simbólica a deter-

minado evento, acontecimento, ação ou narrativa (CROATTO, 2001, p. 86).

Na narrativa de Marcos 5,1-20, a inclusão de elementos fortes como Gerasa,

Legião, porcos e o envio de ex-endemoninhado, ativa a compreensão de toda a nar-

rativa por parte dos ouvintes e leitores/as. Estes eram aspectos concretos da vida

cotidiana, que remetiam para experiências marcantes vividas pelas pessoas no con-

texto de dominação por parte das forças imperiais romanas, ou seja, conflito Palesti-

na-Roma e entrada de gentios nas comunidades cristãs que estavam se estruturan-

do no momento da redação do evangelho de Marcos.

A utilização dos termos Gerasa, legião, porcos e envio do geraseno, desenca-

deariam, assim, uma compreensão simbólico-política da presença e atuação de Je-

sus em Gerasa na Decápole. Partindo das teorias de Barthes, (apud MYERS, 1992,

p. 40) Myers explicita a idéia de guerra de mitos. Mito é entendido num sentido mais

amplo como uma espécie de discurso simbólico significativo dentro de determinado

sistema cultural e político 16 . O universo político aqui é compreendido como sendo os

diversos âmbitos da vida em sociedade, como o mundo da economia, estruturas de

governo ou administração, forças militares, como veremos em Marcos 5,1-20 no

emprego dos termos Decápole, Gerasa, legião, porcos.

16
Veja textos e interpretações de mito, no livro que registra as conferências principais no III Congres-
so Internacional em Ciências da Religião (RICHTER REIMER, Ivoni e MATOS, Keila, 2009) e nos
respectivos Anais (RICHTER REIMER, Ivoni; REIMER, Haroldo; FERREIRA, Joel A., 2010).
51

Temos na narrativa de Marcos 5,1-10 um discurso simbólico-político que relata

uma guerra de mitos, no qual se dá o enfretamento de Jesus com as tropas ou for-

ças de dominação do Império Romano. Por ‘discurso’ entendemos um conceito que

se refere aos vários sistemas simbólicos/lingüísticos e narrativos empregados na

comunicação humana (MYERS, 1992, p. 40). Trata-se de comunicação humana que

não é mera palavra, discurso, linguagem, mas carrega em si acontecimentos sociais,

como se a vida que entrasse no universo da linguagem e nela buscasse mecanis-

mos de transformação das relações.

Em vista da transformação das relações o redator e a comunidade marcana

narram uma guerra de mitos, envolvendo Jesus e as forças imperiais de dominação,

sintetizadas nas tropas militares ou legiões. São as lutas sociais e políticas articula-

das e fortalecidas no universo das narrativas ou sistemas de sentido, como a guerra

dos mitos, representação, imaginário, que trazem para a realidade sofrida da domi-

nação romana a força do evangelho de Jesus (Mc 1,1) com suas palavras e ações.

Myers (1992, p. 41) além de utilizar o termo linguagem simbólica para explicitar

como os conflitos sociais, políticos e econômicos entram na construção das narrati-

vas evangélicas, emprega também o termo ideologia. De início, ele reconhece que

se trata de um termo problemático que tem uma longa história de elaboração e utili-

zação na filosofia e ciências sociais, especialmente no marxismo: deologia eram

mecanismos utilizados pelas classes dominantes para esconder, ofuscar ou fortale-

cer interesses ou privilégios das classes dominantes.

Logo, porém, se percebeu que as ideologias estão vinculadas a todos os gru-

pos humanos, ou classes, que precisam fortalecer sua condição social, tanto na di-

mensão da conservação ou da transformação das relações e estruturas societárias.


52

O Conceito de ideologia aparece em Marx como equivalente de ilusão, falsa


consciência, concepção idealista na qual a realidade é invertida e as idéias
aparecem como motor da vida real. [...] No marxismo posterior a Marx, so-
bretudo na obra de Lênin, ganha um outro sentido, bastante diferente: ideo-
logia é qualquer concepção da realidade social ou política, vinculada aos in-
teresses de certas classes sociais particulares (LOWY, 1985, p. 12).

Neste sentido, Myers (1992, p. 42) assume a seguinte definição de ideologia:

um corpo coordenado de idéias ou conceitos sobre a vida ou a cultura humana. Ele

também indica que tal termo poderia se substituído por visão de mundo, estrutura de

referência, estratégia social ou teoria concreta. Portanto, trataremos de averiguar, no

discurso narrativo de Marcos 5,1-20, que brota da realidade ou eventos sociais histo-

ricamente situados, como funciona esse discurso simbólico/ideológico e em benefi-

cio de quem ele é empregado.

A plausibilidade histórica das narrativas realistas, construídas no evangelho

de Marcos, encoraja o compromisso dos leitores/ouvintes em promoverem o segui-

mento de Jesus na realidade vivencial concreta. E por isso, as ações simbólicas de

Jesus com exorcismos e curas “eram poderosas não porque desafiavam as leis da

natureza, e sim porque desafiavam as próprias estruturas da existência social”

(MYERS, 1992, p. 142). A narrativa realista de Marcos 5,1-20, com um exorcismo

como ação simbólica/ideológica, desafia as estruturas sustentadoras da presença do

Império Romano na Decápole, força militar, o comércio e a conivência de uma elite

local, elementos que aprofundaremos no próximo capítulo.


53

3 PORCOS AO MAR: CRÍTICA DA HISTORICIDADE

3.1 CRÍTICA DA HISTORICIDADE

Como vimos, Marcos 5,1-20 é uma narrativa realista ou que possui plausibili-

dade histórica, na qual se apresenta Jesus em atividade exorcística na região de

Gerasa. A análise da autenticidade histórica está baseada em pressuposto apresen-

tado por Wegner (2002, p. 329): “Nem tudo que se encontra escrito nos evangelhos

acorreu historicamente ou exatamente como está escrito”. Assim se faz necessário

aprofundar o conteúdo de Marcos 5,1-20 em suas bases históricas, explicitando em

que medida tais dimensões históricas adquirem ou são revestidas de valor ideológi-

co/simbólico.

Na exegese, o exame da historicidade é construído sobre a crítica literária, in-

dicando o mais provável que tenha acontecido, mas raramente se chega a certezas

(MEIER, 1992, p. 170).

Optamos por partir do conteúdo de Marcos 5,1-20, especificamente dos luga-

res geográficos, (Gerasa e Decápole) e das imagens militares (‘legião’ e porcos) pa-

ra construir a critica da historicidade. Dessa forma, elaboraremos um delineamento

histórico, distinguindo os elementos que pertenceriam à época do movimento de Je-

sus e quais estariam mais vinculados ao momento vivido pelas comunidades cristãs

no período de Marcos e como, no processo de construção da narrativa, adentra-se

no universo do imaginário e do discurso ideológico/simbólico.


54

3.2 UMA GEOGRAFIA SUSPEITA: A TERRA DOS GERASENOS

Partindo das reflexões de Camps, Schiavo (1999, p. 110) estuda a etimologia

da palavra grega ‘Gerasa’. Ela deriva da raiz semítica GARSU (da raiz hebraica em

seu equivalente grego garash “expulsar, rejeitar, repudiar” ou de geresh “grãos”),

atestada numa inscrição nabatea. Gerasa não é mencionada no Antigo Testamento.

Corresponderia à atual cidade de Jerash, na Jordânia, a 10 km ao norte do Yabbok,

a 30 km a leste do Jordão, a 55 km a sudeste do mar da Galiléia e a 60 km de Am-

man. Está situada num lugar fértil, perto de um manancial chamado atualmente Ge-

ras. Acompanhemos essa discrição geográfica no mapa abaixo:

Figura 1

Fonte: www.hellenica.de/.../Antike/Ort/Decapolis.gif
55

Deste modo, Gerasa situava-se a 55 quilômetros a sudeste do Mar da Galiléia

e em linha reta, aproximadamente 60 km do Mar Mediterrâneo. Entretanto, é prová-

vel que Mc 5,2 não sugere uma distância tão grande da beira-mar (HARRINGTON,

1997, p. 790), pois o texto afirma que assim que Jesus desceu da barca veio ao seu

encontro um geraseno, possesso por um espírito imundo. Como o mar da Galiléia ou

Mediterrâneo poderiam encostar-se a uma região tão longínqua? Além disso, Jesus

teria que passar antes por Gadara, talvez por Hippus e pelo Rio Yarmuk.

A mesma impressão de distância é reforçada em Mc 5,13, onde se narra o

precipitar-se da manada de porcos no mar e seu respectivo afogamento. Os porcos

percorreram uma distância tão grande? E alguém os acompanhou para confirmar o

seu afogamento? Ou talvez quem redigiu não tinha tanto conhecimento da região?

Ou o redator almejava re-significar e transmitir algo de seu momento histórico? Essa

descrição geográfica questiona a facticidade de Marcos 5,1-20. Por que, então, es-

tamos diante de Gerasa?

Depois de Jesus libertar o endemoninhado geraseno e de impedir que ele o

acompanhasse, envia-lhe em missão na Decápole (Mc 5,20). O termo Decápole ori-

gina-se da expressão grega deka polis e significa ‘dez cidades’. Era o nome dado ao

território situado ao oriente da Palestina, composto por uma liga de dez cidades,

formada pelos romanos depois da conquista da Palestina em 63 a.C.

Eram cidades helênicas constituídas em liga tanto para a proteção da frontei-

ra com o deserto, como para impedir a emigração e agressão dos judeus. Tratava-se

de uma federação de cidades livres sob administração geral do legado da Síria.

Os nomes destas cidades sofrem muitas variações, mas a lista mais aceita é

a seguinte, que também pode ser observada no mapa acima: Damasco, Filadélfia,

Rafana, Citópolis, Gadara, Hipos, Dion, Pela, Gerasa e Canata. Citópolis é a única
56

cidade da Decápole situada na margem esquerda do Rio Jordão (MACKENZIE,

1983, p. 224).

A Decápole está localizada a leste do rio Jordão, na Transjordânia, atual Jor-

dânia. Seus limites são a norte o rio Yarmuk e o território da Ituréia (sul da Síria); a

oeste entra, com a cidade de Citópole, na baixa Galiléia; a sul confina com a Peréia,

e o reino Nabateu; e a oeste vai até o deserto da Arábia (SHIAVO, 1999, p. 82).

Na conclusão de suas reflexões sobre a Decápole, Schiavo (1999, p. 104) en-

contra dificuldades em definir em que consistia concretamente esta confederação de

cidades e como era organizada. As cidades da Decápole não formaram, segundo

ele, uma unidade política coesa. Prova disso é que no II séc. d.C. seguiram destinos

diferentes. O caráter helenístico predominante na Decápole, que distinguia essas

cidades dos vizinhos judeus e árabes, junto com outros elementos, como o econô-

mico e o interesse político-estratégico dos romanos, fez com que tivessem a mesma

origem e identidade.

Vaage (1996, p. 82) comenta que cada cidade da Decápole teria sua história,

mas todas seriam marcadas pela influência do helenismo desde o tempo das con-

quistas de Alexandre Magno. Com o desenvolvimento dessas cidades gregas, espe-

cialmente Gádara, Hipos, Pela e Citópolis, a Galiléia ficou exposta a tudo o que era a

cultura helenística. Assim, segundo ele, não houve uma separação ou fronteira cultu-

ral impermeável que dividisse os dois lados oeste e leste do Lago de Genessaré.

A indicação geográfica da cidade de Gerasa e da região da Decápole assu-

mem, segundo Rabuske (2001, p. 260), relevância política. Pois estamos num terri-

tório sob direta administração romana e assim a ação exorcistica ideológi-

ca/simbólica de Jesus está ambientada no contexto político mais amplo do Império


57

Romano com seus mecanismos políticos, econômicos, sociais e ideológicos de do-

minação.

Logicamente surge a questão: por quê o autor/redator de Marcos situou esse

episódio em Gerasa na Decápole? Na tentativa de chegar às fontes e tradições, no

primeiro capítulo, apresentamos a tese de Meier (1998, p. 172). Ele propõe que Je-

sus teria realizado um exorcismo na região de Gerasa. Tal acontecimento foi con-

servado na tradição oral, e posteriormente, recebeu acréscimos e uma estrutura nar-

rativa mais detalhada por parte do redator do evangelho de Marcos.

Podemos encontrar outra perspectiva de abordagem. A compreensão e a lei-

tura de Marcos, para Myers (1992, p. 67), apresenta um dilema fundamental. Encon-

tram-se representados nele dois mundos: “um mundo é o que ele narra e o outro é o

que ele vive”. Não há correspondência entre ambos, embora o contexto amplo de

dominação romana seja o mesmo. A narrativa conta eventos do movimento de Jesus

e o redator/evangelista vive aproximadamente quatro décadas depois, fato idêntico

ocorre com todas as narrativas evangélicas, especialmente dos evangelhos sinóti-

cos.

Todos eles são escritos pós-pascais e por isso refletem, por um lado, a his-
tória de Jesus de Nazaré, marcada pela memória de grupos e comunidades
que criam ser ele o Messias prometido. Por outro lado, estes textos refletem
simultaneamente as realidades das comunidades, suas percepções e con-
cepções, bem como suas formas de construção de identidade e de organi-
zação eclesial na sociedade mais ampla do século I (RICHTER REIMER,
2008, p. 46)

Myers considera essencial para a compreensão e leitura de Marcos situar a

sua redação no período da revolta judaica de 66-70, antes da destruição do templo

de Jerusalém. A forte crítica ao templo presente na narrativa marcana não teria sen-

tido se o mesmo já estivesse destruído.


58

Teríamos, portanto, em Marcos 5,1-20, resquícios do momento de turbulência

de movimentos revolucionários e da reocupação da Palestina pelos romanos. A es-

colha de Marcos por situar a narrativa do exorcismo de Jesus em Gerasa, onde ele

enfrenta e expulsa simbolicamente as tropas romanas, estaria diretamente ligada a

um episódio da campanha de reconquista de Jerusalém. Vespasiano, general das

tropas romanas, estrategicamente invade e destrói a cidade de Gerasa, como forma

de ampliar o cerco a Jerusalém e proteger as fronteiras. Sigamos a narrativa deste

fato:

Vespasiano, querendo atacar Jerusalém por todos os lados, mandou cons-


truir fortes em Jericó e Abida, onde colocou guarnições, misturadas com
tropas romanas e auxiliares e mandou Lúcio Anio a Gerasa, com um corpo
de Cavalaria e infantaria. Tomou a praça de assalto, matou ali uns mil ho-
mens da defesa, que não puderam escapar, escravizou a todos os demais e
deixou a cidade entregue ao saque dos soldados, que a incendiaram depois
(JOSEFO, 1990, Vol. 3, p. 133).

À luz disso, Marcos pode ter escolhido a região dos gerasenos como local do

confronto simbólico com as estruturas imperiais, o que assume um sentido especifi-

camente político (MYERS, 1992, p. 238). Jesus enfrenta os demônios num território

sob administração direta dos romanos, no qual havia forte presença militar, conforme

a revelação do nome dos demônios ou espíritos impuros: “Legião”.

As forças de ocupação militar ‘possuíram’ os habitantes da região de Gerasa

na Decápole. Se a Decápole era uma confederação de cidades helenísticas, com

forte influência e presença de tropas romanas de fronteira, por que teve que ser in-

vadida e destruída? Desde a sua instalação, representava um ponto estratégico a-

vançado, e sendo assim, serviria naturalmente de base de apoio na reconquista de

Jerusalém. Ao menos que, animados pela Revolta Judaica, grupos rebeldes também
59

tenham se rebelado em Gerasa. Discutiremos essas questões em seguida, quando

refletirmos sobre a identidade do endemoninhado geraseno.

3.3 IMAGENS MILITARES SUSPEITAS

3.3.1 “Legião é Meu Nome”

Os textos bíblicos estão marcados pelo momento histórico no qual foram for-

mados. Míguez (1990, p. 80) considera o Império Romano e suas forças de domina-

ção como o interlocutor principal dos evangelhos, pois ele determinou a estruturação

básica da vida em sociedade no primeiro século de nossa era.

Na constituição do Império Romano, as forças militares ocupavam lugar cen-

tral, possibilitaram a expansão e a pacificação dos territórios. Foram as conquistas

militares que permitiram a instauração do sistema de domínio conhecido como pax

romana. A paz romana é querida e planejada pelos altos escalões, mas estabelecida

e mantida pela intervenção das legiões, num esquema de guerra-vitória-paz, ou seja,

uma paz de e para os vencedores (WENGST, 1990, p. 22-23).

As legiões representavam a maior divisão dos exércitos romanos, compostas

de uns 6.000 homens de infantaria, 120 da cavalaria, além de tropas auxiliares e

encarregadas de serviços gerais (MACKENZIE, 1983, p. 536). Os povos dominados

eram obrigados a se comportar, diante da força das legiões, como clientes colabora-

dores do sistema e vigilantes da ordem estabelecida, comportar-se diferente era ser

rebelde, fora da lei (MALINA, 2004, p. 18). Neste sentido, compreendemos a força

simbólica da narrativa de Marcos 5,1-20, quando define as forças demoníacas de

possessão com o nome de “legião”.


60

A idéia de paz universal no Império Romano passou a ser sentida e implanta-

da com as vitórias do General Pompeu em 63 a.C. E consolidou-se em 31 a.C,

quando Otávio, filho adotivo de Júlio César, foi aclamado imperador e salvador que

trouxera a paz ao mundo, depois de uma década de disputas internas pelo poder

que haviam se transformado em guerra civil (HORSLEY, 2004, p. 26).

O estabelecimento progressivo do domínio romano se deu por meio de con-

quistas militares, que deixavam os territórios invadidos completamente destruídos e

sob e governo de reis clientes, vassalos ou subservientes. Com o tempo, as regiões

ocupadas passavam a pagar tributos, a fornecer cereais para a capital e a ajudar na

manutenção das tropas (MIGUEZ, 1990, p. 89).

Depois de expandir os limites do império, as tropas eram concentradas em

regiões estratégicas, garantindo uma presença mais efetiva de proteção e repressão

nas fronteiras, como o Legado da Síria, responsável pela segurança da Decápole, e,

em momentos de maior necessidade, da Palestina. As Legiões estavam sempre

prontas para agir em caso de agitação ou revoltas.

E para assegurar a ‘paz’, tanto na conquista como no controle de rebeliões e

revoltas, praticava-se verdadeira devastação, como queima de aldeias, pilhagens de

cidades, morticínio e escravidão da população (HORSLEY, 2004, p. 33). Incluía-se

na humilhação dos povos subjugados a adoração aos estandartes militares. Como

veremos, entre os símbolos postos nos estandartes das legiões estaria um porco ou

javali.

Se a localização geográfica da narrativa do exorcismo de Marcos 5,1-20 já

representava uma forte crítica à dominação política romana, com a formação das

póleis, a nomeação direta dos demônios com o termo “legião” (5,9) reforça a conde-

nação das estruturas imperiais.


61

Quando o demônio é exorcizado, é possível identificá-lo. O nome dele é


Legião. Os ouvintes originais reconheceriam imediatamente que “Legião” re-
feria-se a tropas romanas. Pois na experiência recente dos ouvintes, as le-
giões romanas haviam queimado as aldeias nos arredores de cidades como
Mágdala e Séforis e haviam assassinado ou escravizado milhares de seus
pais e avós (HORSLEY, 2004, p. 107).

Além de nomear os demônios, o autor/redator de Marcos vincula a “legião”

com os porcos, talvez para identificar a “legião” referida, ou aproveita para incluir em

nosso texto uma crítica à estrutura econômica do Império, baseada no comércio e na

subjugação das aldeias e dos pequenos proprietários.

3.3.2 Porcos ao Mar

Na narrativa de Marcos 5,1-20, situada intencionalmente em Gerasa na De-

cápole, refletimos sobre a denominação dos espíritos impuros ou demônios de “legi-

ão” endemoninhando, assim, as forças militares romanas. A “legião” demoníaca, de-

pois de expulsa do geraseno, suplica a Jesus para permanecer na região, solicitan-

do a permissão para tomar posse de uma vara de porcos (Mc 5,12-13). Depois de

atendida a solicitação, espíritos impuros ou demônios, “legiões” e porcos ficam

entrelaçados. Acontecendo o encontro, os 2000 porcos precipitam-se, com as “legi-

ões”, despenhadeiro abaixo, morrendo todos afogados no Mar (Mc 5,13). Como

compreender esse novo elemento, os porcos, na leitura do exorcismo de Jesus?

Percebemos, aqui, outro elemento simbólico/ideológico.

No judaísmo, os porcos eram classificados como animais impuros (Lv 11,7; Dt

14,8). A explicação para tal preceito era de que, apesar de possuírem os cascos

fendidos, esses animais não ruminavam os alimentos. O judeu estava proibido de

comer carne de porco ou tocar em seu cadáver. Em Is 66,3, a oferenda do sangue


62

desse animal é considerada uma abominação. Aparecem também em Is 66,17 al-

guns indicativos bíblicos de rituais religiosos secretos, realizados com carne de por-

co e de outros animais (MACKENZIE, 1983, p. 734).

Antíoco Epifanes, na época dos Macabeus, prescreveu a renúncia dos cos-

tumes locais às populações submetidas, em vista da formação de um só povo e cul-

tura, que seriam marcados pelo helenismo. Para implementar essa política, ordenou

a imolação de porcos em Jerusalém e nas aldeias de Judá (1Mac 1,47). Certo Elea-

zar em 2Mac 6,18, prefere a morte a comer carne de porco. Da mesma forma, foram

mortos sete irmãos ao se recusarem a tocar na proibida carne suína (2Mac 7,1).

No Novo Testamento, na narrativa da parábola do filho pródigo (Lc 15,11), o

constrangimento de ter que apascentar ou cuidar de porcos representou a maior de-

gradação possível para o filho, que humilhado retorna à casa paterna (MACKENZIE,

1983, p. 734). Portanto, a criação e o manejo de porcos não seria encontrado nas

terras de Israel.

Assim, Mc 5,1-20 destaca uma região pagã ou gentílica. Schiavo (2000, p. 83)

denomina a Decápole como “uma ilha grega no coração do mundo semita”. Em Mt

7,6 encontramos: "não deis aos cães o que é santo, nem atireis as vossas pérolas

aos porcos, para que não as pisem e, voltando-se conta vós, vos estraçalhem". Sen-

tido semelhante encontra-se na expressão de 2Pd 2,22: "a porca, apenas lavada,

volta a revolver-se na lama”. A identificação de porcos com pagãos está fortemente

presente nestes trechos bíblicos.

Na descrição geográfica, constatamos que Gerasa situava-se a 55 km do mar

da Galiléia, distância impossível de ser percorrida pela manada de porcos em dispa-

rada. Além disso, Pesch e Derrett (apud MEIER, 1998, p. 191, nota 21) explicam que

ao contrário de cavalos e bois, os porcos, quando em pânico não costumam estourar


63

em grupos, mas se dispersam. E segundo eles, os porcos seriam excelentes nada-

dores e não se afogariam facilmente no mar! Essas informações suplementares nos

encaminham com mais propriedade para uma leitura simbólica do episódio dos por-

cos.

Warren (2002, p. 280) considera o endemoninhado, os sepulcros e os porcos

caindo no mar como uma sátira ou caricatura política, que zomba das pretensões do

Império de Roma. Marcos, narrando o exorcismo de Jesus, com a expulsão dos de-

mônios da Decápole, proclama a resistência e a rejeição do mal ou demônio com

sua face epocal representada nas forças militares, políticas e econômicas do Império

Romano. O uso da figura do porco permite ao evangelista/redator a construção de

sua crítica às diversas forças de ocupação.

Os soldados romanos criavam porcos para a alimentação e comércio (WAR-

REN, 2002, p. 202). Mesmo que o número de 2.000 porcos seja figurado, pois como

vimos no primeiro capítulo a quantidade máxima de animais era de 150 a 200 unida-

des por propriedade, ele representa no contexto narrativo um forte questionamento à

política econômica e de comércio implantados pelas forças imperiais.

A quantidade de 2.000 porcos é espe-

cificada somente em Marcos. Na passagem

paralela, Lucas coloca como sendo uma nu-

merosa manada de porcos (Lc 8,32) e Mateus

simplesmente relata a existência de uma

manada de porcos (Mt 8,30). Portanto, o

número 2.000 teria um significado próprio no

contexto da comunidade marcana.

Apesar desde detalhe da comparação


Fonte: http://www.legioxi.ch/texte/h_aufbau.htm
64

sinótica, encontramos poucas tentativas reais de chegar ao seu significado. Schiavo

(1999, p. 30), sintetizando outros autores estrangeiros, propõe que 2.000 seria a

quantidade de soldado romanos acampados na cidade de Gerasa. Outra possibili-

dade interpretativa aponta para a atuação concreta de 2.000 soldados na retomada

da cidade de Gerasa, contingente que acompanhou Lucio Ánio, por ordem do Impe-

rador Vespasiano, como vimos acima no relato da Guerra Judaica, redigido por Flá-

vio Josefo.

A ‘paz’ interna e nos territórios ocupados, garantida pela ação das tropas,

somada à segurança nas fronteiras e estradas, facilitava a circulação de mercado-

rias, favorecendo os grandes proprietários de terras. Estes utilizavam mão de obra

escrava 17 , identificável na narrativa de Marcos 5,1-20 os porqueiros que, preocupa-

dos com o afogamento dos animais, correram para comunicar o acontecido, de-

monstrando grande temor. Eles provavelmente teriam que prestar contas aos pro-

prietários residentes nas cidades (MIGUEZ, 1990, p. 83). 18

O aumento da produção e da circulação de mercadorias possibilitou a atua-

ção de comerciantes, em parceria com o grande negócio do transporte marítimo no

Mar Mediterrâneo. Por ele, chegava grande quantidade de produtos a Roma, capital

do Império. Para facilitar o acesso e a chegada de mercadorias foram construídas

instalações portuárias (COMBY e LEMONON, 1987, p. 78).

Neste complexo sistema político-econômico, o papel do exército era funda-

mental. O poder militar garantia o domínio político (pax romana), a ampliação territo-

17
Informações sobre a economia vigente no Império Romano da época, veja Richter Reimer (2006, p.
72-89), com vasta bibliografia.
18
Richter Reimer (2005, p. 91), partindo do de Lc 16,1-8, esclarece a escravidão como instituição
jurídico-legal no Império Romano, que incluía a existência de administradores (oikónomos/epítropos)
encarregados de cuidar e de fazer aumentar o capital de seu senhor. No nosso texto, os porqueiros
poderiam ser esses administradores preocupados com a sua condição após as perdas reais (os 2000
porcos) de seus senhores. Possivelmente eles não conseguiriam manter a função de administradores
e seriam rebaixados em sua condição socioeconômica. Por isso, a tamanha preocupação, pois esta-
vam atrelados à lógica do sistema de dominação imperial.
65

rial, a tranqüilidade para o comércio e circulação de mercadorias, a arrecadação de

tributos e o controle da mão de obra escrava.

Segundo Miguez (1990, p. 83), as legiões contribuíam também para a mone-

tarização ou presença de moedas nas mais longínquas regiões. Elas eram cunhadas

com a figura de César (Mc 12,13), ou outras imagens, demonstrando o poder de

Roma e a subjugação dos povos, especialmente dos judeus avessos ao emprego de

imagens.

Símbolo da Legio X Fretensis. Estandarte da Legio XX Fretensis.


Fonte: www.jesusneverexisted.com Fonte: www.geocities.com/richsc53
/IMAGES/boar.gif /studies/antef.jpg

Além de indicar o contexto pagão e de representar as relações de produção e

comércio, garantidas pela força do exército, a figura do porco era utilizada como

símbolo da décima legião romana, com o nome de Fretensis, estacionada na Síria.

Ela participou da retomada de Jerusalém na guerra de 66-70 e da destruição da ci-

dade de Gerasa (WARREN, 2002, p. 282). Além disso, Carter Warren cita que o

porco, na literatura talmúdica tardia, passou a simbolizar a própria Roma.

Assim sendo, confirmamos que a figura do porco na narrativa de Marcos 5,1-

20 aglutina em torno de si uma diversidade de significados e conflitos que questio-

nam as estruturas imperiais. Com a destruição dos animais, o evangelista quer res-

saltar a total rejeição à dominação estrangeira na Palestina e na Decápole. Esta

dominação gerava uma diversidade de distúrbios, exemplificados na pessoa do en-

demoninhado ou possuído geraseno.


66

3.3.3 O Endemoninhado: Possuídos Pelo Demônio do Imperialismo

Até o momento apresentamos algumas razões para a escolha do au-

tor/redator de Marcos em situar o exorcismo de Marcos 5,1-20 na cidade de Gerasa

na Decápole e também identificamos as forças de ocupação ou possessão. Cabe-

nos refletir sobre a identidade do endemoninhado geraseno. Trata-se de uma pes-

soa concreta ou representa uma coletividade ou grupo humano particular? Em quais

detalhes narrativos de Marcos 5,1-20 poderemos justificar as diversas perspectivas

de interpretação?

Antes de qualquer coisa, cabe-nos destacar uma ambigüidade presente na

narrativa. Por quem exatamente o homem/pessoa é possuído? Por um espírito impu-

ro, pela legião (de demônios), por espíritos imundos ou por um demônio em especifi-

co, já que por três vezes, na parte final da narrativa, é chamado como endemoni-

nhado, ou aquele que fora endemoninhado.

Crossan (1994, p. 352) percebe e exterioriza essa dupla leitura: pelo critério li-

terário, temos a cura de um indivíduo, mas é difícil não perceber o simbolismo embu-

tido na narrativa, que aponta para a libertação de uma sociedade ou de um grupo

humano oprimido.

Para Maggi (2003, p.135), a situação da pessoa que vai ao encontro de Jesus

e tal que pode ser considerado três vezes impuro: como pagão (habitante da gerasa

da Decápole, do outro lado do mar ou lago de Tiberíades); endemoninhado e habi-

tante dos sepulcros, lugares considerados de maior impureza para a religião hebrai-

ca.

A pessoa (ánthropos) em espírito imundo ou impuro sai ao encontro de Jesus

(Mc 5,2). Espírito impuro (en pnéumati akathárto), costumeiramente, é vinculado ao


67

universo ritual ou cultual (DATTLER, 1977, p. 32). Será que Marcos mantém essa

visão? Mais à frente, o possesso é denominado de endemoninhado (daimonídzomai

5,15.16.18), termo que aparece 13 vezes no Novo Testamento e que significa: “ser

possuído por um demônio ou espírito impuro” (HÜTTER, 2000, p. 339). Hütter vai

além, colocando a possessão como marginalização pela sociedade religiosa e civil.

Alguém com um espírito imundo ou impuro não é mais senhor de si, outro age por

meio dele, desastrosamente.

O espírito impuro na sinagoga de Cafarnaum (Mc 1, 21-28) é transformado,

pelo evangelista, no representante da instituição dos escribas, cuja autoridade sus-

tentava a ordem social judaica dominante (MYERS, 1992, p. 183). Mateos e Cama-

cho (1991, p. 149) procuram explicar o sentido de espíritos impuros a partir de Mc

1,21-28. Estes seriam: “forças ou princípios ativos que procedem do exterior do ho-

mem; se este aceita sua influência, eles agem em seu interior”. São forças ideológi-

cas contrárias ao plano de Deus manifestado em Jesus Cristo.

Que princípios ativos ou forças ideológicas estavam atuantes no ambiente

gentílico de Gerasa? Temos primeiramente uma coletividade composta de pessoas

advindas de vários contextos, regiões, cidades e campos. Também vimos que as

forças culturais, comerciais, políticas, ideológicas, e principalmente, as forças milita-

res romanas tomam a cidade de Gerasa e seus arredores, apoderando-se e matan-

do muitos de seus habitantes, fazendo também prisioneiros, como mostraram os

termos “grilhões”, “cadeias”.

Mateos e Camacho (1998, p. 138) compreendem o endemoninhado como es-

cravos rebeldes do mundo pagão (grilhões e correntes), mortos em vida (morada em

sepulcros), possuídos de uma violência fanática (em espírito impuro). Marcos estaria

descrevendo, com o personagem, uma situação de rebeldia e violência, que desem-


68

bocava na autodestruição (ferindo-se a si mesmo com pedras), sem com isso abalar

os pilares econômicos, políticos e sociais do Império Romano.

Haveria paralelo desse movimento de libertação com a guerra judaica. Ouvin-

do falar das vitórias temporárias dos revoltosos de Jerusalém, os escravos também

teriam tentado a libertação, mas são esmagados pelas forças militares de Vespasia-

no. Essa interpretação justificaria a campanha violenta em Gerasa. O Jesus de Mar-

cos 5,1-20 liberta os dominados que tentam usar das mesmas armas de destruição

dos dominadores. Contudo, nos relatos da Guerra Judaica, elaborados por Flávio

Josefo, não aparece nenhum indício de revolta de escravos em Gerasa.

Quanto à identidade do endemoninhado, Schiavo (1999, p.126) postula outra

possibilidade. A pessoa em espírito impuro seria um dos judeus que viviam na De-

cápole. Ele apresenta que desde os tempos dos asmoneus, quando Alexandre Ha-

neu ocupou a região oriental do Jordão, começou uma intensa judaização, várias

colônias de judeus se estabeleceram por lá.

Seria ele, portanto, um destes judeus, talvez do interior mais do que da cida-

de, que “enlouqueceu” diante da pressão cultural e econômica do mundo helênico?

As cadeias, com as quais tentam amarrá-lo, não apontam para uma situação de es-

cravidão tão difusa no mundo greco-romano? Haveria, portanto, uma confrontação

entre um indivíduo, com suas crenças, tradições, trabalho, família e uma sociedade

(helenística) que tenta imobilizar e dominar a pessoa. Esta sociedade é sustentada

pela força repressora romana, mediante a utilização das legiões ou poderio militar.

Propomos identificar o possesso em espírito impuro, ou endemoninhado, co-

mo toda a coletividade submetida ao domínio romano, especialmente os habitantes

das pequenas aldeias, explorados como mão de obra escrava, representados nos
69

porqueiros da nossa narrativa. Aqui também se inserem os grupos rebeldes que ten-

tavam pela força romper com a dominação romana.

As forças militares romanas seriam os espíritos impuros que tentavam domi-

nar, subjugar, possuir essa coletividade: “O endemoninhado representa a ansiedade

coletiva em face do imperialismo romano” (MYERS, 1992, p. 240). Myers destaca

que ninguém podia dominar esse espírito impuro: “Este exorcismo constitui, assim,

outro episódio-chave na luta de Jesus, o mais forte, para ‘amarrar o homem forte’.

No exorcismo da sinagoga ele se identificava com a classe escriba, agora se identifi-

ca com os exércitos de césar”.

3.4 RESUMINDO

Os dados, as informações apresentados e as reflexões construídas, tanto no

primeiro capítulo, que abordou a questão da critica literária, quanto a análise da his-

toricidade do segundo, nos capacitam para a elaboração de algumas conclusões.

Estas formarão a base sobre a qual assentaremos as abordagens do terceiro e últi-

mo capitulo de nossa pesquisa exegética e elaboração de uma interpretação de

Marcos 5,1-20.

A cidade de Gerasa e o Mar da Galiléia não representam lugares geográficos

concretos, nos quais Jesus teria realizado um exorcismo. São recursos redacionais

de Marcos, que possibilitaram ao evangelista colocar Jesus num confronto direto

com as legiões romanas. Ele também antecipa a missão junto aos gentios, propondo

que o próprio Jesus realizou sua atividade messiânica em terras pagãs e enviou um

geraseno em missão, fato que aprofundaremos a seguir, quando estaremos reto-


70

mando o significado do exorcismo de Marcos 5,1-20 para a comunidade e o contexto

de Marcos.

Essa composição literária teria sido compreendida pelos ouvintes/leitores de

Marcos em seu significado profundo. Jesus, o Cristo ou o Messias Filho de Deus,

seguindo a tradição do êxodo e dos profetas, combate as forças estrangeiras, afo-

gando seus representantes no mar (Mc 5,13). Ele alarga os horizontes de Israel, a-

firmando que o Messias veio para todos os povos (5,18-20). “Por meio de seu evan-

gelho, Marcos está mais interessado em articular o ‘espaço’ geo-social em termos de

simbólica narrativa do que em usar nomes de lugares reais” (MYERS, 1992, p. 235).

O exorcismo do endemoninhado geraseno está fundado numa prática exorcis-

tica de Jesus. Qual é o significado da expulsão dos demônios na atividade ou minis-

tério de Jesus? O contexto de opressão e de expansão das comunidades cristãs

marcou a construção narrativa de Marcos 5,1-20. Como entender a ligação entre

opressão e possessão? Partindo do contexto social e político do envio do geraseno

(Mc 5,18-20), a que missão os cristãos eram chamados e enviados? E atualmente

como ler e compreender o fenômeno da possessão demoníaca? Essas são as ques-

tões que permearão nossas reflexões a seguir.


71

4 POSSESSÃO E LIBERTAÇÃO! UMA BUSCA DE SENTIDO

4.1 O JESUS EXORCISTA

A prática de exorcismos possui uma longa história em diversas religiões, prin-

cipalmente do século II a.C. ao século I d.C. Além disso, desde os inícios do cristia-

nismo aparecem muitos relatos de ações exorcísticas empreendidas por apóstolos e

discípulos, baseadas em mandato do próprio Jesus (Mc 3,15; 6,7; 16,17). Tudo isso

aponta para uma forte presença de exorcismos na atividade ou ministério do Jesus

Histórico (MEIER, 1997, p. 224). Qual seria o significado dos exorcismos para Jesus

e seus seguidores?

Encontramos abundantes indicações de expulsão de demônios promovidas

por Jesus nos Evangelhos sinóticos, das quais podemos citar: Mc 1,23-28 par.; Mc

3,24-30 par.; Mc 5,1-20 par.; Mc 7,24-30 par.; Mc 9,14-29 par.; Mt 12, 22-23; Lc

11,14-23. 19 O evangelho de João não contém nenhuma história de exorcismos, e

nos sinóticos, observando as citações acima, quase todas as narrativas completas

pertencem à tradição marcana (MEIER, 1998, p. 170).

Analisando somente o material de Marcos, encontramos uma série de confli-

tos entre Jesus e as forças diabólicas/demoníacas. Temos quatro narrativas de e-

xorcismos propriamente ditos (1,23-28; 5,1-20; 7,24-30; 9,14-29); três sumários que

apresentam Jesus como aquele que expulsa muitos demônios (1,34. 39; 3,11); al-

gumas cenas de envio, nas quais ele confere tal poder a outros (3,15; 6,7. 13; 9,38-

41; 16,17). Theissen e Merz (2002, p. 305) consideram que, assim como o Reino de

19
Ver quadros completos das narrativas de milagres e exorcismos nos evangelhos, acompanhados
ou não de curas, em Rabuske (2001, p. 38); VV. AA (1982, p. 32); Schiavo e Silva (2000, p. 125);
Richter Reimer (2008, esp. p. 90-115).
72

Deus está no centro da pregação de Jesus, as curas e exorcismos constituem o cen-

tro de sua atividade.

Schiavo (1999, p. 162) coloca algumas razões para a quantidade de exorcis-

mos no Evangelho de Marcos. Sendo o mais antigo dos evangelhos, se fundamenta

na tradição mais antiga, confirmando assim a presença de exorcismo na prática de

Jesus. Marcos, escrito bem perto dos acontecimentos da guerra judaica, conserva,

mais do que os outros evangelhos, a dimensão escatológica e apocalíptica da histó-

ria, com o confronto decisivo entre o bem e o mal, Deus e o Demônio, os grupos ju-

deus rebeldes e as tropas romanas de re-ocupação.

Os exorcismos operados por Jesus seriam manifestações e concretizações

da Reinado de Deus, que com seu poder vem para governar seu povo. A prática e-

xorcista, junto com toda a atividade milagrosa, era necessária para demonstrar que

Jesus era o Filho de Deus, principal objetivo de Marcos (Mc 1,1).

Deste modo, identificamos a historicidade de um tipo de milagre, ou seja, Je-

sus no seu ministério libertou muitos endemoninhados. Porém, na crítica literária e

da historicidade de Marcos 5,1-20, constatamos a dificuldade em determinar a facti-

cidade dos detalhes da narrativa, que estão muito ligados aos motivos, temas e for-

mas de cada evangelista. Podemos, portanto, propor asserções globais acerca de

tipos de milagres:

Obviamente, é mais fácil falar da historicidade de tipos de milagres. Em ou-


tras palavras, Jesus fez “tais espécies de coisas”: p. ex., pelo menos alguns
de seus contemporâneos acreditavam que ele havia devolvido a visão a ce-
gos, havia exorcizado endemoninhados e mesmo ressuscitados mortos. É
mais fácil fazer essas asserções globais, em vista da múltipla confirmação
desses tipos de milagres, tanto em narrativas como em falas. É muito mais
difícil tomar uma história individual de cura ou exorcismo e reivindicar a his-
toricidade para os aspectos específicos de sua narrativa (MEIER, 1998, p.
167).

A intensa atividade exorcística de Jesus explica-se pela compreensão de

mundo dos meios populares do século I. A maior parte dos males que se abatiam
73

sobre as pessoas eram atribuídos aos demônios ou espíritos impuros. “O material

sinótico referente à possessão e ao exorcismo revela que na Palestina no tempo de

Jesus, havia uma proliferação demoníaca sem precedentes” (BIELER apud RA-

BUSKE, 2001, p. 36). Neste contexto, a chegada do Reino de Deus ou domínio de

Deus, através de Jesus, estaria libertando as pessoas dos poderes demoníacos que

as alienava em suas relações:

As narrativas evangélicas sobre curas e exorcismos remetem a uma reali-


dade de doença, miséria, exclusão e abandono no século I. Refletem e
pressupõem também uma profunda religiosidade, especificamente a fé em
milagres, que estava concentrada especialmente em situações concretas de
necessidade, possessão demoníaca, doenças, fome desqualificação social.
O imaginário religioso, presente nas narrativas sobre curas e exorcismos,
refere-se a um problema social generalizado: a interrupção de comunicação
entre as pessoas, uma profunda alienação nas relações sociais (RICHTER
REIMER, 2008, p. 53).

Jesus foi um exorcista judeu do século I. A expulsão dos demônios fazia parte

do seu ministério de cura e libertação. No modo de proceder à expulsão dos demô-

nios, Jesus operava de forma diversa dos exorcistas de sua época. Ele não impunha

as mãos, nem empregava fórmulas mágicas, rituais ou objetos religiosos. Jesus re-

preendia, dominava e expulsava ou mandava as forças demoníacas sair dos pos-

suídos, baseado em sua própria autoridade ou poder, como enviado do próprio

Deus.

Muita coisa nos conceitos quanto aos demônios dos contemporâneos de


Jesus foi confirmada por Ele e pela igreja primitiva. Enquanto, porém, os
pagãos e os judeus do mundo contemporânea em derredor procuravam ex-
pulsar os demônios por meio da magia, do exorcismo e de outras praxes
mágicas, Jesus não precisava de mais nada além de Sua palavra de ordem
(Mt 8:16) [...] Jesus, com a autoridade de Deus, mostrou que era mais forte
do que o demônio (Mc 1:24 par.), que tinha, portanto, de se render a Ele e
curvar-se diante dEle. Jesus, na sua majestade, também deu aos Seus dis-
cípulos autoridade para expulsarem demônios (Mt 10:1, 8). Seu domínio so-
bre estes poderes era um sinal de que o reino de Deus viera em Sua Pes-
soa (Mt 12:22-28) (BIETENHARD, 2000, p. 517).
74

Mesmo sem constar no Evangelho de Marcos, a passagem de Lc 11,20 (e pa-

ralela em Mt 3,28) tem sua autenticidade confirmada ou aceita pela maioria dos críti-

cos (MEIER, 1997, p. 224. 227). Nela, temos a fundamentação da autoridade de Je-

sus em expulsar demônios: “Contudo, se é pelo dedo de Deus que eu expulso os

demônios, então o Reino de Deus já chegou a vós” (Lc 11,20 // Mt 3,28)

Na época de Jesus, muitas doenças mentais e outros distúrbios eram atribuí-

dos à possessão demoníaca. No contexto de marginalização, colonização e subju-

gação da Palestina, Hoornaert (1994, p. 77) compreende os conceitos de doença,

cura ou terapia em sentido mais amplo:

Nas culturas pré-modernas o conceito de doença cobre fenômenos como


pobreza, falta de trabalho e situações de conflito social. Nesses casos a
cura significa um conjunto de práticas que tendem a resolver perturbações
físicas, psicológicas e inclusive sociais.

Os doentes não deveriam procurar assistência médica, quando havia ou po-

diam, e sim fazer penitências, orações e sacrifícios: “Pois os homens ficam doentes

por causa de seus pecados, e quem perdoa pecados é só Deus” (HOORNAERT,

1994, p. 77). E Deus operava as curas segundo a ortodoxia e estruturas do universo

religioso judaico ou meios instituídos para tal, ou seja, as curas aconteceriam atra-

vés do Templo e de seus funcionários. As Instituições judaicas Lei e Templo gera-

vam os códigos de pureza, a noção de castigo e os processos de purificação.

A possessão demoníaca testemunhada em Marcos 5,1-20, e outras narrativas

de terapias e exorcismos, comprova que havia uma tríplice exclusão das pessoas

possuídas e ou doentes, como também uma tríplice inclusão construída por Jesus

junto com as pessoas e comunidades.

No caminho para a tríplice exclusão de pessoas com seus corpos e relações,

temos primeiramente a doença (exclusão da saúde física), a doença por sua vez era
75

interpretada como castigo, sinalizando para o pecado e a culpa do doente ou ende-

moninhado (exclusão da saúde religiosa). A doença e a culpa/castigo geravam ex-

clusão e miséria (exclusão da saúde econômica e social), isolamento do doen-

te/possuído das relações familiares e sociais, advindo miséria e falta do necessário à

sobrevivência. Essa compreensão religiosa da saúde-doença nos relatos bíblicos,

antigo e novo testamento, apresenta a doença como punição divina ou castigo, prin-

cipalmente as doenças mais visíveis como a lepra, que geravam enorme exclusão e

marginalização.

Elas remetiam para o afastamento da pessoa em relação a Deus, à deso-


bediência dos mandamentos divinos, colocando a pessoa em condição de
pecado, em conseqüência do que doenças eram compreendidas como cas-
tigo divino [...] Neste sentido, a pessoa doente era tida como representação
do Mal encravado em seu corpo, sua pele, e que sinaliza para o pecado, a
desobediência e seu resultado (RICHTER REIMER, 2008, p. 55).

Jesus, no seu ministério de cura e libertação, questiona profundamente as

bases desse sistema excludente, promovendo junto aos doentes e marginalizados

uma tríplice inclusão. Ele cura (devolve a saúde física) perdoa e liberta em nome de

Deus (Mc 2,1-9), liquidando com a noção de culpa e castigo. Jesus questiona os có-

digos de pureza aproximando-se de doentes, possuídos, pecadores, estrangeiros,

mulheres, pobres (devolve a saúde religiosa). E na proximidade, restabelece a capa-

cidade produtiva e relacional (devolve a saúde econômica e social).

Se o pressuposto bíblico da doença é uma violação da lei sagrada, então o


retorno à obediência seria o elemento propiciador da cura. O pecado e tudo
o que ele implica só pode ser perdoado por Deus e/ou seu representante,
que cura e perdoa com uma palavra ou um gesto (RICHTER REIMER,
2008, p. 56).

No caso do endemoninhado de Marcos 5,1-20, libertado, curado e restabele-

cido, Jesus mostrou que as causas da doença/possessão e da marginalização esta-

vam para além do âmbito do indivíduo:


76

Quando o indivíduo não consegue se integrar, surgem os fenômenos consi-


derados anormais. A partir disso propomos em nosso trabalho um passo a-
diante: as causas não devem ser procuradas só no indivíduo que não se in-
tegra, mas na própria sociedade que, em razão de suas contradições é
também geradora desses comportamentos extraordinários, os quais a tradi-
ção religiosa sempre identificou com a possessão demoníaca (RABUSKE,
2001, p. 73).

Contrariando Crossan (1994, p. 354), que vê os exorcismos como revolução

simbólica individual, Theissen (1989, p. 82) e Myers (1992, p.187, 239) os interpre-

tam como ações simbólicas públicas. Seriam a forma que Jesus encontrou para fa-

zer frente à miséria enfrentada pelo povo simples da época, na sua maioria campo-

neses endividados pela carga tributária exigida pelas diversas camadas de gover-

nantes, imperiais e/ou ligados ao Templo (HORSLEY e HANSON, 1995, p. 47).

Outros autores seguem uma leitura psicológica, veem os milagres e exorcis-

mos de Jesus como ações terapêuticas pessoais, realizadas no interior de um grupo

humano específico (DREVERMANN apud RABUSKE, 2001, p. 66).

Em Marcos 3,25-30, Jesus discute com os escribas de Jerusalém sobre a au-

toridade com a qual ele expulsa os demônios. Essas lideranças judaicas o acusam

de realizar os exorcismos pela força do príncipe dos demônios ou Belzebu. Nenhum

reino ou casa dividida subsistirá, reponde Jesus, e completa: “Ninguém pode entrar

na casa de um homem forte e roubar seus pertences, se primeiro não o amarrar; só

então poderá roubar a sua casa”. Expulsando os demônios, Jesus amarra “o homem

forte”, limpa o terreno e “rouba” seus pertences, isto é, as pessoas possuídas e as

liberta (MEIER, 1997, p. 224).

O Reino de Deus, com as palavras e ações de Jesus, está destruindo a casa

e o reino dos demônios. Aqui vemos também as dimensões político-sociais dos e-

xorcismos. “O domínio de Satanás agora se dá através de reinos e casas, como,


77

talvez a casa de Herodes e reino de Roma” (OAKMAN apud CROSSAN, 1994, p.

356).

Jesus está preocupado em limpar o terreno para a chegada do Reino de

Deus. “O tempo está realizado e o reino de Deus está próximo, convertei-vos e cre-

de no Evangelho de Deus” (Mc 1,15). Em Marcos, os milagres de exorcismos, ou

expulsão dos adversários, são os primeiros sinais realizados por Jesus em uma ci-

dade ou território novo: a expulsão do espírito impuro na sinagoga de Cafarnaum,

bem no começo de seu ministério na Galiléia (Mc 1,23-26); a expulsão da “Legião”

de demônios no seu desembarque na Decápole (Mc 5,1-20); a expulsão do espírito

impuro da filha da mulher, na chegada ao território de Tiro (Mc 7,24-30). E chegando

a Jerusalém, ele expulsa os vendedores e compradores do templo (Mc 11,15-17)

(SCHIAVO, 1999, p. 206).

Portanto, Jesus na sua prática exorcística, une dois mundos: a expectativa

apocalíptica do reinado futuro de Deus sobre os poderes inimigos e a realização já

agora desse Reino de Deus em episódios de cura e libertação. A realidade do Reino

de Deus, em suas ações e palavras contrariava a realidade vivida. Jesus declarou a

luta pela construção de uma realidade nova, mediante transformações pessoais e

sociais, indicando a aproximação do reinado definitivo de Deus.

Em Mc 5,18-20, o que fora endemoninhado participa desse processo constru-

tivo junto aos seus na Decápole. A possessão e a dominação emudecem e isolam.

Jesus liberta, inclui e restabelece a capacidade comunicativa e relacional (Mc 5,15).

“A esperança na vinda do Reino de Deus equivale a promover o fim da violência, o

levantar os fracos e com eles fazer acontecer uma ordem alternativa” (WENGST,

1991, p. 100).
78

Assim, as narrativas de curas e exorcismos construídas pelas evangelistas e

comunidades, com suas memórias das ações de Jesus, ocupam papel fundamental

nos processos de cura e libertação e na prática missionária das comunidades cristãs

nascentes. “Narrativas de curas têm, pois, uma função legitimadora e motivadora em

situações de conflito socioculturais. Elas servem para construir e legitimar uma nova

forma de vida” (RICHTER REIMER, 2008, p. 65).

4.2 MARCOS 5,1-20: POSSESSÃO E LIBERTAÇÃO

A atividade exorcística no ministério de Jesus estava intimamente ligada à

manifestação e construção do Reino de Deus. A narrativa realista e a ação simbóli-

ca/ideológica de Marcos 5,1-20 atestam que a mensagem de Jesus e a atuação da

comunidade de Marcos estavam derrotando a possessão ou o domínio romano

(HORSLEY, 2004, p. 105). Horsley interliga cura, libertação e distribuição de comida

como componentes essenciais do ser e da mensagem de Jesus. Como profeta, ele

estaria restabelecendo o novo povo de Israel, contra toda dominação estrangeira, na

linha de Moisés e Elias. No contexto de Marcos, as forças de possessão eram os

exércitos romanos.

Desde o inicio de nossas reflexões optamos pela tese de Kümmel, Myers e

Horsley, explicitada por Sebastião A. G. Soares e João L. Correia Junior (2002, p.

14). O Evangelho de Marcos teria sido redigido durante a revolta judaica 66-70,

quando o conflito Roma-Palestina estava no auge. É interessante observar em Mar-

cos 5,1-20 que Jesus Cristo, na sua atividade messiânica, atua em terra pagã, con-

tra o imperialismo romano e envia um geraseno em “missão” (5,19).

Quanto ao local da redação do Evangelho de Marcos não é fácil de chegar a

uma definição: Myers (1992, p. 68 e 96) coloca genericamente a Palestina setentrio-


79

nal, e Horsley (2004, p. 74) fala em sul da Síria, Vaage (1998, p. 13) propõe a região

sirio-palestina. 20

Richter Reimer (2011, p. 69-70) afirma que nas últimas décadas tem sido co-

gitada a possibilidade de Pella ter sido a cidade/o lugar, onde esse evangelho foi

organizado. Essa teoria considera a importância que as fronteiras da Galiléia tinham

para a práxis de Jesus, de acordo com o evangelho de Marcos. Além disso, contem-

pla a informação da tradição eclesiástica de que, antes da conquista de Jerusalém

pelos romanos, os cristãos da Judéia teriam se refugiado em Pella (sudeste do mar

da Galiléia/Decápole). Ao termino de suas reflexões, a referida autora, prefere a

hipótese maior defendida por Vaage de que a organização final do evangelho de

Marcos se deu na região siro-palestinense.

De qualquer forma, trata-se da região da Galiléia ou proximidades, o que ex-

plicaria a importância da Galiléia na narrativa de Marcos, diminuindo a plausibilidade

das teorias tradicionais que propõem Roma como local da redação/organização da

narrativa marcana.

Jesus veio de Nazaré da Galiléia e foi batizado por João no Rio Jordão (Mc

1,9), depois que João foi preso Jesus veio para Galiléia proclamando o Evangelho

de Deus (Mc 1, 14), e imediatamente sua fama se espalhou em toda a redondeza da

Galiléia (Mc 1,28) e uma grande multidão da Galiléia o seguia (Mc 3,7). Jesus pro-

mete que depois de ressuscitar precederá aos discípulos na Galiléia (Mc 14, 28). No

20
Cf. Kümmel (1982, p. 117) em relação à datação da escrita, se diz satisfeito por situá-la por volta do
ano 70. Vemos um pouco da controvérsia em torno da data e local da redação do evangelho de Mar-
cos nos seguintes autores: Clévenot (1979, p. 71), seguindo a leitura materialista do Evangelho de
Marcos elaborada por Fernando Bello, coloca Roma como o local da escrita e especifica o ano de 71,
logo após a destruição de Jerusalém. Neste ponto, ambos recebem críticas de Myers (1992, p. 549):
“Existem, contudo sérias falhas e incoerências na maneira como Bello aplica seu método materialista.
Por exemplo, depois de empregar boa dose de esforço na descrição social da Palestina, Bello nos diz
que o Evangelho de Marcos foi escrito em Roma!” Delorme (1982, p. 10-11) confirma que o evange-
lho de Marcos foi escrito por pessoas vindas do paganismo, assume uma data anterior ao ano 70, em
torno do ano 64, porém afirma a cidade de Roma como local da redação. Esse autor nos coloca no
centro das discussões sobre a datação, que seria o capítulo 13 de Marcos. Para alguns autores, esse
capítulo teria sido redigido antes do ano 70 e, para outros, depois.
80

dia da ressurreição, um Jovem vestido de uma túnica branca e sentado sobre o tú-

mulo de Jesus, pede às mulheres que anunciem aos discípulos e a Pedro, que Je-

sus os precede na Galiléia. E lá na Galiléia eles o verão, assim como ele os tinha

dito (Mc 16, 7). Essas eram as mulheres que serviam a Jesus enquanto esteve na

Galiléia (Mc 15,41) (VAAGE, 1998, p. 13).

O conflito de Jesus com as tropas militares romanas em Marcos 5,1-20 , indi-

caria também o conhecimento profundo do evangelista/redator do conflito Roma-

Palestina, pois possivelmente sua comunidade estaria sofrendo com a reocupação

da Palestina por parte das tropas romanas, chefiadas por Vespasiano e depois por

seu filho Tito.

No terceiro capítulo, observamos que a opção por situar a narrativa de Mc

5,1-20 em Gerasa (5,1) na Decápole (5,20) e a utilização do termo “legião” (5,9) se-

riam indícios do momento e do local da redação do Evangelho de Marcos. Outro e-

lemento forte de nosso texto é o envio da pessoa que fora endemoninhada em mis-

são, com o uso de termos missionários, anunciar e proclamar (apángueilon, kerys-

sein, Mc 5,19-20).

O termo apángueilon em 5,19 refere-se ao convite de Jesus, a aquele que fo-

ra endemoninhado, para que ele retorne a sua casa e anuncie todas as coisas que o

senhor fizera por ele. Encontramos aqui também o termo senhor (kyrios), citado no

evangelho de por Marcos 18 vezes. Trata-se de um termo que tem uma diversidade

de significados. No contexto de marcos, o título kyrios dado a Jesus representa sua

autoridade irrestrita para a comunidade cristã (BIETENHARD, 2000, p. 2318). Nas

palavras e gestos humanos de Jesus transparece a misericórdia e a proximidade de

Javé/Deus com sua vitória sobre as forças que atormentam e alienam as pessoas

(SOARES e CORREIA, 2002, p. 227).


81

Assim, anunciar (apángueilon) significa tornar conhecida a atividade de Deus

e sua disposição para salvar, manifestada em Jesus cristo. Principalmente nas nar-

rativas de paixão, nos quatro evangelhos, apángueilon torna-se testemunho da res-

surreição (BECKER e MÜLLER, 2000, p. 1855). Os guardiões dos porcos também

vão à cidade anunciar (apégeilan) a morte dos porcos e o que acontecera com o en-

demoninhado utilizando o mesmo verbo empregado em 5,19. Soares e Junior (2002,

p. 224) consideram que numa primeira redação, a atividade dos guardadores dos

porcos, era simplesmente contar ou dar noticias do que aconteceu. Na redação final,

com a utilização do mesmo termo, vincula-se a idéia de missão dos enviados.

Já em Mc 5, 20, o que fora endemoninhado, passa a anunciar (keryssein) e

todos ficam maravilhados. Esse termo, no contexto de Marcos indicaria que o anún-

cio estava ligado a uma experiência interior, que tornava a proclamação uma neces-

sidade. No encontro com Jesus a misericórdia de Deus ficou sendo uma experiência

real para os que foram curados e libertados. A força desse encontro era suficiente

para compeli-los a contar aos outros, sem qualquer ratificação, reconhecimento ofi-

cial para tal proclamação (COENEN, 2000, p. 1866). Proclamar a boa nova de Jesus

não é uma doutrina, mas a narração de acontecimentos históricos nos quais se faz a

experiência da vitória de Deus (SOARES e CORREIA, 2002, p. 227). O que fora en-

demoninhado, purificado de suas impurezas, algemas e prisões e pela fé e reconhe-

cimento de Jesus, está preparado para proclamar as grandes coisas que Deus reali-

zará em sua vida.

Theissen e Merz (2002, p. 192) colocam que as viagens a territórios pagãos

em Marcos e Mateus são prenúncios da chegada do evangelho até os gentios. Essa

idéia de campanha missionária seria um elemento pós-pascal projetado em época

anterior à páscoa, ou à morte e ressurreição de Jesus Cristo. Ela teria sido aplicada
82

diretamente na atividade ou ministério de Jesus, justificando assim a abertura da

Boa Nova aos gentios ou pagãos.

O conflito entre cidade e campo também está fortemente presente em Marcos

5,1-20. Essa constatação aponta para um momento de tensão entre campo e cidade

no contexto da comunidade de Marcos. Nas cidades residiam grupos humanos que

acolheram ou se beneficiaram da cultura helênica e da riqueza romana. Os centros

urbanos com características helenísticas estavam em confronto contínuo e profundo

com os arredores judeus, tanto fora quanto dentro da Palestina. Herodes Antipas

mandou construir, na Galiléia, as cidades de Séforis e Tiberíades, centros culturais

propagadores dos hábitos e costumes helênicos ou gregos (MICHAUD, 2002, p. 21).

Na revolta judaica, essas cidades apoiaram as tropas romanas e foram destruídas

pela população rural da Galiléia.

Séforis localizava-se a 6 km de Nazaré e Tiberíades, a 16 Km de Cafarnaum,

meio social onde Jesus atuou. Contudo, não é narrada nenhuma visita de Jesus a

essas cidades helenizadas; mais que isso, há um absoluto silêncio sobre elas nos

evangelhos: “Disso se conclui que Jesus se voltou sobretudo para a população do

campo, que vivia em muitos lugarejos” (THEISSEN e MERZ, 2002, p. 192).

Toda a tradição sinótica está situada em torno de pequenas aldeias da Gali-

léia, Judéia e região. O redator de Marcos deixa claro que Jesus não penetrou em

grandes cidades, sobretudo nas marcadas pela cultura grega: ele vai para as aldeias

de Felipe (Mc 8,27), a terra de Tiro (Mc 7,24.31), a terra dos gerasenos (5,1) e atra-

vessa a Decápole sem entrar nas cidades. E Jerusalém, o centro urbano do poder,

principalmente do poder religioso, conserva sua condição de cidade santa, mas que

precisa de purificação, pois se tornou covil de ladrões (11,15) e o Templo daria lugar

a outro Templo (Mc 14,58).


83

Devido à atuação profética de Jesus, seu movimento fracassou em Jerusa-

lém, fato evidenciado no relato da paixão. Ele foi acolhido na entrada da Cidade

Santa, provavelmente pelo povo ou massa camponesa peregrina para a festa da

páscoa em Jerusalém, mas os detentores do poder promoveram a sua condenação,

conseguindo também a adesão popular (THEISSEN, 1989, p. 44ss). Portanto, em

Marcos, as cidades representam a recusa da proposta e da mensagem cristã e do

próprio Jesus.

Isso se evidencia em Mc 5,15-16, quando Jesus é rejeitado pela população

que sai para ver o acontecido com o endemoninhado e com a manada de porcos.

Mesmo percebendo a total libertação promovida por Jesus junto ao que fora possuí-

do, suplicam a Jesus para que saia da Região. “O dinheiro do comércio e a proteção

dos romanos vale mais que a pessoa” (MATEOS e CAMACHO, 1998, p. 141). Pen-

samos que talvez o temor das represálias, por parte das tropas romanas, impedia a

capacidade de ver e acolher o projeto alternativo nascido das palavras e ações de

Jesus Cristo.

A postura de recusa de Jesus se dá num contexto de profunda opressão e

subjugação, caracterizada pela possessão demoníaca de Mc 5,3-4. Esta conjuntura

existia há muito tempo. Numa cultura marcada pela idéia do combate constante en-

tre as forças do bem e do mal, a sensação gerada é de que as forças demoníacas

estavam vencendo a batalha contra Deus. A guerra judaica, período histórico vivido

pela comunidade de Marcos, seria o momento escatológico ou final da batalha. Dian-

te da pequenez do endemoninhado geraseno e das comunidades cristãs nascentes,

somente Deus, através de Jesus, poderia trazer a salvação e a libertação (SCHIA-

VO, 1999, p. 201).


84

Para demonstrar a atuação de Jesus contra as forças demoníacas ou tropas

romanas, o redator de Marcos constrói uma narrativa realista com uma ação simbóli-

ca/ideológica de exorcismo, elemento muito presente na cultura religiosa da época.

Marcos 5,1-20 retoma antigos símbolos e narrativas hebraicas de libertação, que

ativavam a memória da presença libertadora de Deus na história, vencendo as for-

ças inimigas. Temos o re-avivamento da esperança de que a ordem de dominação

estabelecida estava chegando ao fim (MYERS, 1992, p. 136). O exorcismo do gera-

seno carrega todos esses elementos do combate escatológico ou apocalíptico com a

conseqüente construção de uma nova ordem.

Na linguagem apocalíptica trazida para dentro do contexto histórico da guerra

judaica, acontece o que Theissen (1989, p. 83) chama de deslocamento ou transfe-

rência de impulsos violentos: “A guerra contra os romanos parece ter sido deslocada

para os demônios; os demônios que assaltam a manada de porcos comportam-se

como as forças de ocupação”. Dessa forma, os exorcismos eram atos de libertação

transportados para a esfera mítico-simbólica/ideológica.

Além do lugar vivencial de opressão, guerras e conflitos, a comunidade mar-

cana vivia o momento de abertura missionária e a justificação da entrada de gentios

no movimento cristão. Jesus envia o ex-possesso para junto dos familiares e com-

panheiros, para anunciar-lhes o que o Senhor, pela sua compaixão, fez por ele

(5,19). Quais seriam as obras de compaixão de Jesus? E que tipo de discipulado

resultou dessas obras?

O termo usado em Mc 5,19 no grego é eléesen “ter misericórdia”. Richter Re-

imer (1995, p. 56), analisa eleemosyne poiein “fazer obras de misericórdia”, partindo

do exemplo da Tabita (At 9, 36). Segundo ela, essa expressão é ampla e abarca

múltiplas ações. Tem a ver com justiça e o colocar-se à disposição das pessoas em-
85

pobrecidas, inclusive supondo o lutar na organização dos excluídos e excluídas, pa-

ra que todos possam sobreviver no mundo injusto. Falando das pessoas que prati-

cam obras de misericórdia, a autora ilumina a que tipo de discipulado a pessoa liber-

tada em Marcos 5,1-20 é enviada, como também a missão da comunidade marcana:

“Pessoas praticantes sabem-se ser os braços de Deus que as coloca ao lado das

pessoas oprimidas e marginalizadas, resgatando-lhes o direito e a vida” (RICHTER

REIMER, 1995, p. 56).

Mc 5,20 mostra que a pessoa libertada passou a praticar o discipulado das

obras de misericórdia e, pela admiração de todos, esse discipulado gerou frutos de

justiça. Assim, o evangelista Marcos antecipou a missão junto aos gentios, e o pró-

prio Jesus se torna o promotor da boa nova junto ao universo gentílico. Eles assu-

mem a missão e se tornam novos discípulos e discípulas, para o espanto de cristãos

e judeus que estariam refugiados ou residentes naquela região.

4.3 A LEITURA DE EXORCISMOS HOJE

Até o momento, explicitamos o sentido do exorcismo do endemoninhado ge-

raseno no ministério de Jesus e no contexto da comunidade marcana. Neste ponto

refletiremos sobre o significado da leitura, estudo e atualização da atividade exorcis-

tica de Jesus, narrada nos Evangelhos, no nosso momento histórico. Como identifi-

car a face demoníaca ou a presença do mal no mundo de hoje? Quem seriam os

possuídos? E como a atuação do Jesus exorcista ilumina, questiona e instiga a mis-

são da Igreja e dos seus seguidores junto aos endemoninhados de nosso tempo?

Afinal, “no âmbito da sociedade globalizada, as pessoas esperam ansiosamente ser

curadas e libertadas de seus demônios” (RABUSKE, 2001, p. 291).


86

PComo vimos, a comunidade de Marcos atualiza a face ou as manifestações

demoníacas com os males do seu tempo (Revolta Judaica e a violência na re-

ocupação da Palestina por parte das tropas romanas). Isso implica ou permite que

busquemos as forças demoníacas que afligem as pessoas na nossa realidade.

Rabuske (2001, p. 354) identifica duas formas de ler e compreender a pos-

sessão e os exorcismos realizados por Jesus, conservados nas narrativas das Sa-

gradas Escrituras Cristãs: o fundamentalismo e a demitologização.

Diversos grupos religiosos fazem uma leitura fundamentalista ou literal dos

textos sagrados. Não existe espaço para interpretações. Para eles, as possessões e

os exorcismos aconteceram como estão narrados nos Evangelhos. E da mesma

forma, procuram repetir mecanicamente a prática do Jesus exorcista. São grupos

que permanecem fechados para outras explicações. Todo o mal, como a doença,

vícios, problemas financeiros, brigas familiares, etc, é explicado pela ação dos de-

mônios (RABUSKE, 2001, p. 335).

Alguns meios de comunicação social servem como propagadores desta men-

talidade fundamentalista. Neles aparecem agentes religiosos executando perfor-

mances exorcísticas iguais às realizadas por Jesus, como estão narradas nos Evan-

gelhos, exercendo assim grande influência sob diversas camadas sociais, especial-

mente nas populares.

Oposta à leitura fundamentalista aparece a mentalidade da demitologização.

Pretende-se ultrapassar a mentalidade mitológica do tempo de Jesus. É negada a

existência de demônios, possessões e exorcismos. Tudo não passaria de resquícios

míticos e formas narrativas do meio cultural, empregadas também pelos redatores

dos evangelhos. Dessa forma, cria-se um distanciamento entre o mundo teológico


87

acadêmico e os meios populares que continuam aceitando e cultivando a figura dos

demônios e das realidades demoníacas (RABUSKE, 2001, p. 340).

Consonante com a mentalidade da demitologização estão as explicações pa-

ra a possessão demoníaca, inclusive as apresentadas nas narrativas bíblicas, por

parte das ciências humanas, como a medicina, psicologia, parapsicologia, antropo-

logia. Justificam ou explicam a possessão por meio do conceito de doença física ou

psíquica (RABUSKE, 2001, p. 308).

Tanto o fundamentalismo como a demitologização permanecem presos ao

âmbito do indivíduo. A possessão seria ação de demônios sobre a pessoa ou ela

estaria acometida de doenças, o tratamento da saúde física e psíquica teria efeito

semelhante aos exorcismos praticados por Jesus.

A partir da exegese e interpretação de Marcos 5,1-20, percebemos que a prá-

tica exorcística de Jesus, acompanhada de gestos, palavras e ações, alcança resso-

nância no universo social, político, econômico e ideológico. A possessão é descrita

como subjugação da pessoa pelas estruturas societárias opressoras, como as forças

militares romanas. Os exorcismos realizados por Jesus promovem a cura e a liberta-

ção do indivíduo e da sociedade. Em ações públicas ele liberta, cura, perdoa e inclui,

convocando para o seguimento e/ou discipulado.

Portanto, a leitura e a compreensão da possessão demoníaca em nossos dias

devem ultrapassar o âmbito meramente religioso e a esfera particular ou do indiví-

duo. Theissen (1989, p. 83) observa que as possessões no Novo Testamento acon-

tecem junto às classes oprimidas e empobrecidas da sociedade. Nesse sentido,

Richter Reimer (2008, p. 53) afirma que: “As narrativas evangélicas sobre curas e

exorcismos remetem a uma realidade de doença, miséria, exclusão e abandono no

século I”.
88

Este dado foi comprovado por nós na análise de Marcos 5,1-20. Devemos,

assim, procurar as causas estruturais que provocam tanto as doenças quanto as

revoltas populares. O fenômeno da possessão é amplo e exige um tratamento multi-

disciplinar, como da psicologia, medicina, parapsicologia, ciências da religião, Igrejas

e organismos sócio-políticos. Deve-se, especialmente no universo dos seguidores e

seguidoras de Jesus, atender bem ao indivíduo e também promover a luta pela justi-

ça social (RABUSKE, 2001, p. 360).

O discipulado das obras de misericórdia empreendido pelo que fora endemo-

ninhado (Mc 5,18-20) coloca uma tarefa aos seguidores de Jesus, reunidos na Co-

munidade-Igreja: estar próximos dos excluídos ou possuídos pelo sistema opressor

demoníaco. E, nesta proximidade, é necessário caminhar com o povo, promovendo

junto com ele a libertação, principalmente nos espaços onde a vida está mais nega-

da e massacrada pelas diversas formas de possessão. Trata-se de uma Igreja que

vá além dos rituais religiosos de exorcismos, com uso de água benta e esconjuros, e

das interpretações seculares, baseadas em psicologismos que não comprometem e

nem libertam.
89

5 CONCLUSÃO

A exegese e a hermenêutica, com seus instrumentais de análise e metodolo-

gia, permitem compreender a atuação do Jesus exorcista presente nas narrativas de

exorcismos de forma mais ampliada e dinamizada. Muitos estudos ainda preferem

manter interpretações que privilegiam as dimensões de cura e libertação do indivi-

duo e na esfera religiosa, nas quais espíritos impuros, encostos, demônios, seriam

responsáveis pelas crises financeira e familiar dos indivíduos.

Nas performances de agentes religiosos, o mal que assola as pessoas seria

expulso e dominado. Busca-se repetir a atuação do Jesus exorcista, conforme apa-

recem nas narrativas de exorcismos nos evangelhos. A libertação do endemoninha-

do geraseno, apresentada em Marcos 5,1-20 e por nós interpretada, questiona es-

sas ‘atualizações’ que restringem a leitura das narrativas de exorcismos ao âmbito

religioso e a libertação somente dos indivíduos endemoninhados.

Os textos bíblicos nasceram no seio de diversas comunidades, como as que

dão suporte aos evangelhos sinóticos (Mateus, Marcos e Lucas). Cada qual retoma

a vida, obras e palavras de Jesus para iluminar ou contribuir na resolução de pro-

blemas vividos pelas suas comunidades. Portanto, as narrativas evangélicas apre-

sentam a vida e ministério de Jesus de Nazaré e, de forma velada neles, também o

contexto das comunidades cristãs nascentes com suas dificuldades e desafios. Essa

dupla dimensão temporal dos textos neo-testamentários pode ser percebida e apro-

fundada com a utilização de métodos de exegese e hermenêutica bíblicas.

A utilização do método de exegese histórico- crítico propôs muitas luzes sobre

o texto de Marcos 5,1-20. A abordagem histórico-crítica revelou um texto complexo


90

com coerência de conteúdo, mas que teve construção literária a partir de diversas

fontes: orais, conservadas na memória coletiva, e escritas. Trata-se de uma perícope

com início e fim identificados e interligada com o todo da narrativa de Marcos, mas

com tema e estrutura narrativa próprios.

A estruturação de Marcos 5,1-20, em sua construção narrativa, ressalta a au-

toridade e o poder de Jesus sobre o caos e os espíritos impuros. E, além disso, o

centro da narrativa vincula espíritos impuros e legiões ou forças militares de domina-

ção do Império Romano, por meio da utilização dos termos legião e porcos.

A comunidade marcana, o redator ou o evangelista intencionalmente relacio-

na um texto religioso-escatológico ligado ao ministério messiânico de Jesus com as

dimensões sociais, políticas, econômicas e militares de seu tempo. Faz uma crítica

profunda às estruturas imperiais, através de imagens, símbolos e dados históricos

conhecidos de seus interlocutores e leitores. Na guerra ideológica/simbólica dos mi-

tos, Jesus, o Filho de Deus, está vencendo a batalha.

Na comparação sinótica, chegamos à conclusão que a narrativa de libertação

do endemoninhado geraseno pertence à tradição de Marcos, pois não aparece na

fonte Q. Mateus e Lucas utilizam a narrativa de Marcos, incluindo temas próprios a

importantes a cada um. Mateus, com uma construção narrativa sucinta, mantém o

fundamental da atividade exorcística de Jesus, sem se importar com as particulari-

dades. Lucas repete muitos pontos da narrativa marcana, mas os amplia com locais

teológicos/eclesiais importantes para a construção de sua narrativa evangélica: de-

serto, casa, cidade.

Os detalhes narrativos de Marcos 5,1-20, personagens, lugares geográficos e

imagens militares, apontam para o contexto da comunidade marcana. Esta narrativa

realista, ou com plausibilidade histórica, gradativamente foi se revelando como sim-


91

bólica/ideológica. Com a interpretação dos símbolos e imagens utilizadas, desvelou-

se o contexto da Guerra Judaica e a violência empreendida pelas legiões romanas

na reocupação da Palestina e região, incluindo Gerasa, local onde é narrado o exor-

cismo.

As forças demoníacas nomeadas com o termo “legião” endemoninharam o

Império Romano. A disputa escatológica entre Deus e Satanás adquire feições reais,

e pela atuação e palavras de Jesus, Deus estaria vencendo a batalha final contra os

demônios, afogando-os no Mar, juntamente com os porcos. É uma memória do Deus

libertador do êxodo! Essa interpretação, porém, esbarra na história da recepção, e-

feitos ou interpretação tradicional de Marcos 5,1-20. Nela se privilegiou o combate

escatológico e real entre Deus e demônios/diabo/satanás pelo domínio das pessoas

e da história.

Na mesma narrativa de exorcismo, possessão e libertação, aparece a abertu-

ra da Boa Nova de Jesus Cristo, o Messias Filho de Deus, ao mundo gentílico, justi-

ficada no próprio ministério de Jesus com a descrição do envio do geraseno em mis-

são na Decápole. Jesus Cristo promove a libertação e a formação de comunidades

de pessoas libertadoras, que assumem a missão de fazer acontecer a justiça e o

direito na vida das pessoas e nas estruturas societárias.

O texto de Marcos 5,1-20 foi um instrumento de intervenção da comunidade

marcana num contexto de crises e conflitos, propondo uma alternativa às forças de-

moníacas e a estruturação social da pax romana. Trata-se de uma narrativa de exor-

cismo, que vai além de milagre ou ação terapêutica, com seleção de dados, fontes,

memórias e imagens que mostram mais do que aquilo que anunciam. No mundo do

imaginário, do simbólico, por meio da linguagem, se dá a transformação das rela-

ções e dos mecanismos de possessão/opressão. A ideologia simbólica ou a simbóli-


92

ca ideológica da comunidade marcana desafia e subverte as estruturas sustentado-

ras da presença do Império Romano na Palestina e região no século I.

As forças militares ocupavam um lugar central na sustentação dos mecanis-

mos de funcionamento do Império Romano. Permitiam a ampliação dos territórios

dominados com sua pacificação, forneciam segurança para o comércio, e escravos

para os diversos trabalhos. A legião Fretensis, estacionada da Síria, que tinha como

figura no estandarte um porco/javali, foi afogada no mar pela presença e autoridade

de Jesus. Na narrativa de Marcos 5,1-20, os possuídos pelas forças demoníacas

vêem realizadas suas esperanças, ou seja, libertação das forças de possessão e

encorajamento na tarefa de anunciar tudo o que o senhor fizera por eles.

Os exorcismos de Jesus, acompanhados ou não de curas, eram a concretiza-

ção da chegada do reinado de Deus na vida de pessoas e comunidades. Ele promo-

via uma verdadeira libertação de todas as amarras físicas, religiosas, sócio-

econômicas e ideológicas.

No contexto da guerra judaica, anos 66-70, período também de organização

final do evangelho de Marcos, na pessoa de endemoninhado geraseno, as comuni-

dades cristãs nascentes são fortalecidas. E na atuação de Jesus em território gentíli-

co, com a libertação de um gentio, acolhida e seu envio em missão, temos a abertu-

ra das comunidades ao ingresso dos gentios, incluindo a prática missionária e ou de

formação de novas comunidades. O geraseno, que fora endemoninhado, é enviado

e convidado a anunciar tudo o que Jesus fizera por ele junto dos seus e por toda a

Decápole.

Por isso, no contexto histórico-eclesial atual não basta fazer leituras funda-

mentalistas que se prendem à letra e às performances do Jesus exorcista. Igualmen-

te considerar as narrativas de exorcismos como resquícios míticos e formas narrati-


93

vas a serem superados não contribui para a vitalidade das narrativas evangélicas.

Na exegese e hermenêutica de Marcos 5,1-20, com a força ideológica/simbólica de

uma narrativa de exorcismos, entra-se no universo das representações, do imaginá-

rio, onde as relações são transformadas em todas as suas dimensões, pessoais,

comunitárias e societárias.

Com esta dissertação esperamos ter contribuído para o alargamento dos ho-

rizontes de interpretação da atuação do Jesus exorcista. Ele atua para além do âm-

bito religioso e individual. Não se trata unicamente de uma libertação religiosa e de

uma pessoa na sua singularidade. Paradigmaticamente Jesus, em parceira com o

ex-endemoninhado geraseno, propõe um caminho de libertação que passa pelas

dimensões econômicas, sociais, políticas e ideológicas demoníacas e possessivas

que devem ser superadas em vista da inclusão e bem-estar da pessoa!


94

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100
ANEXO 1 – COMPARAÇÃO SINÓTICA

Mt 8,28-34 Mc 5,1-20 Lc 8,26-39


28 26
Ao chegar ao outro lado, ao país dos gadarenos, 'Chegaram do outro lado do mar, à região dos Navegaram em direção à região dos gerasenos,
2
vieram ao seu encontro dois endemoninhados, gerasenos. Logo que Jesus desceu do barco, que está do lado contrário da Galiléia. 27Ao pisarem
saindo dos túmulos. Eram tão ferozes que ninguém caminhou ao seu encontro, vindo dos túmulos, um terra firme, veio ao seu encontro um homem da
podia passar por aquele caminho. 29E eis que se homem possuído por um espírito impuro: -habitava cidade, possesso de demônios. Havia muito que
puseram a gritar: "Que queres de nós, Filho de no meio das tumbas e ninguém podia dominá-lo, andava sem roupas e não habitava em casa alguma,
Deus? Vieste aqui para nos atormentar antes do nem mesmo com correntes. 4Muitas vezes já o mas em sepulturas.
tempo?" haviam prendido com grilhões e algemas, mas ele
arrebentava os grilhões e estraçalhava as corren-
5 28
tes, e ninguém conseguia subjugá-lo. E, sem des- Logo que viu a Jesus começou a | gritar, caiu-lhe
canso, noite e dia, perambulava pelas tumbas e aos pés e disse em alta voz: "Que queres de mim,
pelas montanhas, dando gritos e ferindo-se com Jesus, filho do Deus Altíssimo? Peço-te que não me
6 29
pedras. Ao ver Jesus, de longe, correu e prostrou- atormentes". Jesus, com efeito, ordenava ao espí-
se diante dele, 7clamando em alta voz: "Que que- rito impuro que saísse do homem, pois se apossava
res de mim, Jesus, filho do Deus altíssimo? Conju- dele com freqüência. Para guardá-lo, prendiam-no
ro-te por Deus que não me atormentes!" aCom com grilhões e algemas, mas ele arrebentava as
efeito, Jesus lhe disse: "Sai deste homem, espírito correntes e era impelido pelo demônio para os luga-
impuro!" 9E perguntou-lhe: "Qual é o teu nome?" res desertos. 30Jesus perguntou-lhe: "Qual é o teu
Respondeu: "Legião é o meu nome, porque somos nome?" — "Legião", respondeu, porque muitos
10 31
muitos". E rogava-lhe insistentemente que não os demônios haviam entrado nele. E rogavam-lhe que
11
mandasse para fora daquela região. não os mandasse ir para o abismo.
32
30 Ora, havia ali, pastando na montanha, uma grande Ora, havia ali, pastando na montanha, uma nume-
Ora, a certa distância deles havia uma manada
31 manada de porcos. 12 Rogava-lhe, então, dizendo: rosa manada de porcos. Os demônios rogavam que
de porcos que estava pastando. Os demônios
lhe imploravam, dizendo: "Se nos expulsas, man- "Manda-nos para os porcos, paraque entremos Jesus lhes permitisse entrar nos porcos. E ele o
da-nos para a manada de porcos". neles". 13Ele o permitiu. E os espíritos impuros saí- permitiu. 33Os demônios então saíram do homem,
ram, entraram nos porcos e a manada — cerca de entraram nos porcos e a manada se arrojou pelo
34
32 dois mil — se arrojou no mar, precipício abaixo, e precipício, dentro do lago, e se afogou. Vendo o
Jesus lhes disse: "Ide" Eles, saindo, foram para í4
os porcos e logo toda a manada se precipitou no eles se afogavam no mar. Os que apascentavam acontecido, os que apascentavam os porcos fugi-
35
mar, do alto de um precipício, e pereceu nas á- fugiram e contaram o fato na cidade e nos campos. ram, contando o fato na cidade e pelos campos. As
15
guas. 33Os que os apascentavam fugiram e, diri- E acorreram a ver o que havia acontecido. Foram pessoas então saíram para ver o que acontecera.
gindo-se à cidade, contaram tudo o que acontece- até Jesus e viram o endemoninhado sentado, ves- Foram até Jesus e encontraram o homem, do qual
ra, inclusive o caso dos endemoninhados. tido e em são juízo, aquele mesmo que tivera a haviam saído os demônios, sentado aos pés de
Legião. E ficaram com medo. l6As testemunhas Jesus, vestido e em são juízo. E ficaram com medo.
36
34 contaram-lhes o que acontecera com o ende- As testemunhas então contaram-lhes corno fora
Diante disso, a cidade inteira saiu ao encontro de
Jesus. Ao vê-lo, rogaram-lhe que se retirasse do moninhado e o que houve com os porcos. salvo o endemoninhado. 37E toda a população do
17
seu território. Começaram então a rogar-lhe que se afastasse território dos gerasenos pediu que Jesus se retiras-
do seu território. se, porque estavam com muito medo. E ele, to-
18 38
Quando entrou no barco, aquele que fora ende- mando o barco voltou. 0 homem do qual haviam
moninhado rogou-lhe que o deixasse ficar com ele. saído os demônios pediu para ficar com ele; Jesus,
19 39
Ele não deixou, e disse-lhe: "Vai para tua casa e porém, o despediu, dizendo: "Volta para tua casa e
para os teus e anuncia-lhes tudo o que fez por ti o conta tudo o que Deus fez por ti". E ele se foi pro-
Senhor na sua misericórdia". 20Então partiu e co- clamando pela cidade inteira tudo o que Jesus havia
meçou a proclamar na Decápole o quanto Jesus feito em seu favor.
fizera por ele. E todos ficaram espantados.

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