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leitor brasileiro tem agora à

Transcriação dá cria O
sua disposição uma nova

versão daquela que é a mais

célebre tragédia da antigüi-

dade grega, Édipo Rei, de

Sófocles (497-406/405 a.C.):

a Editora Perspectiva publi-

ANDRÉ MALTA
cou recentemente a tradução da peça

realizada pelo helenista Trajano Vieira,

professor da Universidade de Campinas. O

volume integra a Coleção Signos e vem se ANDRÉ MALTA


é professor de Língua e
juntar a outro título da série, Três Tragédias Literatura Grega da
FFLCH-USP
Gregas, de 1997, que apresentava, além da
Édipo Rei de Sófocles, de
transposição de Antígone por Guilherme Trajano Vieira, São Paulo,
Perspectiva, 2001.
de Almeida, os translados, também da lavra

de Trajano, de Prometeu Prisioneiro e Ájax.

Ao contrário dessa edição, porém, que se

caracterizava pelo heterogeneidade – com

o resgate, de um lado, do trabalho do poeta

modernista (e também de Ramiz Galvão,

helenista da virada do século XIX para o

XX), e com a proposta, de outro, de

recriação da poesia trágica por Trajano (com

a participação especial de Haroldo de

Campos) –, a presente obra é una, evitando-

se assim a dispersão por diferentes autores

e tradutores.

O livro está dividido basicamente em

duas partes: o estudo e a tradução (seguida

do texto grego). Além delas, temos uma

sucinta apresentação, escrita por Jacó

Guinsburg, que chama a atenção para a

eficácia cênica do drama, e um “mosaico

hermenêutico”, espécie de apêndice em que

se sucedem vinte e um excertos das mais

variadas abordagens já feitas a respeito da

tragédia – útil, decerto, mas que figura como

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o único senão à mencionada unidade do gregos em versos livres em português, pro-
trabalho. Do estudo “Entre a Razão e o curando sempre a concisão; é uma tradução
Daímon”, de caráter geral e introdutório, fluente, cuja recriação se concentra sobre-
pode-se afirmar que expõe com clareza as tudo no translado dos epítetos (os adjetivos
particularidades da versão dada por Sófo- típicos), como “gruta altiteto” (v. 23) e
cles ao mito do filho que, sem saber, mata o “olhiagudo Argicida” (v. 73), processo de
pai e se casa com a mãe, e que, muitos anos composição de novas palavras que convive
depois – esta é a ação do drama –, ao conduzir com outro recurso, a simples justaposição
a investigação do assassinato do antigo de termos, sem o uso da preposição, como
soberano, descobre a si mesmo. É igualmente em “Hera, brancos braços” (isto é, “Hera
adequada a discussão a respeito do aparente de brancos braços”, v. 8) e “Hermes, mente
paradoxo, na peça, entre liberdade humana furtiva” (“Hermes de mente furtiva”, v.
e determinação divina, que resultou em vãs 413). O primeiro expediente de recriação,
tentativas, por parte dos especialistas, em característico das versões homéricas
discernir o que nela se deve imputar à oitocentistas do maranhense Odorico
responsabilidade do herói (Édipo) e o que se Mendes (modelo para Haroldo de Campos),
deve atribuir à predestinação divina (o nume está presente hoje mesmo no âmbito das tra-
ou daímon). Já em relação à tradução, nem duções acadêmicas, não representando
seria preciso dizer que representa – efetiva novidade (embora requeira efetiva
pertencendo à coleção que pertence – a parte arte). Já o segundo indica que, por essa época,
mais importante do trabalho; por isso mesmo, Trajano talvez já se deixasse influenciar pelos
ela merece aqui um exame mais cuidadoso. parâmetros de transcriação do concretista –
Primeiramente, deve-se mencionar o resultado do convívio que ambos começaram
fato de que esta versão de Trajano Vieira é a manter em 1990, com o fim de que este
encarada por Haroldo de Campos, na orelha fosse guiado por aquele em seu translado de
do livro, como “a culminação, até agora, da Homero, e que até agora resultou, pri-
tarefa transcriadora que está empreen- meiramente, numa versão parcial do CANTO
dendo” – “culminação” porque no referido 1 d’A Ilíada (publicada no final de 1991 nesta
trabalho de 1997, como dizia Haroldo revista), e, em seguida, na tradução integral
também em sua orelha, Trajano já vinha desse mesmo canto (editada pela Nova
estabelecendo em português “uma dicção Alexandria, em 1994) e também do segundo
capaz de transpor criativamente o texto dos (Sette Letras, 1999) – além da tradução do
trágicos gregos com o instrumental da início do CANTO 11 d’A Odisséia, há pouco
poesia moderna”. Estamos, portanto, diante dada a público na revista Phaos (*).
de um tipo muito particular de tradução, a Foi, portanto, a tradução de Homero pelo
“transcriação”, neologismo cunhado pelo poeta concreto que pôs Trajano em contato
poeta concreto para designar uma atividade direto com a transcriação – e, como dis-
poética que tem exercido de modo bastante semos, no seu doutorado já surgiam os
fecundo nas últimas décadas. No caso primeiros indícios de seu pendor para esse
específico de Trajano, entretanto, seria con- tipo de modalidade tradutória, ratificado,
veniente esclarecer brevemente como ocor- por exemplo, pelo emprego que faz, no Hino
reu sua filiação a essa corrente tradutória (v. 358), da mesma solução que Haroldo
(pois ela se deu de modo gradual, até chegar havia usado num passo do prólogo d’A
à “culminação” de que fala Haroldo), antes Ilíada (v. 47), “ícone da noite”, recriação
de passarmos ao exame de sua transposição para nuktì eoikós (literalmente, “semelhante
do Édipo Rei. à noite”) que se vale do parentesco lingüís-
O primeiro exemplo da atividade do tico entre o particípio grego eoikós e o nosso
helenista como tradutor está em sua tese de substantivo “ícone”. Depois disso, o
* O primeiro volume da tradução
de Haroldo de Campos, com doutoramento, de 1993, em que produz uma helenista publicou mais dois trabalhos, uma
os doze primeiros cantos da versão do Hino Homérico a Hermes. versão da 8a Pítica de Píndaro (em 1996,
Ilíada, saiu, no final de 2001,
pela Editora Mandarim. Trajano resolveu então os hexâmetros nesta revista) e as já mencionadas transpo-

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sições de Ésquilo e Sófocles em Três Tragé- que demonstram sobretudo uma preocu-
dias Gregas, no ano seguinte. O traço mais pação com a sonoridade (assonâncias,
notável nessas traduções, inovador em aliterações, ecos, repetições), outro item
relação ao Hino, é o emprego moderado da caro ao poeta concretista, e que o próprio
simples transliteração dos nomes gregos – Trajano destaca em seus comentários ao
por exemplo, “Díke” (Ájax, v. 1.390) e translado do CANTO 2 por Odorico Mendes,
“ônfalo” (8a Pítica, v. 62), não traduzidos que acompanha a de Haroldo na mesma
como “Justiça” e “umbigo”, respecti- edição. É dessa forma, portanto, como
vamente –, ou ainda a transliteração seguida conseqüência do amadurecimento de um
de tradução, como “Ate, o Malogro” (Pro- percurso poético, que devemos ler esta
meteu Prisioneiro, v. 1.072), ainda menos versão para a tragédia máxima de Sófocles.
freqüente. Para Píndaro, Trajano manteve Mas quais os resultados obtidos? Ve-
novamente o verso livre em português (sem, jamos inicialmente a escolha do metro.
entretanto, estabelecer uma correspon- Trajano resolveu inovar nos complexos
dência verso a verso com o original); já trechos líricos e usar desta vez o verso livre,
para as tragédias adotou metros fixos: o mas manteve nos diálogos o emprego do
decassílabo nas partes dialogadas e versos decassílabo como um equivalente possível
de seis a oito sílabas nos trechos corais. do chamado trímetro jâmbico – simpli-
Era esse, de modo bastante resumido, o ficando bastante, um verso subdividido em
seu percurso como tradutor até chegarmos três blocos com dois jambos (uma sílaba
à sua versão do Édipo Rei – um trajeto breve e outra longa) cada; se fizéssemos a
marcado por uma paulatina e vacilante contagem desse metro aplicando nossos
familiarização com os paradigmas harol- critérios do português, de tonicidade,
dianos, que revelava mesmo uma certa re- veríamos que esse trímetro, em geral,
lutância em abraçar abertamente o estatuto produz versos que oscilam entre dez e doze
de “transcriação”. E talvez por isso, apenas sílabas. A escolha do decassílabo, portanto,
com o Édipo Haroldo possa então falar em não é inadequada (embora dê uma margem
“culminação” de um processo tradutório. de manobra menor do que, por exemplo, o
De fato, como vamos ver adiante, aquilo hendecassílabo empregado por Guilherme
que, conforme apontamos, nas traduções de Almeida em sua Antígone). Trajano,
anteriores de Trajano estava apenas entretanto, mostra-se um versificador
esboçado ganha agora livre curso: a recria- rigoroso, cioso da perfeita acentuação do
ção dos epítetos compostos, ao lado da sua metro de dez sílabas, e cioso também da
mera colocação junto ao substantivo que fluência do texto em português; juntos,
qualifica; a transliteração de termos gregos então, esses fatores, se por um lado favo-
importantes, às vezes seguida de sua tradu- recem a concisão, o ritmo e a clareza, por
ção; e a recuperação etimológica – além, outro sacrificam a transposição fiel do que
vale mencionar, da inserção aqui e ali de vai dito em grego. O primeiro verso, uma
vocábulos e expressões coloquiais, em fala de Édipo, serve como bom exemplo:“ ô
convívio com termos de extração culta. E é tékna, Kádmou toû pálai néa trophé”
possível destacar assim esses pontos, que significa, literalmente, “Filhos, jovem prole
compõem como que uma poética parcial do antigo Cadmo”. Trajano traduziu-o por
da tradução do grego, porque o próprio “Descendentes de Cadmo! Crianças,
Trajano acabou por elencá-los – não no moços!”. A opção parece se justificar exa-
Édipo nem nos trabalhos anteriores seus, tamente pelo fato de que, numa tradução
mas ao apresentar a já referida tradução de literal como a que propusemos, teríamos as
Haroldo do C ANTO 2 d’A Ilíada. Dos dez sílabas, mas não os acentos de regra (na
próprios apontamentos do helenista, que sexta e/ou quarta e oitava sílabas); já uma
são esparsos e podem ser pinçados dos tradução por “Filhos, do antigo Cadmo
estudos que precedem essas versões suas jovem prole”, embora respeitasse a acentua-
(e das notas a elas apostas), temos exemplos ção, descuidaria da preocupação com a or-

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dem direta, o que também seria proble- simples. É o que acontece, por exemplo,
mático. Premido por essas necessidades, nos versos 396 e 397, em que Édipo,
Trajano não obstante se saiu com uma vangloriando-se, diz:
solução que procura manter a idéia do verso
grego, cujo contraste entre “jovem prole” e “[…] E eu cheguei;
“antigo Cadmo” se resolve em “crianças” dei cabo dela [da Esfinge], alguém sem
e “descendentes de Cadmo”. [crédito, Édipo”.
O não-acompanhamento estrito da letra
original, portanto, não é um empecilho, uma No original, em vez de “alguém sem
vez que o tradutor parece sempre atento às crédito” temos “o que nada sabe” (“ho medèn
peculiaridades do texto, esforçando-se por eidós”). Trajano, com sua solução, buscou
recriá-las em português, dentro dos pa- recriar, com a rima “crédito”/“Édipo”, o jogo
râmetros que se impôs. Tomemos, como de palavras divisado por estudiosos entre o
outro exemplo, os versos 87 e 88, em que verbo grego oîda (“saber”, do qual eidós é
Creonte (ou Creon, como quer Trajano, e particípio) e o nome Oidípous (literalmente,
não Créon, como usou Guilherme de “de pés inchados”) – jogo que apontaria para
Almeida) afirma a Édipo que traz de Delfos a ambígua condição de Édipo como sábio/
ignorante. Nesse passo especificamente,
“um dito bom: se a adversidade acaso porém, uma versão mais literal, como “dei
corrige o passo, em bem resulta o acaso”. cabo dela, quem nada sabe, Édipo”, seria
mais adequada, por respeitar a dupla ironia
Se não temos aí um translado fiel, verifi- expressa pela fala do soberano: aquele que
camos, em compensação, a preocupação em diz, de modo irônico, nada saber,
recuperar a repetição, em fim de verso, das efetivamente – ironia maior – nada sabe a
formas verbais túkhoi/eutukheîn, com o ganho seu próprio respeito. Esse trágico efeito
ainda de uma rima toante entre “passo” e verbal é, como se sabe, um traço notável da
“acaso”. Em outra fala do mesmo Creon (vv. peça; conforme já disse Jean-Pierre
100 e 101), temos novamente prova dessa Vernant, “Édipo não sabe nem diz a verda-
competência do helenista, que recupera dessa de, mas as palavras que ele emprega para
forma a repetição phónoi/phónon, “com dizer outra coisa manifestam-na, sem que
assassinato”/“o assassinato”, e a paronomásia ele saiba, de maneira espantosa”. Nos versos
pálin/pólin, “de volta”/“cidade”: 137 e seguintes, por exemplo, já dizia o
herói, disposto a encontrar o assassino do
“Caçar o réu, pagar com morte o morto: antigo senhor de sua esposa (isto é, seu pai)
que escarcéu faz na pólis este sangue!” – e prenunciando sua automutilação:

Muitas outras soluções felizes poderiam “Não ajo em nome de um remoto amigo,
ser citadas, como “[…] Atue o nume/ e mas por mim mesmo eu mesmo afasto a
recolhamos júbilo ou catástrofe” (vv. 145 e [mácula:
146), que encerra uma fala de Édipo fluen- quem pôs as mãos em Laio logo pode
temente vertida; ou todo seu discurso do querer de mim vingar-se com seu golpe”.
verso 216 ao 275; ou ainda o verso 290,
“rumor antigo surdo repercute”, recriação Também são irônicos os versos 258 e
para, literalmente, “e o resto são palavras seguintes, em que Édipo novamente faz
embotadas e antigas”; ou, por fim, este referência a Laio:
magnífico verso dito a Édipo por Tirésias,
“O dia de hoje te expõe à luz e anula” (v. “[…] Aconteceu-me
438). Às vezes, contudo, o intuito de re- de herdar o mando que lhe pertencia,
cuperar engenhosamente uma peculia- de herdar seu leito e desposar-lhe a esposa;
ridade do original se mostra menos eficiente não o privasse a sorte má de filhos,
do que se provaria o recurso a uma solução teriam os nossos uma só matriz.

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Sobre a cabeça dele pesa o azar. de prosa” (para légein deinós, “hábil no
Por isso, como por meu pai, combato”. falar”, v. 545) convivem com “factótum”
(para sympráktor, “ajudante”, v. 116),
Esse poder ambíguo das palavras – que “decúbito dorsal” (para h_ptios, “deitado
podemos resumir com a tradução dada a uma de costas”, v. 812) e “fâmula” (para próspole,
das falas de Jocasta ao mensageiro coríntio, “criada”, v. 945). Apenas no verso 430, em
“[…] Tem senso duplo o teu dizer” (v. 938) que as duas vertentes aparecem lado a lado
– infelizmente não é mantido em um outro – quando Édipo diz a Tirésias “Vai para o
passo, além do já mencionado verso 397. inferno! Some! Vai de retro” –, Trajano
No verso 293, informado pelo coro de que poderia ter usado simplesmente “de volta”
andarilhos teriam matado Laio, Édipo para verter o advérbio pálin, em vez de
responde: “Ouvi dizer. Quem presenciou, provocar, com “de retro”, uma inoportuna
sumiu”. Melhor, entretanto, do que “quem referência à célebre expressão do
presenciou” seria a transposição quase literal, Evangelho “Vade retro, Satanás”.
condizente com o metro, “ninguém vê quem Já em relação a outro tópico, o dos
viu isso”, “quem viu isso” referindo-se tanto epítetos, o helenista mantém os procedi-
ao servo que sobreviveu à chacina quanto ao mentos das traduções anteriores, com a
próprio assassino, Édipo. Há ainda aquelas criação de neologismos como “viver
falas que, pela construção particular do texto plurinvejado” (“polyzéloi bíoi”, v. 381), e
original, acabam por indicar, por um segundo sobretudo com a colocação do qualificativo
que seja, a real filiação de Édipo. Assim, no em aposição, como em “Esfinge, canto-
verso 928, o coro diz ao enviado de Corinto: enigma” (“poikiloidòs Sphígx”, v. 130),
“Sua esposa [de Édipo] é aquela, a mãe dos “Delfos, toda-ouro” (“polykhrysoû
filhos dele”. Com o recurso às reticências Pythônos”, v. 152), “guardiã-do-solo,
depois de “mãe” (presente em algumas Ártemis” (“gaiáokhon Ártemin”, v. 160) e
traduções), Trajano teria mantido a identifi- “leis, altos pés” (“nómoi hypsípodes”, v.
cação entre “esposa” e “mãe” que momen- 865) – este último exemplo, curiosamente,
taneamente notamos no verso grego – e que sem o hífen, recurso gráfico empregado sis-
os ouvintes podiam notar mediante uma tematicamente no translado dos demais
pausa dramática dada pelo ator. Do mesmo adjetivos afins.
modo, no verso 955, Jocasta diz a Édipo que É, porém, no emprego dos outros dois
o mensageiro “[…] informa/ o passamento itens dessa poética – a transliteração e a
de teu pai Políbio” – ou, na engenhosa recuperação etimológica – que vemos se
construção de Sófocles, algo como “[…] in- delinear de modo mais nítido o significado
forma/ que Pólibo [esta a forma tradicional dessa transcriação do grego, exatamente
do nome em português], teu pai, não é mais... pelo fato de que, através deles, perfaz-se
vivo”. Aqui talvez Trajano, atentando para aquele intuito de, segundo as palavras de
isso, propositalmente não tenha colocado a Jacó Guinsburg na apresentação, “grecizar
vírgula depois de “pai”, dando a entender concretamente a rearticulação vernacular
que Édipo tem outro... do Édipo”. E essa helenização de fato acon-
Mas vejamos agora especificamente os tece. A transliteração, que, como já dis-
pontos que compõem aquela pequena poé- semos, era quase imperceptível nas outras
tica da transcriação de que falamos. Come- versões de Trajano, agora se torna
cemos pelo emprego de formas coloquiais pervasiva, vindo acompanhada (ou não) da
ao lado de outras de extração culta. Trajano tradução: “Melhor entre os melhores,
se mostra comedido nesse ponto, princi- lembra: sóter,/ assim te chamam, nosso
palmente no primeiro caso (o que é salutar, salvador” (vv. 47 e 48); “Týkhe-Sóter, o
uma vez que o tom da tragédia, como se acaso salvador” (v. 80); “retorna, Sóter, e
sabe, é elevado), não havendo comprome- nos salva e cura!” (v. 150); “se tiver algo de
timento no resultado do trabalho. Assim, Élpis, a Esperança” (v. 121); “[…] Nele só/
“ás” (para prôton, “primeiro”, v. 33) e “bom se infunde o Desocultamento: Alétheia”

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(vv. 298 e 299); “Por Hélios-Sol, primaz Um último comentário sobre a
divino, não!” (v. 660); “Não me encontrais transliteração diz respeito às interjeições, fre-
gozando a paz de Hipnos” (isto é, “do sono”; qüentes nos dramas trágicos, mas pratica-
v. 65); “nem Lete – o oblívio – as adormece” mente ausentes nesta tradução. Em versos
(v. 870); “Colhei de Bios o que eu não como 316, 1.169, 1.313, as respectivas
conheci” (isto é, “da vida”; v. 1.514); “uma exclamações pheû pheû, oímoi e ió
torre contra Tânatos” (isto é, “contra a desaparecem. Em outros passos, Trajano
morte”; v. 1.201). Essa opção não é, por si tenta traduzi-las: no verso 1.071, ioù ioú
mesma, um problema; pelo contrário: é um vira “ai”; no verso 1.182, a mesma inter-
expediente bastante interessante, por jeição é vertida por “tristeza”, assim como
provocar ao mesmo tempo uma apro- pheû pheû no verso 1.324; e, finalmente, o
ximação e um estranhamento do grego. A verso 1.308, literalmente, “aiaî aiaî pheû
questão é que Trajano não segue nenhum pheû, infeliz de mim”, é vertido por “Dor!
critério – por exemplo, transliterar a Agrura!”. Por que não, conforme o intuito
primeira ocorrência e traduzi-la, para em de grecizar o português, transliterar esses
seguida, nas demais vezes em que o termo lamentos, como o faz Jaa Torrano em suas
surgir, manter apenas a transliteração (ou a versões?
tradução). O que constatamos é o emprego O segundo ponto desse processo de
arbitrário desse expediente. Peguemos como “helenização”, afim da transliteração, é a
exemplo uma noção importante na tragédia, recuperação etimológica. Um caso
týkhe, “acaso”: no já citado verso 80, “Týkhe- recorrente é o uso do elemento de com-
Sóter, o acaso salvador”, o termo, como se posição “pan-” em versos em que aparece
vê, é transliterado (com inicial maiúscula) e o pronome grego pâs, pâsa, pân, como
“explicado” (com minúscula); sete versos acontece já no oitavo, em que vai dito, no
depois, aparece somente traduzido, com original, “o por todos chamado célebre
minúscula; no verso 776, volta a surgir, no- Édipo”, e que Trajano assim verteu: “Édipo,
vamente apenas traduzido, agora com a cujo nome pan-aclamam”. Do mesmo
inicial maiúscula, “Acaso”, como acontece modo, no verso 60, “[…] Sei bem que/ vós
também no verso 978; no verso 1.080, volta todos sofreis” vira “Eu reconheço o pan-
a transliteração, agora sem tradução; e, fi- sofrer”, e o lamento de Édipo no verso
nalmente, na última fala da peça, temos mais 1.380, quando se considera “todo infeliz”
uma vez o par transliteração-tradução, esta (pantlémon), vira “pan-infeliz”. O outro
última com inicial maiúscula. Não é possível tipo de recuperação presente na tradução é
também entender por que, no verso 994, marcado pela utilização do vocabulário da
Trajano deixa de empregar “Lóxias” (isto é, área das ciências, que nos faz lembrar a
“Oblíquo”) – presente no original e condi- poesia de Augusto dos Anjos: “Cinese do
zente com seu empenho de helenizar a pensar, errância psíquica”, nos diz Édipo
tradução, além de se adequar ao metro – em no verso 726, em que temos, recuperados,
favor de “Apolo”. O que, afinal, deve-se os substantivos anakínesis (literalmente,
transliterar? Mais grave é empregar “oscilação”) e psykhês (“da alma”); no verso
“Cronos” para khrónos, “tempo” (vv. 561 e 1.361, em nova fala do herói, aqui já ciente
963), levando o leitor menos avisado a de sua identidade, o adjetivo homogenés,
confundi-lo com o pai de Zeus, Krónos. Por “congênere”, provoca o emprego de
que não, seguindo as regras de transliteração, “homogênese”, “[estou] em homogênese
KHrónos, como TýKHe? E por que não, com quem me fez”. Nos versos 1.411 e
como Týkhe e Nýks (v. 374), Hýpnos (v. 1.412, o rei, em desespero, roga que o
65), e não HIpnos? E por que não NýX? Por lancem ao mar (thalássion/ ekrípsate);
que acentuar Týkhe, e Hipnos não? Não há Trajano se aproveita do aparente parentes-
como encontrar coerência; todas essas co entre o verbo ekrípto, “lançar”, e nosso
escolhas dependem única e exclusivamente substantivo “cripta” (cognato, na verdade,
da vontade do tradutor. de outro verbo, krýpto, “ocultar”), e traduz

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desta forma: “[…] Me arrojai à cripta/ “Ah gerações de mortais,
talássea”. Temos ainda outros exemplos, como calculo igual a nada vosso viver!
como “psiquê” (v. 892), “ortovisão” (v. Pois qual homem – qual? – leva
419) e “macromedição” (v. 963). de felicidade (eudaimonías) mais
Bastante discutível, dentro desse que este tanto – parecer feliz
expediente, é a utilização de “demônio” (v. e, tendo parecido, cair?
828) ou do popular “demo” (v. 1258), ou Tomando como exemplo o teu,
ainda de “deus-demônio” (v. 1.311), para o teu destino (daímona), o teu, triste Édipo,
traduzir o grego daímon. “Demônio” de fato [não vejo
deriva de daimónion, um adjetivo grego da ventura em nada dos mortais”.
mesma raiz de daímon; daímon, entretanto,
na tragédia, indica – como aponta o próprio Além do emprego de “demo” e “demô-
Trajano no estudo – uma força divina em nio”, o sentido também é sacrificado pela
sua ligação com o destino do homem, não tradução inadequada do verso final: há uma
tendo nada a ver com o “espírito maligno” diferença entre dizer que não há ventura
do Novo Testamento. Na percepção grega entre os mortais e que estes “não parti-
antiga, o homem, segundo sua relação com cipam do divino”. A primeira afirmação
o daímon, o “nume”, podia ter eudaimonía, não nos leva forçosamente à segunda –
“boa fortuna”, e ser eudaímon, “bem-afor- senão como explicaríamos a figura do
tunado”, ou ter dysdaimonía, “má fortuna”, mortal (e infortunado) Tirésias, que, como
e ser dysdaímon, “mal-afortunado”. Trajano, a peça nos mostra, tem participação na
entretanto, no verso 1.302 verte este último esfera do Deus Apolo?
adjetivo, no feminino, por “demoníaca” (em Esses problemas diminuem a versão de
qualificação a moîra, “porção”, “destino”), Trajano? De modo algum. O helenista –
a fim de explicitar a relação com o daímon para citarmos o Augusto de Campos d’O
(“demônio”) de um verso anterior (v. 1.300). Anticrítico – jamais barateia Sófocles; en-
O jogo de palavras fica efetivamente frenta suas dificuldades e recria-o. Ainda
preservado, mas à custa de uma completa assim, ela fica naturalmente sujeita, como
distorção do significado. Outro exemplo é o toda tradução, a contestações, conforme os
início desta fala do coro, imediatamente critérios que adota. No caso da chamada
seguinte à plena descoberta por Édipo de “transcriação”, acima daqueles que procu-
sua identidade (versos 1.186 e segs.): ramos assinalar – e consubstanciando-os –
parece estar um critério maior, o virtuo-
“Estirpe humana, sismo do tradutor, segundo o qual uma tra-
o cômputo do teu viver é nulo. dução será tanto melhor quanto mais esse
Alguém já recebeu do demo um bem mesmo tradutor se fizer notado (uma opção,
[(eudaimonías) deve-se dizer, tão válida quanto, por exem-
não limitado a aparecer plo, a que se baseia no pressuposto contrá-
e a declinar rio). Assim é a versão de Haroldo para
depois de aparecer? Homero; e assim é, neste caso, a versão do
És paradigma, Édipo Rei de Trajano, que, embora discípulo
o teu demônio (daímona) é paradigma, e grato pelas “soluções poéticas” do mestre,
[Édipo: forjou seu próprio modelo, mais contido.
mortais não participam do divino”. Podemos, então, concordar com Haroldo e
ver aqui um ponto elevado no trabalho de
Há aí, como se vê, competência poética, um competente poeta da transcriação, um
mas a manutenção da correlação dos termos, poeta com o pleno domínio de seu ofício e
com a solução encontrada (eudaimonías/ que, por isso mesmo, deve, sempre atento,
daímona; “demo-bem”/“demônio”), acaba evitar uma perigosa ironia: de que o mer-
por sacrificar o entendimento desse belo gulho no virtuosismo resulte no empo-
passo, que poderíamos traduzir assim: brecimento de sua expressão.

REVISTA USP, São Paulo, n.52, p. 195-201, dezembro/fevereiro 2001-2002 201

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