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REVISTA DE FFLCH-USP

HISTÓRIA 1999

HARTOG, F. O Espelho de Heródoto. Trad. Jacyntho Lins Brandão. Belo Horizonte: Editora da UFMG,
1999 481p.

Já para Aristóteles, Heródoto valia por designativo Helânico, os de Helânico por Éforo, os de Éforo por
de história: “Não diferem o historiador e o poeta por Timeu, os de Timeu por Políbio, e os de Heródoto ...
narrar em verso ou prosa, pois, caso os escritos de por todo mundo3.
Heródoto fossem postos em versos, não seriam me- A começar por Tucídides, seu sucessor imediato,
nos alguma história com versos do que sem eles. quem primeiro impôs para os historiadores um abso-
Antes diferem nisto: um narra o que aconteceu, en- luto dever de veracidade. Reagindo contra os deslei-
quanto o outro o que poderia acontecer”1. Quando, xos de seus relatos na apuração da verdade - pelos
cerca de dois séculos mais tarde, o dito de Cícero cris- poetas que a deformavam porque imbuídos de desíg-
taliza essa identidade historiográfica, sua fama vem nios comemorativos engrandecedores, pelos logógra-
acompanhada por certa reserva: “na história o padrão fos (contadores de histórias) que a preteriam por con-
porque tudo é ajuizado é a verdade, ao passo que na poe- cessões ao agrado de seus auditórios -, Tucídides
sia geralmente é o prazer propiciado; contudo, nas obras preceituou que o mítico fosse excluido da história. A
de Heródoto, o Pai da História, e nas de Teopompo, en- gravidade de sua história, então, não seria por certo
contram-se inúmeras lendas fabulosas”2. tão atraente se (des)apreciada por tais gostos e predi-
Firmar, na narrativa reconstituidora dos aconteci- leções, mas antes projetaria seu valor pelo saber ver-
mentos passados, a expressão da verdade define o im- dadeiro aprendido sobre as ações humanas, as quais
perativo da história. Princípio epistemológico insisten- se efetuam no futuro semelhas ou análogas às do pas-
temente reiterado pelos antigos, a configurar foros de sado. Esse conhecimento, sentenciou Tucídides, “cons-
tópos retórico, com cada novo historiador protestando titui uma aquisição para sempre, antes do que uma peça
que sua obra o realiza superiormente ao mesmo tem- para um auditório do momento”4. Embora Heródoto
po em que denuncia as falhas de seus antecessores. não seja aqui expressamente referenciado, as alusões
Verdadeiro encadeamento de agonística historiográfica assim intrigadas foram claramente identificadas pelos
em que os erros de Hecateu são acusados por Heródoto, antigos como respeitantes ao “Pai da História”5. E
os de Hesíodo por Acusilau, os de Acusilau por

3
FLÁVIO JOSEFO. Contra Ápion, I.3.
1 4
ARISTÓTELES. Poética, IX. TUCÍDIDES. A Guerra dos Peloponésios e Atenienses, I.22.
2 5
CÍCERO. Leis, I.1.5. LUCIANO. Como escrever história, 42; escoliasta de Tucídides, I.22.
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conceberam-se anedotas que diziam das leituras pú- consultos, moralistas, a filósofos e teóricos políticos.
blicas que Heródoto dera de suas Histórias a encan- No curso do século XIX, com a institucionalização
tar auditórios pelas cidades gregas: uma delas em setorizada do conhecimento histórico como discipli-
Atenas onde fora agraciado com um prêmio de dez na fundamentada na proposição de uma precípua me-
talentos; outra em Olímpia onde um jovem ouvinte todologia de cunho científico, a vertente acadêmica
comovera-se às lágrimas, ninguém menos, paradoxal- do pensamento historiográfico moderno de orienta-
mente, do que Tucídides, seu entretanto acerbo críti- ção positivista toma a frente das discussões. Uma
co posterior6. questão logo predomina: a pesquisa das fontes infor-
De Ctésias, médico grego a serviço na corte persa mativas dos relatos herodoteanos, avatar de princípio
de Artaxerxes II por fins do século V, a Plutarco, por metodológico que especialmente responde pela anti-
meados do século II de nossa era, que compôs um en- ga interrogação do ajuizamento de veracidade9. Na
saio expressamente dirigido a denunciar a Maligni- esteira dessa abordagem historiográfica, desdobran-
dade de Heródoto, avolumaram-se máculas denegrin- do-se pelo nosso século, outras questões correlatas
do a reputação do historiador. Algumas acusações dos demais preceitos e regras dessa metodologia de
mais leves, compreendendo seus erros como devidos crítica interna/externa de documentos se sucedem: a
antes a ingenuidades de um espírito crédulo. Já outras gênese da obra, por que polemizam unitários contra
exaltadas imputando-lhe faltas mais graves, agora difa- separatistas, com estes almejando cronologizar os
mado porque ignorante, parcial, mentiroso, falsário, distintos estratos de sua composição; a evolução inte-
plagiário ou imoral. Por toda a Antiguidade a memo- lectual de Heródoto intrigada pela projeção de suas
rização da (in)competência historiográfica herodotiana várias identidades - historiográfica, geográfica, etno-
é assim ambivalentemente composta como a de um lógica, artística-literária; os rastreamentos dos distúr-
fundador da história, todavia mentiroso. bios da objetividade por interferências de parcialida-
É só com o advento do espírito crítico moderno des pessoais e políticas da biografia do historiador;
no Renascimento, entende Arnaldo Momigliano7, que as concepções de causalidade dos acontecimentos; e
emerge a consciência da contradição dessa fama. mais algumas outras tantas compondo o panorama de
Então abre-se o debate erudito pró e contra Heródoto, tradições epistemológicas que J.A.S. Evans denomi-
uns empreendendo sua reabilitação, outros, mormente nou de a nova “mitologia herodotiana”10 .
influenciados pelas diatribes do tratado plutarqueano, Quando, por meados da década de 1980, Guy
corroborando as apreciações condenatórias da Anti- Lachenaud traça o balanço bibliográfico dos estudos
guidade Clássica8. Por cerca de três séculos nele se herodoteanos no século XX, os enigmas persistem:
envolvem humanistas vários, desde antiquários, juris- “No oceano dos comentários críticos a figura do Pai
da história, como a do Velho do Mar, parece desafiar
todas as capturas e se esquivar perpetuamente (...) um
homem simples propenso à credulidade, um obser-
6
MARCELINO. Vida de Tucídides 54; Suidas, s.v. Tucídides;
s.v. organ; Plutarco, Malignidade de Heródoto, 26.6.
7
“La Place d’Hérodote dans l’histoire de l’historiographie”. In:
Problèmes d’Historiographie Ancienne et Moderne, Paris:
9
Gallimard, 1983. p. 169. HAUVETTE. obra citada, p. 116.
8 10
Idem, ibidem, p. 176; A. Hauvette, Hérodote. Historien des “Father of History or Father of Lies: the reputation of
Guerres Médiques, Paris, 1894. p. 114. Herodotus”. The Classical Journal, 64 (1968). p. 11-17.
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vador malicioso e desiludido, um viajante de curiosi- Certeau14. A dicotomia simplista, por vezes ensejando
dade insaciável, um rapsodo em prosa, um apátrida crítica judicatória maniqueísta que acusava ou a ver-
insensível à história das nações, uma consciência do dade ou a mentira na reconstituição e transmissão dos
Ocidente, um agente do imperialismo ateniense, uma fatos narrados, é deslocada por análises primorosas
testemunha tardia da cultura arcaica, um pensador da que exploram significações mais sutis e refinadas de
história e do destino das nações e inclusive um teólo- abordagem das mesmas histórias herodotianas. As-
go”11. O repertório das óticas, quer intelectuais quer sim, por exemplo, na estratégia cita de (não) enfren-
político-ideológicas, de interpretação da obra - como tamento campal do exército persa de Dario Hartog lê
que marcas digitais de suas respectivas épocas de lei- a prática do nomadismo que a fundamenta; ou na estó-
tura - não é menos variado: “o triunfo do positivismo ria mítico-lendária que os seus vizinhos do mar Negro
e da hipercrítica, a ascensão dos nacionalismos no en- contavam sobre as origens da realeza cita no episódio
tre-guerras, a exaltação do artista criador de uma obra do encontro de Héracles com a Equidna (mulher-serpen-
profundamente unificada, a importância crescente da te) lê as expressões do primitivismo no imaginário gre-
crítica formal, temática ou estruturalista, a crise da
ideologia do sujeito criador, a evolução da ciência his-
tórica que redescobre o interesse da história social, da
anedota significativa ou das mentalidades coletivas”12.
Todo um emaranhado de problemáticas e vicissi-
14
tudes históricas de abordagem da obra que, balizando Vejam-se as indicações de BURKE, P. A Escola dos Annales.
Trad. N. Odália, São Paulo, Unesp, 1991. p. 95, e de DOSSE, F. A
os parâmetros da análise, cerca em limites estreitos a
História em Migalhas. Trad. D.A.S. Ramos, Campinas, Ensaio,
percepção da inteligência da narração herodotiana. A
1992. p. 89. O próprio Autor também lembra, no prefácio da edi-
viagem hermenêutica de Hartog em Le Miroir d’Hé- ção de 1991, algumas indicações dos marcos que balizam o campo
rodote. Essai sur la répresentation de l’autre13 navega de reflex(ã)o epistemológica do Espelho: “A essa distância, O Espe-
ao largo desses litorais, evita seus baixios, desvia de lho de Heródoto surge-me como uma experiência de leitura. Era o
seus encalhes, unicamente os lembra como saudação tempo em que os historiadores (ou, pelo menos, certos historiado-
de adeus, pois parte à descoberta de outros horizon- res), cansados de contar, aprendiam a ler; em que a antropologia
tes epistemológicos. Por Hartog, o livro de Heródoto histórica e a história do imaginário se preocupavam com as mar-
gens mais que com o centro, mais com a alteridade que com a
abre-se à leitura de uma antropologia histórica, na he-
identidade; era o momento em que o problema da enunciação vi-
rança de Louis Gernet e pela convivência com Jean-
nha renovar a abordagem estrutural dos textos, tendo acabado de
Pierre Vernant e seus companheiros, ainda especial- aparecer L’Écriture de l’Histoire, de Michel Cereteau” (p. 16).
mente orientada pelos rumos descortinados pelos Razão por que parece-nos equivocada a incorporação do Espelho
“ensaios sobre a escrita da história” de Michel de de Heródoto no mesmo barco de diatribe crítica que W. Kendrick
Pritchett dirigiu contra a vertente de leituras herodotianas por ele
definida como The Liar School of Herodotus (Amsterdam, Gieben,
11
“Les études hérodotéennes de l’avant-guerre à nos jours”. Storia 1993), ao lado, por exemplo, de Detlev Fehling (Herodotus and his
della Storiografia, 7 (1985). p. 6. Sources, translated from the German by J.G. Howie, Leeds, Francis
12
Idem, ibidem, p. 6. Cairns, 1989): porque os horizontes epistemológicos em que se
13
Primeiro publicada em 1980, com uma segunda edição revista descortina a leitura de Hartog se situam em outro plano teórico é
e ampliada em 1991, de que deriva a presente edição brasileira O abusivo, enquanto crítica, ignorar tal diferença e redutoramente co-
Espelho de Heródoto por competente e elegante tradução de brar dela critérios e princípios que respondem por horizontes episte-
Jacyntho Lins Brandão. mológicos dos quais ela antes se dissocia e contrapõe.
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go; ou na narrativa acerca das Amazonas depreende as à semelhança de seu objeto primeiro, o nômade, não
complexidades do sistema em que interagem guerra e é nem fechada sobre si mesma, nem acabada”, e que
casamento no quadro institucional helênico. antes dispõe “um convite a levar-se mais longe a
Distanciamento e deslocamento epistemológico investigação, recolocando-se a questão do efeito do
da nova leitura que por vezes alcança implicações de texto de história” (p.39); e, por outro lado, assumin-
irônica inversão. As maravilhas apresentadas pelas do com Hartog citando Claude Lefort a proposição
Histórias eram desapreciadas pelos eruditos antece- de que “as interpretações sucessivas não fazem parte
dentes como (in)credulidades devidas à cândida inge- menos efetiva de Heródoto que o próprio texto das
nuidade infantil pelo ajuizamento crítico que denun- Histórias, posto que a obra sempre nos dá mais para
cia por elas o Heródoto mentiroso que frustra o pensar no espaço que lhe abre o pensamento dos
verdadeiro historiador, por cujo dever historiante elas outros (p.31), nesta nossa leitura em resenha apenas
deveriam ser antes excluídas da história. Ora, arra- indiciaremos uma ou outra trilha desse percurso
zoa Hartog, na medida mesma em que as maravilhas hermenêutico desdobrado por Hartog, perseguindo
compõem rubricas do relato de viagem, elas confe- algumas questões tomadas ao princípio e fim de sua
rem à narrativa herodotiana projeções persuasivas de interpretação, as quais mais particularmente instigam
veracidade e credibilidade: “o narrador não pode dei- esta nossa parcial reflexão. E mesmo que ao risco de
xar de usar essa rubrica que o público espera: se a incorrermos nas mazelas do encargo de intérprete a
omitir, arruinará de uma vez seu crédito. Tudo se pas- que Hartog argutamente adverte citando Jonathan
sa como se estivesse em ação o seguinte postulado: Swift: “os comentadores não se aproximam jamais
nesses países distantes (ou nesses países outros), não dos infernos em que estavam os autores que eles ti-
pode deixar de haver maravilhas-curiosidades” (p. nham glosado, por vergonha e por remorso de ter tão
246). “Tradução da diferença entre aquém e além, o horrivelmente deformado seu pensamento, ao explicá-
thoma produz finalmente um efeito de realidade, lo às gerações posteriores” (p.15). Assim entretanto
como se dissesse: eu sou o real do outro. Com efeito, arriscamos, pois, como assevera Paul Ricoeur, já não
na esfera do outro, as coisas, os érga não podem ser dialogamos mais com o Autor mesmo, mas com seu
menos do que thomastá. Nesse postulado repousa sua texto: “Em primeiro lugar, a escrita torna o texto au-
verossimilhança. Na medida em que sua presença na tônomo relativamente à intenção do autor. O que o
narrativa produz um efeito sério, na medida em que texto significa, não coincide mais com aquilo que o
cria um efeito de realidade (e há o efeito sério ape- autor quis dizer. (...) Em outras palavras, graças à
nas porque há efeito de realidade), enfim, na medida escrita, o “mundo” do texto pode fazer explodir o
em que repousa no olho-medida do viajante, o thoma mundo do autor”15.
é bem um procedimento para fazer-crer, desenvolvi- A viagem principia pelo lógos cita e por ele bus-
do pela narrativa de viagem” (p.251). ca depreender “a construção de uma figura do nôma-
Tarefa ingrata para o zelo de rigor exaustivo do de que torna pensável sua alteridade” (p.227) no
resenhista e, pior, mutiladora para a melhor inteligên- mundo da pólis, neste espaço de destinatários helê-
cia criativa da obra resenhada, resumir ou compendiar
em itens e tópicos redutores toda a rica trama de re-
flexões inovadoras e percucientes que O Espelho de
Heródoto enseja a seus leitores. Mas dado, por um 15
RICOEUR, P. Interpretação e Ideologias. Tradução de H.
lado, que O Espelho é uma “viagem em Heródoto que, Japiassu, Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1977. p. 53.
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nicos para os quais a narração herodotiana está volta- esse juízo remetendo-o para a decisão do ouvinte/lei-
da. Mas, para “dizer o outro”, dotando de credibili- tor. E por tais modos narrativos almeja persuadí-lo pela
dade sua inscrição narrativa no mundo do destinatá- ambiguidade mesma dessa sua retórica discursiva.
rio, o historiador confronta-se com “um problema de E, como na oratória antiga antecipadamente res-
tradução”: remeter o que de princípio é “diferente, pondendo a uma eventual crítica que denunciasse a
alteridade compacta de sentido opaco” (p.227), o falta de uma percepção totalizante da obra herodo-
bárbaro, para “os códigos de inteligibilidade do mes- tiana, Hartog termina sua reflexão abordando a “ques-
mo”, a identidade helênica. tão do poder, do poder bárbaro, do poder régio (...)
Hartog analisa então “como a narrativa constrói que, face ao mundo da cidade, atravessa o conjunto
a figura do outro” (p.227), “como ela o traduz e faz das Histórias e constitui uma peça importante de sua
com que o destinatário creia no outro que ela cons- organização”. Mas o poder régio, bárbaro, especial-
trói” (p.228). Pois, “como, de modo persuasivo, ins- mente persa pelas Histórias, tem um par, o tirano (gre-
crever o mundo que se conta no mundo em que se go), seu duplo especular no mundo da pólis. Pelo
conta? Esse é o problema do narrador. Ele confron- “cruzamento dessas duas imagens constuitui-se a re-
ta-se com um problema de tradução” (p.229). presentação do poder despótico”. E as histórias do des-
Assim Hartog delineia, em ação nas Histórias de potismo revelam uma essência hibrística: “o despotes
Heródoto, uma “retórica da alteridade”, “capturando é presa do desejo, éros (...) desejo sexual, desejo do
suas figuras, desmontando seus procedimentos”, em poder (...) desejo excessivo, cuja lei é a transgressão”.
suma, “reunindo as regras através das quais se opera “O déspota não consegue impedir a si mesmo de vio-
a fabricação do outro” (p.228), “uma retórica da alte- lar os nómoi, quer sociais, religiosos ou sexuais”. As-
ridade que é uma operação de tradução: visa transpor- sim, por excelência despótica, eis Cambises entre os
tar o outro ao mesmo” (p 250). A “retórica da alte- reis persas ou Periandro entre os tiranos gregos. En-
ridade” inclui como principais figuras e procedimentos tão, “homem ímpio e criminoso”, cuja crueldade de
narrativos a inversão (a alteridade transcrita no anti- “poder se exerce sobre os corpos mesmos de seus súdi-
mesmo: “o outro é o mesmo, só que invertido”), mais tos por cortes, incisões, mutilações, como o senhor que
a comparação e a analogia, com o que a narração “faz marca seus escravos”. Déspota, “receptáculo de todas
ver o outro filtrado no mesmo”. E se o “relato de via- as perversões”. Mas, histórias do poder despótico,
gem dispõe-se por relato fiel, deve comportar uma ru- porque lugar mesmo da hybris, compõem reiterações
brica: thoma, maravilhas, curiosidades”, o que com- de um destino certamente ruinoso: “desmedida que,
põe mais outro desses recursos retóricos, bem amadurecendo, produz a espiga do erro funesto, cuja
condizente com o princípio axiológico delarado por colheita é feita apenas de lágrimas”. “Os déspotas de-
Heródoto logo no Proêmio. Consoante essa retórica, vem terminar mal”.
quatro marcas de enunciação do sujeito narrativo ba- Pelo olhar grego do espelho herodoteano através
lizam os efeitos de veracidade do relato: eu vi, eu ouvi, da estratégia hermenêutica da leitura de Hartog proje-
eu digo, eu escrevo. Por elas o historiador firma todo ta-se, pois, uma visão inteligível do bárbaro. Assim,
o alcance declaradamente pretendido para a veracida- pela narrativa da guerra movida por Xerxes contra a
de de sua narrativa porque atende aos reclamos de seu Hélade pode-se compreender a expedição de Dario
dever historiante: por vezes ajuiza a verdade dos infor- contra os citas. Todo um nexo de “injunções narrati-
mes, por vezes adverte sua incredulidade, por vezes vas” por “convergências e retomadas” estabelece os
meramente os expõe, por vezes deixa em suspenso ecos episódicos da leitura. Em ambas as campanhas,
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iguais ambições de conquista que as finalizam por um quelas guerras. Idênticas ridicularizações anedóticas
mesmo desígnio de dominação da Europa pela Ásia do pretenso poderio guerreiro do exército persa, si-
a realizar o destino imperial da realeza persa. Então, milarmente menosprezado pelas manifestações de
expedições similarmente iniciadas por travessia de inabalável impavidez de seus adversários, os citas
fronteira, ultrapassagem de limiar geográfico-estatal: contra Dario, os gregos contra Xerxes: enquanto os
Dario que lança uma ponte sobre o Bósforo para ga- citas desinteressam-se por encetar a batalha campal
nhar os campos citas, Xerxes que constrói uma ou- com que Dario insistentemente os desafiava preterin-
tra, de barcos, sobre o Helesponto a invadir a Hélade do-a no último momento pela melhor diversão de en-
por rotas setentrionais. Também igual solene princí- tregar-se à caça da lebre que justo naquele hora cru-
pio um tanto ritual de ação beligerante, devidamente zara o campo entre os dois exércitos, os gregos (não)
assinalado pela pausa meditativa do rei persa, a admi- reagem ao avanço de Xerxes que já cruzara as
rar, pela contemplação do obstáculo grandioso da na- Termópilas e passara por Artemísio descuidados de
tureza por ele assim ultrapassado e dominado - o mar maiores preocupações guerreiras, antes entregando-
Negro por Dario, o Helesponto por Xerxes -, a mo- se às celebrações dos festejos olímpicos em que em-
numentalidade divinizante de seu poderio contrasta- penham-se acirradamente em disputas por ganhar
da à efemeridade da condição humana. Guerras de uma coroa de oliveira!
conquista imperial que, todavia, frustram-se por se- Assim, entende Hartog, a guerra cita de Dario e a
melhos desastres de fugas vergonhosas do suzerano, expedição de Xerxes contra a Grécia espelhadas pela
Dario escorraçado pela perseguição da cavalaria cita, narrativa herodotiana compõem reiteração da essên-
Xerxes pela da frota naval grega. Análogas manifesta- cia imperial ruinosa da realeza persa, com aquela
ções de malignidade despótica, eivadas de perversi- “prefigurando” esta ou esta “repetindo” aquela,
dade, por um soberano que atende à solicitação piedo- “como se o poder dos Grandes Reis fosse uma máqui-
sa do súdito apenas por falsa complacência: a Eóbazo na voltada para a repetição: uma sorte de compulsão
que modestamente lhe rogara poupar pelo menos um em afirmar o próprio poder para, afirmando-o, des-
de seus três filhos do destino lutuoso daquela guerra, truí-lo” (p.75-76). Pelo fato bélico ocorrido no espa-
Dario concedeu-lhe graça magnânima de antes entre- ço helênico compreende-se o outro passado em seu
gar-lhe todos ... enforcados; similarmente procedeu exterior bárbaro, pois, sustenta Hartog, “as Guerras
Xerxes ao pedido de Pítio no sentido de que livrasse Médicas de Heródoto (posteriores na narrativa) de-
da campanha seu filho primogênito dentre os cinco sempenham, com relação à guerra de Dario, um pa-
nela empenhados, ao que o rei concedeu por maligna pel de matriz narrativa e de modelo de inteligibilidade
inversão, mantendo vivos os outros ... mas matando para o destinatário” (p.48). E, de modo ainda mais in-
justo aquele, cujo cadáver despedaçado ao meio fez cisivo, a interpretação de Hartog também assevera:
então expor ao cortejo de seus comandados em hor- “a guerra cita não é, com efeito, inteligível senão atra-
renda lição de selvagem despotismo. Análogas ce- vés do modelo fornecido pelas Guerras Médicas.
gueiras de reis obcecados por pretensões hibrísticas Compor a narrativa dela implica, pois, empregar os
de dominação universal, os dois surdos às advertên- esquemas elaborados na Grécia, sobretudo pelos
cias do mesmo conselheiro, Artábano, que primeiro atenienses, para dizer o que foram as Guerras Médi-
intentara fazer valer os préstimos de sua sapiência ex- cas” (p. 74).
periente ao irmão, Dario, e depois ao sobrinho, Então, a estratégia da guerra cita de (não) enfren-
Xerxes, a ambos acautelando contra a estupidez da- tamento do exército de Dario é dada a entender pela
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estratégia ateniense, mais precisamente de Temístocles, resistência para o ístmo de Corinto, abandonando a
de oposição ao de Xerxes invasor da Hélade: movimen- Ática ao bárbaro para agora cuidar da preservação do
tos de fugas e recúos mais recusas de combate dissi- Peloponeso (Lacedemônia)? Afinal, argumentara
mulam tramas ardilosas por que se preparam embosca- então o comandante espartano, fora Atenas quem, par-
das e se efetuam outros modos de manobras guerreiras. ticipante do incêndio de Sardes, atentara contra o po-
A estratégia de Temístocles opera no âmbito da métis, derio persa a mobilizar agora sua ira em punição vin-
a inteligência astuciosa. Já os citas, em sua estratégia gativa. Ignore-se, pois, por essa equação que eleva as
similar, praticam a guerra pelo hábitos do nomadismo, razões do discurso ateniense como a expressão da
seu “verdadeiro fundamento”. De modo que “as identidade helênica, a dialética dos interesses parci-
injunções narrativas tendem a fazer dos citas atenien- ais de um mundo antes cindido em cidades antagôni-
ses” (p.92), e em contrapartida o que a Pítia do orácu- cas, cada uma mormente voltada para a sua salvação,
lo de Delfos “aconselha aos atenienses é a escolha de e mesmo com o sacrifício das outras? Do jogo retórico
uma estratégia cita” (p.87). desse comprometimento de parcialidades políticas
E, todavia, assim descortinando uma nova inteli- operado pela dialética que opõe avocar o interesse da
gência da narração herodotiana, de que acima apenas comunidade helênica contra o de uma pólis em
destacamos alguns tópicos, a riqueza da leitura de particular diz exemplarmente o episódio do julgamen-
Hartog é tanto mais instigante porquanto desperta to espartano por que se decidiu a sorte de Platéia nos
outros questionamentos. Pois, nas Histórias tem-se inícios da guerra do Peloponeso, consoante as repre-
uma representação do poder despótico e de seus proje- sentações com que o memorizou discursivamente a
tos históricos imperiais apreendidos pela inteligibi- narrativa tucidideana. A sentença, em princípio, es-
lidade do olhar grego. Mas, olhar grego tout court, tava politicamente selada de antemão, pois Tebas, a
mesmo que aureolado como “o dos gregos animados opositora de Platéias, era aliada de Esparta, ao passo
pelos melhores sentimentos”? Qual olhar? que Platéia o era de Atenas. Tucídides, todavia, enten-
Ateniense, certamente, para as Guerras Medas, deu expor as razões retóricas por que ambos intenta-
tanto cuidadoso de preservar a reputação política anti- ram justificar seus atos. Platéia arguiu em sua defesa
tirânica dos Alcmeônidas em Maratona, quanto em os serviços por ela prestados no passado em prol da
especial ecoando os temas arrazoados pelo discurso salvação da Hélade, quando a invasão persa ambicio-
temistocleano para a resistência beligerante em nara escravizá-la. Mas o questionamento por que o
Salamina (a defesa da liberdade, a união helênica, a juiz espartano silenciou seu arrazoado, em exemplar
salvação da Hélade). Mas, ao apenas identificarmos atualização de laconismo, fez voltar contra ela seus
as marcas dessa sua emergência originária, alcança- próprios argumentos, taxativamente a condenando:
se a plena consciência crítica das tramas de memori- que Platéia lhe respondesse, mesmo assim, o que fize-
zação histórica que a narrativa herodotiana sedimen- ra a favor de Esparta? Comunidade helênica contra
ta? Por que são as razões apresentadas por esse pólis singular compõe equação de conveniência retó-
discurso ateniense os que definem a expressão mes- rica ambígua, que nela e por ela circunstancialmente
ma da identidade helênica? Porque ele avoca em seu joga união contra cisão e vice-versa.
nome ser a projeção desse olhar “nacional”? Oblitere- A transparência fulgurante da inteligibilidade des-
se, então, dessas histórias a inteligibilidade que as ra- sas histórias consoante o olhar do discurso ateniense
zões discursivas do olhar lacedemônio sustentara con- se dá contra o silenciamento das vozes de outros dis-
tra ele, propugnando antes por retroceder a linha de cursos que, todavia, o contradizem. E pelos dizeres
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destes outros discursos, emergem outras inteligibi- guração do rei/tirano virtuoso para o tempo de funda-
lidades, afloram também outros sentidos para os ção de um poder dinástico, contra o déspota vicioso
mesmos fatos: cisões, antagonismos, dissensões, ego- para o tempo de sua liquidação, assim memorizando
ísmos, pânicos, fugas, traições, medismos de um justificações ideológicas tanto como princípio e fun-
mundo grego sob a agressão aterrorizante do exérci- dação do poder quanto de seu fim e derrubada históri-
to persa. E todos esses sentidos transcritos também, ca. Assim o supõem as histórias herodotianas de Ciro
mesmo que subliminarmente à construção narrativa contra as de Cambises, de Dario contra as de Xerxes,
tramada por aquela inteligibilidade dominante, nas de Cipselo contra as de Periandro, de Pisístrato con-
memórias históricas herodotianas. A obliteração des- tra as de seus filhos. Da geração do pai fundador para
tes sentidos se dá por uma operação de hermenêutica a dos filhos degenerados e monstruosos perfaz-se a
teleológica que projeta um sentido do acontecimen- história da realeza que no mito de Édipo exemplar-
to final, especialmente a ótica temistocliana do episó- mente (con)funde pelo mesmos atos as virtudes da ex-
dio de Salamina, como o sentido unívoco que persis- celência régia (o matar o rei velho, Laio, e o fecun-
tentemente se cumpre desde o princípio e para todo dar a rainha, Jocasta) com seus mais horrendos crimes
seu desenrolar. (parricídio e incesto); e que similarmente (con)funde
Dialética similar de memória de brilho fulguran- na mesma pessoa as figuras do pai com a do filho
te a ofuscar a consciência crítica de outras visões que enquanto princípio e fim do poder, pois, como apon-
opera também na construção narrativa da represen- tou Jean Pierre Vernant, em Édipo, porque marido de
tação do poder despótico, essencialmente bárbaro. sua própria mãe, tem-se o pai e o filho de si mesmo,
Pois, em e pela narração herodotiana, tanto o rei bár- a assim corporificar nele próprio o saber/ignorância
baro quanto o tirano grego são memorizados por du- da visão/cegueira que opera a (irre)solução do enig-
plo registro, por episódios que contam seus atos trans- ma da condição humana figurada pelo ser de três
gressores contra outros que revelam justiça, sacrilégios modos de locomoção a simbolizar as três idades por
contra reverências piedosas, cegueira desvairada con- que se perfaz o fato da mortalidade.
tra discernimento sapiente. Duplo registro narrativo de As imagens fulgurantes refletidas pelo espelho
memória dominante contra recessiva16 - tanto por his- herodoteano não se dariam então pela sobreposição
tórias de dizeres centrais contra dizeres marginais de sua memorização dominante contra o fundo opa-
quanto por formulações de lógos sobreposto a muthos co de suas memórias recessivas? E a luz que a visão
obliterando, desviando e transpondo seus sentidos - do espelho herodoteano projeta, por essa dominância
que, na apreciação da questão do poder régio de essên- branca de fulgurante inteligibilidade no âmbito da
cia despótica, parece estar ordenado, todavia, por uma memória histórica, não poderia ser analisada pelo
cisão ideológica: predominantemente apresenta a fi- prisma de uma crítica que decompusesse as cores
recessivas assim nela apagadas porque absorvidas
através do olhar grego unívoco e homogeneizante
assumido como o olhar do Espelho?
16
Derivamos a inspiração para as concepções de memória domi-
nante/recessiva das reflexões tecidas por Paul-Laurent Assoun em
Marx e a Repetição Histórica (Trad. W.S. Lobato, Rio de Janei-
ro: Civilização Brasileira, 1979); já “fulguração” advém de um
artigo de Carlos Alberto Vesentini (“A Fulguração Recorrente”. Francisco Murari Pires
Tudo é História, São Paulo 2, 1978). Prof. Dr. Depto. História - FFLCH/USP

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