Ariovaldo Vidal
Universidade de São Paulo (USP)
RESUMO PALAVRAS-CHAVE:
Este ensaio é formado de duas partes: a primeira Luiz Vilela;
analisa o romance Os novos (1971), romance de ditadura militar;
geração que trata de um grupo de universitários às Os novos;
voltas com a opressão do regime militar e as dúvidas contos;
diante dos caminhos possíveis. A segunda parte do lirismo.
ensaio trata dos contos de Luiz Vilela (também
situados nesse período), mas procurando antes
compreender alguns procedimentos do autor na
construção da narrativa, bem como apontar o lirismo
presente em muitas de suas histórias.
ABSTRACT KEYWORDS
This essay is presented in two parts: the first part analyzing Luiz Vilela;
the novel Os novos (1971), a generation novel, talking military dictatorship;
about a group of academic students dealing with the Os novos;
oppression of a military regimen and the doubts before the tales;
possible paths. The second part of the essay deals with the lyricism.
tales by Luiz Vilela (also located in the same period), but
instead, trying to understand some procedures by the
author to construct the narrative, as well as to point out the
lyricism present in several of his stories.
A primeira parte deste ensaio foi publicada originalmente no Jornal da USP. São Paulo, 26 de março de
2018; a segunda parte, inédita, foi escrita originalmente para um livro em homenagem a Luiz Vilela.
omance e contexto
1
A expressão de Antonio Candido está em “Literatura e cultura de 1900 a 1945”, In: Literatura e
sociedade. 7. ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1985, p. 121.
2
Refiro-me ao conhecido “Jornal, realismo, alegoria: o romance brasileiro recente”, publicado em
Achados e perdidos. São Paulo: Polis, 1979, pp. 79 e ss.; republicado em Outros achados e perdidos. São
Paulo: Companhia das letras, 1999, pp. 77 e ss.
angústias o País vivia o entrave da ditadura; e esse era um dado novo: uma
juventude que ganhava uma visão politica dos fatos, em meio ao
anonimato da grande cidade.
Em muito a personagem central de Luiz Vilela é esse mesmo jovem,
e não é por acaso que em sua obra haja um grande número de estudantes
e adolescentes. O romance que melhor concentra esse universo de relações
é Os novos (1971), que conta a história de um grupo de universitários em
Belo Horizonte, vivendo os impasses de escolhas novas, num país também
em impasse. O romance se passa no final dos anos 60, no contexto do
nefasto AI-5: Nei é a personagem central que, recém-formado, já dá aulas
de filosofia, escreve contos, frequenta bares com os amigos, mantém uma
relação afetiva com o pai distante que às vezes vem visitá-lo, e vive o drama
sentimental de fazer dos amantes dois inimigos.
O livro retoma de maneira clara a tradição mineira dos romances que
misturam a crônica de grupo e a confissão do protagonista; é visível a
presença de O amanuense Belmiro (1937), de Cyro dos Anjos, nas cenas vivas
da roda de amigos que contrastam com um lirismo subjacente ao
protagonista (diga-se que no romance de Cyro, o lirismo está por toda
parte, enquanto no de Vilela o prosaísmo está por toda parte); mas retoma
também e de modo mais claro o livro de Fernando Sabino, O encontro
marcado (1956), com o qual compartilha um mesmo grupo de amigos que
dividem suas preocupações e impasses: “Estou cansado de tudo isso —
disse Nei. — Cansado dessa confusão, cansado da literatura, cansado dessa
cidade e dessa chuva, cansado até dessas nossas conversas, que não levam
a nada. Dá vontade de sumir pra longe daqui”.3 E compartilha também o
fato de ser o depoimento vivo de uma geração, na expressão de Alfredo
Bosi para o livro de Sabino.4
O romance possui um andamento solto (não desordenado),
contando a história de uma geração de jovens escritores, não mais
formados em medicina, farmácia ou direito, mas agora ganhando a vida
com o magistério ou o jornal, e a caminho do universo da publicidade.
Trata-se de um romance de geração, abusando de um prosaísmo pesado,
com o palavrão correndo solto e — como romance de geração — tendo no
bar o espaço por excelência em que transcorre a ação. Nele (ou neles)
habitam as personagens que vivem os impasses de sua geração: além do
protagonista Nei, aparecem seus dois amigos mais próximos Vítor e Zé,
além de outros que transitam bastante ou pouco pelos mesmos espaços:
Ronaldo, Martinha, Milton, Leopoldo, Queiroz, Dalva, Mário Lúcio,
Gabriel e Telmo.
Nas conversas que preenchem o livro, aparecem os temas do período
e daquele contexto: o papel da literatura, a comédia provinciana dos
3
VILELA, Luiz. Os novos. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova fronteira, 1984, p. 172.
4
BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. 3. ed. São Paulo: Cultrix, 1991, p. 475.
Conto e lirismo
também que esse movimento, que teve lugar num determinado momento
da literatura brasileira de maneira concentrada, vinha na esteira da
mudança maior ocorrida com o romance no século XX, com a perda do
distanciamento épico, a dificuldade cada vez maior em compreender a
realidade, a descrença do próprio narrador no ato de narrar, tudo agora
reduzido ao âmbito de sua subjetividade; enfim, pressupostos que estavam
dados na base desse novo romance e que a melhor crítica procurou
descrever.7
Voltando ao nosso contista e à sua obra, a melhor definição para a
personagem central da literatura de Luiz Vilela pode ser feita lançando
mão livremente da expressão com que Hegel definiu o romance burguês
enquanto gênero: são personagens que vivem “o conflito entre a poesia do
coração e a prosa oposta das relações”.8 Não se trata de encontrar nessa
formulação original uma linha direta com a obra do contista brasileiro, e
seria tolo pensar dessa forma dada a situação histórica do escritor; mas
tomada a expressão em si, ela descreve como nenhuma outra o sentido e a
condição desses seres deslocados, constrangidos, tímidos perante os
convites ou recusas que a vida oferece. Trazem consigo uma interioridade
rica e afetiva, angustiada muitas vezes por não encontrar na objetividade
do mundo aqueles mesmos conteúdos que são a promessa de uma
plenitude capaz de superar a finitude do tempo; são quase sempre seres
melancólicos, herdeiros ainda do “romantismo da desilusão”.9
Mas se quisermos aproximar a caracterização dessa personagem do
lugar histórico em que se encontra, talvez seja melhor mesmo dizer que são
todos seres que sorrir já não podem, e vão embora solitários quando os
bares se fecham e as virtudes se negam, para falar com a voz do mineiro
que melhor os compreendeu. De fato, não seria difícil tomar Drummond
como um apoio decisivo para a leitura dos seres e contos de Vilela: bastaria
pensar nas inúmeras maneiras com que o poeta caracterizou sua persona
lírica, o gauche que se sente sempre inadequado no mundo que o cerca,
pois quando funcionário respeitável, aparece vestido num terno de vidro;
quando numa festa, fica torto no seu canto; e quando está amando, faz de
Fulana um mito.
Mesmo quando o conto se resume a uma cena ou sequência de
humor, como é o caso de “Velório”, de Tremor de terra (1967), o olhar lírico
7
Penso, por exemplo, nos ensaios conhecidos de Erich Auerbach, “A meia marrom”; Theodor Adorno,
“Posição do narrador no romance contemporâneo”; e Anatol Rosenfeld, “Reflexões sobre o romance
moderno”.
8
HEGEL, G.W.F. “A épica como totalidade plena de unidade”. Cursos de estética. Trad. de Marco
Aurélio Werle e Oliver Tolle. São Paulo: Edusp, 2004, vol. IV, p. 138.
9
Refiro-me ao capítulo de Georg Lukács em A teoria do romance. Trad. de José Marcos M. de Macedo.
São Paulo: Duas cidades/Editora 34, 2000. Num ensaio sobre Fernando Gabeira e a prosa do período, ao
mencionar alguns romances sobre o jornalismo Davi Arrigucci Jr. já definia O inferno é aqui mesmo
(1979) como um “romance de ilusões perdidas”. Cf. “Gabeira em dois tempos”. Enigma e comentário.
São Paulo: Companhia das letras, 1987, p. 120.
a) Narrador confessional
10
Com referência às categorias de foco narrativo, trabalho livremente com a terminologia do ensaio de
Norman Friedman, “O ponto de vista na ficção: o desenvolvimento de um conceito crítico”. Trad. de Fábio
Fonseca de Melo. Revista USP. São Paulo: mar./maio 2002, n. 53; e o livro de Ligia Chiappini, O foco
narrativo. 6. ed. São Paulo: Ática, 1993, baseado no ensaio de Friedman.
11
Cf. KAYSER, Wolfgang. “A estrutura do gênero”. Análise e interpretação da obra literária. Trad. de
Paulo Quintela. 7. ed. Coimbra: Arménio Amado, 1985, p. 380. Além do ensaio de Kayser, utilizo também
na definição da voz lírica os ensaios de Emil Staiger, “Estilo lírico: a recordação”. Conceitos fundamentais
da poética. Trad. de Celeste Aída Galeão. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1975; e Anatol Rosenfeld, “A
teoria dos gêneros”. O teatro épico. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 1985.
12
VILELA, Luiz. Tremor de terra. 5. ed. São Paulo: Ática, 1977, p. 115.
pelo ser até então inexistente. O resto é a angústia pela espera da aula na
noite do terceiro dia.
O segundo segmento do conto começa quando volta a vê-la na aula
seguinte, e se estende quase até o fim da narrativa, com algumas marcações
que mostram a narração sumariada de vários dias em que a viu, com quem
não falou, e cuja narração intensifica o desconcerto do aluno, cada vez mais
mergulhado na busca por compreender o sentido dessa ausência em sua
vida.
Há dois aspectos que se destacam mais claramente nesse momento
da voz narrativa: de um lado, seu lugar social; de outro, a significação que
aquela imagem ganha nesse mergulho. A certa altura, depois de perceber
que não pensava em sexo com relação à professora, se pergunta: “Bolas, se
não era sexo, o que que eu queria com ela? O que que eu queria: era isso
que eu me perguntava. E eu não sabia responder”.13 Desse fato, o narrador
passa a responder a todas as imposições que sente na vida, num universo
opressivo cheio de papeis e expectativas, momento em que a linguagem
lírica cede mais ao prosaísmo do período, para falar abertamente da vida
sexual, reduzida a preconceitos e encontros de prostíbulo, para falar ainda
mais em sua solidão.
Opondo-se a essa condição, a misteriosa e cotidiana professora vai
cada vez mais ganhando uma significação extensa em seu imaginário, em
belos momentos de um estilo reiterativo, adicionando imagem sobre
imagem, metáfora a metáfora, que acabam por configurar a sua fragilidade
diante de um sol indiferente e perfeito, que aqueceu o primeiro ser da Terra
e aquecerá o lírico narrador, quando este for apenas um punhado de terra
na sepultura. É justamente nesses momentos que a linguagem poética do
autor melhor se mostra, sem abrir mão do prosaico que a ela se mistura,
para dizer a beleza que emerge do chão a que o narrador está preso. E toda
a significação da figura aparece sintetizada na imagem sublime e selvagem
que dá título ao conto — o tremor de terra —, que o narrador deseja
ardentemente desde criança, que esperava acontecer um dia como as
outras crianças esperavam pelo Papai Noel.
Na última e breve sequência do conto, ocorre o desfecho da história,
quase sem desfecho: o aluno segue a professora, com quem nunca
conversou, na sua caminhada até a casa, ao lado do marido, ambos belos e
felizes. Passa por um bordel, como última tentativa frustrada de preencher
o vazio descoberto, que ele sabe que o acompanhará pela vida afora, ainda
que esteja ao lado de “Sônia ou Lúcia ou Marta ou Regina ou Beatriz ou
Marisa”.14
Na releitura do conto, lembrei-me da novela de Raymond Radiguet,
O diabo no corpo (1923), lida na mesma época em que li o volume de contos
13
Idem, ibidem, p. 119.
14
Id., ib., p. 122.
b) Narrador confidente
15
VILELA, Luiz. Tarde da noite. São Paulo: Vertente editora, 1970, p. 109.
c) Desfechos
mas que teve uma vida digna e respeitável como grande violonista,
amparando os pais na pobreza e sendo feliz ao lado da esposa numa
casinha modesta, enquanto o irmão criminoso e a irmã prostituta eram a
desgraça da família. A construção acumulativa e veloz das frases, com a
passagem rápida dos acontecimentos narrados de forma sumariada, leva à
revelação final das últimas linhas, quando ficamos sabendo que o
criminoso (já fora da cadeia) se apaixona pela cunhada e o cego, para não
ouvir o som dos beijos adúlteros na sala de casa, tocava na maior altura
possível, “até que as cordas rebentaram, até que ele rebentou o ouvido com
um tiro”.16 De forma expressiva, a voz do lírico nesse conto (que não se
ouve) começa pela música e termina num estampido.
Assim, a revelação final vira a frase decisiva do avesso; é um conto
muito marcante do momento em que foi publicado, como expressão dessa
geração de novos escritores vindos de uma classe média católica, e disposta
a jogar no lixo a mentalidade carola com a qual teve de conviver; para
perceber esse contexto de que se fala, basta pensar na canção antológica de
Chico Buarque — “Bom conselho” — lançada alguns anos depois do conto
de Vilela, em que vários provérbios são também virados do avesso, numa
tentativa de liquidar essa mentalidade conservadora. Mas o fato é que o
conto tem uma gravidade e uma herança naturalista que incomodam o
leitor; o acúmulo de negatividade (a cegueira do músico, a miséria da
família, o irmão alcoólatra e criminoso, a irmã adúltera e depois prostituta,
a esposa infiel), aliado ao grandiloquente da cena final, dá ao conto uma
camada de melodrama carregado de um pathos supostamente trágico que
se resolve, na verdade, de forma patética. Nesse sentido, difere do primeiro
conto lido — “Tremor de terra” — pois esse não trazia impacto algum no
final, cuja força dependia da manutenção da voltagem lírica da linguagem,
sem lançar mão de qualquer peripécia.
Caso intermediário se dá, por exemplo, com o conto “Bárbaro”, de
Tarde da noite. A oposição entre as vozes aqui é bastante clara – como a
figura dos dois irmãos no conto anterior —, mas agora feita na chave do
prosaico: os dois estudantes conversam num quarto de pensão ou
república (o conto é um grande diálogo), e um deles conta a história da
festa a que esteve no dia anterior; sua voz ocupa praticamente todo o conto,
do início ao fim, numa linguagem de um prosaísmo pesado, feito de gíria
e palavrões, traço marcante de boa parte da prosa dos anos 70, quando esse
tratamento despachado da linguagem era também um ato político. A
matéria da festa acompanha no mesmo nível a fala da personagem: é
simplesmente o caso de um grupo de amigos estudantes que vão a uma
festa na casa dos pais de um deles (que não está presente) e ficam
incomodados com a “caretice” da festa, de um ambiente a que não estão
16
VILELA, Luiz. Tremor de terra, p. 73.
17
VILELA, Luiz. Lindas pernas. São Paulo: Livraria Cultura Editora, 1979, p. 114.
18
Cf. ANGELIDES, Sophia. A.P. Tchekhov: cartas para uma poética. São Paulo: Edusp, 1995, p. 192.