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108 I Dominique Santos (Org.

Prof Me. Ivan Vieira Neto1

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odução
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., Quer sejam o resultado do gênio criativo dum único e talentosíssimo aedo
jónico, quer constituam a textura final duma colcha de retalhos coletivamente
cantada e escrita (colcha esta tecida por anos sem-conta), os versos da Ilíada
tiveram importância cabal no desenvolvimento do espírito grego e no processo
df, construção do pensamento ocidental. Catedráticos altamente gabaritados,
muito mais experientes em tais leituras do que nós, há muito e exaustivamente
�- º'têm discutido sobre a controversa questão identitária do autor (quiçá autores) da
,. Ilíada, ao(s) qual(is) a tradição convencionou chamar «'Dµ11poç2». Consoante J.
. V. Luce, Ilíada e Odisseia foram escritas pelo mesmo e único autor jônico, que se
·utilizou das técnicas desenvolvidas por outros cantores e dum sistema de escrita
i�Gipientemente incorporado à língua helênica para dar forma aos dois poemas
canônicos, combinando elementos duma longa tradição de narrativas heroicas das
� quais era herdeiro (LUCE, 1975: 10). Partindo desta primeira afirmação, Barry B.
Powell acrescenta uma hipótese segundo a qual Homero seria o responsável direto
. pela adaptação do alfabeto ou estava muito próximo dos que se incumbiram
de adapt�r o recém-chegado abugida3 importado da Fenícia para necessidades
póntuais da língua grega (POWELL, 1991: 221).
Herbert J. Rose, em seu interessante compêndio A Handbook o/ Greek
Literature, afirma· que os primeiros dentre todos os livros escritos ria Antiguidade
•· foram os poemas Ilíada e Odisseia, cujo autor é Homero, sem espaço para as
dúvidas (ROSE, 1996: 15). B. B. Powell, num livro sobre Homero - Blackwell
/ntroductiorµ to the Classical World, é mais cauteloso ao informar que houve uma
-�teratunf precursora dos poemas homéricos, afirmando que os mesopotâmios já
·. _contavam e�tóri�s séculos antes dos aedos gregos (Idade do Bronze), e mesmo na
· Grécia as populações autóctones e os seus invasores dedicavam-se à rememoração
dos feitos dos seus af).tepassados (POWELL, 2004: 155). Mas importa-nos pouco
a questão_ da �utoria ou da originalidade em Homero.

1
Graduado e Mestre em História pela Faculdade de História da Universidade Federal de Goiás. Atualmente
leciona como ·professor convidado na Ponrifícia Universidade Católica de Goiás e como professor substituto da
Universidade Federal de Goiás, no Campus Avançado da Cidade de Jataí. Discente do Doutoramento em Escudos
Clássicos da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. E-mail para contato: vieira.ivannero@yahoo.com
2
'!lµl]poç: transliterado HtÍmiros. Esta é a forma grega de "Homero", nome atribuído ao autor lendário. A
chamada questão homérica discute as indefinições históricas e literárias sobre a sua identidade.
3
O abugida é um sistema de escrita intermediário entre o silabário e o alfabeto, no qual são marcadas, geralmente,
apenas as consoantes. Este é o caso dos sistemas utilizados por fenícios e hebreus, por exemplo.
126 1 Dominique Santos (Org.) Grandes Epopeias da Antiguidade e do Medievo I 127

limites das poleis gregas e cornp:rrtilha urna cultura homogênea. Helena simboliza .. ·furopa poderia se contemplar. Desta vez, Aquiles s urge como uma figura53 cética
a grecidade finali zada, esta�elecida a partir da Hélade e disseminada pelas Ilhas · ·g_ue prenuncia a emancipação do gênero h umano, mesmo às c ustas do próprio
Ciclád icas e finalmente na As ia Menor (onde os gregos destroem Tro ia, território ruéstino. Helena é novamente evocada corno urna abstração, mas agora ela não
que foi tomado por helenos que fugiam da impiedade dos invasores dóricos)51• epresenta somente a pátria dos helenos. Esta Helena é a Europa, re inventando a
Após a G uer ra de Troia, está demonstrada a força do helenismo. si mesma sob a,s luzes do Renas cimento.

11 . •: O Renascimento ·t i;-4 llíad_� e os nossos dias


"Graecia captiua ferum uictotem cepit, et artes intulit agresti Latio", já dizia Desde o redescobrimento da tradição clássica pelos intelectuais
. ;,;--,
Horácio52• Mas os romanos não foram os únicos a reconhecer o ideal c ivilizacional. renascentistas, a Ilíada, se u enredo e as suas personagens, bem como o ciclo troiano
grego, cr istalizado nas obras artíst icas, literárias e filosóficas produzidas pelo 'em sua inteireza, jamais deixaram ser evocados e reinventados pelas cult uras
Zeitgeist helênico. A partir dos sécs. XIV e XV, com o surgimento de movimentos ''*:�aderna e contemporânea. Johann Wolfgang von Goethe e Richard Strauss55
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artísticos e filosóficos amplamente pautados em princíp ios humanistas que se · são exemplos dos que revisitaram Tro ia e de lá trouxeram suas visões de Helena.
contrapunham à Igreja medieval, artistas, intelectuais e filósofos europeus viram · Úm exemplo mais recente é a escritora Marion Zimmer Bradley, q ue reconstr uiu
no legado grego o reflexo dos se us ideais, buscando aproximar a soc iedade pré­ �uma porção significativa dos eventos narrados pelo c iclo épico troiano no romance
moderna da Europa de um m undo greco-romano que mais pareceria u ma projeção �i'he Fireband (1988) 56• Com o auxílio de se u mar ido, Walter Breen, um conhecido
das expéçtativas da época que uma reconstr ução histór ica. -·num ismata e interessado nos est udos sobre a pederastia, Bradley opto u i-nclusive
O ReQascimento marcou a confluência de interesses de i ntelect uais e por manter em seu romance a grafia cransliterada dos nomes das personagens
el ites lib.erais para um mundo no qual se imaginava qu e fossem cultivados os ' �iftegas, ao invés de recorrer à forma latinizada usü� na grafia etimológica da língua
seus grand iosos ideais. Para tanto, a real idade anterior ao contexto histór ico ..:\figlesa. Mas a característica principal do texto é a narrativa em pr ime ira pessoa,
no qual estavam inseridos, ou seja, a doravante chamada "Idade Média", foi·· , contada pela própria Kassand ra, a única sobr evivente que conhece a verdadeira
evocada através de uma visita constante à Antiguidade Clássica. A utilização do ··_·�::;história da G uerra de Troia - seja porque _viveu os acontec imentos ou porque
. Í'J . . latim como língua franca da cristandade europeia facilitava o recomo às ob ras da ' _os acompanhou através de sonhos e presságios trazidos pelos seus poderes de
literatura <;lássica preservadas nos monastérios medieva is, por vezes reproduzidas
13'1\t�' !· 'Glarividência.
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por monges copistas e decoradas com su[J.tuos:15. iluminuras.
Pelo menos até 1453, embora red u zido e ámeaçado pela
limitado a um terr itório bastante· infer ior àquele gue marcava se us domínios
expansão
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Em me ios mais midiáticos, há d·uas prod uções cinematográficas recentes
tentam recontar os acontecimentos· da _Ilíada, cada- uma por meio -dos seus
!>!llodos par_t iculares. Helen ofTroy (2003), o filme escr ito por Ronni _ Ke rn e diri gido
':'. ;(f } · . · _};i_istór i�os·, �s euro�e�s con�avam tamb�m �om : a p�ssib il idad� de adquirir. e,or John Kent Harr ison, é parcialment� fiel aos épicos e conta os acontec_ imentos
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ob ras hteran as e ar usncas onundas do �mpeno Bizantmo. Tambem nao fo ram ' a, partir dos pontos de vista de Páris e Helena; A Universal Studios não apostou nas
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: � t '; po pados e;ifo ços pa a dent ficar e reconstr "ir as caracte íst cas mais ant g e as :bilheter ias com "Helena de Troia", umá vez q ué o público esperava ansi osamente
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· �!: j nuances dialetais da lí gua gr;g� arcaica, ut!ia '!ez qu·e há muito o greg? b�zantino
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por o utra prod ução b aseada na Ilíada.. . · . ·
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se afastara das suas ra1zes class1cas e mqdermza�a expressoes e pronuncias. Um_ Troy (2004), escr ito por David_Ben ioff e dirigido por WoltgaIJ.g Petersen,
l exemplo é a tradicional pronúncia etacista do_ grego anti go, estabelecida por;
, ._: : conquistou rápido sucesso nas bilheterias de todo o mundo, especialmente pelo
1 1·' Eras mo de Roterdão. . �êlenco. Distribuído pela Wtzrner Bros., "Troia" é urna abs urda reinvenção da obra
. E não é por mera coinc idência que-as pr.i meir as edições da Ilíada traduzida" • original, marcada pela ausência completa das divindades e por reviravoltas que
:·.

· i: , ao idioma latino datem exatamente dos fins do séc. XV, final do período "culminam nas mortes de Menelau* (assass inado por Od isseu, durante a invasão
renascentista. Buscava-se mais uma vez · edúcar .ó gênero humano através dos grega à cidadela troiana), Agamêmnon, que acaba morto po r Br ise ida; e Aquiles,
·l "grandes modelos" q ue se acreditava terem guiado os helenos ao ápice da sua
progressão artíst ica e cultural. A Antiguidade seria o único espelho em que a
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u Aqui o conceito é empregado com o mesmo sentido que lhe foi conferido por Erich Auerbach, como um
modelo dado a priori para uma entidade que virá a preenchê-lo a posteriori. C[ AUERBACH, E. Figura. São

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11 Muito ainda pode ser dito sobre as relações entre Helena e o sentimento de pertencimento helênico, portanto,
Paulo: Ática, 1997.
,. Helena é uma das personagens da tragédia Fausto. Errata: Menelau morreu pelas
1 esclarecemos que estas questões serão melhor desenvolvidas a posteriori. '5 Richard Strauss compôs a ópera Die Agyp tische Helena. mãos de Heitor logo após o
1 12 "A Grécia cativa venceu seu feroz conquistador, e as artes trouxe ao agreste Lácio" (Epistulae, II. 1. 156). 56 C[ BRADLEY, M. Z. O lncindio de Troia. Rio de Janeiro: Imago, 2010.
malogro do combate pessoal
! entre Páris e Menelau.
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