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EDUARD FRAENKEL, Plautinisches im Plautus (Berlin, 1922, reimpr.


Hildesheim, 2000; trad. it. aument.: Elementi Plautini in Plauto,
Firenze, 1960).

PIERRE GRIMAL, Le Théâtre Antique (Paris, 1978), cap. VI, VII e VIII (trad.
port.: O Teatro Antigo, Lisboa, 1986).
A POESIA LÍRICA: CATULO

BRUNO GENTIL!, Lo Spettacolo nel Mondo Antico (Bari, 1977).


Da adaptação, ou melhor, da assimilação de formas e
FRANCISCO DE OLIVEIRA, "Teatro e Poder em Roma", Actas do Congresso mod"elos literários gregos, pudemos fazer uma ideia até
As Línguas Clássicas. Investigação e Ensino (Coimbra, 1993), 121-140.
aqui, através dos primeiros cultores do género épico e do
FRANCISCO DE OLIVEIRA, "Aculturação do Teatro em Roma", Máthesis 2 dramático.
( 1993 ), 69-90.
Um outro género literário em que o paradigma helénico
ETTORE PARATORE, Storia dei Teatro Latino (Milano, 1957). tinha muito que ensinar, a lírica, fez a sua entrada mais tarde,
ETIORE PARATORE, Plauto (Firenze, 1961 ). e novamente pela via da tradução. Com efeito, é de Lutácio
Cátulo, cônsul em 102 a.C., a mais antiga versão de um poeta
F. H. SANDBACH, The Comic Theatre of Greece and Rome (London, 1977,
trad. it.: li Teatro Comico in Grecia e a Roma, Bari, 1979). alexandrino - Calímaco 1•
Antes de prosseguirmos, teremos de nos deter um pouco, a
E. STÃRK, Die Menaechmi des Plautus und kein griechisches Original
(Tübinge11, 1989). fim de recordar que, tal como, no teatro cómico, se tinham
ido buscar modelos, não à época clássica, mas ao período
mais recente, como Menandro, Dífilo, Filémon, também na
lírica são os poetas helenísticos os que primeiramente se
impõem à admiração e imitação dos Romanos. E, se é certo
que dois dos maiores poetas desse período, Apolónio de
Rodes: autor de uma epopeia erudita, Os Argonautas, e
Teócrito, que elevou a poesia bucólica a género literário,
terão de esperar por Virgílio para encontrar ressonância

' Alguns apontam, neste campo também, a primazia de Énio. Assim


EDUARD FRAENKEL [Gnomon 34 (1962), 225], que remete para F. LEO,
Geschichte der romischen Literatur, 202-211, e S. MARIOTI1, Lezioni su
Ennio, 1951, pp. 104 sqq.
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para os requintes da sua arte, o terceiro grande nome, as palavras que melhor definem este período. Prova disso é o
Calímaco, desde cedo é aclimatado ao génio latino, e próprio Calímaco, que principiou assim um epigrama5 :
durante séculos continuará a ser imitado pelos maiores 2 •
Detesto um poema cíclico, e não aprecio
E não só Calímaco, mas também outros poetas de menor caminho por muitos trilhado.
realce, como Eufórion (também do séc. III a.e., ou do n,
como sustentam outros) e Meleagro (séc. 11-1 a.C.), que se Além disso, preocupava-os a erudição, como escreveu o
tornou célebre, quer como cultor, quer como compilador de mesmo Calímaco6 - que, não o esqueçamos, foi também um
epigramas 3• dos sábios da biblioteca de Alexandria:
Ora o epigrama (e a palavra é um composto grego que
literalmente significa 'inscrição ' ) era uma forma muito Não canto nada que não esteja documentado .
cultivada na Grécia desde a mais alta antiguidade, adquirira
valor literário a partir de Simónides, e, depois dele, quase Nestas mesmas linhas pensavam os que em Roma lhe
não houve poeta que não se exercitasse ocasionalmente na recolheram a herança. Aí surge um grupo. talvez formado
arte de exprimir em poucas linhas um pensamento, profundo, pela influência de Valério Catão, um douto e obscuro poeta e
novo, ou simplesmente original e inesperado, ou ainda uma professor7 , vindo da Gália Cisalpina. Dele faziam parte o tão
invectiva4 • Estas características tornaram-no o modo de admirado Calvo, Cina, Cornifício, Bibáculo e outros, que
expressão favorito da época helenística, com cujo gosto para nós são apenas nomes. Mas um ficou, num livro em que
quadrava perfeitamente. Brevidade, concisão, agudeza, serão há poemas longos e poemas breves, numa aparente desor-
dem que tem levado muitos a supor tratar-se de uma publi-
cação arranjada à pressa por editor ansioso de tudo reunir,
2
À sua influência na época de Augusto dedicou W . WIMMEL uma livro pleno de doctrina, revelador de uma técnica apurada
extensa tese, Kallimachos in Rom. Die Nachfolge seines apologetischen e requintada até aos últimos pormenores da expressão, mas
Dichtens in der Augusteerzeit (Wiesbaden, 1960). também atravessado pelo calor da paixão e pela vivacidade
3
A primeira grande colecção de epigramas, por ele publicada, tinha o
nome de Grinalda, por nela comparar cada poeta a uma flor. Juntamente
com outras, viria a servir de base à monumental colectânea do séc. x 5
Epigrama XXVII.1-2.
conhecida pelo nome de Antologia Palatina (assim chamada por o respec-
tivo manuscrito ter sido achado na biblioteca do Conde Palatino, em • Fr. 612 Pfeiffer.
7
Heidelberg). Cf. C. J. FüRDYCe, Catullus: A Commentary (Oxford, 1961), p. XIX.
8
' Sobre o epigrama antigo, veja-se o artigo respectivo na Enciclopédia Contra esse modo- de ver se levantou, entre outros, KENNETH QUINN,
Verbo XXI, no qual a parte grega é da nossa responsabilidade e a latina Catullus. An lnterpretation (London, 1972), que defendeu a hipótese de se
da de A. COSTA RAMALHO. tratar de uma edição planeada pelo autor.
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de sentimentos irreprimíveis , que tomam voz com uma força Em muitos dos poemas menores - e, por sinal, dos mais
poucas vezes ouvida em qualquer literatura. Esse é o livro de famosos - reconhecem-se os modelos helenísticos 11 , como no
Catulo. gracioso epicédio pelo passarinho da amada (III), no irónico
A nota da erudição, que atrás vimos ser característica da convite para jantar (XIII), no não menos irónico poemeto a
arte alexandrina, soa logo no primeiro poema, formado pela simular o ex-voto de um navio envelhecido (IV), com o seu
dedicatória ao historiador Cornélio Nepos 9 : ritmo saltitante de iambos puros. Helenístico também o
modelo que sugeriu a Catulo a expressão concisa e densa do
A quem darei o lépido e novo livrinho, célebre dístico LXXXV:
há pouco alisado pela seca pedra pomes?
A ti , Cornélio: poi s era teu costume Odeio e amo. Perguntarás como isso possa ser.
dar algum valor às minhas bagatelas, Não sei; mas sinto-o, e é um tormento.
já no tempo em que ousaste, só entre os Ítalos,
desenrolar todo o curso dos tempos em três volumes Modelos gregos, embora mais difíceis de determinar,
doutos, por Júpiter, e laboriosos.
tem-nos certamente a mais extensa das composições de
Por isso, fica com este livrinho, seja qual for,
por pouco que valha ; e que ele possa, sob a tua égide, Catulo, o "Epitalâmio de Tétis e de Peleu" (LXIV).
ó Musa, permanecer jovem além de um século. Mas o caso mais interessante, para o nosso ponto de vista, é
sem dúvida o do carme LI, cujo modelo foi, não um carme
Às suas composições chama "bagatelas" (nugae); às do alexandrino, como temos visto até aqui, mas um poemeto grego
amigo "doutas" e "laboriosas", transferindo para ele os títu- arcaico, a chamada "Ode do Ciúme" de Safo (c. 600 a.C.).
los que ambiciona e que prova merecer em longos poemas O original retrata, com uma precisão admirável, num crescendo
como "A Cabeleira de Berenice" (Carme LXVI), que imitou de agonia, o desenvolver do sentimento do ciúme e seus efeitos
de Calímacow. físicos:

Semelhante aos deuses me parece


o homem que diante de ti se senta
•Romana, p. 93. e, tão doce, a tua voz escuta,
'ºA redescoberta, entre 1929 e 1952, de parte extensa do original grego
permitiu tirar conclusões favoráveis ao trabalho de Catulo. Assim, por
exemplo, FoRDYCE, que escreve: "Na maior parte, a versão de Catulo segue
" Podem ver-se alguns exemplos de correspondências em J. BAYEr,
o grego de perto, reproduzindo mesmo a sua estrutura e ritmo [...... ] embora
"Catulle, la Grece et Rome" in: L'lnfluence Grecque sur la Poésie Latine.
por vezes contraia [...... ]ou expanda [...... ]e uma vez, de qualquer modo,
Entretiens Hardt, vol. II (Geneve, 1953), pp. 1-39, e nas edições comen-
[...... ] falhe (no estado do texto que temos) em exprimir um ponto essencial tadas, das quais salientamos a de FoRDYCE (Oxford, 1961) e a de KENNETH
no grego" (op. cit., pp. 328-329). QUINN (London, 1970).
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ou amoroso riso - que tanto agita poema para ser publicado? Toda uma série de hipóteses se
meu coração de súbito, pois basta ver-te tem acumulado sobre este enigma, que como tal tem de ser
para que não atine com o que digo,
tratado 13• Um dos maiores especialistas, quer da poesia grega,
ou a língua se me torne inerte. quer da latina, EDUARD FRAENKEL, escreveu a este propósito
Um subtil fogo me arrepia a pele,
que tinha mudado de opinião umas poucas de vezes e se
deixam de ver meus olhos, zunem-me os ouvidos,
sentia inclinado à abstenção 14 • O mesmo Professor chama a
o suor inunda-me o corpo de frio,
atenção para o valor da tripla anáfora de otium no começo das
e tremendo toda, mais verõe que as ervas,
julgo que a morte não pode já tardar. três primeiras linhas e considera na estrofe dois momentos: o
primeiro, de censura a si mesmo, em que atribui ao otium a
O fr. 31 Lobel-Page de Safo, que acabámos de ouvir na causa dos seus desaires; outro, em que se universalizam os
versão poética de EUGÉNIO DE ANDRADE 12, está incompleto. inconvenientes do otium, seguindo um modo de pensar
Apenas se infere, de mais algumas palavras que iniciam nova corrente na época helenística, que via no gozo da paz e
frase, que "tudo era preciso ousar". prolongada ausência de medo o perigo da perda de energia,
Não sabemos se estava ainda completo quando o leu relaxamento dos costumes e consequente declínio 1' . E conclui:
Catulo. O que sabemos é que o carme LI do Veronês, tal "A magnitude do exemplum, que não aponta para este ou
como o temos, consta de quatro estrofes incompletas, omite aquele caso especial, mas para uma regra geral estabelecida
a quarta estância de Safo, e, em vez desta, dá-nos esta crua na história, serve para intensificar o peso da autocrítica ante-
chamada à realidade: rior e para a revestir de uma seriedade maior do que aquela
O ócio, Catulo, faz-te mal:
com o ócio excitas-te e anseias demasiado;
o ócio, a reis e cidades outrora felizes " Um resumo crítico das principais, acompanhado de bibliografia,
deitou a perder. encontra-se em FoRDYCE, op. cit., pp. 218-219. Veja-se também KENNETH
QUINN, Catullus. An lnterpretation, pp. 56-60.
Resultado da junção casual, por um editor inepto, de um Mais recentemente, PETER E. KNox, "Sappho, fr. 31 LP and Catullus 51.
poema independente, atraído ao anterior pela similitude do A Suggestion", Quaderni Urbinati di Cultura Classica 17 (1984), 97-102,
retoma a improvável hipótese, formulada por CHR. F. NEUE em 1827, de que
metro? Ou uma autocensura corno era frequente em poetas lati-
a origem desta estrofe derivaria também da poetisa grega. Por sua vez, M.
nos? Adição posterior, feita pelo autor, quando preparou o T. EowARDs, "Greek into Latiu: A Note on Catullus and Sappho", Latomus 48
(1989), 590-600, conclui no sentido oposto, e afirma mesmo: Os versos dão
expressão dramática à colisão entre dever e temperamento" (p. 600).
12 1
Poemas e Fragmentos de Safo (Porto, 2 1982). (Agradecemos ao • Horace (Oxford, 1957), pp. 211-212, nota 4.

Poeta a autorização para reproduzir aqui o seu texto). "Ibidem, p. 212. Esta última explicação cita os trabalhos de PASSERINI
A nossa versão de Catulo encontra-se em Romana, pp. 95-96. e FERRARI sobre o assunto.
I! .

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'
que teria, se estivesse simplesmente exposta nos termos
convencionais de queixa e remorsos do amante." 16
Se, na verdade, esta estrofe completa o poema, ela marca,
como muito bem viu J. BAYET 17 , a reacção romana. Teríamos
assim um caso isolado, dentro da produção catuliana, onde a A FILOSOFIA
atitude geral é a de desafio, de oposição aos hábitos estabele- \

cidos, de irreverência. Como- escreveu o mesmo latinista Já vimos que Cipião Emiliano beneficiou, para a sua
francês, "é nítida a sua tomada de posição contra a gravitas formação intelectual, da biblioteca de Perseu, trazida da
romana". Macedónia por Paulo Emílio, e do magistério de Políbio, o
Vivacidade, emoção, irreverência, é uma série de atitudes prisioneiro de guerra que havia de tomar-se um dos maiores
características de Catulo, partilhadas, certamente, pelo seu historiadores da Antiguidade.
círculo de amigos. Não admira, por isso, que Cícero pensasse Ligado a Cipião Emiliano, e sofrendo a sua influência,
mal deste grupo inovador, a quem chamava os modernos está todo um grupo de intelectuais que é convencional desig-
(n eoteroi - Cartas a Ático VII.2.I; poetae novi - O Orador nar por Círculo dos Cipiões, como também já vimos anterior-
48 .161) e que contrapusesse à figura augusta de Énio os mente.
Cantores Euphorionis, que desprezavam tão grande poeta A este grupo são atraídos não só Lucílio, o criador da
como o autor dos Anais. sátira, e o comediógrafo Terêncio, de quem também já tratá-
mos, mas filósofos como Panécio, membro ilustre da Escola
Estóica. É por esta via que o sistema filosófico, que teve acol-
BIBLIOGRAFIA himento tal entre os Romanos que se pode falar de assimi-
lação, entrou na Urbe.
J. BAYET, "Catulle, la Grece et Rome" in: L'lnfluence Grecque sur la Poésie Pouco mais de dez anos depois, em 155 a.e., uma
Latine. Entretiens Hardt, Vol. II (Geneve, 1953), pp. 1-39. embaixada ateniense vem a Roma pedir a supressão ou
C. J. FoRDYCE, Catullus: A Commentary (Oxford, 1961), pp. XVIII-XXII. redução da multa de quinhentos talentos, que fora aplicada à
N. I. HERESCU, Catulo, o Primeiro Romântico (Coimbra, 1948).
sua cidade, por ter saqueado Oropos. A composição da
embaixada oscila entre duas e três figuras, conforme a
KENNETH QUINN, Catullus. An Interpretation (London, 1972).
fonte de que nos servimos 1• Mas coincide num ponto: é que

16
Ibidem, p. 213. 1
17 A terceira figura é o Peripatético Critolau. Note-se que está ausente,
"Catulle, la Grece et Rome", cit., pp. 31-32.
em qualquer das versões, a Escola Epicurista.

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