Você está na página 1de 81

92 O IMPÉRIO GRECO-ROMANO

Capítulo 7
1. Agradeço ao professor Paul Zanker por sua amabilidade bem conhecida, e a
Stéphane Benoist, François Lissarrague e Jean-Claude Passeron pelas críticas e su-
gestões, assim como a Jacqueline Dentzer-Feydy.
2. Segundo um livro instrutivo, Allan Ellenius (dir.), Iconographie, propagande et légi-
timation, Paris, Presses universitaires de France, col. «Origines de l’État moderne»,
2001.
3. Obra de Adriano de acordo com A. Claridge, «Hadrian’s Column of Trajan», Jour-
nal of Roman Archaelogy, 6, 1993, pp. 5-22.
4. P. Zanker, num artigo profundo. «Bild-Räume und Betrachter im kaiserzeitlichen
Rom, Fragen und Anregungen für Interpreten», em A. H. Borbein, T. Hölscher e P.
Zanker (dir.), Klassische Archäologie: eine Einführung, Berlim, 2000, pp. 206-226.
5. P. Zanker, Augustus und die Macht der Bilder, op. cit.; existem traduções em italia-
no e em inglês.
6. Segundo J. Elsner, «Frontality in the Column of Marcus Aurelius», em Autour de la
colonne Aurélienne: geste et image sur la colonne de Marc Aurèle, École pratique des
hautes études, Brepols, col. «Bibliothèque des sciences religieuses», n. 108, 2000,
p. 263.
7. R. Syme, The Augustan Aristocracy, op. cit., p. 439.
8. Permito-me remeter à minha Société romaine, op. cit., pp. 320-324 (Die römische
Gesellschaft, op. cit., pp. 310-313).
9. Mark Wilson Jones, «One hundred feet and a spiral stair: the problem of designing
Trajan’s Column», Journal of Roman Archaeology, 6, 1993, p. 23.
10. R. Brilliant, Roman Art from the Republic to Constantine, Londres, 1974, p. 192: o
espectador «grasped at all once wherever the view stood».
11. La Société romaine, op. cit., p. 324 (com a citação de Brilliant, p. 323): «Les per-
sonnes qui scrutent ces reliefs n’y distinguent pas grand-chose (mais sentent que,
si l’on était mieux placé, on distinguerait; ce qui est important...).»
12. R. Cagnat e V. Chapot, Manuel d’archéologie romaine, Paris, 1916, I, p. 641. K.
Lehmann-Hartleben, Die Trajanssäule, Berlim, 1926, I, p. 1, pensa em uma má
coordenação entre o mestre-de-obra e a equipe de escultores. F. Lepper e S. Frere,
Trajan’s Column: A New Edition of the Cichorius Plates, Commentary and Notes
by A. Sutton, Gloucester, 1988, p. 33, vêem aqui um zelo inútil e absurdo do
escultor. R. Bianchi Bandinelli explica a pouca visibilidade dos relevos da coluna
pela «liberdade do artista, que só trabalha para si mesmo» (Dall’ellenismo al Me-
dioevo, Roma, 1978, p. 139: «La Colonna Traiana o Della libertà dell’artista»).
Para S. Settis, em A. Beyer (dir.), Die Lesbarkeit der Kunst: zur Geistes-Gegenwart
der Ikonologie, Berlim, 1992, p. 44, a informação redundante da frisa trajaniana
mostra que o detalhe dessas imagens tinha um caráter «documental, até mesmo
um caráter arquivístico». Seria o mesmo enfoque da longa inscrição de Res gestae.
Sobre essa inscrição, G. G. Belloni (citado por Settis, ibid.) escreve em Aevum, 64,
1990, p. 98: «Auguste avait conscience d’une chose obvie, à savoir que les dalles
de l’inscription seraient vues par toute une foule, observées par beaucoup et lues
par bien peu: quelques mots par-ci, par-là, l’œil sautant d’un point à un autre.»
13. J. B. Ward-Perkins, Roman Imperial Architecture, op. cit., p. 87.
14. Não «confundi projeto e realização», apesar de uma crítica amigável que recebi em
Autour de la colonne Aurélienne, op. cit., p. 10. 0bjetou-se também que algumas
figuras das frisas trajanianas e aurelianas teriam um alongamento destinado a com-
pensar a perspectiva oblíqua (o que me parece muito duvidoso) ou que os autores
das frisas deram ao imperador uma silhueta fixa e reconhecível. Talvez, mas isso
N OTAS 93

não mudaria o fato de que, para detalhar esse alongamento ou esse estereótipo, é
preciso usar binóculos. Na realidade, os artistas da época de Trajano não pensa-
ram nos espectadores; basta comparar seu trabalho minucioso à cabeça colossal de
Constantino na basílica de Maxêncio, com suas simplificações de traços toscos que
levam em conta a distância. Um artigo intitulado «La colonne Trajanne, lisibilité,
structures et idéologie», Pallas, 44, 1996, pp. 159-181, é muito ingênuo.
15. S. Settis, «La colonne Trajane: l’empereur et son public», conferência proferida em
Bruxelas e em Paris, e retomada na Revue archéologique, 1991, I, pp. 186-198; «Die
Trajanssäule: der Kaiser und sein Publikum», em A. Beyer (dir.), Die Lesbarkeit der
Kunst, op. cit., pp. 40-52; publicada também na revista Der Freibeuter.
16. É duvidoso que o espectador mencionado por S. Settis seja o espectador ideal tal
como entendemos comumente: seria mais um espectador real: um transeunte, um
curioso que se encontra, como na vida real, no nível do chão. O espectador ideal é
um ser imaginário, conforme as exigências da obra e o desejo do artista: um perso-
nagem aéreo que podia se colocar (como havia feito o escultor durante o trabalho)
no mesmo nível diante de cada relevo, até as espirais mais altas, bem perto, para
poder admirar os detalhes da obra. Uma vez reconhecida a diferença entre os dois
espectadores, surge um problema muito real: assim como os relevos são, na maio-
ria, uma mensagem que ninguém recebe perfeitamente, o escultor trabalhava para
um espectador imaginário, ideal, o que cria um problema em relação à psicologia
da criação artística; cf. La Société romaine, op. cit., p. 329. Para a redundância, ver
nota 29.
17. Ver nota 10.
18. É pragmático na comunicação tudo o que não é semiótico. O conteúdo signifi-
cativo de uma mensagem (conteúdo que pode ser amável) é semiótico; o fato de
comunicar essa mensagem a um interlocutor com altivez é pragmático; isso faz
parte da realidade, e não da palavra.
19. S. Settis em A. Beyer (dir.), Die Lesbarkeit der Kunst, op. cit., pp. 44-45. Mas R.
Bianchi Bandinelli não tem a mesma opinião (Rome, le centre du pouvoir, Paris,
Gallimard, col. «L’Univers des formes», 1969, p. 240).
20. Em Hadrian’s Column of Trajan, Amanda Claridge assinalou que, em 113, a co-
luna erguida em homenagem a Trajano tinha um fuste liso e que a frisa esculpida
fora executada após a morte de Trajano, por ordem de Adriano (Journal of Roman
Archaeology, 6, 1993, p. 5).
21. R. Bianchi Bandinelli, Rome, le centre du pouvoir, op. cit., p. 240: «Il faut rechercher
les antécédents de la composition des reliefs dans la peinture triomphale.» Os rele-
vos do arco dos Severos reproduzem com fidelidade os grandes quadros, que, após
sua campanha em Parta, Severo mandou expor em Roma antes de seu retorno, em
homenagem a Herodiano, III, 9, 12; G. Rodenwaldt mencionou isso diversas vezes,
em especial nos Römische Mitteilungen, 36-37, 1921-1922, pp. 81-86, e na Cam-
bridge Ancient History, XII: The Imperial Crisis and Recovery, Cambridge, 1939, p.
546; o que Bianchi Bandinelli, p. 66, acha «bastante convincente». Luisa Franchini,
«Ricerche sull’arte di età severiana», Studi miscellanei, 4, 1960-1961, pp. 28-32.
A diferença é que os relevos sob os Severos conservaram o estilo popular dessas
pinturas, ao passo que, na coluna de Trajano, os painéis correspondentes foram
transpostos num estilo clássico. Quanto à multiplicidade das mãos (inegáveis na
execução, assim como na composição e no Kunstwollen), que trabalharam segundo
o estilo de Trajano, ver W. Gauer, Untersuchungen zur Trajanssäule (Monumenta
Artis Romanae, XIII), Berlim, 1977, em especial p. 83.
22. Costume conhecido por textos detalhados: Apiano, De rebus Punicis, 66, e acima
de tudo Josefo, Guerre Juive, VII, 5, 139-147; Plínio, Hist. nat., XXXV, 22 e 23
94 O IMPÉRIO GRECO-ROMANO

(o vencedor, no início, explicava o quadro ao povo); Herodiano, III, 9, 12, e VII,


2, 8 (cf. Histoire Auguste, Maxim. Duo, XII, 5-10). Outras pinturas «informativas»
eram expostas no Comitium. Pensa-se, às vezes, que essas pinturas caracteriza-
vam-se por uma perspectiva em linha reta. Ver M. Torelli, Typology and Structure
of Roman Historical Reliefs, Ann Arbor, 1982, pp. 120-125; C. Picard, «L’idéologie
de la guerre et ses monuments dans l’Empire romain», Revue archéologique, 1992,
I, em especial pp. 119 e 135; F. Zevi, «L’art ‘populaire’», em La Peinture de Pompéi:
témoignages de l’art romain dans la zone ensevelie par le Vésuve, Paris, Hazan, 1993,
I, sobretudo pp. 306-307. O costume é de origem helênica, segundo J. J. Pollitt,
Art in the Hellenistic Age, Cambridge, 1986, pp. 45, 155, 284. Em torno do ano
400, esse costume sofrerá uma transformação profunda: um texto do pagão Euna-
po (fr. 78 Müller), que Christophe Goddard me indicou, diz que certas imagens
triunfais não mostravam «a coragem do imperador, a força dos soldados ou uma
guerra regular», mas, de uma forma ridícula e vulgar, a mão de Deus sai de uma
nuvem para expulsar os bárbaros. Não pude acessar um artigo de G. Zinserling,
Wissensch. Zietschrift der Friedrich-Schiller Universität Jena, 9, 1959-1960, p. 403.
23. Essa semelhança prova que os relevos da coluna são, de fato, a reprodução de
pinturas triunfais: os relevos são uma crônica das duas guerras dácicas, tão deta-
lhada quanto a série de pinturas que haviam contado os episódios da conquista.
Os autores dos relevos não procuraram resumir, condensar, escolher, estilizar, ou
não foram capazes. É um trabalho de uma equipe de bons artistas. Não aconte-
ceu o mesmo nos relevos do arco dos Severos no Fórum: seus autores, a partir de
pinturas triunfais em que conservaram o estilo popular (imaginemos o Arco do
Triunfo da Étoile em Paris decorado por relevos no estilo das imagens de Épinal),
escolheram, condensaram, reorganizaram e, assim, decoraram cada fachada com
um tipo de tapeçaria flamenga, segundo Eugenia Strong.
24. P. Zanker «Bild-Räume und Betrachter im kaiserzeitlichen Rom, Fragen und Anre-
gungen für Interpreten», art. cit., p. 223: «La non-visibilité des reliefs devenait une
expression à sa manière: le monument était fait pour l’éternité, l’immense gloire
du souverain était annoncée non seulement aux mortels, mais pour ainsi dire au
ciel.» P. Veyne, La Société romaine, op. cit., p. 321: a coluna «proclame la gloire de
Trajan à la face du ciel et du temps».
25. Nas mastabas egípcias, colocam-se objetos e afrescos que evocam a vida cotidiana
do rico defunto. Pode-se ver nelas uma concepção egípcia do além: o morto vive
em seu túmulo. Mas, quando lemos Wittgenstein e aprendemos com essa leitura a
distinguir entre as racionalizações doutrinais e as reações que ele chama instintivas,
percebe-se mais um desejo de se expressar para todo o sempre, na obscuridade do
túmulo, o que fora o defunto, sua riqueza e sua vida. Ele era rico, assim permanece
na eternidade.
26. «Miraculorum densitate [...]. Singularem sub caelo structurem» (Amiano Marcelino,
XVI, 10).
27. Alusão à escada interna de 85 degraus que dava acesso ao topo da coluna.
28. «Excelsos vertices qui scansili suggestu consurgunt» (Amiano).
29. É duvidoso que um especialista em semiologia veja nesse caso uma redundância:
a parte de uma mensagem que não foi transmitida é diferente das repetições que
o leitor negligencia em uma mensagem transmitida completamente. Em outras
palavras, o que é transmitido com redundância é o detalhe de cada cena: dois
guerreiros teriam bastado para a compreensão de uma cena de batalha, em que
o escultor pôs três. Esses detalhes redundantes não são a mesma coisa da qual
fala S. Settis, a saber, o sentido geral dessas cenas de guerra (de que Trajano é um
grande conquistador). Mas, considerando o conjunto da frisa, ela não apresenta
N OTAS 95

redundância no sentido em que Settis vê essa palavra: duas batalhas diferentes


não se parecem, não são redundantes nem para o historiador nem para aqueles
que a combateram.
30. Vimos o que S. Settis qualifica de «arquivístico», o relato militar tão detalhado da
época de Trajano. Mas o que pode significar essa palavra? Os arquivos são conser-
vados para o uso de funcionários e de curiosos; porém, ninguém podia consultar
esses baixos-relevos mudos para escrever a história das guerras de Trajano! Nessa
palavra «arquivístico», Settis reconhece implicitamente que esses relevos não se
destinavam a leitores humanos, mas sim à eternidade.
31. Quanto à distinção dessas três funções (que prefiguram as seis funções da lingua-
gem em Jakobson), K. Bühler, «Die Axiomatik der Sprachwissenschaften», Kant-
Studien, 38, 1933, pp. 74-90.
32. Mais do que por seu conteúdo: trata-se da propaganda e do fausto como da arte ou
da «corte» amorosa: essas condutas impõem-se porque são inutilmente «dispendio-
sas» em riqueza, trabalho, artificialidade, organização (um desfile hitleriano), com-
plexidade, riqueza informativa redundante (a cauda do pavão, a juba do leão).
33. La Société romaine, op. cit., pp. 331-334. No tocante à importância para um histo-
riador da atitude pragmática diante do texto semântico, ver a crítica de Gadamer
e de Heidegger feita pelo historiador Egon Flaig, «Kinderkrankheiten der neuen
Kulturgeschichte». Rechtshistorisches Journal, 18, 1999, p. 468. Como escreveu
J.-M. David, em Roma a idéia de espaço público de discussão, cara a Habermas,
seria «anacrônica», pois «l’auctoritas du locuteur déterminait toujour la pertinence
et l’efficacité de tout discours politique».
34. Robert Parker, Athenian Religion, Oxford, Claredon, 1996, surpreendeu mais de
um leitor e recenseador ao afirmar que a mensagem do Partenon «does not reside in
the detail of the decoration».
35. No British Museum, vemos a frisa «à la manière dont elle apparut jadis aux seuls
yeux des exécutants», sublinha C. Picard, Manuel d’archéologie grecque, La Sculp-
ture, II, 1, p. 435; cf. P. Zanker, «Bild-Räume und Betrachter im kaiserzeitlichen
Rom, Fragen und Anregungen für Interpreten», art. cit., p. 222. Abbildung 3.
36. Cf. Tibor Kövès, La Formation de l’ancien art chrétien: l’espace, la composition, la
conception de la plastique, Paris, Vrin, 1927, p. 56: esses mosaicos da nave foram
colocados demasiadamente alto e são muito pequenos. É ainda mais lamentável
porque a semelhança deles com a arte dos miniaturistas foi observada com fre-
qüência e têm delicadas nuances coloridas que escapam ao espectador.
37. À la recherche du temps perdu, Paris, Gallimard, col. «Bibliothèque de la Pléiade»,
1973, I, p. 638.
38. Ver nota 12.
39. T. Hölscher, Staatsdenkmal und Publikum vom Untergandg der Republik bis zur Fes-
tigung des Kaisertums, Université de Constance, col. «Xenia», 9, 1984, pp. 15-16;
P. Zanker, Augustus und die Macht der Bilder, op. cit., p. 24.
40. John P. Meier, em sua obra-prima de ciência e honestidade intelectual, Jesus, a
Marginal Jew, Nova York, 1991; trad. fr.: Un certain Juif, Jésus: les données de
l’histoire, Paris, Le Cerf, 2005, I, pp. 156-157. André Bernand assinalou a questão
da legibilidade das inscrições em Scorciers grecs, Paris, Fayard, 1991, pp. 404-405.
As Res gestae, de Augusto em Ancira, são gravadas à altura de um homem e do
leitor, assim como a Tarifa de Palmira. Os relatos de milagres do deus na grande
inscrição de Epidauro (Inscr. Graecae, IV, 1, 121 sq.; W. Dittenberger, Sylloge
inscr. Graec., n. 1168-1173) são destinados à edificação dos fiéis, bem como as «es-
telas de confissões» asiáticas (G. Petzl, Die Beichtinschriften Westkleinasiens, Bonn,
Epigraphica Anatolica, 22, 1994); «la majorité des fidèles ne pouvait sûrement pas
96 O IMPÉRIO GRECO-ROMANO

les lire; sans doute le personnel du sanctuaire jouait-il ici un rôle et en donnait-il
lecture à haute voix au public» (ibid., p. XVI). Pensa-se na dificuldade de decifrar
longos textos em que as palavras não se separam.
41. CIL, VI, 960; H. Dessau, Inscr. Latinae selectae, n. 294.
42. P. A. Brunt, Roman Imperial Themes, op. cit., p. 448. – Poder-se-ia objetar que na
Grécia o texto das Res gestae foi traduzido para o grego, o que nos faz presumir
que teria leitores; objetaríamos também que um poeta editou seus poemas. Essas
objeções seriam mais decisivas do que simplistas e pouco observadoras: a necessi-
dade de se difundir o narcisismo do autor se sobrepõe ao cálculo realista, embora
não represente com clareza esses leitores, mesmo que desejemos que seja lido; o
desejo substitui a realidade.
43. P. Brown, Society and the Holy in Late Antiquity, University of California Press,
1982, p. 201; trad. fr.: La Société et le Sacré dans l’Antiquité tardive, trad. Rousselle,
Paris, Le Seuil, col. «Des travaux», 1985, p. 151.
44. J. Engemann, Deutung und Bedeutung frühchristlicher Bildwerke, Darmstadt, Wis-
senschauftliche Buchgesellschaft, 1997, p. 31, cf. p. 130, com bibliografia: a afir-
mação de Gregório, o Grande, é apenas uma apologia de imagens contra um de
seus detratores, que é um dos ancestrais do iconoclasmo. É preciso, aliás, distinguir
«entre le niveau d’émission des promoteurs des images et le niveau de réception
des spectateurs contemporains». Para Peter Brown («Images as a substitute of wri-
ting», em E. Chrysos e I. Wood [dir.], East and West: modes of Communication,
Leiden, 1999, p. 23-25), o texto célebre de Gregório, o Grande, não diz que
as imagens servem para instruir os iletrados, mas que se deve fazer das imagens
um uso intelectual, considerar o conteúdo informativo, e não adorá-las, prostrar-se
diante delas, incensá-las, beijá-las.
45. O. Pächt, Methodisches zur künstlerischen Praxis: Ausgewählte Schriften, Munique,
Prestel Verlag, 1977; trad. fr.: Questions de méthode en histoire de l’art, trad. Lacos-
te, Paris, Macula, 1994, p. 78.
46. R. Recht em L’Histoire, n. 249, dezembro 2000.
47. P. Zanekr, «Bild-Räume und Betrachter im kaiserzeitlichen Rom, Fragen und An-
regungen für Interpreten”, art. cit., pp. 220-221.
48. R. Preimersberger, em A. Ellenius (dir.), Iconographie, propagande et légitimation,
op. cit., p. 195, a propósito da fonte de Netuno na Bolonha pontifical: «La beauté
et la complexité du monument font naître chez le spectateur de 1560 un senti-
ment confus de présence représentative. Mais il est possible que la déclaration
ésotérique ait été socialement limitée au groupe cible qui, grâce à son éducation
classique, pouvait suivre les indications offertes par l’œvre.»
49. P. Zanker, «Bild-Räume und Betrachter im kaiserzeitlichen Rom, Fragen und An-
regungen für Interpreten”, art. cit., p. 219.
50. Ibid., p. 222.
51. J.-M. David, “Les contiones militaries des colonnes”, em Autour de la colonne Auré-
lienne, op. cit., p. 213. Porque um militar não era um «simples soldado»; uma dife-
rença significativa separa os exércitos antigos dos da época moderna: os primeiros
compunham-se de todos os soldados, ao passo que o núcleo dos segundos reduz-se
a uma aristocracia, ao único corpo de oficiais, os soldados sendo apenas plebeus a
serviço deles. Assim, um exército do Antigo Regime (ver Clausewitz) tinha como
eixo os oficiais; acima deles, os homens da tropa; o exército romano tinha por eixo
os soldados: abaixo dele, os oficiais. No relato de uma testemunha ocular e verídi-
ca, Amiano Marcelino, Juliano, durante sua campanha persa, reunia seu exército
em uma contio para discutir as operações.
52. P. Zanker, Augustus und die Macht der Bilder, op. cit., pp. 273-279.
N OTAS 97

53. Id., «Bild-Räume und Betrachter im kaiserzeitlichen Rom, Fragen und Anregun-
gen für Interpreten», art. cit., p. 220.
54. T. Hölscher, Staatsdenkmal und Publikum vom Untergang der Republik bis zur Fes-
tigung des Kaisertums, op. cit., p. 23. A respeito dessa decoração vegetal, ver a
premissa recente de P. Gros, Revue archéologique, I, 2000, pp. 114-115.
55. P. Zanker, Augustus und die Macht der Bilder, op. cit., pp. 184-188.
56. Em contrapartida, o «Baixo-Império» devia, em parte, sua má reputação à sua arte
pouco elegante, expressionista, não-naturalista, em virtude de nossa tendência a
ver a arte como o espelho de nossa sociedade, por sua expressão direta, imediata:
um mundo tão disforme político e socialmente quanto seus retratos.
57. P. Gros, «La ‘militarisation’ de l’urbanisme trajaniem à la lumière des recherches
récentes sur le forum Traiani», em J. González (dir.), Trajano emperador de Roma,
Roma, L’Erma di Bretschneider, 2000, p. 247.
58. Ovídeo visitou o fórum de Augusto e detalhou os elogia de Enéias e de Romulus
(Fastes, V, 563-566, citado por P. Zanker, Il foro di Augusto, Roma, Palombi, 1984,
p. 17 e n. 77).
59. Temos conhecimento desse fato desde a descoberta das tabuletas dos Sulpicii (G.
Camodeca, Tabulae Pompeianae Sulpiciorum: edizione critica dell’archivio Puteolano
dei Sulpicii, Roma, 1999).
60. Pensamos em Hermógeno, ovelha negra de Tertuliano: esse pintor cristão imbuído
de teologia queria conciliar o materialismo estóico e o dogma cristão, e não renun-
ciara ao seu gosto pelas mulheres. Ninguém ignorava, aliás, que os artistas eram
amantes de seus modelos (Justino Mártir, Première Apologie, I, 9, 4).
61. Horácio, Satires, II, 7, 96. Digeste, XXI, 1, 65 pr.: «veluti si [servus] ludos adsidue
velit spectare aut tabulas pictas studiose intueatur».
62. M. Oppermann, Römische Kaiserreliefs, Leipzig, 1985, pp. 79-104.
63. P. Zanker («Bild-Räume und Betrachter im kaiserzeitlichen Rom, Fragen und An-
regungen für Interpreten», art. cit., pp. 219-220) menciona dois casos extremos:
um retórico muito instruído, tal como o Filostrato de Imagines, que compreende
as alusões mitológicas de uma pintura e os espectadores comuns de um sarcófa-
go com ornamentação mitológica, que, «devant le sépulcre, attendent des images
une consolation ou une invitation à savourer les joies de la vie, pour dépasser ce
moment de deuil». Daí os erros surpreendentes nas legendas que representam al-
guns sarcófagos, em que a Fábula, ao preço de contra-senso, foi adaptada para as
expectativas do espectador que conhecia mal a legenda (Id., «Phädras Trauer und
Hippolytos’Bildung: zu einem Sarkophag im Thermenmuseum», em Im Spiegel
des Mythos: Bilderwelt und Lebenswelt, Deutsches archäol. Institut Rom, 1999, p.
131).
64. Id., Augustus und die Macht der Bilder, op. cit., p. 106.
65. Quando se fala das igrejas da Contra-Reforma, afirma-se, às vezes, que os afrescos
da cúpula, nos quais anjos voam para o céu, serviam ao desígnio propagandista de
elevar as almas a Deus; mas, apesar de ter visitado um grande número de igrejas
barrocas, não vi muitos fiéis erguerem os olhos em direção à cúpula; só o fazem os
turistas que estudaram seus guias de viagem. Na realidade, os pintores quiseram
apenas, por uma espécie de trocadilho visual, servirem-se da analogia entre a cú-
pula e a abóbada celeste.
66. Mas, sem dúvida, é possível em certos casos; ver Katherine Dunbabin, Mosaics of
the Greek and Roman World, Cambridge, 1999, pp. 317-326.
67. As imagens e legendas das moedas eram uma experiência tão familiar a todos
que se faziam comparações explicativas. Fronton, Ad Antoninum de oratoribus,
12, censura o emprego de palavras antigas, que compara às antigas moedas; ora,
98 O IMPÉRIO GRECO-ROMANO

escreve, preferimos as moedas de Antonino ou de Marco Aurélio às moedas repu-


blicanas demasiadamente usadas que trazem os nomes de monetários oriundos de
gentes hoje desaparecidos.
68. A Histoire Auguste (Diadum., II, 6) alega que algumas moedas de Diadumeniano
lhe dão o epíteto de Antoninus: a menção é correta (H. Mattingly e E. Sydenham
[dir.], The Roman Imperial Coinage, IV, 2, p. 13).
69. Juliano louva «la simplicité de mœurs et la modestie du vêtement que l’on remar-
que encore sur les portraits» desse imperador (Éloge de Constance, 5, p. 7 A).
70. Vita Constantini, IV 15 e 73; cf. A. Cameron e S. G. Hall, Eusebius, Life of Con-
stantine Translated with Introduction and Commentary, op. cit., p. 349; S.G. Mac-
Cormack, Art and Ceremony in Late Antiquity, op. cit., p. 107 sq.
71. Vita Constantini, III, 3, 1: Constantino expõe diante da porta do palácio imperial
«une très haute peinture» que o representa como vencedor de um dragão, em
que se reconhece Licínio; cf. A. Alföldi, The Conversion of Constantine and Pagan
Rome, Oxford, 1948 (1998), p. 84, cf. p. 34. Trata-se da porta monumental ou
chalkè do palácio de Constantinopla segundo G. Dagron, Naissance d’une capitale,
op. cit., p. 390.
72. Vita Constantini, IV, 69, 2, exposta por A. Alföldi, The Conversion of Constantine
and Pagan Rome, op. cit., p. 117.
73. Em relação às moedas cunhadas no início do reinado (visto que seus reinados foram
curtos), Galba, imitado por Vespasiano, e Nerva multiplicaram as alegorias não ba-
nais – Aequitas augusta, Libertas publica, Roma renascens; recém-chegados na arena
política, em seguida a uma tirania e à queda de uma dinastia, eles gravavam nelas
não um programa para o futuro, e sim o sentido do acontecimento de sua tomada do
poder, ou seja, uma liberação. Mas, à parte esses casos «revolucionários», com mais
freqüência as menções aos benefícios e ao sucesso do regime imperial e do atual
reino, lembrados ao longo de cada reinado, serão quase sempre as mesmas: Pax,
Felicitas temporum, Aequitas, Spes, Salus... A cunhagem visa um alvo determinado,
que era o benefício imperial da provisão de mantimentos, do qual só se beneficiava
a cidade de Roma, celebrado constantemente pelo ateliê monetário de Roma, mas
às vezes também pelos de Serdica, na Bulgária, e de Siscia, na Hungria.
74. Quase todas essas cunhagens reiteram que reinam, graças ao príncipe, a paz, a pie-
dade, a concórdia, a prosperidade. Essa monotonia contrastava com determinados
reinados: o reverso das moedas de Domiciano celebra, mais que seus benefícios, a
relação com sua protetora Minerva e sua função de censor perpétuo: seu título de
censor perpetuus em grandes caracteres salta aos olhos nos reversos, e não apenas
na inscrição à direita, no epíteto. Adriano foi outro imperador original ao cunhar
a série monetária das «províncias do Império»: ela celebra as viagens do príncipe,
mas também uma concepção nova das relações entre Roma e suas províncias (vis-
to que Antonino, que não viajava, retomou essa série). Em minha opinião, essas
séries monetárias são o anúncio longínquo do édito de Caracala em 212.
75. Tácito, Annales, XIII, 4, 2; Cássio Dio, LXI, 3, 1; Plínio, Panég., LXVI, 2, 3. Code
théodosien, Nouvelles de Majorien, 1.
76. P. Strack, Untersuchungen zur röm. Reichsprägung des zweiten Jahrhunderts, I, Trai-
an, n. 1, e p. 48, n. 113.
77. Plínio, Panégyrique, LVI, 2.
78. M. Corbier em R. Frei-Stolba e K. Gex (dir.), Recherches récents sur le monde hellé-
nistique, Peter Lang, 2001, p. 314.
79. Segundo um lugar-comum freqüente, por exemplo, no papiro Rylands, II, 77, 1.
35 (A. S. Hunt e C. C. Edgar [org.], Select Papyri, II: Public Documents, n. 241, pp.
155-156), ou, sob Tibério, no senátus-consulto de Cn. Pison publicado na Année
N OTAS 99

épigr., 1996, n. 885, 1. 13: «praesenti statu rei publicae, quo, beneficio principis nos-
tri, frui contigit».
80. No tocante a esses fatos bem conhecidos, L. Mitteis e U. Wilcken, Grundzüge und
Chrestomathie der Papyruskunde, op. cit., I, 1, Historischer Teil, Grundzüge, p. 420;
A. S. Hunt e C. C. Edgar (org.), Select Papyri, II: Public Documents, n. 222 e 235;
Tituli Asiae Minoris, III, 1 (Termessos), 5; Inscriptiones Graecae, II (Atenas), 1077;
Theologisches Wörterbuch zum Neuen Testament, II, pp. 719-722; Realexikon für
Antike und Christentum, VI, p. 1110.
81. As moedas de ouro cunhadas por «usurpadores» ou por imperadores que reinaram
por pouco tempo não são raridades, como provam seus preços nos catálogos de
venda monetários. Portanto, a primeira providência de um candidato ao trono era
emitir moedas de ouro, sem esperar reinar um pouco mais.
82. Lactâncio, De mortibus persecutorum, 25; Zósimo, II, 9, 2.
83. Uma inscrição de Oineanda na Lícia (H. Dessau, Inscr. Latinae selectae, 8870;
R. Cagnat, III, n. 481) mostra que, por uma feliz coincidência, no dia em que se
celebrava venationes pelo aniversário do dies imperii (este nos parece ser o sentido
das palavras agein inperion), «fut apportée l’image sacrée de notre maître Valerien,
nouvel Auguste» (ver T. Mommsen, Staatsrecht, II, 2, tabela de assuntos, p. x,
nota). Então correios a cavalo precipitavam-se em todas as estradas, trocando de
cavalos a cada 30 quilômetros; na passagem, exibiam em cada cidade um retrato
pintado do novo Augusto, como haviam feito em Oinoanda. Um único retrato
pintado, pois um cavaleiro do cursus publicus não podia carregar mais de 30 livros
(Code théodosien, VIII, 5, 8 etc.); deviam ser correios rápidos (dromos takhus, cf.
A. H. M. Jones, The Late Roman Empire, op. cit., p. 1344, n. 14). Filostrato (Vie
d’Apollonios, V, 8) observa que o dromos takhus encarregava-se de anunciar às
populações as «bonnes nouvelles» imperiais (euanggelia).
84. Ver o balanço numismático feito por H. Lietzmann, Histoire de l’Église ancienne,
trad. Jundt, Paris, 1962, III, pp. 152-154. As moedas que, desde 315, possuem um
discreto símbolo cristão (cruz, monograma no capacete de Constantino e uma só
vez, em 326, o labarum) provam qual era a religião pessoal e confessada do im-
perador: ver Alföldi (The Conversation of Constantine and Pagan Rome, op. cit., p.
27). Mas Constantino não utilizou sistematicamente as emissões monetárias para
publicar ou promover sua religião, não parece ter feito a campanha de propagan-
da numismática mencionada por Alföldi. Ao passo que Aureliano, por exemplo,
celebrava com abundância por meio de suas moedas «Sol dominus imperi Romani»
(ou ainda, se a doutrina de Strack é verdade, comemorava o evento da fundação do
templo e do culto desse deus). Se resistirmos à tentação de «superinterrogar» apai-
xonadamente os documentos, os fatos constantinianos são, sobretudo, negativos.
O medalhão de Ticínio com o labarum, em 315, é, como dissemos, uma espécie
de ex-voto pela vitória da ponte Milvius. Após 321, as imagens de deuses pagãos
desapareceram da cunhagem constantiniana, assim como a legenda «Sol Invictus»
depois de 322. Do meu ponto de vista, algumas aparições isoladas de símbolos
cristãos devem-se ao «excesso de zelo» de funcionários monetários. Claude Lepel-
ley cita um exemplo: em um dado ano, alguns miliários africanos recentemente
descobertos têm um crisma em cima da dedicatória a Constantino, depois esse
símbolo cristão desaparece dos miliários; sua aparição momentânea fora uma ini-
ciativa isolada de algum alto funcionário.
85. Na antiga Cambridge Ancient History, XII: The Imperial Crisis and Recovery, op.
cit, p. 716: “Les Romains étudiaient attentivement leurs monnaies, car ils savaient
qu’ils y trouveraient quelque chose qui était digne d’attention. Et peu d’autres
choses avaient les mêmes titres à leur attention.»
100 O IMPÉRIO GRECO-ROMANO

86. C.H.V. Sutherland, «The intelligibility of Roman imperial coin types», JRS, 49,
1959.
87. Em 1814, por ocasião da invasão dos Aliados unidos contra Napoleão, Stendhal
quis armar a população contra os invasores e criar um grupo de voluntários; o
prefeito de Grenoble o impediu: «Gardez-vous de faire appel à des sentiments pré-
tendument généreux qui touchent de trop près à l’insubordination des peuples.»
Em torno de 1943, se bem me lembro da minha infância, a desconfiança hostil que
provocava a resistência ao nazismo em uma parte da população nada tinha a ver
com o papel dos comunistas na Resistência, como lemos às vezes: essa hostilidade
era mais global, mais instintiva, era uma raiva temerosa dos detentores e não-de-
tentores de bens, em relação à insubordinação, à «anarquia».
88. P. Zanker, «Bild-Räume und Betrachter im kaiserzeitlichen Rom, Fragen und An-
regungen für Interpreten”, art. cit., p. 223.
89. M. Jordan-Ruwe, «Das Säulenmonument. Zur Geschichte der erhöhten Aufstel-
lung antiker Porträtstatuen», Asia Minor Studien, 19, 1995, p. 207. Cf. Plínio, Hist.
nat., XXXIV, 27, citado pelo autor, p. 53; «Columnarum ratio erat attolli supra
ceteros mortales, quod et arcus significant novicio invento.» A estátua no topo foi, a
princípio, um ex-voto, depois uma estátua funerária ou honorífica; tal como a Es-
finge de Naxos em Delfos, no século VI, as duas colunas que erguem em Olímpia
as estátuas-retratos de Ptolemeu Filadelfo e de sua irmã e esposa Arsínoe, ou, em
Constantinopla, a coluna que apóia uma estátua eqüestre de Justiniano.
90. Amiano Marcelino, XVI, 10, 14.
91. P. Zanker, Augustus und die Macht der Bilder, op. cit., p. 13.
92. J.-M. Schaeffer, Pourquoi la fiction?, op. cit., p. 127.
93. R. O. Paxton, The Anatomy of Fascism, Nova York, 2003; trad. fr.: Le Fascisme en
action, trad. Desmond, Paris, Le Seuil, 2004.
94. H.D. Lasswell e A. Kaplan, Power and Society: A Framework for Political Inquiry,
Yale, 1950, p. 104, n. 2: é preciso parar de repetir que «everything is propaganda».
95. Inúmeros exemplos foram reunidos por R. MacMullen, Roman Government’s Res-
ponse to Crisis, Yale, 1976, pp. 25-45.
96. P. Brown, Society and the Holy in Late Antiquity, op. cit., p. 267, que remete ao
Code théodosien, XV, 17, 12 (ou Code justinien, XI, 41, 4).
97. Trajano é representado de perfil ou de três quartos sobre sua coluna, ao passo
que Marco Aurélio é representado de frente na sua, em frontalidade, em majes-
tade. É pouco provável que, por esse simples fato, Marco Aurélio tenha adquiri-
do mais força junto a seus súditos, mais poder... A frontalidade conferida ao so-
berano, de acordo com um novo modo de representação, correspondia às honras
que lhe eram prestadas tradicionalmente; não fazia parte de qualquer campanha
de propaganda em torno de sua pessoa, destinada a sedimentar ou reforçar seu
poder.
98. H.D. Lasswell e A. Kaplan, Power and Society, op. cit., p. 111. Cf. p. 104, n. 2: «It is
useful to restrict the term propaganda to symbols deliberately manipulated for certain
purposes.»
99. Vimos acima que um imperador não precisava propor um programa a seus súdi-
tos nem se apresentar a eles, mas subtendia ser obedecido pela autoridade. Com
efeito, em seu manifesto aos atenienses, Justino não se apresenta como pagão, não
se justifica por sê-lo: deixa entrever que é e não se preocupa visivelmente com
que possam pensar (VIII, 280 D, e XIII, 286 D). – Outro exemplo de propaganda
para um pretendente é a carta dirigida às legiões pelo exército de Vitélio (Tácito,
Histoire, II, 86).
100. L. de Saint-Simon, Mémoires, início de 1719.
N OTAS 101

101. Machiavel, Istorie fiorentine, VII, 4. Inversamente, em 165, C. Octavius foi aju-
dado, em sua eleição para o consulado, por uma casa magnífica que construíra
sobre o Palatino. «La dignitas peut être accrue par une maison, mais ne doit pas en
parvenir entièrement; ce n’est pas la maison qui honore le maître, mais l’inverse»,
escreve Cícero, De officiis, I, 138-139.
102. J.-C. Passeron, «La forme des preuves dans les sciences historiques», Revue euro-
péenne des sciences sociales, 39, n. 120, 2001 (em particular p. 34-37: «Cynisme,
naïveté, conviction menteuse»). Id., «L’économie dans la sociologie: Pareto», em
C. Malandrino e R. Marchionatti (dir.), Economia, sociologia e politica nell’opera di
Vilfredo Pareto, Florença, Olschki, Foundazione Luigi Einaudi, Studi, 37, 2000.
103. H.D. Lasswell, Politics: Who Gets What, When, How, Nova York, 1936, p. 31. No
final do século XVIII, a inteligente Mme Campan, em suas Mémoires, tem clara-
mente consciência da necessidade política do fausto; essa consciência clara revela
que o espírito revolucionário já estava presente.
104. P. Zanker, Augustus und die Macht der Bilder, op. cit., pp. 57, 98-103, 118.
105. Ibid., p. 13. Quanto à aristocracia, ela foi seduzida em parte pelo restabelecimento
da res publica, que era uma ficção enganadora (ibid., p. 105; J. Bleicken, Verfassun-
gs – und Sozialgeschichte des röm. Kaiserreiches, op. cit., I, p. 84); esse compromisso
ilusório (D. Kienast, Augustus Prinzeps und Monarch, op. cit., p. 78) garantia ao
menos à aristocracia senatorial a gestão regular de seus honores.
106. P. Zanker, Augustus und die Macht der Bilder, op. cit., p. 164.
107. Ibid., pp. 82-83.
108. Conseguir transmitir o poder a seu herdeiro é o término de um reinado bem-suce-
dido; ainda seria em Bizâncio (G. Dagron, Empereur et Prêtre, op. cit., pp. 42-43).
E, aliás, preparar a transmissão pacífica de seu poder é um dos deveres de todo
imperador (R. Syme, Tacitus, op. cit., I, p. 234).
109. P. Zanker, Augustus und die Macht der Bilder, op. cit., pp. 59-61.
110. J. Béranger, Recherches sur l’aspect idéologique du principat, op. cit., p. 272.
111. P. Zanker, Augustus und die Macht der Bilder, op. cit., pp. 105-107 e 332.
112. Ibid., p. 216.
113. Ibid., p. 198.
114. Ibid., p. 106. Sobre o entusiasmo popular por Augusto e o zelo em obedecer à
prescrição senatorial de fazer um brinde (propin facere) a Augusto em todas as
refeições, cf. E. Fraenkel, Horace, Oxford, 1957, pp. 446-447.
115. Falar em sinceridade é um exagero: diante dessa novidade imprevisível que foi o
papel histórico de Augusto no final das guerras civis, certos intelectuais vivencia-
ram uma crise filosófica e religiosa. Tentaremos mencionar esse fato em outra pas-
sagem. Horácio não acreditava mais nos deuses do que um Carneade, um Cícero
ou um Sextus Empiricus, ou talvez questionasse o que eram exatamente os deuses;
ao contrário, ele refletia sobre o grande problema dos letrados de sua época: o
mundo era regido pela Fatalidade, pela Fortuna cega ou pela Providência? E optara
pela Fortuna. Mas o triunfo da boa causa com Augusto lhe fez compreender que
essa Fortuna era providencial. À maneira de um intelectual moderno interrogan-
do-se acerca do «sentido da história» à luz dos grandes acontecimentos.
116. Fronton, Ad Marcum Caesarem, IV, 12: vêem-se, em todas as lojas, pinturas male
pictae, obras de uma crassa Minerva, que representam Marco Aurélio e Faustina.
A aproximação impõe-se com um tondo egípcio, pintura popular representando
a família dos Severos (B. Andreae, Römische Kunst, Friburgo, 1973, fig. 539). Na
Histoire Auguste, duas anedotas apócrifas nos retratos imperiais não são menos re-
veladoras (Tacitus, IX, 5, e Alex. Sev., XIII, 2: o retrato imperial pendurado acima
do leito conjugal).
102 O IMPÉRIO GRECO-ROMANO

117. A propaganda, de um lado, e o fausto, de outro, visam a um mesmo alvo, que


podemos denominar «a sociedade», mas procedem por meios diferentes, não têm
os mesmos efeitos e são separados por um abismo histórico. A confusão entre pro-
paganda e fausto origina-se da tendência de uma historiografia recente voltada só
para a sociedade, sem examinar as outras diferenças. Além disso, a relação com a
sociedade é, para essa historiografia, a chave de toda a história, de modo que não
percebe qual ruptura separa o fausto da propaganda.
118. Antiquités judaïques, XIX, 3, 228. Acrescentar Tácito, Annales, I, 2: «suspecto se-
natus populique imperio ob certamina pitentium».
119. François Furet dizia que, no meio do ano de 1789, a França inflamou-se de repente
com uma politização imprevisível. É difícil crer que o imperialismo napoleônico
tenha prolongado a defesa da pátria à Revolução, como dizem os historiadores
marxistas, e que não seja uma inovação, um impulso de uma ambição imagina-
tiva. Os impressionistas (dificilmente explicáveis a partir da «sociedade de seu
tempo»...) entreviram toda uma pintura a criar a partir de Manet, de Boudin, de
Corot, da arte japonesa etc.; uma causa coadjuvante foi que as regras da pintura
acadêmica e outras convenções haviam perdido seu poder de intimidação com
o Romantismo e os primórdios do relativismo histórico. Uma amiga alemã que
compartilhara, adolescente, o entusiasmo pelo surgimento do nazismo me disse
isto: o golpe de gênio do Monstro (ao contrário do demagogo francês Le Pen) não
foi o de adotar como tema o ressentimento (contra a derrota, o Dolschstoß in den
Rücken, a injustiça evidente do tratado de Versalhes, a inflação, o desemprego, os
golpes de força bolcheviques e outros fatores coadjuvantes), mas o de provocar um
entusiasmo positivo por um futuro de poderio e pureza nacionais, que fustigou o
sangue da juventude.
120. Essa idéia da freqüente criatividade da ação é uma das verdades que Nietzsche
usou para compor sua mitologia psicometafísica da vontade do poder. Citamos La
Volonté de puissance, I, 246, n. 82 (trad. Bianquis): «Les historiens se trompent par-
ce qu’ils partent des données présentes et regardent en arrière; la réalité présente
est une chose neuve qui ne peut être inférée» dessas causas pretendidas. E, sobre-
tudo, I, 240-241: uma força interior utiliza, explora as circunstâncias exteriores,
que não são causas. «Contre la théorie du milieu et des causes extérieures: la force
interne est infinitement supérieure; les mêmes milieux peuvent être interprétés
et exploités de façon opposée; il n’y a pas de faits. Un génie ne s’explique pas par
de telles conditions de production.» Bergson escreveu com mais sobriedade em Le
Possible et le Réel: «Si l’événement s’explique toujours, après coup, par tel ou tel
des événements antécédents, un événement tout différent se serait aussi bien ex-
pliqué, dans les mêmes circonstances, par des antécédents autrement choisis – que
dis-je ? par les mêmes antécédents» interpretados por outro modo «par l’attenction
rétrospective».
121. O que Max Weber denomina a “rotinização do carisma”.
N OTAS 103

Capítulo 8
1. Meus agradecimentos a Jean-Pierre Cèbe, Françoise Frontisi, Lucien Jerphagnon,
François Lisarrague, doutora Françoise Mareschal, Mme Claudia Moatti, Jean-
Claude Passeron, irmã Marguerite Peyras DMC, Didier Pralon, John Scheid, Joël
Thomas, André Vauchez na l’École française de Rome, Stéphane Verger e meus
ouvintes nesta escola. Errors are mine.
2. Les Deux Sources de la morale et de la religion, p. 217.
3. G. Simmel, Einleitung in die Moralwissenschaft, Berlim, 1892 (Aalen, 1983), I,
p. 451. M. Nilsson, Geschichte der griec. Religion, op. cit., I, pp. 313 e 315. «Die
Griechengötter und die Gerechtigkeit», em seus Opuscula selecta, Lund, 1960, III,
pp. 303-321. John Scheid, em sua Leçon inaugurale no Collège de France (2002),
pp. 24-25: «Si les conduites religieuses sont universelles, leur variété est infinie et
l’histoire réside dans cette infinie variété, non dans la vague universalité des com-
portements [...]. Quand il pratique sa religion, le Romain ne se préoccupe ni de la
survie ni du salut de son âme».
4. Amplo tema que evocaremos por algumas alusões. O antigo Chant des Arvales é
um hino do tipo grego. (E. Norden, Aus Altrömischen Priesterbüchern), a palavra
triump[h]us corresponde, em grego, thriambos, e o verbo ovo euoi, nossa «evocação».
Seis a cinco séculos antes de nossa era, os templos de Roma eram ornamentados
por estátuas de Atena com um elmo, apresentando um Héracles sorridente à assem-
bléia dos deuses (Sant’Omobono) ou amazonas feridas (Esquilino). No século IV,
colocavam-se nos túmulos, à maneira grega, estatuetas de terracota representando
Afrodite e Eros (Via Salaria, segundo a Enciclopedia dell’arte antica, Supplemento,
1970, p. 665). A fachada do túmulo de Publius Cornelius Scipio Africanus, após o
ano 200, é grega (Hans Lauter, Dir Architektur des Hellenismus, Darmstadt, 1986,
p. 131). O «espírito romano» não era refratário à mitologia: as cidades etruscas e
Roma começaram logo a se impregnar de mitos gregos, que seguiram uma carreira
internacional. «Les dieux romains sont partout travestis en divinités grecques et,
pendant des siècles, les Romains n‘ont visualisé leurs dieux qu’à travers ce déguise-
ment grec» (A. Grabar). No entanto, «l’hellénisation touche aux formes plastiques,
mais pas aux cultes eux-mêmes» (C. Rolley); a penetração da mitologia no culto,
nos rituais, foi bem mais difícil. Os romanos não apreciavam as genealogias divinas,
os parentescos entre as divindades: a associação do deus grego (e etrusco) Apolo
com sua mãe Latona, desde 432 antes de nossa era, é uma exceção; Apolo só se as-
sociará à sua irmã Diana, segundo o modelo grego, muito mais tarde (G. Radke, Zur
Entwicklung der Gottesvorstellung in Rom, Darmstadt, 1987, pp. 34-35, cf. 67, 179,
218). Mas, por outro lado, a paideia transformou profundamente a religião grega,
ao menos na classe letrada; como os letrados romanos haviam adotado a cultura dos
eruditos gregos, sua concepção dos deuses era a mesma.
5. Na Théogonie, de Hésiode, deuses e homens nasceram de Gaia, a Terra. Philodème,
De dis, III, col. G, 5, 25; Sextus Empiricus, Contre les professeurs, 9, 139.
6. Cícero, De officiis, II, 3, 11; Galien, Protreptique, 9 (Galeni Opera, I, p. 21,
Kühn).
7. H. Lloyd-Jones, The Justice of Zeus, University of California Press, 1971, p. 161.
8. Pline le Jeune, Lettres, VI, 20.
9. Ver «Inviter les dieux, sacrifier, banqueter», Annales HSS, 2000, p. 4 (Artémidore
de Daldis) e p. 41 (Horace). Em latim, diríamos invitare deum ou cena deorum.
10. H. Bergson, Les Deux sources de la morale et de la religion, op. cit., pp. 144-153; O.
Leroy, La Raison primitive: essai de réfutation de la théorie du prélogisme, Geuthner,
1927, em especial pp. 242-266.
104 O IMPÉRIO GRECO-ROMANO

11. Hésiode, Théogonie, 901-902; voltaremos mais adiante a esses versos.


12. J. Scheid, Religion et Piété à Rome, Paris, Albin Michel, 2001, p. 74.
13. G. Wissowa, Religion und Kultus der Römer, op. cit., p. 390 e n. 1. Cf. Plauto, Mos-
tellaria, 524: «pax est mihi cum mortuis».
14. J. Scheid em Gnomon, 2003, p. 708, que acrescenta: «Il n’y avait dans le monde
romain ni une religion romaine ni une autorité religieuse centrale, mais une mul-
tiplicité d’autorités, de prescriptions et de conceptions qui formait un ensemble
global, mais n’était pas coiffée par une même autorité».
15. Salvo (falsa exceção que confirma a regra) quando um santuário ou sua imagem
de culto eram considerados a «sucursal» (aphidryma) de um grande santuário re-
nomado; ou que a lei sagrada de um santuário prescrevesse que é a mesma de um
santuário célebre. Penso em uma rua do Harlem, em Nova York, onde se alinham
lojas de «vendedores» de culto, cada uma expondo sua doutrina na vitrine.
16. Valère Maxime, I, 8, Rom., 2; Thucydide, II, 47, 4.
17. Como exemplo dessas punições, L. Robert, Nouvelles Inscriptions de Sardes, Paris,
1964, I, p. 30. Ver também, na mesma obra, os libelos gregos de promessas cum-
pridas, p. 30 e n. 4; p. 35, n.4; p. 39, n. 5; p. 54, n. 1; esses libelos (kat’ euchèn
ou euxamenos) equivalem ao libelo latino votum solvit libens merito. Ver F. T. Van
Straten, «Gifts for the Gods», em H. S. Versnel (dir.), Faith, Hope and Worship,
op. cit., p. 65; J. Scheid, «Les aléas de la voti sponsio», Scienze dell’antichità, 3-4,
1989-1990 (Atti del convegno internazionale «Anathema»), p. 773. Não há dife-
rença entre Grécia e Roma em matéria de promessas; por toda parte, atém-se ao
mesmo princípio: «Eu te dou, ó deus, porque tu me deste». Ver, por exemplo, a
promessa de Diomède na Iliades, X, 291; a de Ulisses na Odyssée, XIII, 356; a de
Étéocle em Les Sept contre Thèbes, 271; ou a de Hécalé em Filochoro, citada por
Plutarque, Vie de Thésée, XIV, 3. Em torno de 350 antes de nossa era, em Far-
sala, certo Trochilos, que se tornara arconte, cumpre a promessa que fizera para
se converter em arconte (Revue des études anciennes, 1964, p. 307); do mesmo
modo, um tipo de libelo latino diz, por exemplo, «quod miles voverat, veteranus
solvit» (Latomus, 23, 1964, p. 34). Para solicitar um favor a um deus, inscrevia-se
seu nome numa tabuleta que se colocava sobre os joelhos dele (Juvénal, X, 55 e
XII, 100; Prudence, Apotheosis, 457). Podia-se também fazer uma oferenda ante-
cipada: oferecer um sacrifício aos deuses por ter tido um filho (Diogène Laërce,
VI, 64). Acontecia também que se fizessem oferendas aos deuses por amor ou
para obter seus favores, independentemente de qualquer promessa, numa ação
de graças.
18. Sob o Império, um viajante, encontrando-se em Ática, no porto de Halai, cujo
santuário de Ártemis é célebre (Euripide, Iphigénie en Tauride, 752), vê em sonho
(ex viso) a deusa pedindo para lhe fazer uma promessa; ao chegar a Aenona, na
Dalmácia, cumpre essa promessa com Diana (CIL, III, 2970). Acerca das promes-
sas de viajantes, ver lista em Poikilia: études offertes à Jean-Pierre Vernant, Paris,
EHESS, 1987, p. 391, n. 9 e 10. Os marinheiros inscreviam seus agradecimentos
aos deuses em um rochedo (por exemplo, Inscr. Graecae, XII, 5, 871).
19. Quanto aos numerosos ex-votos cujo libelo é «servus vovit, liber solvit», cf. Latomus,
23, 1964, p. 32. Em Horace, um liberto oferece seu grilhão de escravo aos Lares
(Sat. I, 5, 65); Martial (III, 29) em Saturno, onde o templo guardava os registros
de estado civil.
20. Beschaouch em Comptes rendus de l’Académie des inscriptions, 1975, p. 112: «pro
comperta fide et pro servata salute».
21. Épictète, Entretiens, I, 19, 24.
22. R. MacMullen, Christianizing the Roman Empire, op. cit., p. 13.
N OTAS 105

23. Referências em minha Société romaine, op. cit., p. 290; mas essa boa-fé existia? «Si
qua est caelo pietas...» (Énéide, II, 536, e V, 688). Outras referências de Françoise
Dunand em G. Dorival e D. Pralon (dir.), Nier les dieux, nier Dieu, Université de
Provence, 2002, pp. 74-75.
24. Euripídes, Électre, 200.
25. Id., Héraclès furieux, 1307. Plauto, Poenulus, 449-452.
26. Suetônio, Caligula, V; G. Wissowa, Darstellungen aus der Sittengeschichte Roms,
Leipzig, 1920, III, p. 196-197. Cf. minha Société romaine, op. cit., pp. 282-288;
acrescentar Dio de Prusa, XXXVIII, 20; Epiteto, II, 22, 17, e III, 4, 8; Libânio,
disc. XX, 12, e XXXIII, 33 (les kata tôn theôn rêmata são «vociferações contra os
deuses»). Sobre os exemplos de recriminações dirigidas ao Deus dos cristãos (p.
284, n. 10), acrescentar Salvien, De gubernatione Dei, IV, 11 (J.-P Migne, Patrolo-
gia Latina, LIII, col. 83): os blasfemadores chamavam Deus de negligente, distraí-
do, indiferente, impiedoso, e lhe censuravam de não governar o mundo.
27. Amiano Marcelino, XXIV, 6, fim. Surpreendemo-nos que um neoplatônico de-
voto como Juliano tenha tido com um deus uma relação polêmica, tal como um
pagão de outrora. Por ter lido Porfírio, o que distingue diversas classes de deuses,
entre os quais alguns tinham ímpetos e caprichos (Saint Augustin, La Cité de Dieu,
X, 9, fim)? Em sua Lettre à Anébon, quarta aporia, Porphyre questiona se os deuses
são empatheîs, «passíveis», isto é, suscetíveis de suportar qualquer coisa (Lettera ad
Anebo, ed. Guiseppe Faggin, Florença, Sansoni, 1954, p. 40).
28. Pap. Oxy., VII, 1065, em L. Mitteis e U. Wilcken, Grundzüge und Chrestomathie
der Papyruskunde, op. cit., I, 2, p. 149, n. 120 (século III de nossa era).
29. Eurípides, Hélène, 1140.
30. Id., Hippolyte, 1327; Bacchantes, 1348; Andromaque, 1164.
31. Id., Héraclès furieux, 212, 347.
32. Id., Ion, 252 («tolmêmata theôn»); Hélène, 1105 (a deusa não é metria).
33. Ibid., 711 e 1137; Iphigénie en Tauride, 476.
34. Épictète, Entretiens, III, 4, 8: os trabalhadores e os marinheiros não param de amal-
diçoar Zeus e César; Manuel, XXXI, 4. Eurípides, Hippolyte, 1146 («j’enrage con-
tre les dieux») ; Héraclès furieux, 759; Ion, 355, 436 («Je dois admoester Phoibos:
que lui prend-il?»), 877-878 e 931; Électre, 1246.
35. «Thaumazô se, Zeû.»
36. Valère Maxime, IV, 7, Rom., Praef.: I, 1, Rom., 15: «magnus Caelestibus injectus est
rubor».
37. Fábula 48, ed. Chambry (Budé): L’Homme mordu par une fourmi et Hermès.
38. Eurípides, Électre, 1355. Assim Petrônio explica essa crença, CXIV, 5: a tempes-
tade devia-se a Encolpe, que furtou o véu de uma deusa e, depois, por uma infeliz
coincidência, embarcou em um navio que trazia o nome e a imagem da mesma
deusa, protetora da navegação (nos Tristes, Ovide, navegando na Minerve, dirige a
Minerva um voto de feliz travessia). No mar, o poltrão Théophraste (Caractères,
XXV, 2) «s’inquiète si tous les passagers sont initiés, dès que les vagues grossis-
sent». Cf. a recíproca em Horácio, Odes, III, 2, 25-29.
39. É Zeus escarnecido no canto XIV da Iliade, ou a Assembléia dos deuses na frisa do
Tesouro de Siphnos em Delfos: Atena, jovem e belicosa (reconhece-se a guerreira
do canto XXI da Iliade), volta-se impetuosa para os deuses, os quais se opõem a ela
sentados atrás, e, para desafiá-los ou desacatá-los, aponta o ângulo de seu cotovelo.
No tocante à paródia do sagrado, o julgamento indulgente de A. Lesky (Gesch. der
griech. Literatur, 1963, p. 486) e de J.-P. Cèbe (La Caricature et la Parodie dans le
monde romain, Paris, 1966, p. 67: «un badinage inoffensif») parece mais judicioso que
a severidade de M. Nilsson (Geschichte der griech. Religion, op. cit., I, pp. 779 e 143).
106 O IMPÉRIO GRECO-ROMANO

40. Trimalcião usa uma pulseira de 10 livros de ouro, feita com o dízimo de suas
oferendas a Mercúrio (Pétrone, LXVII, 8, com o comentário de Friedländer). Em
caso de necessidade, venderia esse ouro, suponho, mas prometendo ao deus de-
volver-lhe assim que possível: do mesmo modo agiam os atenienses com o tesouro
de Atena. A defunta do sarcófago de Simpelveld usa um anel de ouro dedicado
a Juno, «IVNONI MEAE». Cf. Revue archéologique, II, 1983, p. 296-297. Assim
se explica, creio, a estatueta de ouro maciço representando um togatus que é a
atração do museu de Ljubljana: é a imagem do genius do pai de família, que nela
investiu suas economias, conserva-a em seu larário e que poderá pedir emprestado
ao deus, se precisar.
41. Em alemão das Heilige, «o caráter santo». É o título da espécie de fenomenologia
do estudo de Rudolf Otto, Das Heilige, em francês, Le Sacré, trad. Jundt, Paris,
Payot, col. «Petite bibliothèque Payot», 1995.
42. Trata-se da teoria célebre de E. Durkheim, Les Formes élémentaires de la vie reli-
gieuse, pp. 586-588. Porém, os deuses não são apenas sagrados, intocáveis e sepa-
rados do resto das questões sociais: eles são «admiráveis»; um santuário é sagrado,
mas não é ele que se adora, e sim o deus. O sagrado é ambivalente, pode ser exe-
crado, mas o divino jamais; o divino não é profano, mas o inverso não é verdadeiro,
o sagrado não é divino. O sagrado é um corte social ou ético, o divino é uma qua-
lidade sui generis, específica o suficiente para justificar a existência da palavra «re-
ligião», mesmo que o sentimento do divino só ocupe, em geral, um lugar reduzido
no conjunto confuso e variável das religiões. Reduzir a religião ao sagrado, a essa
barreira ambivalente que corta pela metade as questões sociais, a esse poder que
age no que é profano, significaria limitar os fenômenos. O sagrado, poder anônimo,
sem rosto, não seria o bastante para separar os sentimentos e as condutas de que só
uma divindade personificada é capaz (ou, às vezes, uma abstração personificada e
divinizada).
43. Como conseqüência divertida, é impossível descrever o que poderia ser um sex-
to sentido que viria se agregar a nossos cinco sentidos: nenhum autor de ficção
científica conseguiu fazê-lo; alguns cachorros sentem a presença de eletricidade
estática no ar, mas nos é impossível imaginar quais são as características (qual é
a qualidade) dessa presença na consciência deles. – O que me faz crer que nossa
intencionalidade, com propensões específicas e extra-empíricas, é uma experiência
distinta do divino: o medo de fantasmas, por exemplo, mencionado também por
Rudolf Otto. Se a existência de fantasmas fosse provada por experiências físicas,
fotografia ou pelo contador Geiger, eles perderiam sua especificidade, deixariam
de ser sobrenaturais e não mais provocariam medo.
44. Os extraterrestres nos quais algumas seitas atuais acreditam (com tanta convicção
que chegam a se suicidar coletivamente) são, sem dúvida, envoltos nessa aura divi-
na. Todo «pequeno fato verdadeiro», segundo Stendhal, é instrutivo para um his-
toriador ou um sociólogo, mas o autor das presentes páginas, que não tem nenhum
sentimento religioso, porém é um bom espectador, pode então testemunhar que
uma das duas vezes em sua vida em que, com lágrimas nos olhos, vivenciou o sen-
timento do divino foi ao ver os extraterrestres que desembarcam no final do filme
Contatos imediatos do Terceiro Grau. A outra vez foi uma dessas raras lembranças
isoladas da infância: um ser soberano, maior que a natureza, avança, decidido, para
mim com um sorriso de uma bondade indizível; era minha avó segurando uma ma-
madeira de leite. Ora, precisamente, Jean Piaget pensa que o sentimento religioso
«a sa source dans les rapports de l’enfant avec ses parents, il est le sentiment filial
lui-même» (La Représentation du monde chez l’enfant, p. 297 e 317). No entanto,
é difícil crer que uma qualidade possa ser o produto de uma projeção psicológica;
N OTAS 107

acreditaríamos mais que o bebê descobre o divino em seus pais. Em oposição a


Piaget, G. Simmel escreveu: a religiosidade é «une catégorie a priori qu’on ne peut
dériver d’autre chose» (Die Religion, Frankfurt, 1912, p. 96) e qualquer tentativa
de derivá-la de outra coisa, do medo, do amor, da angústia etc. jamais explicará a
origem do salto em direção a essa qualidade tão diferente do sentimento religioso
(p. 100).
45. Ele não pressupõe que o sentimento do divino exista: nenhuma intuição intelec-
tual, no sentido que os filósofos imprimem a essas palavras, revela Deus como
percebo o que tenho diante dos olhos, como sei o que penso ou, numa alucinação,
quando creio ver fantasmas.
46. Ovide, Fastes, V, 433: «digitis, medio cum pollice, junctis»; Vitruve, IV, 5: «quand on
passe devant un sanctuaire, on le salue». Revue archéologique, I, 1985, p. 52, com
a retificação mencionada em Metis, V, 1990, p. 25, n. 22. Minucius Félix, Octa-
vius, II, 4; Apulée, Apologie, LVI, 4. Em um mosaico de Daphnes representando
caçadores diante de uma imagem de Diana, um deles põe os dedos na boca e envia
um beijo para a estátua (M. Henig [dir.], A Handbook of Roman Art: A Survey of
the Visual Arts of the Roman World, Phaidon, 1983 [1951], p. 120, com a nota 35,
e pl. 1). O Disco de Menandro também (prólogo, 1O-11) saúda Pã quando ele
passa em frente à sua imagem. G. Amad, Le Baiser rituel: un geste de culte méconnu,
Beirute, 1973.
47. Éthique à Nicomaque, VIII, 1162 A 4: «L’amour [philia] des enfants pour leurs
parents et des humains pour les dieux est [de l’amour] pour ce qui est bon et su-
périeur.» Cf. também Dion de Pruse, XII, Discours olympique, 42. Aristóteles, de
fato, escreveu que seria insensato dizer que se ama Zeus (citado por E. R. Dodds,
The Greeks and the Irrational, Berkeley, 1953, p. 35); mas, a despeito de Dodds,
não há conclusão sobre os sentimentos dos homens comuns (H. Lloyd-Jones, The
Justice of Zeus, op. cit., p. 33): é a teoria de um filósofo segundo a qual «celui qui
se suffit à lui-même n’a besoin de l’aide de personne ni de son amitié et c’est le cas
du dieu qui n’a pas d’amis et n’a pas besoin d’amis» (Éthique à Eudème, VII, 1244
B).
48. Esse sentimento de segurança metaempírico não é próprio às religiões. René Char
o encontrou na prática da poesia («la sécurité est un parfum», escreveu) e o histo-
riador cristão, H.-I. Marrou, me disse que, para ele, seu trabalho era uma prece.
49. Eurípides, Hippolyte, verso 73 e subseqüentes. Ártemis sente, por sua vez, uma
grande amizade por Hipólito (1394-1398). Essa ficção lembra outra ligação pes-
soal: a amizade de Atena por Ulisses, feita de estima e simpatia (na cena emocio-
nante da Odyssée, XIII, 186-354). Essas são ficções épicas ou trágicas. Do contrá-
rio, o amor de Hipólito por Ártemis teria sido uma ficção incompreensível para os
espectadores da tragédia, se não houvesse correspondido a casos individuais reais,
que os atenienses viam em torno deles.
50. Artémidore, Onirocritique, II, 36 (p. 162, Pack). Cf. o humor de Cícero, De natura
deorum, I, 19, 81. Quanto ao sonho, ver Poikilia, op. cit., pp. 384-388.
51. Do mesmo modo, os inúmeros Atos dos Mártires apócrifos (podemos resumir seu
conteúdo como sex, sadism and snobism) nutriram, bem como deleitaram, a devo-
ção medieval sincera.
52. Os aqueanos preparam-se para a batalha: «Chacun d’eux sacrifie à l’un ou l’autre
[allos allôi] des dieux toujours vivants, afin d’échapper à la mort» (Iliade, II, 400).
53. Filostrato, Imagines, I, 15, trad. Bougot-Lissarrague: «Ariane fut abandonnée pen-
dant son sommeil par le perfide Thésée [...]. Ta nourrice t’a sans doute fait ce
récit, car elles sont savantes en pareille matière, les femmes de cette condition, et
elles pleurent en contant, à volonté.»
108 O IMPÉRIO GRECO-ROMANO

54. Ver o relato indulgente de Santo Agostinho, La Cité de Dieu, VI, 7. Sobre as anti-
gas divindades Larentia e Tarpeia, G. Wissowa, Religion und Kultus der Römer, op.
cit., p. 233; G. Radke, Zur Entwicklung der Gottesvorstellung in Rom, op. cit., pp.
164 e 296.
55. Juvenal, X. 289; Plutarco, De superstitione, 170 B.
56. Escolhia-se, com mais freqüência, uma divindade por sua especialidade (medicina,
obstetrícia, caça, comércio, navegação...) ou por sua reputação de eficácia ou de
acolhimento benevolente, ou porque era o deus espacialmente mais próximo e,
portanto, um chefe natural – o deus de sua cidade, o de seu bairro ou de sua rua
(diversos textos mencionam em um tom agradável o fato de ter um deus como
vizinho) –, ou visto que era o deus da região onde se estava de temporada ou de
passagem.
57. «Artémis qui se soucie de moi», diz Hipólito (no verso 60) em Euripide. «Apollon
se soucie de nous, poètes» (Anthologie palatine, X, 17). «Apollini mea carmina cu-
rae» (Virgílio, Buc., III, 61). Juliano, Banquet, 321 C: é a divindade que se preo-
cupou em punir os assassinos de Júlio César. Libânio foi, durante toda sua vida, o
protegido da Sorte (disc., I, Autobiographie, 26 e passim).
58. Uma passagem da pureza ritual à pureza moral ocorrerá na Grécia e em Roma
sob a influência grega, segundo J. H. W. G. Liebeschuetz, Continuity and Change
in Roman Religion, Oxford, 1979, p. 49. Cícero, Lois, II, 8, 19: «ad deos adeunto
caste».
59. Pausânias, VII, 14, 6.
60. Tácite, Histoires, I, 27, 1, e 29, 1: Galba «cansa os deuses», multiplicando as preces
que precedem a imolação repetida de vítimas cujos exta não são nunca consoantes,
de modo que não se atinge jamais a litatio (G. Wissowa, Religion und Kultus der
Römer, op. cit., p. 418). Mesmo método na Grécia: multiplicam-se os sacrifícios até
obter os presságios favoráveis (kalliereîn).
61. Reconheceu-se a prece de abertura em De natura rerum, de Lucrécio, e cuja na-
tureza de oração desafiadora nem sempre foi bem compreendida. Ver S. Pulleyn,
Prayer in Greek Religion, 1997, p. 200. Os filólogos chamam esse esquema de Re-
lativstil: E. Norden, Agnostos Theos: Untersuchungen zur Formengeschichte religiöser
Rede, 1912 (1956), p. 172.
62. Eurípides, Cyclope, 606: «Héphaïstos et Hypnos [n’abandonnez pas Ulysse], sinon
il faut tenir le Hasard pour un être divin et les divinités pour inférieures au Ha-
sard.» 354: «Zeus Hospitalier, vois où j’en suis; si tu ne regardes pas, c’est pour rien
qu’on parle de toi, Zeus, comme d’un dieu, alors que tu es un rien du tout.» Nos
Salmos, vemos a mesma maneira de instigar a honra do deus: “Ajude-nos, Yahvé,
senão nossos inimigos pagãos dirão: ‘Mas o que faz então vosso deus? Onde ele
está’” (Salmos, 47, 11, fim; 79, 9-10; 115, 2).
63. Eurípides, Cyclope, 354: «nomizêi to mêden ôn theos».
64. Tíbulo, I, 2, 83-85. Prática supersticiosa que se transmitirá aos cristãos pouco ins-
truídos; ver P. Brown, «Augustine and a practice of the imperiti», em Augustin
prédicateur, Paris, Institut d’études augustiniennes, 1998, p. 367, que C. Lepelley
gentilmente me indicou: São Paulino de Nole mostra um camponês que, ao entrar
em uma igreja, «se prosterne et baise la porte et les jambages» (p. 369). Segundo
Horácio, Satires, II, 3, 289-295, as mães mergulhavam os filhos no Tibre gelado
para convencer Júpiter a curá-los da febre quartã. Cf. também Juvenal, VI, 522,
e Sêneca, De vita beata, XXVI, 8. Ao se tornar cego, um homem confessou que o
merecera por sua impiedade (Ovídio, Pontiques, I, 1, 51-54). Menandro zombava
dos sírios, que se sentavam (como Jó) sobre um monte de esterco para apaziguar
sua divindade (Porfírio, De abstinentia, IV, 15; p. 253, Nauck). – A vítima de
N OTAS 109

uma infelicidade esforça-se para abrandar a indiferença dos deuses ou obter sua
piedade; é também uma chantagem, tal como uma greve de fome. Mas, como se
presume que toda infelicidade é um castigo divino, a vítima também se mortificava
para punir-se de uma falta e obter o perdão do deus e o fim de seus pesares. A falta
em questão não era um pecado contrário à moral, mas uma falta cometida contra
os deuses (negligenciou-se um rito, por exemplo, e o deus vingou-se). Falaremos
mais adiante das «estelas de confissão».
65. Libânio, discurso XVIII, 177.
66. Crença ímpia que Platão condena, Lois, X, 884 A. Ibid., X, 906. E é ridículo pen-
sar que os deuses «se laisseraient corrompre par le vin des libations et la graisse des
victimes».
67. Horácio, Odes, III, 23.
68. Arnóbio, Adversus gentes, VII, 5 (J.-P. Migne, Patrologia Latina, V, col. 1223): «Se-
quitur ut illam quoque inspiciamus partem quem jactari audimus vulgo et populari in
persuasione versari, sacrificia superis ea fieri diis causa ut iras atque animus ponant,
reddanturque mites et placidi, fervidorum pectorum indignatione sedata.»
69. Plutarco, Non posse suaviter vivi, 21 (Moralia, 1101 D): «L’attitude des masses
illettrées envers le dieu mêle sans doute à la vénération et aux honneurs quelque
peu de fébrilité et de crainte, mais on y trouve aussi mille fois mieux: le bon es-
poir, beaucoup de joie, des prières qui demandent et reçoivent toute bonne chose
comme venant des dieux.» Pseudo-Luciano, Amores, 12, fim: no santuário de Afro-
dite em Knidos, sob as árvores, «il y a de riants lits de table pour ceux qui veulent
y festoyer; les citoyens distingués y viennent rarement, mais le peuple s’y porte en
foule». Acontecia o mesmo em Roma, no santuário de Vênus Ericina (mais adiante
da atual Porta Pia).
70. Libânio, discurso XXX (Oratio pro templis), 9-10: «Lorsque [des troupes de moi-
nes] ont amputé un domaine de son sanctuaire, ce domaine est désormais aveugle,
il gît, il est mort. Car c’est leur âme pour les champs, ô empereur, que les temples,
ces introïts à un établissement humain dans la campagne, qui, à travers tant de
générations, sont parvenus jusqu’aux hommes d’aujourd’hui. Sont mortes aussi,
chez les cultivateurs établis sur ces terres, toutes leurs espérances pour les hom-
mes, les femmes, les enfants, les bœufs, les terres ensemencées et complantées; le
domaine auquel ce malheur est arrivé a perdu là le zèle de ses paysans avec leurs
espérances, car ils estiment qu’ils s’efforceront en vain, une fois dépouillés des
dieux qui faisaient aboutir leurs efforts.»
71. Plutarco, Vie d’Alexandre, 74; Non posse suaviter vivi, 21, Moralia, 1101 C e 1102
A-B; Vie de Périclès, VI, 1. Também Epicuro, Lettre à Ménécée, 134. A boa esperan-
ça neste futuro terrestre, é claro; só em Aélio Aristides (em seu Discours éleusinien,
XXII, 10) ou Porfírio (Lettre à Marcella, 24) a palavra refere-se ao além.
72. Theogonis ou Pseudo-Theogonis, 1143, citado por L. Bruit Zaidman, Le Com-
merce des dieux: essai sur la piété en Grèce ancienne, Paris, La Découverte, 2001, p.
107.
73. No século VI, nos Huit Livres des miracles de Grégoire de Tours, os santos (a quem
se reza ou lhes faz donativos), ou o contato com suas relíquias, preservam os cam-
pos da geada, curam os doentes, propiciam encontrar objetos perdidos etc.
74. Horácio, Odes, III, 24; Theopompio em Porfírio, De abstinentia, II, 16, 4, com a
nota do editor. Bouffartigue-Patillon, p. 204, em relação ao costume de polir as
imagens sagradas; mesmo costume em Roma (Juvénal, X, 55: «cirer les genoux des
dieux»).
75. Com efeito, o brusco sucesso de uma religião (ou sua duração, uma vez que existe
e torna-se habitual) não se deve ao fato de que ela atende mais que as outras às
110 O IMPÉRIO GRECO-ROMANO

necessidades ou aos desejos naturais do homem: ela cria essas necessidades ou, se
preferirmos, descobre-as à maneira de um novo «produto» lançado pela publicida-
de. La Nouvelle Héloïse, com seu sucesso fulminante, gerou um sentimentalismo
pré-romântico, um «modo» artístico e humano que, uma vez brotado, passou a
fazer exigências. Uma religião suscita desejos ou insatisfações que asseguram seu
sucesso.
76. A originalidade desse best-seller, inspirado no judaísmo da época (ao qual o pro-
selitismo não era estranho), já provocara o sucesso do judaísmo entre as religiões
orientais no Império Romano. A proximidade das duas religiões estende-se bem
além do problema superficial e confuso do monoteísmo.
77. J. Scheid, Romulus et ses frères, École française de Rome, 1990, p. 752.
78. Saturnales, III, 5, 7, citado por J. Scheid.
79. A grande diferença entre o paganismo e o que Averil Cameron denomina a retóri-
ca ou o discurso cristão (Christianity and the Rhetoric of Empire: The Development
of Christian Discourse, University of California Press, 1994). O cristianismo dispu-
nha, assim, de poderosos meios de propaganda.
80. Do mesmo modo, nos pactos de aliança, duas cidades passam a «considérer [nomi-
zein] comme amis et ennemis les mêmes peuples». Discussão do tema em W. Fahr,
Theous nomizein: Zum Problem der Anfänge des Atheismus bei den Griechen, Olms,
1969; simplificamos o detalhe.
8 1. Juliano, Sur Hélios roi, 39, 153 A.
82. M. Foucault, Dits et Écrits, II, p. 1623.
83. O lugar-comum milenar que opõe «crer» e «crer em» tem sua origem em Santo
Agostinho, como aqui mencionado; ver F. Dolbeau, Augustin d’Hippone, vingt-six
sermons au peuple d’Afrique, Études augustiniennes, 147, 1996, p. 50.
84. Quanto a todos os atos e atitudes diferentes da piedade, remetemos a L. Bruit Zai-
dman, Le Commerce des dieux, op. cit., pp. 19-55. Sobre os ex-votos e as cenas de
sacrifício na Grécia, G. Neumann, Probleme des griechischen Weihreliefs, op. cit., e
também, do mesmo autor, Gesten und Gebärden in der griech. Kunst, De Gruyter,
1965. Em relação a Roma, ver a rica coletânea amplamente ilustrada de Inez Scott
Ryberg, Rites of the State Religion in Roman Art, American Academy in Rome,
Memoirs, XXII, 1955.
85. J. Scheid, «Religion romaine et spiritualité», Archiv für Religionsgeschichte, 5, 2003,
pp. 197-209, em especial p. 204.
86. Tito Lívio, I, 24.
87. Essa é a razão pela qual o papel de Zeus como garantia de sermões é pouco mar-
cante e é apenas um traço fugidio de sua personalidade. Raramente trata-se de
Zeus Orkios (M. Nilsson, Geschichte der griech. Religion, op. cit., I, p. 421); magica-
mente eficaz, a fórmula da maldição deixava pouco espaço a um deus.
88. Ibid., p. 141.
89. Heródoto, VI, 86.
90. Catulo, LXXVI, 2 e 26.
91. Les Travaux et les Jours, 284, verso retomado pelo oráculo em Heródoto, II, 86.
92. Essa estrela observadora provém da astrologia da Caldéia, como assinalado por M.
Nilsson, Geschichte der griech. Religion, op. cit., I, p. 276, segundo Diodoro, II, 30;
astrologia que Plauto conheceu por meio de seus modelos helenísticos. Sobre a
religião helênica em Plauto, M. Nilsson, Ibid., pp. 194-195.
93. G. Petzl, Die Beichtinschriften Westkleinasiens, op. cit., p. III.
94. Ésquilo, Euménides, 55-56.
95. G. Petzl, Die Beichtinschriften Westkleinasiens, op. cit., p. 52, n. 43.
96. F. Sokolowski, Lois sacrées des cités grecques, op. cit., Supplément, p. 159, n. 91.
N OTAS 111

97. Servius, Comm. Aeneid., ad IV, 518: «Il n’est permis d’accéder aux rites de Junon
Lucina qu’avec des nœuds dénoués.» Para um ato sagrado ou mágico, é preciso
libertar-se de todos os laços, «pedibus nudis passo capillo» (Horácio, Satires, I, 8,
24); «exorat pacem divum vittasque resolvit» (Virgílio, Énéide, III, 370). A Sibila de
Cumes solta seus cabelos para receber o deus (ibid., VI, 48: «non comptae mansere
comae»). Para morrer, Dido desamarra os cordões de seu sapato e desata a faixa
da cintura de sua túnica (IV, 518). No santuário do monte Cynthe, em Delos, é
preciso entrar sem nada na cintura (F. Sokolowski, Lois sacrées des cités grecques,
op. cit., Supplément, p. 114, n. 59, 1, 20).
98. Teofrasto em Porfírio, De abstinentia, II, 19, 4; sobre o sentido de lampros, «bran-
co» e não «brilhante», L. Robert, Comptes rendus de l’Académie des inscriptions,
1982, p. 273, n. 214 (Opera minora selecta, V, p. 836). Mesma cor litúrgica em
Roma (por exemplo, Ovídio, Tristes, II, 14, 14, e V, 5, 8; Perse, Satires, II, 40).
99. Existe certo número de leis sagradas latinas (G. Wissowa, Religion und Kultus der
Römer, op. cit., p. 6, n. 3; H. Dessau, Inscr. Latinae selectae, n. 4906-4916; A.
Degrassi, Inscriptiones Latinae liberae rei publicae, op. cit., n. 504-510; Cássio Dio,
LV, 10, 2), mas elas não se destinam aos visitantes: regulamentam a propriedade
sagrada e as obrigações dos padres.
100. R. Cagnat, A. Merlin e L. Chatelain, Inscriptions latines d’Afrique, Paris, 1925, n.
225. É preciso descalçar-se quando se entra no coração de um santuário (Eurípides,
Ion, 221). Quanto à proibição do uso de sapatos nos templos de Serapis, Varrão,
Satires Ménippées (F. Buecheler, n. 439), ed. J.-P, Cèbe, XI, p. 1803. Tíbulo, II, 1,
13, e mais abaixo, n. 103. Suponho que o barbeiro e o banho público são proIbidos
por serem prazeres maculados pela voluptuosidade; faz-se uma idéia incorreta da
limpeza antiga: os romanos, assim como suas roupas, cheiravam mal; o odor de
suor era a prova de um temperamento viril. O banho não significava higiene, mas
um prazer, o que era suspeito.
101. M. Nilsson, Geschichte der griech. Religion, op. cit., I, p. 90. A regra do culto a Cirene
distingue o que é sagrado (hieron), impuro (miaron), profano (bebêlon); cf. F. So-
kolowski, Lois sacrées des cités grecques, op. cit., Supplément, p. 187, n. 115, 1, 9-10.
102. Ibid., II, p. 290. A homossexualidade é «contra a natureza» desde Platão, Lois, I,
636 B.
103. Para entrar no santuário de Cynthe, é necessário ter «l’esprit et les mains pures» (F.
Sokolowski, Lois sacrées des cités grecques, op. cit., Supplément, n. 59). «Il faut être
pur en entrant dans le sanctuaire. Ce n’est pas grâce aux bains, mais être pur en
son esprit» (santuário de Serapis ou de Asclépio em Rodes, ibid., p. 108 e índice
na palavra loutron). Retomado em F. Dunand, Le Culte d’Isis dans le bassin oriental
de la Méditerranée, Leiden, 1973, III, pp. 197-200. Do mesmo modo, em Mytilène
(Supplément, n. 82), deve-se «pénétrer dans le sanctuaire en état de pureté et avec
des pensées pieuses». Em Creta, a Grande Mãe, na época imperial, ama os homens
piedosos: não morrerão sem descendentes; detesta aqueles que pecam contra os
deuses; só se deve entrar no santuário com devoção e com palavras piedosas (Ins-
criptiones Creticae, I, XXIII, n. 3; cf. M. Nilsson, Geschichte der griech. Religion,
op. cit., II, p. 290). Segundo a lei sagrada de Epidauro, para entrar no templo em
estado de pureza, é preciso estar puro não por um banho, mas pelo espírito (Porfí-
rio, De abstinentia, II, 19; Clemente de Alexandria, Stromates, IV, 22, p. 71). Em
uma litania de Ísis (Pap. Oxy., 1380, col. VII, 1. 152), diz-se: «te voient ceux qui
t’invoquent» (kata to piston). Festugière traduziu: «ceux qui sont dignes de foi [fide
digni], parce qu’ils t’invoquent selon ton vrai nom»; F. Chapouthier, De la bonne foi
dans la dévotion antique, REG, 45, 1932, pp. 391-396, inclui: a boa-fé, a intenção
correta necessária à prece, segundo Apuleio, Métam., XI, 5, 2.
112 O IMPÉRIO GRECO-ROMANO

104. Teofrasto, De pietate, em Porfírio, De abstinentia, II, 19, 5, com a nota do ed. Bou-
ffartigue-Patillon, p. 206, n. 7.
105. Porfírio, De abstinentia, II, 61, 1.
106. Ovídio, Fastes, VI, 251: «in prece totus eram». Cf. Plínio, o Jovem, Panégyrique, I, 3,
5: os deuses amam a sinceridade; querem que os fiéis se aproximem de seus altares
com pensamentos puros e castos; às preces muito elaboradas preferem a inocência
e os pensamentos santificados.
107. Quanto a esses zombeteiros, Platão, Leis, X, 908 C. Também na longa inscrição
de milagres realizados por Asclépio em Epidauro (Inscr. Graecae, IV, 1, 121 sq.;
W. Dittenberger, Sylloge inscr. Graec., 3e ed., 1168, III, IV, IX, X, XXXVI): um
peregrino não crê nos relatos de cura e no ex-voto que as representam. Uma mu-
lher não acredita nas curas. Diversos visitantes zombam da ingenuidade de um
caolho que esperava encontrar seu olho. Um passante nega que Asclépio pudesse
restaurar um vaso quebrado. Um coxo desdenhoso é punido pelo deus, que o dei-
xa manco do outro pé, mas acaba compadecendo-se de suas súplicas e lhe concede
o uso das pernas.
108. Hesíodo, Erga, 755-756, se de fato esse seja o sentido de mê mômeuein aidêla, não
se deve redizer um rito de sacrifício desconhecido (U. von Wilamowitz, Hesiodos
Erga, Berlim, 1928, p. 126).
109. É possível supor, segundo Platão, Lois, X, 910 D, mas Platão pode também retomar
aqui as fórmulas das leis sagradas, dando-lhes um sentido que só a ele pertence.
110. F. Sokolowski, Lois sacrées des cités grecques, op. cit., n. 66, 1. 23-26, e n. 68, 1. 2-7;
Supplément, n. 33.
111. É a primeira das três historietas délficas retomadas por Porfírio, De abstinentia, II,
15-17 (ed. Bouffartigue e Patillon, col. Budé, II, p. 83-86, e notas pp. 203-205).
A partir delas, Teofrasto e Porfírio concluem que os deuses preferem as oferendas
modestas e os sacrifícios sem sangue, mas T. Plüss demonstrou que o verdadeiro
sentido dessas historietas edificantes era revelar que se deve permanecer modesto
diante dos deuses («Phidyle», Neue Jahrbücher für klassisches Altertum, 3, 1899,
p. 498); cf. M. Nilsson, Geschichte der griech. Religion, op. cit., I, p. 648. Daí, su-
ponho, um provérbio mal compreendido mencionado com humor por Horácio,
Odes, III, 16, 21: «plus on se refuse de choses, plus on en obtiendra des dieux», que
gostam que os homens só tenham modestas pretensões e assim os recompensam.
112. Eurípides, fragmento 946 Nauck.
113. Herondas, mimo IV, 12-19; W. Van Andringa, «Autels de carrefour, organisation
vicinale et rapports de voisinage à Pompéi», Rivista di studi Pompeiani, XI, 2000, p.
77. Sobre a ligação do sacrifício e de um ex-voto que o comemora, cf. Anthologie,
VI, 147 (Calímaco, epigrama 54), citado na Revue archéologique, II, 1983, p. 283:
se Asclépio reclamasse de novo que seu fiel lhe havia prometido em voto (euxame-
nos), o cartaz testemunharia que o deus já havia sido pago! Ovídio, Métam., IX,
792: «dant munera templis, addunt et titulum». Com efeito, visto que amamos os
deuses, o ex-voto é, ao mesmo tempo, um testemunho de gratidão e um objeto de
suvenir; mas, como não somos escravos ou filhos dos deuses, é também um paga-
mento e um certificado de pagamento.
114. Eurípides, Ion, 1317, e Horácio, Odes, III, 23.
115. O Íon de Eurípides declara (1312-1317): «Il est stupéfiant que le dieu n’ait pas
donné aux mortels de bonnes lois, au lieu de lois irréfléchies! il ne fallait pas que
les méchants pussent s’asseoir près des autels; il fallait les expulser; car il ne faut
pas qu’une main mauvaise touche aux dieux.» Porém, mais tarde, em Lindos, no
século II de nossa era, é preciso «n’avoir rien de terrible sur la conscience» (W.
Dittenberger, Sylloge inscr. Graec., 3e ed., n. 983; F. Sokolowski, Lois sacrées des
N OTAS 113

cités grecques, op. cit., p. 238, n. 139). No século II antes de nossa era, uma lei de
Eresos já mencionava os traidores e os assassinos (ibid., n. 124).
116. H. Seyrig, «Quatre cultes de Thasos», Bulletin de correspondance hellénique, 1927,
p. 197. Em relação aos pés descalços, Eurípides, Ion, 221 (leukopous), e mais aci-
ma, nota 99.
117. Pausânias, VII, 25, 7: «asebês eselthêin thelôn theasasthai».
118. Referências em F. Sokolowski, Lois sacrées des cités grecques, op. cit., Supplément, p.
183.
119. Ainda em Platão, Lois, IV, 716 D-717 A: o criminoso é akathartos, miaros.
120. F. Sokolowski, Lois sacrées des cités grecques, op. cit., Supplément, p. 181, n. 112.
121. Iliade, XVI, 387, e XXIV, 503.
122. Ibid., IX, 499-501. Do mesmo modo, os deuses também têm piedade dos náufra-
gos (Odyssée, V, 447-448).
123. Iliade, XXIV, 44: «oude hoi aidôs».
124. Ibid., XXI, 74. Odyssée, XVII, 483-487: «Il n’est pas beau, Antinoos, de frapper
un pauvre vagabond: si jamais c’était quelque dieu du ciel? Oui, les dieux se dé-
guisent en étrangers et vont de cité en cité inspecter l’hybris ou la rectitude des
humains.» Euméia vangloria-se de que sua themis não é rejeitar o estrangeiro e o
mendigo (XIV, 56-57); é indelicado rechaçá-los e meritório acolhê-los, então não
matar e não roubar não é um mérito.
125. Iliade, XXIV, 503.
126. Idéia comum a toda Antiguidade. Horácio, Odes, III, 6, 5: «dis te minorem quod ge-
ris, imperas» (os deuses são os «mais poderosos», os kreittones dos gregos; a devoção
consiste em venerar a superioridade deles).
127. Tudo o que segue é reproduzido de J. H. W. G. Liebeschuetz, Continuity and
Change in Roman Religion, op. cit., pp. 39-54 («Morality and religion»).
128. Plínio, Hist. nat., II, 7, 18. Sobre a fórmula deus est, cf. Eurípides, Hélène, 560:
«C’est un dieu que de revoir ceux qu’on aime.» Ver H. Usener, Götternamen: Ver-
such einer Lehre von der religiösen Begriffsbildung, Frankfurt, 1948, p. 290.
129. Propércio, III, 22, 21: «quantum ferro, tantum pietate potentes stamus» (ver todo
o contexto, que dá o sentido). Quanto ao tema da devoção, da clemência e da
humanidade romana, P. A. Brunt, Roman Imperial Themes, op. cit., pp. 314-316 e
439; P. Veyne em A. Giardina (dir.), L’Homme romain, op. cit., pp. 433-439.
130. Ver, em especial, Cornutus, Theologiae Graecae compendium, XVI (p. 168, Gale;
24, Lang), acrescentando-o a M. Nilsson, Geschichte der griech. Religion, op. cit., I,
p. 503.
131. Odyssée, VI, 120-121, e IX, 175-176. Comparar a linguagem de Abraão: «Je
m’étais dit: peut-être que la crainte des Elohim n’existe pas dans ce pays, et ils me
tueront à cause de ma femme» (Genèse, XX, 13). «Craindre les Elohim» equivale,
aqui, a «ter senso moral»; a religião é um sinal de civilização, de pertencimento às
leis comuns da humanidade. Deve-se traduzir pelo plural verdadeiro, e não pelo
plural majestático, pois, logo após, Abraão dirá: «Les Elohim m’ont fait errer», com
o verbo no plural, e não no singular que precede os plurais majestáticos. Pode-se
pensar que Abraão adapta sua linguagem ao politeísta Abimelech, ou que é um
traço do antigo politeísmo judeu (ou melhor, da não-exclusividade do futuro Deus
Ciumento), de quem há outros traços nessa parte do texto. Não é absurdo pôr
Ulisses e Abraão lado a lado, porque esse episódio da vida de Abraão nada tem
de um relato histórico e teológico: é uma antiga lenda, recontada ad delectandum,
«analogue aux récits des conteurs arabes», dizia Renan, que menciona também o
nome de Ulisses (E. Renan, Légendes patriarcales des Juifs et des Arabes, curso iné-
dito publicado por Laudyce Rétat, Paris Hermann, 1989, pp. 38-40).
114 O IMPÉRIO GRECO-ROMANO

132. Chariton d’Aphrodisias, Chéréas et Callirhoé, III, 3 e 4.


133. L. Bruit Zaidman, Le Commerce des dieux, op. cit., pp. 104-109 e 113-118, que
observa uma integração do modelo social e do modelo religioso.
134. Pausânias, IV, 8, 2; M. Casevitz, «Sur la piété de Pausanias», em L. Mary e M. Sot
(dir.), Impies et Païens entre Antiquité et Moyen Âge, Paris, Picard, 2002, p. 61. Cf.,
do mesmo autor, a análise sutil de «Pausanias croyait-il aux dieux?», em G. Dorival
e D. Pralon (dir.), Nier les dieux, nier Dieu, op. cit., pp. 81-92.
135. Xenofonte, Vie d’Agésilas, 3.
136. Ver o que escreveu Políbio acerca da destruição dos santuários de Dio, na Mace-
dônia, e de Thermos, na Etólia (IV, 62, 3-4; V, 8-11; IX, 36; XI, 7, 2). Aos olhos
desse político puro, para quem os massacres de populações não comoviam, é ne-
cessário, na guerra, respeitar os santuários, «faire la guerre aux hommes et non aux
dieux». Ver ainda Tito Lívio, XXXI, 30 (segundo Políbio): os atenienses, sitiados
por Filipe da Macedônia, admitem que devastar o território inimigo e escravizar
a população são atitudes consoantes às leis da guerra; mas acusam Filipe de ter
violado «toutes les lois divines et humaines» ao destruir os templos dos deuses
superiores, e de ter guerreado contra os deuses inferiores destruindo sepulturas.
137. Tito Lívio, III, 57, 1 («legum expertem et civilis et humani foederis») e 2, citado por
Dolorès Pralon-Julia em G. Dorival e D. Pralon (dir.), Nier les dieux, nier Dieu, op.
cit., p. 104.
138. A. D. Nock, Essays on Religion and the Ancient World, op. cit., I, p. 260.
139. M. Nilsson, Geschichte der griech. Religion, op. cit., I, pp. 739, 748, 760, 775; II,
197.
139. Por exemplo, em Ésquilo, Agamemnon, 160-178.
140. A concepção elevada que faz da divindade uma filosofia antiga, idéia às vezes mais
elevada que a do monoteísmo verdadeiro ou pretenso, não depende do fato de que
essa filosofia seja monoteísta; quase sempre, ela nem mesmo questiona o mono-
teísmo e fala com indiferença do deus ou dos deuses. Platão, os estóicos e Plotino
são politeístas. O monoteísmo não se originou do Oriente e do deserto, mas da
luta de determinadas religiões exclusivas contra outras religiões, luta que rompe
com a idéia antiga de que cada povo tem sua religião ou que todos os deuses são
verdadeiros, ou seja, são os mesmos deuses com nomes diferentes.
141. Odyssée, XXIV, 351-352.
142. Iliade, XVI, 364-365.
143. Ibid., 384-392.
144. Hesíodo, Les Travaux et les Jours, 6. Cito geralmente a tradução de Paul Mazon.
145. Quanto a tudo o que acabamos de ler, ibid., 240-280.
146. Ibid., 219.
147. Ibid., 229.
148. Zeus destruiu a raça de prata e destruirá a raça de ferro em virtude de suas faltas;
quanto à raça de bronze, ela se autodestruiu em conseqüência de sua própria vio-
lência; cf. U. von Wilamowitz, Hesiodos Erga, op. cit., p. 142.
149. Iliade, XXIV, 527-533. A imprevisibilidade do curso do mundo chamava-se Zeus,
cujo capricho era sempre mais forte (XVII, 176); se os piratas fossem bem-sucedi-
dos, o fato devia-se à vontade de Zeus (Odyssée, XIV, 86). Quando o paganismo
tornou-se mais moral, a imprevisibilidade não será mais obra de Zeus, deus justo,
mas de Tyché, a Sorte.
150. Les Travaux et les Jours, 280.
151. Ibid., 325-334. Do mesmo modo, Theognis aconselha Cyrnos a não ser um desses
homens injustos que se apossam do bem alheio «sans tenir le moindre compte des
dieux immortels» (1147-1150).
N OTAS 115

152. Ibid., 303-304.


153. De fato, ignora-se o sentido exato do hápax pygostolos, mas seguramente não é
laudatório na intenção do poeta.
154. Sobre Atè, o «Errement fatal», S. Saïd, La Faute tragique, Paris, Maspero, 1978, pp.
77-84.
155. Iliade, IX, 502-515.
156. Hesíodo, Les Travaux et les Jours, 248.
157. Ibid., 273.
158. Menandro, Epitrepontes, 1084-1091, Sandbach.
159. Aristófanes, Cavaliers, 32.
160. Note a sobriedade dos argumentos que Lísias atribui a seu acusador em uma ques-
tão de sacrifícios públicos: nenhuma frase sobre os deuses e a devoção, só em
relação às finanças públicas (XXX, Contre Nicomaque, 17-21).
161. Isócrates, VIII, Pour la paix, 33; XV, Antidosis, 282.
162. ld., I, À Démonicos, 13.
163. Eurípides, Iphigénie en Tauride, 275: «un de ces moqueurs poussait l’audace jusqu’à
l’anomia» (a qual é, evidentemente, o contrário da justiça: Ion, 442-443).
164. Platão, Lois, III, 701 B-C.
165. Meus agradecimentos a Didier Pralon, cuja erudição e amizade esclareceram esses
três versos de sentido incerto e cujo texto é às vezes corrigido. Os «justos que estão
aqui» são ou os espectadores do drama, ou, segundo Sommerstein, os areópagos
(cf. o verso 487). A correção de Heath, «fais croître surtout des hommes pieux»
(em vez de «sarcle les impies»), não mudará nada a equivalência entre a devoção
e a virtude cívica. Mesmo Platão crê nessa equivalência ou retoma utilmente a
crença popular (Lois, X, 910 B).
166. R. MacMullen, Paganism in the Roman Empire, Yale University Press, 1981, p. 93.
Sobre Esculápio em Roma, ver F. Matz e F. von Duhn, Antike Bildwerke in Rom,
op. cit.
167. Atena defenderá a causa de Atenas na Assembléia dos deuses; assim se exprime
o oráculo aos atenienses antes de Salamina: Palas faz uma súplica por sua cidade
diante de Zeus (Heródoto, VII, 141). Nove séculos mais tarde, por ocasião da in-
vasão dos godos, em 397 de nossa era, Atena aparecerá nas muralhas de Atenas e
impedirá Alarico de saquear a cidade.
168. J. Scheid, «Sacrifice et banquet à Rome: quelques problèmes», Mélanges de l’École
française de Rome, 97, 1985, pp. 193-206.
169. Quanto ao consumo de carnes só pelos sacerdotes, ver os Actes des Arvales; sobre
sua revenda, Valério Máximo, II, 2, 8, discutido por T. Mommsen, Staatsrecht, II,
1, p. XII, n. 1.
170. M. Nilsson, Geschichte der griech. Religion, op. cit., II, p. 372. Ver, no início das
Histoires de Tácito, qual é o público que assiste ao sacrifício de Galba: não eram
participantes, e sim curiosos. Um sacrifício oferecido diante do templo de Júpiter
Capitolino só podia reunir uns milhares de curiosos, porque a esplanada em frente
do Capitólio só tinha 7 mil metros quadrados, e era atravancada de templos, está-
tuas e dedicatórias.
171. Exemplos entre mil, H. Dessau, Inscr. Latinae selectae, 7263, 1855 (Genius Portorii
publici sobre o baixo Danúbio), 2447 (Genius tabularii principis).
172. Às vezes, cobrindo todo o fundo da cena, uma cortina inesperada limita conven-
cionalmente o amplo pano de fundo rústico de seus modestos atores; tal como em
um ex-voto do Museu de Atenas (G. Neumann, Probleme des griechischen Weihre-
liefs, op. cit., p. 63 e pl. 40 B; ou F. T. Van Straten, Hiera Kala: Images of Animal
Sacrifice in Greece, Brifi, 1995, fig. 57); sobre um ex-voto da gliptoteca de Muni-
116 O IMPÉRIO GRECO-ROMANO

que reproduzido com freqüência, por exemplo, em R. R. R. Smith, La Sculpture


hellénistique, op. cit., pp. 186-187 e fig. 214.
173. P. Veyne, «Les cadeaux des colons à leur propriétaire», Revue archéologique, II,
1981, pp. 245-252.
174. Neste livro, cap. 5, nota 161.
175. P. Veyne, «Les saluts aux dieux», Revue archéologique, I, 1985, p. 51 e fig.; e «La
Vénus de Trimalcion», Latomus, 23, 1964, pp. 802-806. Quanto à estatueta de
Vênus levada como dote, F. Burkhalter, «Les statuettes en bronze d’Aphrodite en
Égypte», Revue archéologique, I, 1990, pp. 51-60. Sobre a presença nos oratórios
de outras divindades além dos Lares ou Penates, M. Nilsson, «Roman and Greck
domestic cult», em seus Opuscula selecta, op. cit., III, p. 277.
176. Suetônio, Domitien, XVII, 2.
177. H. Dessau, Inscr. Latinae selectae, 3594-3608. Nas inscrições, esses fiéis são chama-
dos casanici, domestici, familiares.
178. Em torno de 303, o cânone 60 do sínodo de Elvira decide que um senhor morto
por essa razão não seria considerado um mártir (segundo a doutrina oficial: não se
devem provocar os perseguidores). Sem dúvida, um fato diferente que impressio-
nou os espíritos motivara uma decisão sobre um caso tão particular.
179. Isso pode prolongar-se. A dona de uma villa perto de Roma, em Torre Nuova,
era uma grande senhora pertencente a uma família ilustre de Mitilene, cidade
da qual Dioniso era o deus protetor. Essa dama converteu seus parentes e suas
centenas de serviçais em membros de uma congregação de adoradores de Dioniso,
transformando, assim, em plena Itália, esse deus protetor de uma cidade grega
ao equivalente de seu Lar doméstico. Como escreveu John Scheid («Le thiase du
Metropolitan Museum», na Association dionysiaque, p. 275) e como me confirmou
oralmente, não se deve procurar, nesse monumento célebre, a mística dionisíaca,
mas o patriotismo grego e uma boa dose de arrogância doméstica.
180. São Cipriano, Lettres, LV, 13, 2; Eusébio, Histoire ecclésiastique, V, 21. Outras
referências em A. von Harnack, Die Mission und Ausbreitung des Christentums, op.
cit., p. 193, n. 1 e 3.
181. G. Wissowa, Religion und Kultus der Römer, op. cit., p. 399; J. Marquardt, Römische
Staatsverwaltung, III, pp. 208-210.
182. O. Kern, Die Inschriften von Magnesia am Meander, op. cit., n. 100 b. Encontrare-
mos em Atenas, Esparta, Pérgamo, Mitilene etc., uma série de pequenos altares,
todos iguais, erguidos evidentemente da mesma maneira, em seguida a um decreto
que celebrava a entrada solene de um rei (no papiro de Gurob), de um impera-
tor (Pompeu em Mitilene) ou de um imperador; cf. P. Veyne em Latomus, 21,
1962, pp. 72-75; L. Robert, «Sur un décret d’Ilion et sur un papyrus concernant
des cultes royaux», em Amer. Studies Papyrology, I, Essays in Honor of Bradford
Welles, 1966, pp. 175-211. Em Priena, as pequenas placas do altar deviam narrar
a instituição de um culto público a Atena Polias, talvez sob Domiciano (F. Hiller
von Gärtringen, Inschriften von Priene, op. cit., n. 164-167). Provavelmente, por
ter fundado um culto municipal a Minerva de Domiciano e por ter comunicado,
por intermédio de embaixadores, ao imperador que Toulouse fora qualificada de
Palladia por Marcial, IX, 100, 3.
183. A sanção em ameinon ou mê ameinon é lida dezenas de vezes nas inscrições gre-
gas; em Cós (W. Dittenberger, Sylloge inscr. Graec., n. 398), o povo institui um
dia sagrado para celebrar a derrota dos gauleses em Delfos; todos os habitantes
deviam coroar-se nesse dia «et puissent bien se porter ceux qui se couronneront».
– Em contrapartida, puniam-se os atentados sacrílegos: sob o reino de Alexandre,
o Grande, ou próximo a ele, os magistrados de Éfeso condenaram à morte certo
N OTAS 117

número de habitantes de Sardes que atacaram embaixadores sagrados efesianos; cf.


Die Inschriften von Ephesos, vol. I (H. Wankel), Habelt, 1979, n. 6; J. e L. Robert,
Bulletin épigraphique, 1965, n. 342.
184. Cássio Dio, XLVII, 18; T. Mommsen, Strafrecht, p. 586, n. 3.
185. Tácito, Annales, I, 73; Code justinien, IV, 1, 2 (cf. IX, 8 2): «juris jurandi contempta
religio satis deum ultorem habet». Ver um longo exemplo em Cícero, De legibus, II,
17, 42-44. As «sectes nouvelles et les rites étrangers au bon sens» continuam, mas
como uma perturbação da ordem pública e constituindo uma espécie de sedição
(T. Mommsen, Strafrecht, p. 579, n. 2). No entanto, quanto a este ponto, assim
como sobre a perseguição ao cristianismo, sente-se a imprecisão das regras de di-
reito e as hesitações das autoridades: a sedição em questão não consiste em atos,
mas na particularidade e estranheza das crenças e dos ritos. Do mesmo modo,
perseguir-se-á o crime de ser cristão (nomen christianum), e não os atos.
186. Tertuliano, Apologétique, 40, e outros textos citados por E. R. Dodds, Païens et
Chrétiens dans un âge d’angoisse, trad. Saffrey, Paris, La Pensée sauvage, 1979, p.
131.
187. Tácito, Annales, XVI, 28: «qui fora, theatra, templa pro solitudine haberet»; XVI,
22: secta, secessio.
188. Os praxiologistas que estudaram as situações concretas dos jogos de cooperação
constataram que a solução racional só será alcançada se os dois competidores fo-
rem racionais e negociem entre si; porém, eles só negociarão, pelo benefício mú-
tuo, se cada um deles pensar que o outro é tão racional como ele.
189. Ver uma página célebre da Épître à Diognète, V.
190. Em Entretiens sur l’Antiquité classique, XIX: Le Culte des souverains, Fondation
Hardt, p. 164.
191. Passio Scillitanorum, 14 (H. Musurillo, The Acts of the Christian Martyrs, Oxford,
1972, p. 88).
192. Mosaicarum et Romanarum legum collatio, VI, 4; Code justinien, V, 4, 17.
193. Como diz Michel Foucault, em um grupo desse tipo «l’hérésie et l’orthodoxie ne
relèvent point d’une exagération fanatique des mécanismes doctrinaux, mais leur
appartiennent fondamentalement»; com efeito, «la vérité doctrinale met en cause
à la fois l’énoncé et le sujet humain, et l’un à travers l’autre» (L’Ordre du discours:
leçon inaugurale au Collège de France, Paris, Gallimard, 1971, pp. 44-45).
194. H. Dessau, nos 4561 e 4553, na Germânia, onde um beneficiarius consularis foi
pródigo em homenagens: homenageou Júpiter Capitolino, Marte Caturix e, para
obter ainda mais segurança, o deus local. Ver L. Friedländer, Sittengeschichte Roms,
op. cit., III, pp. 143 e 176-178.
195. Sófocles, Antigone, 450-457.
196. Eurípides pode muito bem enunciar que os deuses «ont gravé des lois» para os ho-
mens (Ion, 442-443), mas é uma maneira de dizer que a proibição do incesto e do
adultério é uma lei fixada perante o céu. Os homens encontraram essa lei sagrada
fixada e não viram os deuses gravando-a.
197. «Ce que la foule appelle lois non écrites» (Platão, Lois, VII, 793 A 10) é, por exem-
plo, o costume de esconder vergonhosamente o que se refere ao sexo (VIII, 841 B
4). São regras não-sancionadas pelo legislador, mas cuja transgressão «attire le mé-
pris général sur le coupable» (Tucídides, II, 37, 3); ou ainda a eqüidade, que proíbe
de tratar como culpado o justo que teve a infelicidade de ver seus bons planos
fracassarem (Demóstenes, Couronne, 275). Era proIbido aos magistrados aplicar
as leis não-escritas (Andócido, Sur les Mystères, 85-89). Sobre as leis não-escritas
dos eumólpidos, Andócido, 116, e Lísias, VI, 10. As palavras «leis não-escritas»
reaparecerão com um sentido novo, pós-socrático, nas Mémorables de Xenofonte,
118 O IMPÉRIO GRECO-ROMANO

IV, 4,19-23: essas leis, por serem comuns a povos os mais diversos, só poderiam
originar-se dos deuses; elas prescrevem que se deve homenagear aos deuses, res-
peitar os pais, fazer benefícios e esquivar-se do incesto. Os deuses as criaram de
tal modo que essas leis comportam em si mesmas sua sanção; os filhos de ligações
incestuosas nascem mal constituídos e os ingratos são evitados e desprezados por
todos. A revolução socrática tem aqui sua participação.
198. M. Nilsson, Geschichte der griech. Religion, op. cit., I, pp. 756-757. Quando An-
tígona, no verso 74, diz que terá mais tempo para agradar os mortos que os seres
vivos, faz mais uma alegoria que opõe a eternidade do absoluto ao tempo e a seus
trâmites do que uma alusão aos encontros entre defuntos no reino das sombras.
199. Sófocles, Trachiniennes, 1266.
200. Aristóteles, Rhétorique, I, 13, assinala que a lei natural não se encontra em todos os
povos por um acaso ou acordo, mas porque é consoante com a natureza (physei);
é a esse propósito que cita os versos famosos de Antigone, 456-457. O momento
crucial é a identificação da lei natural com a razão no estoicismo (G. Watson, «The
natural law and stoicism», em A. A. Long [dir.], Problems in Stoicism, Londres,
1971, p. 216). Daí Cícero, De legibus, I, 15, 42: todos os pensadores gregos, exce-
to os epicurianos, são, no fundo, de acordo em professar que o justo e o honesto
fundamentam-se na natureza, que nos concedeu a razão, pois recebemos presentes
dos deuses, do deus (ibid., I, 9, 27; 12, 33 sq.); o direito natural é baseado em um
sentimento inato («innata vis», De inventione, II, 22, 65, e 53, 161). – O direito
romano, os jurisconsultos mencionam às vezes o direito natural, porém não fazem
dele nenhum uso dogmático nem sistemático, e sim um uso naturalista (o «paren-
tesco natural», os laços de sangue: o incesto é proIbido aos escravos, embora seus
laços de parentesco não sejam reconhecidos legalmente) ou pragmático (certas
instituições são comuns, por sua utilidade, a todos os povos). Apenas na escravidão
a philanthropia da linguagem deles opõe-se ao direito natural, que ignora a escra-
vidão, aos direitos positivos, os quais não contestam de modo algum a legitimida-
de. A concepção filosófica do direito natural não teve prosseguimento no direito
positivo; isso só mudará um pouco após Constantino (M. Kaser, Das römische
Privatrecht, Munique, 1971, II, pp. 60-63). Em compensação, os textos de Cícero
(République, III, 22, 33; Lois, I, 6, 18-19, e 7, 33) terão muita importância nas
discussões dos tempos modernos sobre o direito natural. – Em Hegel, a oposição
entre a lei divina, que é a da família, e a verdadeira universalidade, representada
pelo poder do Estado, encontra-se em uma das passagens da Phénoménologie de
l’Esprit, «Le monde éthique, la loi humaine et la loi divine, l’homme et la femme»,
visto que é a mulher que encarna a lei divina familiar, a qual logo passará sob o rolo
compressor da dialética. Hegel pensa certamente em Antígona sem a denominar,
mas, se não me falha a memória, ele a citará na Encyclopédie.
201. Eurípides, Hécube, 799-801.
202. Id., Ion, 442-445; Héraclès furieux, 1315-1319.
203. Quando uma pessoa perversa envelhecia feliz, afirmava-se como Plutarco que a
justiça divina era lenta, mas, em virtude de ser mais tardia, o castigo seria pior
(Valério Máximo, I, 1, Ext. 3). Se morresse feliz, repetia-se, segundo Hesíodo, que
sua posteridade se definharia. E, mesmo se o ímpio não expiasse sua maldade tarde
ou nunca, a divindade o atormentaria ao longo de sua vida enviando-lhe sem cessar
terrores e perigos (Lísias, VI, 20). Contudo, os autores de falsos juramentos forta-
leciam-se com a esperança de que seus filhos seriam punidos e não eles (Isócrates,
XI, Busiris, 25). Ver também o final da nota 196 a respeito desses filhos.
204. Hippolyte, 1104-1110. Outros, e não foram poucos, compreendem que a idéia da
Providência é um conforto e que se adivinha a existência de uma Inteligência que
N OTAS 119

se espera. É uma observação que se estende ao conteúdo do texto e seguimos a


tradução mais rigorosa de W. S. Barrett, Euripides: «Hippolytos». Edited with Intro-
duction and Commentary, Oxford, 1964, p. 371. O coro de Hélène, 1137-1150,
parece mencionar a mesma coisa, mas o texto é duvidoso.
205. Électre, 583. Pode-se de fato chamar as divindades de justas (Suppliantes, 610)?
206. Iphigénie en Aulide, 1034.
207. Hélène, 851.
208. Ele é asophoi (Électre, 1302).
209. Héraclès furieux, 655-672; Suppliantes, 610-612.
210. Iphigénie en Tauride, 477.
211. Troyennes, 469. Cf. Iphigénie en Aulide, 1034-1035: «S’il y a des dieux, le juste
que tu es les trouvera équitables; s’il n’y en a pas, nos efforts actuels ne servent à
rien.»
212. Iphigénie en Tauride, 560.
213. Hippolyte, 1349.
214. Fragmento 286 Nauck. Cf. Hécube, 488-491: «Que penser de tout cela, ô Zeus?
Veilles-tu sur les hommes ou n’avons-nous là qu’une croyance vaine et inutile
(une croyance fausse en l’existence d’êtres divins), et est-ce la seule Fortune qui
veille sur ce monde mortel?» (As palavras entre parênteses foram, com freqüência,
consideradas interpolações.)
215. Em Lois, X, 885 B, Platão distingue três concepções intoleráveis dos deuses: são
corruptíveis diante do preço de sacrifícios e de promessas, o que representa a con-
cepção popular; não existem, pensamento de físicos monstruosos; existem, mas
não se preocupam com o destino dos homens. Ele protesta com veemência contra
essa última concepção, advinda do espetáculo de criminosos felizes durante toda
sua vida, deixando uma descendência próspera (X, 899 D-900 B).
216. Xenofonte, Mémorables, I, 4, 11.
217. Como sublinha B. Groethuysen, Origines de l’esprit bourgeois en France, op. cit.,
I, pp. 40-44, desde o século XVIII e sem esperar M. Homais, para um burguês,
discutir religião consistia em discutir com seu padre, considerado o representante
de Deus, o embaixador do Céu.
218. Os descrentes dizem: «Ou bien les dieux ne peuvent rien, ou bien ils peuvent.
S’ils ne peuvent rien, pourquoi pries-tu?» (Marco Aurélio, IX, 40). Dans le Ro-
main des reconnaissances ou Homélies clémentines do Pseudo-Clemente de Roma,
XIV, 3 (trad. Siouville, 1933, p. 292), preces e devoção são inúteis para um ateu
caído em desgraça: tudo depende do horóscopo. Essa descrença, portanto, deci-
diu, ao negar a Providência, o grande problema religioso dos eruditos na época he-
lenística e imperial: o mundo era governado por uma Providência, por uma Sorte
imprevisível ou por uma Fatalidade imutável? Quando tudo vai bem, saúda-se a
Providência; em caso de infelicidade, incrimina-se a Sorte (Chariton, III, 3, e 11,
8). «On dira: à quoi bon la philosophie, si le Fatum existe? si le dieu gouverne?
si le Hasard règne?» (Sêneca, À Lucilius, XVI, 4). Visão panorâmica dos três po-
deres em Plínio, o Velho, II, 7, 5, 15 a 26. A prece das Troyennes de Eurípides,
884-888, já questionava se o mundo era regido por um logos providencial ou por
um Destino; e o papel da Fortuna (Hécube, 491; Électre, 890; Cyclope, 354). O
«Discours du Vendredi saint» de Constantino, 5-7, constitui o livro V da Vie de
Constantin de Eusébio na ed. Heikel. Também no Antigo Testamento: aqueles
que negavam a existência de Yahweh «ne nient pas son existence: não croient pas
en son intervention ni en sa puissance, ils décident de se passer de lui», escreveu
Mme Marguerite Harl em G. Dorival e D. Pralon (dir.), Nier les dieux, nier Dieu,
op. cit., p. 126.
120 O IMPÉRIO GRECO-ROMANO

219. Crítias em Sextus Empiricus, Contre les physiciens, I, 54; ed. H. Diels-Kranz dos
Présocratiques, B 25.
220. Isocrátes, XI, Busiris, 24. Aqueles que pregavam isso são, sem dúvida, os autores
do mito órfico ou das iniciações dionisíacas.
221. Políbio, VI, 56, 11-12. Quanto ao direcionamento político da religião em Roma,
Lily Ross-Taylor, Party Politics in the Age of Caesar; trad. fr.: La Politique et les
Partis au temps de César, trad. Morin, Paris, Maspero, 1977, cap. 4. Cícero, que ri-
diculariza a divinação no De divinatione, defende-a por razões evidentes de manejo
político no livro II das Lois. Como observou Max Weber (Gesammelte Aufsätze
zur Religionssoziologie, op. cit., II, p. 39), todas as religiões ritualísticas, inclusive a
judaica e a romana, cogitaram a possibilidade de abrir no rito portas ocultas, em
caso de extrema necessidade.
222. Não é preciso dizer que a rustica Fidila, cujo nome significa a «econômica», é uma
vilica, uma escrava intendente, encarregada da administração da propriedade; ela
não pode arruinar seu senhor com sacrifícios caros (como desejam os escravos
rurais, que comeriam carne esse dia): todos os contemporâneos de Horácio com-
preendiam esse fato. Estava prescrito à vilica não fazer sacrifícios sem a permissão
do senhor; cf. Caton, Agric., 143; Columelo, I, 8, 6, e XI, 1, 22; ela não devia ser
nem supersticiosa, nem gulosa, ou apreciadora de bebidas alcoólicas (XII, 1, 3).
Encontramo-nos na poesia rústica da escravidão, no mundo de Old South e de E
o vento levou, na dos colonos argelinos, que «amavam seus nativos», assim como
Horácio ama sua Fidila.
223. Para tetigit aram, cf. «aras contegerunt» (sic) nos Actes des Arvales publicados por J.
Scheid (Commentarii fratrum Arvalium, 1998, n. 101, 1. 5, p. 303), que observa
em Romulus et ses frères (op. cit., pp. 522 e 629) que o sentido preciso do verbo
contingere só pode ser atribuído a partir do contexto. Pode tratar-se de um gesto de
designação, apropriação ou de consagração. Aqui, é um gesto de consagração.
224. O sentido de immunis é discutível. Essa palavra significa «sem pagar nada», «sem
dever nada», ou «sem nada a pagar»; ver o trocadilho de Plauto, Trinummus, 350
e 353. Uma ligação amorosa em que a amante não é paga, contrariamente ao cos-
tume da melhor sociedade, é chamada immunis em Horácio. Traduz-se com fre-
qüência immunis por «inocente», immunis (sceleris). Do meu ponto de vista, creio
que aqui immunis quer dizer «sem pagar nada»; o verso seguinte, «non sumptuosa
blandior hostia», explica immunis insistindo nessa mão vazia de oferenda. Então,
este é o sentido desta última estrofe: Horácio constata que é possível apaziguar
os Penates com uma oferenda modesta; isso prova que os deuses preferem um
coração honesto a uma dádiva dispendiosa, segundo uma idéia muito dissemina-
da: essa é a mensagem do ode. Cf. G. Boissier, La Religion romaine d’Auguste aux
Antonins, II, pp. 268-269: «Horace console une femme du peuple qui s’attriste de
ne pouvoir immoler ni bœufs ni brebis aux divinités qui la protègent, en lui disant
qu’il suffit de les couronner de romarin et de myrte, et qu’elles se contentent d’un
gâteau de farine et de quelques grains de sel pétillant.» Também em A. Kiessling
e R. Heinze na edição de Horáce, e Gordon Williams, The Third Book of Horace’s
«Odes», Oxford, Clarendon Press, 1969 (1996), p. 120. A conclusão ainda mais
comovente, por ser implícita, é que a escrava vilica Fidila é a mais honesta e des-
prendida das mulheres ingênuas; sua mão vazia é inocente, senão não teria «apa-
ziguado os Penates» e teria sido sacrílega. Cf. Tito Lívio, XLV, 5: «omnis praefatio
sacrorum eos quibus non sunt purae manus sacris arcet»; Platão, Lois, IV, 716 D:
nem um homem de bem nem um deus não saberiam receber oferenda de mãos
impuras; Eurípides, Ion, 1315-1316: «il serait scandaleux que les dieux subissent
l’attouchement [psauein] de la main d’un méchant». Para o cético Horácio como
N OTAS 121

para Voltaire, a verdadeira utilidade da religião é sua ligação com a moral e o uso
do povo.
225. Em blandior victima, o ablativo victima não é complemento de causa, mas comple-
mento de medida, de intervalo (uno pede altior no sentido de «plus haut d’un pied»,
taller by one foot, ein Fuß höher).
226. A cada dia dava-se sua parte (simbólica) da refeição aos Lares ou aos Penates (ado-
lere Penates): um escravo colocava um pouco de alimento no fogo caseiro ou diante
do larário doméstico (G. Wissowa, Religion und Kultus der Römer, op. cit., p. 410 e
n. 8; p. 162 e n. 1-4; Varrão, Satires Ménippées, ed. J.-P. Cèbe, VII, 1985, p. 1181).
Assim que o alimento era posto no fogo, o escravo declarava: «Deos propitios!»
Esses deuses haviam deixado então de serem os aversos Penates do ode. Ou ainda
uma mulher piedosa oferecia todas as manhãs incenso e uma libação de vinho
(Plauto, Aulularia, 23; G. Wissowa, Religion und Kultus der Römer, op. cit., p. 12,
n. 3). Nas casas mais abastadas, onde se fazia a refeição em um cômodo diferente,
colocavam-se as estatuetas dos Penates (adhibere Penates) sobre uma das mesas da
sala de jantar por ocasião do segundo prato e uma libação lhes era aspergida (Énéi-
de, V, 6; Horácio, Odes, IV, 5, 3; G. Wissowa, Religion und Kultus der Römer, op.
cit., p. 162, n. 1, e 173, n. 5; Horácio, Odes, IV, 5, 31; Cássio Dio, LI, 19, 7), e o
escravo dizia que os deuses eram auspiciosos (Petrônio, LX, 8). Ovídio mostra sua
mulher prostrada diante dos Lares aversi, na noite em que o poeta parte de Roma
para seu exílio (Tristes, I, 3, 45).
227. Journal, 17 fevereiro de 1804.
228. Exceção feita ao monarquismo pitagoriano, como me assinalou com gentileza Lu-
cien Jerphagnon.
229. Os poetas cômicos divertem-se; referências na ed. Jean Martin do Dyscolos, p. 97.
230. «Dans le sentiment esthétique», escreveu J.-C. Passeron, «une multiplicité hété-
rogène et indéfinie d’intérêts extrinsèques est une composante du plaisir artis-
tique; ce qui va à contre-courant avec les tentatives d’isoler une picturalité ou
une littérarité spécifiques, Pures». Como escreveu em outra passagem, «les mélan-
ges de sentiments et d’idées ont été les moteurs les plus efficaces des révolutions
scientifiques ou politiques [ou religieuses], comme aussi le nerf des continuités
les plus résistantes. De tels mixtes restent indémêlables à l’analyse combinatoire,
insensibles aux objections trop éloignées des évidences de l’expérience vécue, re-
belles à la mise en modèles trop bien formalisés d’une stratégie rationnelle» (Revue
européenne des sciences sociales, 41, 2003, p. 91).
231. Aristófanes, Guêpes, 82; M. Nilsson, Geschichte der griech. Religion, op. cit., I, p.
145, II, pp. 194 e 383. Do mesmo modo, o verbo thuein, «sacrificar», significa sim-
plesmente «matar um animal»: Evangelho segundo São João, 10, 10; Heliodoro,
Éthiopiques, II, 19; e, sobretudo, um texto muito claro de Libânio, XXX, ortio pro
templis, 17-19, que usa os dois sentidos do verbo. O sentido de hiereuein é igual-
mente enfraquecido desde a Odisséia.
232. Elogiava-se um homem santo que permaneceu casto «même lorsqu’il fréquentait
les fêtes des martyrs» (Théodoret de Cyr, citado por P. Brown, La Vie de saint
Augustin, op. cit., p. 600).
233. M. Nilsson, Geschichte der griech. Religion, op. cit., II, p. 191 e n. 1, e pp. 282-283;
G. Wissowa, Religion und Kultus der Römer, op. cit., p. 68. Varrão é conhecido em
especial por La Cité de Dieu; ver a exposição de Patrice Cambronne nas Oeuvres
de Santo Agostinho, ed. L. Jerphagnon, Paris, Gallimard, col. «Bibliothèque de la
Pléiade», I, 1998, pp. 1498-1501; P. Boyancé, «Sur la théologie de Varron», em
seus Études sur la religion romaine, École française de Rome, 1972, p. 253. Mas,
apesar de Boyancé, não é certo que tenha havido um grande intervalo entre a
122 O IMPÉRIO GRECO-ROMANO

tripartição de Varrão e a dos estóicos, conhecida por Aetius. Varrão não dizia e
nem podia dizer que havia três espécies de deuses. Legisladores, poetas e filósofos
tinham os mesmos deuses, Júpiter, Netuno etc., mas exprimiam e davam três
opiniões diferentes inexatas. Assim, segundo Plutarco (Amatorius, XVIII, 10, p.
763 c), poetas, filósofos e legisladores são os três autores de nossas opiniões (doxai)
sobre os deuses. Portanto, o intervalo entre Varrão e os estóicos define-se em uma
única palavra, e ainda menos: no testemunho de Aetius, existem três espécies
(eidê) de veneração (sebasmos) dos deuses, a filosófica ou a física (nesta última pa-
lavra, reconhece-se bem o estoicismo), a mítica e a legal. Segundo Varrão, há três
gêneros (genera) de maneira de falar dos deuses (theologia). Veneração ou teologia?
Mas essa teologia implica a veneração, o culto, pois Varrão diz que teria preferido,
de sua parte, uma concepção filosófica dos deuses e um culto sem imagens, sem
estátuas, como concebido pelos estóicos. Além disso, admite que é útil que o povo
aceite como verdades determinadas opiniões falsas (La Cité de Dieu, IV, 31, 1).
– Em relação à atitude muito diferente de Q. Mucius Scaevola, Claudia Moatti,
La Raison de Rome: naissance de l’esprit critique à la fin de la République, Paris, Le
Seuil, 1977, p. 179. – O caso de Dio de Prusa XII, 39-42 e 44) é muito diverso;
ele questiona de onde provém a veneração pelos deuses e atribui, antes de tudo, a
uma espécie de sentimento filial inato, reforçado pelas prescrições das leis e pelos
«encorajamentos» dos poetas.
234. Eurípides, fragmento 292 Nauck (Bellérophon), verso citado por Crisipo de So-
lis em H. Von Arnim, Stoicorum veterum fragmenta (daqui em diante SVF), III,
1125.
235. Citado por Sextus Empiricus, Contre les physiciens, I, 91.
236. Convicção que encontramos em Píndaro ou Cleanto (cf. n. 236 e 272), assim
como em Plotino: o homem não é uma mera criatura, é igual aos deuses em dig-
nidade, senão em poder. Em Plotino, a Alma do Mundo é «irmã» da nossa (IV, 3,
6) e esse parentesco é o oposto do pessimismo dos gnósticos, isto é, cristãos, que
«ne dédaignent pas d’appeler frères les hommes le plus vils», mas recusam chamar
de irmãos os astros (que são deuses) e a Alma do Mundo (II, 9, 18). Esses homens
vis são «la foule méprisable qu’est la masse des travailleurs manuels, destinés à
produire les objets nécessaires à la vie des gens vertueux» (II, 9, 9); pois «les cités
bien gouvernées ne sont pas celles qui sont composées d’égaux» (III, 2, 11).
237. Pai dos homens, que possui como ele Logos, razão e palavra sonora, diz o Hymne à
Zeus de Cleanto, que acrescenta que esse parentesco é privilégio só dos homens, e
não dos animais.
238. H. W. Pleket, «The ‘believer’ as servant of the deity in the Greek world», em H. S.
Versnel (dir.), Faith, Hope and Worship, op. cit., pp. 152-192.
239. F. Heiler, La Prière, trad. Krüger-Marty, Paris, Payot, 1931, p. 137; cf. pp. 86,
104, 114, 144, 152 etc. Essas criações metafóricas são os antípodas da sociologia
ingênua, que quer, por uma via misteriosa, que a religião imite o regime político
da sociedade, sendo o monoteísmo a conseqüência da monarquia imperial roma-
na. Na realidade, o modelo de São Paulo é familiar (o Pai, o Irmão, o Filho, e a
Mãe...).
240. Horácio, Odes, I, 34: «parcus deorum cultor et infrequens». Ésquilo, Perses, 496:
nessa prova, «plus d’un, pour qui, avant, il n’était point de dieux, lance vœux et
prières».
241. Horácio, Satires, II, 3, 288-295, emprega as palavras timor deorum, tradução de
deisidaimonia, e dá um exemplo que mostra que esse medo dos deuses não é o
tremendum bíblico. Lucrécio caracteriza a devoção, que é apenas superstição ou
medo dos deuses, pelo excesso que faz «inonder les autels du sang de quadrupèdes
N OTAS 123

et enchaîner les vœur aux vœur» (V, 1202). O De legibus de Cícero, II, 19 e 24, e
os Disticha Catonis, IV, 38, cf. 14, condenam os sacrifícios muito dispendiosos.
242. Antes de tudo, Xenofonte, Mémorables, I, 3, 3, e Menandro, Dyscolos, 447-453.
Eurípides, fragmento 946. «Zaleucos» em Estobeu, IV, 2, 19 (IV, p. 124, Wa-
chsmuth-Hense): o deus quer um coração puro, e não despesas vultosas. Cícero,
De natura deorum, II, 28, 71. Ovídio, Tristes, II, 75-76; Pontiques, IV, 8, 37-42;
cf. Fastes, II, 535. Sêneca, Des bienfaits, I, 6, 3; fragmento 123 Haase (Lactance,
Institutions divines, VI, 23, 5). Perse, Satires, II, 55-75. Stace, Thébaïde, II, 245-
248. Dio de Prusa, XIII, 35; XXXI, 15; cf. IV, 75, e XXXIII, 28. A concepção
foi reconhecida por J. e L. Robert em uma inscrição de Didymeion publicada por
Rehm e Harder (Bull. épigr., 1958, n. 430, e Opera minora selecta, III, p. 1627 e
1630). A oferenda é mais eficaz quando é mais modesta (Valério Máximo, II, 5,
5). A oferenda do pobre é bem aceita (Filostrato, Apollonios, V, 15, história de
Esopo; Plínio, Histoire naturelle, Praef., 11: oferece-se um vaso de sal se não se
tem incenso). Do mesmo modo, a prece de um homem justo tem mais valor que
de qualquer outro (Terêncio, Adelphes, 703). Inúmeras referências em J.-P. Cèbe
(org.), Varrão, Satires Ménippées, III, 1975, p. 430, n. 9-11.
243. Fragmento da Danaé, 329 Nauck.
244. Xenofonte, Mémorables, I, 3, 3.
245. Platão, Lois, X, 885 B.
246. Cícero, De legibus, II, 9, 2, citado por J.-P. Cèbe.
247. Horácio, Épîtres, I, 16, 57-62, e Perse, início de Satires, I, citado por J.-P. Cèbe, La
Caricature et la Parodie dans le monde romain, op. cit., pp. 206 e 278; cf. Sêneca,
Des bienfaits, II, 1, 4: «on serait plus avare de ses vœux si on devait les faire ouver-
tement». Ver W. Kiesel, Aulus Persius Flaccus, Satiren, Heidelberg, 1990, p. 297.
248. R. MacMullen, Paganism in the Roman Empire, op. cit., p. 63: em uma taverna de
Pompéia, vê-se uma pintura obscena de Ísis; próximo a ela, um banquete humorís-
tico de deuses. É também infantil e inocente em Óstia, nas termas dos Sete Sábios,
a pintura que atribui a esses sábios aforismos escatológicos. Cf. nota 39.
249. Plutarco, Non posse suaviter vivi, XXI, 1101 C: depositar sua confiança nos deu-
ses; Porfírio, Lettre à Marcella, 24: os quatro elementos da relação com deus são a
verdade, o amor (erôs), a esperança (elpis) e a confiança (pistis), que consiste em
persuadir-se que a única salvação é o retorno do deus.
250. O ingênuo Euthyphron assim pensa (Platão, Euthyphron, 14 A).
251. Teofrasto, fragmento 10 (Pötscher, p. 164), em Estobeu, III, 3, 42.
252. Fragmento 9 (Pötscher, p. 162), segundo Porfírio, II, 20, 1. Cf. Filostrato, Vie
d’Apollonios, VI, 11, 6: «les dieux aiment mieux qu’on leur sacrifie de petites cho-
ses, plutôt que de verser pour eux le sang des taureaux».
253. Fragmento 9, linha 13 (Pötscher, p. 164).
254. Plutarco, fragmento 47 Sandbach (vol. XV, p. 136, de Plutarco da coleção Loeb),
recomenda a continuidade (synecheia) de práticas piedosas, possíveis caso se faça
aos deuses oferendas fáceis de encontrar (euporistoi). Essa passagem testemunha a
reconstituição do De pietate de Teofrasto; a palavra euporistos é comum aos dois
textos.
255. «Prosomileîn aei toîs theoîs» (Platão, Lois, IV, 716 D). Nicias oferecia sacrifícios
todos os dias «aux dieux» (Plutarco, Nicias, IV, 2), e Teócrito escreveu uma epi-
grama (Anthologie, VI, 337) para um médico que fazia sacrifícios para Asclépio.
Cf. M. Nilsson, Geschichte der griech. Religion, op. cit., II, pp. 188, 194, 381-383.
Na Sicília, o grego Heius, uma vítima do propretor Caius Licinus Verres, ofertava
sacrifícios «quase todos os dias» (propre quotidie) a seus deuses domésticos (Cícero,
De Signis). Cf. também Pausânia, VII, 243, 11. – Exemplo tardio de prece coti-
124 O IMPÉRIO GRECO-ROMANO

diana no texto de Marco Aurélio em Fronton, Epis. ad M. Caes., V, 25: «tous les
matins, je prie les dieux pour la santé de Faustine».
256. Teofrasto, fragmento 7, linhas 33 e 52 Pötscher (Porfírio, II, 13, 4; 14, 3; 15, 3).
257. Êthos, caráter, maneira habitual de ser, reaparece no fragmento 9 (Porfírio, II, 19,
4); hexis, disposição interior permanente que permite realizar ações determinadas
(virtuosas, amigáveis...), menção aos deuses no fragmento 12, linha 48 (p. 168
Pötscher; Porfírio, II, 24, 1).
258. É a Pötscher, p. 20, que se deve essa concepção da reforma de Teofrasto; esse autor
cita a definição peripatética da devoção: «hexis prenant soin des dieux et démons,
et occupant le milieu entre l’athéisme et la superstition (deisidaimonia)» (em Esto-
beu, II; p. 147, Wachsmuth-Hense).
259. Por exemplo, Heitor (Iliade, XXIV, 33-34) ou Ulisses (Odyssée, I, 66-67).
260. Não se pode considerar uma pessoa virtuosa por ter realizado uma ação virtuosa
superficial e talvez por acaso. Mas há algo mais subjacente a essa idéia: a virtude
diz Aristóteles, obtém-se pela prática assídua de ações virtuosas, até que essa práti-
ca torne-se um hábito e, desse modo, a maneira de ser do indivíduo mude. Vemos
aqui a idéia socrática da «preocupação com seu eu» segundo Foucault, isto é, a
preocupação de aperfeiçoar sua maneira de ser por um trabalho interno, de pensar
em si como objeto de uma transformação, ao preço de uma elaboração difícil que
pressupõe um desdobramento.
261. Platão, Apologie de Socrate, 29 E e 36 C.
262. Xenofonte, Agésilas, X, passim, e XI, 4. Michel Foucault me mencionou essa Vie
d’Agésilas à qual ele atribuía um grande valor histórico.
263. É nesse sentido que os apologistas cristãos dos primeiros séculos repetirão com ra-
zão que o cristianismo era a nova filosofia; eles fazem menos alusão ao conteúdo da
doutrina que à sua função: essa nova filosofia ocupará o mesmo lugar que as seitas
filosóficas, ou seja, a vida interior e espiritual e o trabalho interior. Segundo eles,
o cristianismo era uma filosofia feita para todos, e não para uma elite cultivada. A
Verdade sobre o homem, o mundo e Deus será conhecida por todos os fiéis.
264. Libânio, discurso XVI, À Antioche sur la colère de l’empereur, 18.
265. Porfírio, Lettre à Marcella, 16.
266. Sêneca, Lettres, 25, 4, e 41, 4; Epicuro, Lettre à Ménécée, 135; Lucrécio, III, 123;
Plutarco, Non posse suaviter vivi, VII (Moralia, 1091 B-C).
267. Xenofonte, Mémorables, I, 4. Tema prenunciado a um grande futuro em Galiano;
Santo Agostinho o desenvolverá no «sermão Dolbeau», 29, sobre a Providência,
publicado na Revue des études augustiniennes em 1995.
268. Platão, Lois, IV, 716 C.
269. Ibid, 717 A.
270. Ibid, 716 C-D.
271. Ibid, X, 908 C.
272. É o tema muito antigo do parentesco entre os homens e os deuses. «Les dieux et
nous, dit Pindare, nous prenons souffle à la même mère; seule la puissance nous
distingue et nous sépare en tout» (sexta Néméenne, trad. Puech). Platão, Lois,
IV, 716 D: «L’homme tempérant sera l’ami du dieu, car il lui ressemble, tandis
que l’intempérant et l’injuste ne lui ressemblent pas et lui sont adverses.» Dio de
Prusa, III, 52: o Bom Rei, que não aceitará jamais oferendas de homens maus, sabe
que os deuses não se alegram com oferendas nem sacrifícios de homens maus, e
só aceitam os donativos dos homens de bem. Teofrasto, fr. 9 Pötscher (Porfírio,
De abstinentia, II, 19, 4): a pureza ritual não é suficiente, é preciso oferecer um
sacrifício com uma alma isenta de todo mal; o deus alegra-se com a parte divina
que está em nós, pois ele e nós somos parentes (syngenês). Cf. notas 235 e 236.
N OTAS 125

273. Filostrato, Vie d’Apollonios, I, 12, 1: Apolônio recusa apresentar (synistras-thai,


palavra da linguagem diplomática) a Asclépio um ingênuo que lhe pediu esse favor
porque esse sábio já era hóspede (xenos) do deus. Era inútil, bastaria que fosse um
homem honesto, respondeu o sábio.
274. Anthologie, XIV, 71.
275. Varrão, Antiquitates rerum divinarum, em Arnóbio, VII, 1, citado por J.-P. Cèbe
em Id. (org.), Varrão, Satires Ménippées, op. cit., III, p. 430, n. 12.
276. Os filósofos não modificaram nem suprimiram os ritos (uma rara exceção foi Teo-
frasto, adversário dos sacrifícios de animais). Sócrates pensava que só um provo-
cador poderia querer mudar inutilmente qualquer costume dos ritos «de la cité»
(Xenofonte, Mémorables, I, 3, 1; cf. IV, 6, 2-4); ou seja, não apenas os ritos do cul-
to público, mas também os ritos habituais entre seus concidadãos, inclusive o culto
privado. Do mesmo modo, Epíteto (Manuel, XXXI, 5). Epicuro recomendava o
sacrifício aos deuses para prestar homenagem a esses seres superiores; «en outre,
ce faisant, tu t’accommodes de qualque façon aux traditions religieuses» (Pap.
Oxy., I, 215; A. A. Long e D. N. Sedley, The Hellenistic Philosophers, Cambridge,
1987, II, p. 152; A.-J. Festugière, Épicure et ses dieux, Paris, 1968, p. 99). Porfírio,
propenso a admitir o culto só em espírito, escreveu que «les autels des dieux, si l’on
y sacrifie, ne font rien de mal et, si on les néglige, n’apportent aucun avantage»,
e, por fim, considerava que «la piété est d’honorer la divinité selon les coutumes
de sa patrie», porém concebendo uma idéia justa dos deuses e do pouco valor das
«œuvres» (erga); cf. Lettre à Marcella, 16-19 e 23.
277. «Syntaxeôn doseis»: Porfírio, De abstinentia, II, 61, 1-2 (passagem que não deve re-
montar a Teofrasto: os argumentos de Bouffartigue e Patillon, p. 27 de sua edição,
parecem convincentes).
278. É a diferença de função (senão de origem ou de conteúdo) entre os ritos e os
símbolos. Não se pode usar de ardis com os ritos, como se faz com os símbolos,
restringir-se mentalmente (essa espécie de metalinguagem) ao executar o rito: caso
se faça, o rito não surtirá efeito ex opere operato, como dizem os teólogos, e a in-
dignidade pessoal do oficiante ou o que ele pode pensar in petto não mudaria nada.
Seria formulado em uma língua estranha ou imaginária, incompreensível para o
oficiante e os assistentes, e que não cumpriria sua função. Sem dúvida, os ritos po-
dem ser elaborados como símbolos e mesmo ensinar crenças, dogmas por símbolos
(é o caso dos ritos cristãos). Mas sua função não é só representativa e didática; é,
antes de tudo, performática: assim como prometer consiste em pronunciar as pa-
lavras «eu prometo» (a partir de então, a promessa é efetiva e nenhuma restrição
mental impedirá de comprometer seu autor), e homenagear os deuses consiste em
executar os ritos que os honram.
279. G. Bateson, La Cérémonie du Naven, trad. Latouche-Safouan, Paris, Éd. de Mi-
nuit, 1986, p. 170: «Un jour où l’on célébrait une cérémonie relative à la fertilité et
à la prospérité, lors de la pose d’un nouveau plancher, la majorité des informateurs
me dit qu’on célébrait la cérémonie à cause du nouveau plancher; rares étaient les
hommes qui avaient pleine conscience de la signification rituelle de la cérémonie
ou y portaient un intérêt»; cf. também, ibid., a legenda da tábua p. 326.
280. Plutarco, De superstitione, IX (Moralia, 169 D), que critica essa emotividade: ele a
atribui a uma fraqueza indigna de um homem livre e a uma idéia falsa que se faz
dos deuses, que são bons e a quem não precisamos temer (deisidaimonia).
281. Eurípides, Bacchantes, 201: «des traditions aussi vieilles que le temps lui-même».
282. Anthologie palatine, VI, 69-70; IX, 34-36. Valerius Flacus, Argonautiques, II, 285,
e o belo poema IV de Catulo (o Phaselus).
283. Por exemplo, Arnóbio, I, 9; Prudêncio, Contre Symmaque, II, 1006-1011.
126 O IMPÉRIO GRECO-ROMANO

284. Filostrato, Heroîkos, I, 7, narra uma historieta do contraste entre as duas culturas.
285. Apuleio, Démon de Socrate, 3; Luciano, Zeus tragédien, 53 (fim).
286. Varrão em Santo Agostinho, La Cité de Dieu, III, 4; IV, 31; e VI, 2.
287. Plínio, Lettres, VIII, 8; IV, 1; e IX, 39. Cf. R. MacMullen, Christianizing the Roman
Empire, op. cit., p. 197 e n. 63. Do mesmo modo, Polius Felix construiu perto de
Sorrento, em um lugar chamado hoje Marina di Puolo, um templo de Hércules
que era um centro de festas populares: criou um concurso atlético de boxe inofen-
sivo (lutava-se de mãos nuas, sem manoplas de chumbo); e em frente de sua casa
havia um santuário de Netuno (Stace, Silves, III, 1, e II, 2, 23). Com freqüência,
latifundiários construíam um santuário em suas terras (quase sempre centro de
peregrinação ou de feira, de nundinae); depois construíam igrejas rurais (W. H. C.
Frend, The Donatist Church: A Movement of Protest in Roman North Africa, 1952,
p. 176). Cf. Digeste, I, 8, 6, 3. Sobre a Via Cassia, na saída de Roma, «sacrarium
Liberi Patris in praediis Constantiorum omnibus annis celebrantur» (Notizie degli
Scavi, 1925, p. 397; Année épigr., 1927, n. 103); devia ser um local de peregrina-
ção popular. Ver também a bela inscrição em CIL, V, 5005 (H. Dessau, n. 3761).
Em Trier, «nous connaissons au moins trois sanctuaires [...] communautaires, mais
qui [...] se trouvaient sur le territoire d’une villa» (J. Scheid em Les Sanctuaires
celtiques et leurs rapports avec le monde méditerranéen: actes du colloque de Saint-
Riquier, Errance, 1990, p. 46). Pensa-se nos três templos da magnífica villa da ilha
de Brioni, e Ístria. No tocante a outros santuários de villas, G. Fouet, La Villa gallo-
romaine de Montmaurin, suplemento XX em Gallia, 1969, p. 164; J. Holmgren
e A. Leday, «Typologie des villas du Berry», Gallia, 39, 1981, pp. 111 e 119; nos
arredores de Trier, H. Cüppers e A. Neyses, «Der Gutshof mit Grabbezirk und
Tempel bei Newel», publicado primeiro na Trierer Zeitschrift de 1971 e republica-
do em F. Treutti (dir.), Die römische Villa, Wege der Forschung, CLXXXII, 1990,
pp. 219-269. Um papiro menciona um santuário privado de Dioscures, erguido
por ordem de um oráculo (Pap. Gissen, 20, em L. Mitteis e U. Wilcken, Grundzü-
ge und Chrestomathie der Papyruskunde, op. cit., Historischer Teil, Chrest., p. 123,
n. 94). Chariton, Chéréas et Callirhoé, V, 10, 1: «Souveraine Aphrodite, tu m’as
trompé, alors que j’ai établi un sanctuaire à toi sur mes terres et que j’y sacrifie
souvent.»
288. A. Momigliano, «The theological efforts of the Roman upper class in the first
century B. C.», em Classical Philology, 1984, p. 199; J. H. W. G. Liebeschuetz,
Continuity and Change in Roman Religion, op. cit., pp. 29-39.
289. De harusp. responsu, IX, 18.
290. Galiano, De usu partium, III, 10 (III, p. 236, Kühn), e XVII, 1 (IV, p. 358). Cf.
Xenofonte, Mémorables, I, 4, 2-6; Cícero, De natura deorum, II, 56, 141.
291. P. Boyancé, «Sur la théologie de Varron», em seus Études sur la religion romaine, op.
cit., pp. 262-263.
292. Plínio, o Jovem, Lettres, I, 18; Amiano Marcelino, XXV, 4.
293. Marco Aurélio, IX, 27, § 3; I, 17, § 1, § 11 e § 20-21. A palavra «oráculo» (chrês-
mos), em sua época, designava os sinais (chrêmatismos) premonitórios os mais di-
versos (Latomus, 45, 1986, p. 271). Esforçava-se, nessa época, de ser fervoroso e
empregava-se, para tal, termos religiosos com uma ênfase imprópria.
294. Plínio, o Jovem, Lettres, VII, 27; L. Robert, Hellenica, XI-XII, p. 544; Cássio Dio,
LXXX, 18.
295. Sêneca, Tranquillité de l’âme, XI, 2. O direito civil oferecia poucos recursos contra
os fideicomissos desleais que guardavam o dinheiro.
296. Ptolomeu, Tétrabible, p. 344 Robbins (Loeb). É o esboço de um retrato satírico
no gênero dos Caractères de Teofrasto. Outros traços marcantes (pp. 330-352), as
N OTAS 127

confissões (Exagoriai, cf. nota 92), o gosto pelo esoterismo, a interpretação dos so-
nhos e dos presságios, o medo supersticioso (deisidaimonia), a visita aos santuários,
os ritos e os deuses.
297. A sexualidade subsiste nos que evitam, antes de tudo, os diferentes ascetismos. Ela
põe um grande número de coisas em jogo e, portanto, é o elo ao mesmo tempo
mais frágil e mais pesado da corrente: é impulsiva, física, exigente, intensa, pouco
controlável (pode ser selvagem ou, ao contrário, romanesca), e tem muitas impli-
cações comprometedoras ou difíceis em relação a outras pessoas e à sociedade;
além disso, em alguns indivíduos dos dois sexos, encontra-se mal conciliada com
o resto de suas personalidades ou ao ideal que nutrem de si mesmos, de modo
que seu próprio desejo é uma carga; ele permanece, mas em desarmonia com seus
corpos e em conflito interno. Enfim, a sexualidade atrai de uma maneira desigual
as pessoas de qualquer sexo, dando origem a um conflito social latente. A sexuali-
dade humana não é um dos maiores sucessos da natureza ou, mais precisamente,
da cultura (embora, como dizia em tom de gracejo Nietzsche, seja uma das raras
atividades humanas em que se pode «fazer o bem a si mesmo e ao outro: a natureza
é raramente tão clemente).” Esse conjunto de fatores tem pesadas conseqüências
históricas: com freqüência, o ascetismo é imposto a toda uma sociedade e a torna
repressiva; é a vitória de um desses «partidos virtuais», dos quais falamos em outro
trecho (ver a nota 341), o partido daqueles em que a sexualidade é incômoda e
que impõe sua lei ao outro «partido virtual».
298. Saint François de Sales, Introduction à la vie dévote, IV, 14, 5, Cícero escreveu em
Hortensius (citado por Santo Agostinho) que o prazer físico impede a reflexão, a
atenção, tornando, assim, indistintos, para justificar o ascetismo, os estados mo-
mentâneos e o resto do tempo. Enquanto um asceta vive estados intelectuais ou
religiosos elevados e que «faz oração», a concupiscência, a cólera ou a inveja estão
bem distantes dele; mas ele não reza o tempo inteiro e, nos momentos comuns,
volta a ser acessível a essas tentações. Porém, a concepção global da personalidade
esquece esse resto do tempo e pode então opor artificialmente duas totalidades: o
homem de pensamentos elevados e o homem de prazeres baixos.
299. É preciso ampliar aqui as distinções. As profissões elevadas exigem tudo do ho-
mem, que deve esquivar-se aos deveres triviais de um pai de família e permanecer
um celibatário sério, abstinente. Esse ascetismo, que devia elevar-se acima de uma
existência vulgar, não é, evidentemente, o mesmo ascetismo cristão que luta con-
tra o demônio da carne em um Jean Cassien; não é menos diferente do controle
dos prazeres (de sua «gestão», como se diz), que devia praticar o civismo antigo,
um cidadão digno desse nome devia ser senhor de si mesmo. Além disso, uma
realidade psicológica: a sexualidade não atrai sempre indivíduos voltados à espiri-
tualidade. Ver o livro clássico de P. Brown, Society and the Holy in Late Antiquity,
op. cit.; trad. fr.: La Société et le Sacré dans l’Antiquité tardive, op. cit.
300. Saint Augustin, Soliloques, I, 17: o jovem Agostinho quer alcançar o conhecimento
de Deus e da alma, pois «rien ne déloge plus de sa citadelle un esprit viril que les
agacements d’une femme et le contact des corps» (trad. Dupuy-Trudelle).
301. J. Scheid, «Ronald Syme et la religion des Romains», em Entretiens sur l’Antiquité
classique, XLVI: La Révolution romaine après Ronald Syme, Fondation Hardt, 2000,
p. 54.
302. Valério Máximo, VI, 9, Rom., 3, citado por John Scheid.
303. Ver a referência a Plutarco em sua Consolatio ad uxorem, nota 357.
304. Iluminado calculista: ver o caso de certo Zoilos, que, por ordem do deus, quer
fundar um santuário de Serapis e fala do financiamento de seu empreendimento
com um ministro de Ptolomeu Filadelfo; cf. C. C. Edgar, Zenon Papyri, I, p. 55,
128 O IMPÉRIO GRECO-ROMANO

n. 59034, comentado por A. D. Nock, Conversion: The Old and the New, in Re-
ligion from Alexander to Constantine, Oxford, 1933 (1963), p. 49. A respeito do
comércio da carne (os «idolothytes»), lembremos a carta de Plínio a Trajano sobre
os cristãos: para provar a seu príncipe que em sua província o cristianismo está, a
partir de então, em recuo, escreve que o comércio da carne vendida pelos templos
foi retomado (Lettres, X, 96, 10: «denuo venîre victimarum carnem»); a palavra
carnem é uma restituição, no lugar da qual Bickermanon propõe vectigal, que me
parece menos plausível: havia uma taxa do Império imposta aos sacrifícios, como
sabemos em especial pelo Gnomon de l’Idiologue, mas vectigal concilia mal com o
verbo venire.
305. Tacite, Histoires, III, 74; Suétone, Domitien, I; Minucius Félix, XXV, 11. Outro
recurso dos amorosos era a casa de um amigo (referências em T. Mommsen, Stra-
frecht, p. 700, n. 2).
306. No museu de Nicósia, retrato da sacerdotisa de Afrodite proveniente do santuário
de Afrodite em Arsos, século III antes da nossa era; R. R. R. Smith, La Sculpture
hellénistique, op. cit., fig. 258. Excelente fotografia em K. Papaioannou et al., L’Art
grec, op. cit. Mas poderia ser também uma rainha lágida, de véu sobre as moedas,
como se a taenia que a cinge fosse um diadema; referências na Revue archéologique,
I, 1995, p. 48, n. 30.
307. Museu Nacional, inventário n. 351; S. Karouzou, National Archaeological Mu-
seum, Atenas, 1968, p. 186. Esse retrato, normalmente datado do século I, é mais
tardio, em razão do penteado, segundo K. Fittschen em Id. (dir.), Griechische Por-
träts, Darmstadt, Wiss. Buchgesell., 1988, p. 26 e pl. 133. Notaremos a grande
semelhança dessa cabeça com o retrato 658 da Ny Carlsberg (R. R. R. Smith, La
Sculpture hellénistique, op. cit., fig. 333). E com um retrato do Museu de Boston,
mencionado como proveniente de Tralles e datado do ano 150 em J. Inan e E.
Alföldi-Rosenbaum, Römische und frühbyzantinische Porträtplastik aus der Türkei:
neue Funde, Mayence, 1979, n. 215, e em R. R. R. Smith no Journal of Roman
Studies, 88, 1998, p. 85 e n. 153 e 156. Seria de um personagem célebre em sua
época?
308. Do mesmo modo, em um relevo funerário do Museu de Óstia, que mostra um
padre colocando incenso em um defumador, e que Raissa Calza data dos Flavianos
em Scavi di Ostia, Rome, V, 1965, 1, Ritratti, p. 50, n. 71 e pl. XLI; os sulcos
subnasais e a seriedade do olhar e da boca, com os lábios cerrados, é tamanha que
o oficiante tem um ar sinistro. Ou ainda, no Louvre, o relevo Mattei, no qual dois
ministri trazem o boi que será sacrificado: mesma concentração em seus rostos (I.
Scott Ryberg, Rites of the State Religion in Roman Art, op. cit., p. 130 e n. 32, e pl.
XLVI; boas fotografias de rostos em G. Traversari, Aspetti formali della scultura
neoclassica a Roma, L’Erma, 1961, figs. 51 e 52, e p. 71).
309. A. Giuliano, La cultura artistica delle provincie della Grecia in età romana, L’Erma,
1965, p. 79, e pl. 30, fig. 2: «sacerdote [...] dal viso emaciato, il volto intensamente
raccolto».
310. E. Buschor, Das Porträt, Bildniswege in fünf Jahrhunderten, Munich, 1960, p. 139
e fig. 95; cf. também H. P. L’Orange, «The ‘Jamblichus’ type», em Acta ad ar-
chaeologiam, Institutum Romanum Norvegiae, 6, 1975, p. 60 e pl. 3. Ambos os
estudiosos datam o retrato do século III.
311. Em Roman and Early Byzantine Portrait Sculpture in Asia Minor de J. Inan e E.
Alföldi-Rosenbaum, Londres, Oxford University Press, 1966, por exemplo, p.
199, n. 274 e pl. CLI, ou o retrato de Damiano com sua enorme coroa, n. 151,
pl. LXXXVII, com a fronte enrugada e as sobrancelhas franzidas. Cf. também
l’Enciclopedia dell’arte antica, I, artigo «Arte alessandrina», p. 227, fig. 333. Em
N OTAS 129

Veneza, Ruga Giuffa, entre Santa Maria Formosa e São Zacarias, pode-se ver uma
dessas cabeças no fundo do Ramo Grimani, acima de uma porta lateral desse palá-
cio rico em antiguidades.
312. Como assinalou A. K. Massner, «Corona civica, Priesterkranz oder Magistratsinsig-
ne?», Athenische Mitteilungen, 103, 1988, p. 239-250. Encontraram em Afrodisias
uma cabeça com a coroa de medalhão, que é certamente a de um sacerdote do
templo local de Afrodite (tem a fisionomia costumeira e, além disso, rugas profun-
das na fronte); diríamos o mesmo na série abundante de retratos sacerdotais pro-
veniente de Palmira. Não li J. Rumscheid, Kranz und Krone: besondere Arten des
Kopfschmuckes in der röm. Kaiserzeit und ihre Bedeutung (Istanbuler Forschungen,
43), 1999.
313. R. Bianchi Bandinelli, Rome, la fim de l’art antique, op. cit., p. 221, fig. 204.
314. O problema foi detectado a partir de 1946, na Revue archéologique, por F. Cha-
moux, «Une tête égyptienne en basalte vert». A bibliografia das influências egípcias
na arte helênica do retrato é longa; só li C. Küthmann, «Der grüne Kopf des Berli-
ner Ägyptischen Museums», Zeitschrift für Ägyptische Sprache und Altertumskunde,
88, 1963, pp. 37-42; B. V. Bothmer, «Roman republican and late Egyptian portrai-
ture», American Journal of Archaeology, 58, 1954, p. 1453; e A. Adriani, «Ritratti
dell’Egitto greco-romano», Römische Mitteilungen, 77, 1970, p. 72.
315. Exemplos desses retratos egípcios: S. Donadoni, L’Art égyptien, trad. Arnal, Paris,
Le Livre de Poche, col. «La Pochothèque», 1993, p. 552; R. R. R. Smith, La Sculp-
ture hellénistique, op. cit., figs. 254 e 255; Kleopatra, Ägypten um die Zeitenwende,
Mogúncia, Philipp von Zabern, 1989, pp. 134-165, passim.
316. E. Harrison em The Athenian Agora, I: Portrait Sculptures, 1953, p. 12, n. 3, pl. 3;
G. Haffner, Späthellenistische Bildnisplastik, Berlim, 1954, p. 60, n. A2 e pl. 25.
Esses retratos datam do início de nossa era. O sacerdote usa uma coroa de seção
redonda, é completamente calvo e glabro; os olhos, os lábios e os sulcos subnasais
são os de hábito. As rugas na fronte são gravadas, e não moldadas.
317. Basta consultar, por exemplo, a rica ilustração de Marianne Bergmann, Studien
zum röm. Porträt des 3. Jahrhunderts, Bonn, Habelt, 1977, ou de Susan Wood,
Roman Portrait Sculpture, 217-260 A.D., Leiden, Brill, 1986.
318. Apulée, Apologie, LVI, 4-5. Outro texto esclarecedor é o de Martial, X, 92. Ver
também CIL, III, 6423: certo Valius Festus plantou uma videira; após uma pro-
messa, embelezou um altar dedicado a Júpiter que estava sendo construído e o
consagrou imolando um touro («aram [...] tauro immolando dedicavit»). – Quanto
à veneração dos camponeses por algumas árvores, certas pedras ornamentadas com
pequenas fitas e objetos de libações de óleo, ver O. Weinreich, «Zu Tibuil, I, 1»,
Hermes, 56, 1921, pp. 337-345 (reimpresso em seus Ausgewählte Schriften, Ams-
terdã, 1969, I, p. 559).
319. Xénophon, Anabase, IV, 8, 25, e V, 3, 4-9.
320. Suétone, Auguste, XCI, 2.
321. Sénèque, fragmento 120 Haase (Lactance, Inst. div., II, 2, 14); cf. «S’asseoir
auprès des dieux, fréquenter les temples», Revue de philologie, LXIII, 1989, p.
175-194 (reimpresso em minha Société romaine, op. cit.), no qual não citei esse
fragmento. No tocante às doações de moedas nos váus e em suas fontes, W.
Van Andringa, La Religion en Gaule romaine, Errance, 2002, pp. 121-122; A.
Grenier, Archéologie gallo-romaine, II,: L’Archéologie du sol, 1: Les Routes, Pa-
ris, Picard, 1934, p. 185. No momento em que escrevo estas linhas, anunciou-
se a descoberta de moedas dos quatro primeiros séculos na fonte de Vaucluse.
– Sobre os thesauroi (de onde o latim thesauri em Sêneca e na inscrição Dessau
9260), esses troncos instalados nos templos, ver, além das referências epigráficas
130 O IMPÉRIO GRECO-ROMANO

nas leis sagradas gregas, a descrição feita por F. Hiller von Gärtringen, Die Insel
Thera, I, pp. 260-264.
322. Em grego, «eis hiera phoitân» em Julien, Misopogon, 15, 346 C, e o hápax hierôphoi-
tân em Ptolémée, Tétrabible, II, 13, p. 340 Robbins (col. Loeb).
323. Florides, I, 1.
324. Sénèque, fragmento 36 Haase, em Saint Augustin, La Cité de Dieu, VI, 10. –
Um caso diferente é o das exibições (epideixeis) de talento que os artistas davam
gratuitamente na Grécia diante do público; eles pensavam oferecer «aos deuses»
essa exibição gratuita, como primícias (aparchê) de seu talento ofertadas aos deu-
ses (L. Robert, Études épigraphiques et philologiques, Paris, 1938, pp. 21, 37-38,
41,42).
325. Properce, II, 28 B, 45.
326. Apulée, Métamorphoses, XI, 25, 1.
327. É a atitude de Plínio, o Jovem, e de seus pares diante dos grafites ou «proscynèmes»
de ingênuos devotos no santuário das fontes do Clitumne (Lettres, VIII, 8, 7). So-
bre esses grafites no mundo grego, A. Bernand, artigo «Graffito II» do Reallexikon
für Antike und Christentum, XII, em particular col. 669 sq. Em latim, Année épigr.,
1977, n. 219.
328. Aelius Aristide, Discours sacrés: rêve, religion, médecine au second siècle après J.-C.,
intr. e trad. Festugière, prefácio de J. Le Goff, Paris, Macula, 1986; Elio Aristide,
Discorsi sacri, ed. S. Nicosia, Milão, Adelphi Edizioni. 1984. E o cap. VI de A.-J.
Festugière, Personal Religion among the Greeks, University of California, 1960, pp.
85-104.
329. No retrato judicioso que traçou de Aristides nos Atti Accademia Pontaniana, Ná-
poles, LI, 2002, pp. 369-383.
330. Quanto às relações pessoais de Juliano com os deuses, sobre suas conversas, ver o
testemunho surpreendente de Libanios, discurso XV, 30-3 1; ver também XVIII,
392.
331. Pode-se dizer que os Discours sacrés de Aristides são uma aretalogia gigante. Cha-
mava-se aretalogia um pequeno discurso exaltando os méritos, o valor (aretê), as
capacidades ou dynameis de um deus; os ciceroni os recitavam aos visitantes nos
santuários. Ver R. Reizenstein, Hellenistische Wundererzählungen (reimp. 1963),
primeira parte.
332. Ver mais acima, notas 296 e 322 (Ptolomeu, 255 (Platão) e 254 (Plutarco). Ju-
liano é um exemplo dessa assiduidade contínua (synechês homilia) dos deuses: ele
visitava todos os templos em suas viagens, mandou construir um santuário em seu
palácio de Antioquia e instalou seu quarto ao lado do templo, o que podia fazer
sem impureza, pois passava as noites em total castidade (Libanios, discurso XVIII,
Oraison funèbre de Julien, 127-129). E oferecia um sacrifício cotidiano no jardim
do palácio (discurso I, Autobiographie, 121). Além disso, multiplicava os sacrifícios
públicos (Julien, Misopogon, 15, 346 B-D).
333. Tomo aqui «místico» em um sentido restrito para designar esse estado psíquico sui
generis que é o êxtase, como em Plotino ou Santa Teresa d’Ávila, esses minutos de
felicidade amorosa, tão diferentes do transe, em que alguém se sente participar de
um absoluto: Deus, um deus, o Uno-Bem de Plotino, o Deus-Natureza de Spino-
za, o Amor, o Élan vital, a Beleza, a Natureza; o absoluto convertido em «palpável»
(Plotino) e tão próximo que nos integramos nessa alteridade. Esse estado perfeita-
mente lúcido pode ser provocado por qualquer sentimento forte, religioso ou não:
o deus, uma paisagem, a poesia, uma grande idéia, um empreendimento, a paixão
amorosa etc. – Deve-se observar com atenção a palavra grega ekstasis, que desig-
na, de maneira vaga, qualquer entusiasmo ou excitação, e não o fenômeno muito
N OTAS 131

específico do êxtase em Plotino ou nos místicos cristãos (E. R. Dodds, Païens et


Chrétiens dans un âge d’angoisse, op. cit., pp. 86-88).
334. No segundo Discours sacré de Aelius Aristide, 23 (p. 399, Keil; trad. Festugière, p.
52), encontramos a descrição maravilhada de um êxtase.
335. Por exemplo, a digressão, que é a descrição detalhada e fascinada de um rito de
purificação em Claudien, Panégyrique du sixième consulat d’Honorius, 324-330.
336. Libanios, Autobiographie, 32 (cf. 92, fin).
337. G. Le Bras, Études de sociologie religieuse, Paris, PUF, 1956, II, p. 564 e n. 4: «Voilà
le vrai problème, qui eût scandalisé beaucoup de nos ascendants: la France a-t-elle
été jamais christianisée? [...] Que de traits d’impiété populaire [...] au Moyen
Âge!» Mesma interrogação patética do teólogo Friedrich Heiler ao descobrir o «pa-
ganismo cristão» do camponês: «Notre peuple a-t-il jamais été chrétien?» A diver-
sidade ou a intensidade desigual das crenças individuais em uma mesma época
tornara-se um fato admitido, banal (não se fala mais de «épocas de fé»). Ibid., p.
627: «Comme la coutume juridique, la coutume religieuse résulte de l’unanimité
ou quasi-unanimité. Mais à la différence de la coutume juridique elle ne s’impose
pas inéluctablement à tous: elle est proposée à chacun. Le groupe presse l’indi-
vidu, mais il ne peut lui enlever sa liberté naturelle»; p. 636: «foi profonde, [...]
simples conformistes»; p. 562: «Il conviendra de commencer par la psychologie de
l’individu [...]. Degré vraisemblable de liberté, de spontanéité, de ferveur...»
338. Em relação ao estado atual, não de um declínio da religiosidade em geral, mas de
suas inovações e transformações profundas nos países desenvolvidos, lemos o n.
109 des Archives de sciences sociales des religions, XLV, 2000. Um exemplo antigo,
porém clássico, é o de G. Le Bras, Études de sociologie religieuse, op. cit., II, p. 475:
por volta de 1950, na França, a assistência à missa dominical era, em média, de 10
e 20% nas grandes cidades; 30% na paróquia parisiense de Saint-Honoré-d’Eylau
e 5% em Belleville e Ménilmontant. Na França católica em meados do século pas-
sado, Le Bras distinguia os devotos que rezavam o rosário, os praticantes regulares
da missa dominical, os «conformistas sazonais» que comemoravam a Páscoa e os
não-cristãos que não iam nunca à igreja. No ano 2000, um quarto dos franceses
dizia-se católico, porém mais da metade deles não praticava jamais (Archives de
sciences sociales des religions, XLV, 2000, p. 15).
339. Para Mme de Sévigné, era um dever dedicar um momento à meditação religiosa
todos os dias: «À cinq heures, un livre de dévotion et un autre d’histoire, un peu
rever à Dieu, à sa providente, posséder son âme, songer à l’avenir; enfin, sur les
huit heures, j’entends une cloche, c’est le souper» (29 de junho de 1689). Dever
cotidiano um pouco ligeiro: São Francisco de Sales é muito mais exigente com sua
personagem Filotéia.
340. Por exemplo, apesar das enormes variações históricas, a heterossexualidade é sem-
pre mais freqüente que a homossexualidade (o que, evidentemente, não prova
nada), e o gosto por música, boa ou má, parece mais difundido que a sensibilida-
de pictórica. Cf. M. Merleau-Ponty, Phénoménologie de la perception, pp. 505 ou
513. Há uma probabilidade estatística de que os ricos são mais contentes com seu
destino que os pobres. Se só existisse uma socialização no modelo preconizado
por Durkheim, não haveria uma minoria burguesa votando na esquerda. Caso
contrário, só existiriam variações individuais. A história seria muito diferente; com
a lei dos grandes números atuando plenamente, a metade de burgueses votaria na
esquerda e um judeu em dois seria anti-semita. Como sublinhou Quételet, o indi-
vidualismo e o nominalismo têm por limite a existência de tipos, o Rico, o Pobre
etc.
341. Ver, no final da nota 297 acima, outro exemplo de «partidos virtuais».
132 O IMPÉRIO GRECO-ROMANO

342. J. Scheid, Romulus et ses frères, op. cit., p. 741: «Je ne connais aucune religion dans
laquelle les fondements et les prolongements théologiques des services religieux
seraient ressentis en permanence et par tous les assistants. Dans la religion romai-
ne comme dans toutes les autres, la plupart des ‘fidèles’ assistant aux offices se
contentaient de retenir que la tradition était respectée, qu’ils avaient fait comme
les autres et que la communauté à laquelle ils appartenaient était en règle avec les
dieux.»
343. A respeito de tropas mortas em massa em 1914, não é correto escrever como
Apollinaire que «au cœur du soldat il palpite la France»: no coração delas, não
palpitava nada, mesmo que fossem «visceralmente» patriotas (o que, aliás, não foi
demonstrado).
344. Entretiens, II, 4.
345. Plotino, esse virtuose da espiritualidade, do êxtase e do amor, não menciona ja-
mais, salvo erro, a devoção, só se refere à palavra «santo» (hagios) em uma breve
passagem de caráter alegórico e mítico (IV, 3, 32, final). Ama com fervor o Um
Divino e a Alma do Mundo, mas o Um só ama a si mesmo e os que ele une e que
se convertem nele (VI, 8, 15). Não se saberia dialogar com o Uno; a prece não é
a relação pessoal de dois seres, e sim exerce uma ação física ou, escreveu Plotino,
mágica (IV, 4, 26); porque nada pode alterar, por acolhimento de ninguém, o
funcionamento impessoal e imutável de um mundo que é também «racional» à sua
maneira, exceto o mundo de Spinoza. Do mesmo modo, os santuários e as ima-
gens dos deuses exercem uma atração puramente física na Alma do Mundo (IV, 3,
11). Em compensação, Plotino possui o sentido do sagrado (hieros): para ele, «tout
l’espace [cosmique] est sacré» (I, 8, 14, 37), as cerimônias religiosas também (V,
5, 11, 16).
346. William James, L’Expérience religieuse: essai de psychologie, trad. Abauzit, 1908, p.
45.
347. G. Simmel, Die Religion, op. cit., p. 66; ver, por exemplo, Marco Aurélio, XII,
23.
348. É o lirismo de IV, 23 («Tout me convient qui te convient, ô Cosmos! Ô chère
cité de Zeus!»), em face de V, 8 e 10, que implica a aceitação resignada e triste.
A imagem da cidade é tão natural para o espírito antigo que a encontraremos em
Plotino, IV, 4, 40: «La raison de l’univers pourrait être comparée à une raison qui
introduirait l’ordre et la loi dans une cité.»
349. G. Simmel, Die Religion, op. cit., p. 86.
350. H. von Arnim, SVF, I, 537. Trad. L. Bréhier em Les Stoïciens, Paris, Gallimard, col.
«Bibliothèque de la Pléiade». O Zeus de Cleanto é senhor do raio que designa ale-
goricamente o Fogo Artesão. Ver também o louvor do Bem (em prosa) de Cleanto
(H. von Arnim, SVF, I, 557), com sua acumulação de epítetos no estilo dos hinos
«órficos»: em duas palavras, o Bem é devoto e dócil ao deus (porque o cosmos e
o Bem são obra do Fogo Artesão), todos os outros qualificativos traduzem uma
identificação entusiasta com um princípio abstrato de clareza, de autonomia, de
segurança apática e de força pessoal.
351. Não se trata do sentido estóico do cosmos nem do sentido marxista da história. O
comunismo, segundo Marx, sendo o sentido da história, realizar-se-ia mais cedo ou
mais tarde, em virtude de uma necessidade racional e desejável da economia: um
belo dia, as forças de produção não poderiam deixar de expurgar as relações capi-
talistas de produção, visto que necessidade e otimismo coincidem (esse é o grande
subentendido). É preciso dizer que esse fato futuro é, ao mesmo tempo, um impe-
rativo ético segundo o qual é louvável aderir ao comunismo? Sim, é louvável, di-
remos desdenhosamente aos intelectuais bem-intencionados, mas deixando-os en-
N OTAS 133

trever que são indispensáveis e a eles seria atribuído o êxito do fato. O importante
é que o comunismo tem um sentido econômico, infra-estrutural da história; essa
questão tem por par o fato de que, na superestrutura, a classe operária se unirá ao
comunismo e, assim, contribuirá para que ele ocorra: as forças objetivas de produ-
ção e as relações humanas de produção caminham juntas, porque o mundo é bem-
feito; necessidade material e racionalidade humana convergem metafisicamente.
Diverso do estoicismo, que nunca supôs nem procurou que o povo o adotasse e
que jamais ambicionou nem esperou conquistar o mundo, persuadido (como todo
o aristocratismo sectário pagão) de que os homens, em sua imensa maioria, eram
«loucos» que não compreendiam nada. De acordo com o estoicismo, o sentido do
cosmos indica, por exemplo, que todos morrerão; que aceitar a morte consoante
o plano divino ou que, insanamente, revoltar-se, ambas as posições não impedem
a morte: o destino arrasta aqueles que se revoltam contra ele, em vez de aceitá-lo.
Aderir ativamente ao sentido da história e aceitar de modo passivo o sentido do
cosmos não são a mesma coisa; aceita-se o cosmos porque é inevitável e porque ele
causa o menor mal possível, pois o deus é bom.
352. Sénèque, Thyeste, 882-884; da mesma forma, Questions naturelles, VI, 2: «puisque
de toute façon il faut mourir un jour, nous devrions être heureux de périr victimes
d’une cause aussi énorme»; Consolation à Marcia, XXVI, 7: «nous ne serons, au
milieu de ce bouleversement général, qu’un détail de plus dans la grande catastro-
phe». É o lirismo de uma erupção vulcânica ou de um auto-sacrifício. Ver a nota
380.
353. Como me dizia Michel Foucault.
354. Ver anteriormente, notas 222-227.
355. Consultar o número especial, «L’orphisme et ses écritures», da Revue de l’histoire
des religions, 219, fasc. 4, 2002. Infelizmente, as inúmeras tabuinhas de ouro órfi-
cas ou dionisíacas encontradas nos túmulos como passaportes para o além não nos
informam o destino dos não-iniciados.
356. Para Aelius Aristide, uma iniciação é o nec plus ultra da emoção religiosa (Discours
sacrés, II, 28; III, 48; IV, 7). Ver também uma página célebre de Plutarco, fr. 178
Sandbach (Loeb), em Stobée, IV, 52, 49 (V, p. 1089, Hense).
357. Sobre a imortalidade nos Mistérios dionisíacos, não podemos deixar de citar Plu-
tarco, Consolatio ad uxorem, 10 (Moralia, 611 E).
358. Ver o trecho de Políbio citado anteriormente, na nota 221. M. Nilsson, Geschichte
der griech. Religion, op. cit., I, pp. 815-818, não acredita que as Luzes sofísticas
tenham abolido esses temores, em Grenouilles de Aristophane e nas pinturas de
Polygnota na Leschè dos cnidianos em Delfos.
359. Valério Máximo, VII, 9, Rom., 4.
360. Sabe-se agora, graças a Paul Zanker, que os relevos mitológicos que decoram os
sarcófagos greco-romanos não simbolizavam esperanças religiosas sobre o além,
mas os diversos sentimentos que podiam suscitar a morte ou a lembrança do de-
funto, suas qualidades ou a boa vida «báquica» que levara e também os banquetes
funerários (tal como as representações de banquetes nas catacumbas). Ver o livro
fundamental de P. Zanker e B. C. Ewald, Mit Mythen leben: die Bilderwelt der römi-
schen Sarkophage, Munique, Hirmer, 2004.
361. Satires, II, 149-152: «les enfants eux-mêmes n’y croient pas». Mencionar que um
flagelo ou um capricho são novidades, um vício moderno, é consubstancial à sátira
antiga e a essa forma moderna de sátira de certa «sociologia» popular.
362. Non posse suaviter vivi, XXV (Moralia 1104 B) e XXVII (1105 A).
363. Exceção que confirma a regra, as últimas linhas do Heroïkos de Philostrate, em que
um erudito sensível ao povo narra crenças folclóricas.
134 O IMPÉRIO GRECO-ROMANO

364. Na Consolation à Marcia, XIX, 4-6, Sêneca diz que os relatos sobre o além e a
sobrevivência da alma eram fábulas. Marcia devia consolar-se com a morte de seu
filho.
365. Salluste, Catilina, LI, 20.
366. Isso se encontra em outros textos; lembro-me de uma Upanishad que dizia que
crer na sobrevivência era uma superstição. Mas os Upanishad eram textos para
eruditos.
367. Na Revue européenne des sciences sociales, 41, 2003, p. 94.
368. O padre Huc, em seus célebres Souvenirs d’un voyage dans la Tartarie, le Thibet et
la Chine, pergunta um dia, a um mandarim que acabara de oferecer uma suntuosa
refeição diante do caixão de um defunto, se ele pensa que os mortos têm neces-
sidade de se alimentar. O mandarim indaga ao padre Huc se ele o toma por um
insensato e acrescenta que ele só faz isso «pour honorer la mémoire de ses amis,
leur témoigner qu’ils sont toujours vivants et qu’on aime encore à les servir comme
s’ils existaient. Parmi le petit peuple on raconte beaucoup de fables, mais qui ne
sait que les gens grossiers et ignorants sont toujours crédules?». Mesma história
em A. R. Radcliffe-Brown, Structure et Fonction dans la société primitive, p. 232;
a um australiano que faz a mesma pergunta do padre Huc, um chinês responde:
«D’après votre question, je suppose qu’en Australie vous mettez des fleurs sur la
tombe d’un mort parce que vous croyez qu’il aimera sentir leur parfum?» Ainda
melhor, em 1898, o vice-rei do Hou-Koang escreveu: «Les Européens honorent
leurs morts, comme nous faisons nous-mêmes, car l’acte de placer des fleurs sur
les tombes est considéré par eux comme une marque de respect envers les morts»
(Tchang Tche-T’ong, Exhortation à l’étude, traduzido do chinês por J. Tobar, Xan-
gai, 1898, p. 5).
369. O filósofo Wittgenstein dizia que o «seixo-enfermo» extraído por um medicine man
australiano do corpo de um doente só tem o nome em comum com um seixo do ca-
minho. A árvore mencionada em um mito grego, que conta como Apolo metamor-
foseia Dafne em loureiro, não é a mesma que o louro de um botânico nem o loureiro
mencionado pelos horticultores que o cultivam. Do mesmo modo, diz, em outra
passagem, que ouvir vozes sobrenaturais não é a mesma coisa que escutar vozes
reais: no primeiro caso, subtende-se que só o destinatário as ouve, as outras pessoas
presentes não (Fiches, n. 717). Existe, portanto, um domínio de verdade que é pró-
prio à teologia (Recherches philosophiques, § 1, 16 e 373); se alguém afirma acreditar
no Julgamento final e que um interlocutor lhe responde: «Je n’y crois pas, parce qu’il
n’y a aucune raison d’y croire», essa réplica é uma linguagem falsa, porque aquele
que crê no Julgamento «se meut sur un plan complètement différent» (Leçons sur la
croyance religieuse) daqueles dos raciocínios (e mesmo de seus desejos: o paraíso não
é um lugar no qual se desejaria entrar hic et nunc, morrendo mais rápido).
370. A indistinção pré-verbalização faz com que o agente e o paciente, o ativo e o
passivo, não se distingam: a Morte é um esqueleto (uma morta) e é falsa (é uma
assassina). O horror pelo sangue derramado ou a violação envolve a vítima, assim
como o culpado: é o horror pelo fato em geral. E os deuses, com freqüência, são
representados empunhando uma taça de libação; não significa que prestem culto
a si mesmos, como se acreditava, ou que dêem exemplo dele, mas que o deus e o
fiel não se distinguem ainda: tudo isso é santo, globalmente. Ainda em nossa lin-
guagem, um «mauvais goût hurlant» não grita, mas provoca o grito. Cf. «Images de
divinités tenant une patère», Metis, V, 1, 1990, pp. 17-28.
371. L. Wittgenstein, Remarques sur «Le Rameau d’or» de Frazer, trad. Lacoste, Lausan-
ne, L’Âge d’homme, 1982; reimpresso em 2000 no n. 6 da revista Agone, com um
comentário de J. Bouveresse.
N OTAS 135

372. É possível quando uma autoridade espiritual que toma as racionalizações dou-
trinais ao pé da letra impõe a inumação, por exemplo, ou proíbe a cremação.
Razões materiais podem também influenciar a mudança das práticas funerárias;
na Antiguidade, os ricos adotavam a inumação porque os sarcófagos eram caros.
Mas, normalmente, um costume funerário é obedecido pela simples razão de que
é o costume, que «c’est comme cela que l’on fait chez nous», mesmo se contradiz
a sensibilidade (como faz a cremação: mas não se pensa nisso, visto que o costume
impera). As mudanças ocorrem quase sempre devido a fatos de sensibilidade pro-
fundos e «irrationnels» que surgem um dia ao fim do peso sociológico do costume;
ao perguntarmos a nossos contemporâneos sobre a preferência pela inumação ou
cremação, ouvimos às vezes uma alegação de repugnância pela putrefação ou, ao
contrário, um horror pelo auto-de-fé. Essa sensibilidade explica, de modo plausí-
vel, o horror (mal documentado) dos primeiros cristãos à cremação. Horror que os
fiéis simples racionalizam pelo medo de que a cremação impedisse a ressurreição
do corpo. Tertuliano zomba dessa ingenuidade (ridebo vulgus), mas compartilha a
sensibilidade que ela racionaliza; a piedade cristã, escreveu, poupa não só a alma
(que deixou o corpo), mas o próprio corpo, em relação ao qual não se deve «être
cruel, car un être humain ne mérite pas que son corps soit condamné à suppli-
ce pénal»; que absurdo os pagãos que «brûlent atrocement les défunts, puis les
nourrissent grassement» (De anima, 51, e De resurrectione, 1, citados por A. von
Harnack, Die Mission und Ausbreitung des Christentums, op. cit., p. 191, n. 3).
373. Eis aqui um exemplo de crença verdadeira, que devo a uma testemunha ocular:
se alguém pensa que está sendo perseguido por um demônio (ele crê nos demô-
nios, pois todos falam deles na sociedade em que vive), atravessará correndo um
caminho bem em frente de um automóvel, na expectativa de que o demônio que
o segue como sua sombra seja esmagado pelo carro, correndo o risco de ser atrope-
lado. Assim se fazia na Indochina francesa. Era uma ação em conseqüência de uma
verdadeira fé; do mesmo modo, acreditamos nos micróbios e nos vírus, visto que
injetamos soros e vacinas. Wittgenstein distingue as condutas sem crenças, essas
reações irrefletidas, de representações falsas (ou verdadeiras: vírus, demônios) em
virtude das quais praticamos certas condutas.
374. Wittgenstein dá o seguinte exemplo: «Lorsque je suis furieux contre quelque cho-
se, je frappe quelquefois avec mon bâton contre la terre ou contre un arbre, mais
je ne crois tout de même pas que la terre soit responsable ou que le fait de frapper
puisse avancer à quelque chose. Ce qui compte, c’est seulement la similitude de
cet acte avec un acte de châtiment, mais il n’y a rien de plus à constater que cette
similitude: não se deve supor uma superstição bizarra que explicaria meu gesto.»
Escreveu também: «Brûler en effigie, embrasser l’image d’une bien-aimée. Cela ne
repose naturellement pas sur la croyance qu’on produit un certain effet sur l’objet
que l’image représente. Cela vise à procurer une satisfaction et y parvient effecti-
vement. Ou plutôt cela ne vise rien: nous agissons ainsi et alors nous éprouvons un
sentiment de satisfaction.»
375. Ainda no século XVIII, longe de qualquer crença religiosa, cortava-se o corpo de
grandes homens para repartir os pedaços; se minha memória é boa, o coração de
Voltaire, posto em uma urna, está na Academia Francesa.
376. Sénèque, o coro das Troyennes, 371-408, tem verdadeira qualidade poética.
377. Fragmento 297 Diels, citado por M. Nilsson, Geschichte der griech. Religion, op.
cit., I, p. 816, que, contra Diels, traduz kakoperagmosynè por «mauvaises actions»,
como também J.-P. Dumont em sua tradução dos pré-socráticos (Paris, Gallimard,
col. «Bibliothèque de la Pléiade», 1988).
378. Sénèque, Consolation à Marcia, 19, 4; Lettres à Lucilius, 24, 18, e 82, 16.
136 O IMPÉRIO GRECO-ROMANO

379. Cícero, De natura deorum, I, 31, 86: «Il y a des milliers de voleurs, or ils ont la mort
devant les yeux.»
380. Por exemplo, os mártires cristãos e os atuais kamikazes muçulmanos eram e estão
provavelmente convencidos de se encontrar no paraíso; entretanto, o impulso de
morrer em um paroxismo não advinha dessa representação, à qual milhares de
seus correligionários são convencidos (na medida em que se pode estar no além
de outra forma que em moods); ele ocorre em razão da «pulsion christique», de
um fantasma que lhes é particular, da embriaguez de se imolar e de se desfazer
em um acontecimento ou fato diverso paroxístico e «sublime» (ver a nota 352),
nos horrores da arena ou de um atentado. Não são psicóticos: essa pulsão pouco
comum, sem ser muito rara, não impede que seja «normal»; Georges Bataille, que
não está entre meus escritores preferidos, mas que testemunhou utilmente esse
sentimento que os medievalistas também conhecem. Sobre os mártires cristãos,
Lucien generaliza de maneira tendenciosa quando diz que «la plupart d’entre eux
se livrent volontairement» (Mort de Pérégrinus, 13). A realidade do martírio procu-
rada, voluntária, não é menos indiscutível e os textos que a provam são numerosos;
ao relatar para outras igrejas o martírio de Polycarpe, a comunidade de Esmirna
apressa-se a acrescentar que ela não aprova «ceux qui vont d’eux-mêmes au mar-
tyre», pois «ce n’est pas ce qu’enseigne l’Evangile» (Martyre de Polycarpe, 4); um
século e meio mais tarde, o cânone 60 do concílio de Elvira determinará que, se
alguém quebrar ídolos a fim de ser supliciado, não seria reconhecido como mártir
(A. von Harnack, Die Mission und Ausbreitung des Christentums, op. cit., p. 304).
Em relação a esses fatos muito conhecidos, A. D. Nock, Conversion, op. cit., pp.
197-202; E.R. Dodds, Païens et Chrétiens dans un âge d’angoisse, op. cit., p. 152, n.
2; G. W. Bowersock, Martyrdom and Rome, Cambridge, 1995 (Rome et le Martyre,
trad. Dauzat, Paris, Flammarion, 2002, cap. 4, pp. 91-112: «Martyre et suicide»);
A. R. Birley, «Die ‘freiwilligen’ Märtyrer: zum Problem der Selbst-Auslieferer»,
em R. von Haehling (dir.), Rom und das himmlische Jerusalem: die frühen Christen
zwischen Anpassung und Anlehnung, Darmstadt, 2000, pp. 97-123.
381. Platon, République, I, 330 E-331 B.
382. Ibid., 331 B.
383. Id., Phédon, 118 A. Sócrates demonstra, em relação a Asclépio, a devoção de um
homem honesto e não quer dizer de modo algum, como precursor do neoplatonis-
mo, que a vida é uma doença do corpo da qual a cicuta o libertaria. O Sócrates das
últimas páginas da Apologie de Socrate, mais próximo da realidade histórica que a
do Phédon, dizia não saber se a morte era o fim de tudo ou se existia um além.
384. Nicolau de Damasco, fragmento de sua autobiografia em C. Müller, Fragmenta
historicorum Graecorum (Didot), III, p. 348, fr. 1; e em F. Jacoby, Die Fragmente
der griech. Historiker, II, A, n. 90, p. 420, fr. 131. Citado por U. von Wilamowitz,
Platon, II, p. 58; cf. I, p. 178, n. 1.
385. Ulpiano, Digeste, L, 12, 2, 2: «si decimam quis bonorum vovit [...]. Voti enim obli-
gationem ad heredem transire constat». Se Nicolau de Damasco fosse um cidadão
romano e herdeiro de seu pai, teria sido autorizado por Ulpiano a consagrar a Júpi-
ter o defumador. Ou seja, nenhuma sanção é prevista e suponho que essa cláusula
autorize um herdeiro escrupuloso a deduzir o custo da promessa da quantidade
da herança a redistribuir entre legatários e co-herdeiros eventuais. Além disso, em
nossa opinião, tal como no caso do herdeiro, o direito não obriga aquele que con-
tratou uma promessa de executá-la: Ulpiano tem o cuidado de precisar que não
basta que um homem prometa a um deus de lhe consagrar um de seus bens para
que esse bem cesse de lhe pertencer aos olhos da lei, pois ele torna-se sagrado (L,
12, 2, pr. e 2) e deixa, por conseguinte, de pertencer à herança futura; esse bem
N OTAS 137

só se tornará sagrado se o herdeiro decidir consagrá-lo aos deuses. O direito não


quer interferir: o herdeiro receberá a herança, mesmo sem a consagração. Um caso
diferente é quando um testador lega uma herança ou um legado mencionando por
escrito uma condição (religiosa ou não), como «si mon héritier monte au Capito-
le» ou «si un navire arrive de Rhodes» (Digeste, XXXI, 1 e 3; XXXV, 1, 2 e 29;
XXVIII, 5, 60 [59], 5, e 68 [67], assim como 69 [68]): nesse caso, o herdeiro deve
cumprir o prescrito para obter a herança. No tocante a essas promessas executadas
pelos herdeiros, Suétone, Auguste, LIX: «des pères de famille disposèrent en leur
testament que leurs héritiers devraient mener des victimes au Capitole en se fai-
sant précéder d’une pancarte, pour s’acquitter en leur nom de leur vœu de laisser à
leur mort Auguste vivant»; sobre um altar funerário do Vaticano, vê-se uma viúva,
precedida de um carregador de cartaz, que cumpre, assim, uma promessa de seu
marido falecido (P. Veyne, «Titulus praelatus», Revue archéologique, II, 1983, pp.
281-300).
386. Ver o resumo epigráfico de Susan Guettel Cole, «Voices from beyond the grave:
Dionysos and the deads», em H. T. Carpenter e C. Faraone (dir.), Masks of Diony-
sos, Nova York, 1993, p. 280.
387. CIL, VI, 142; F. Cumont, Les Religions orientales dans le paganisme romain, 1929,
p. 306, n. 25; R. Turcan em seus clássicos Cultes orientaux dans le monde romain,
op. cit., p. 320. Citamos sua tradução.
388. Ver os epitáfios que traduzimos no cap. 3, nota 59.
389. Lactance, Institutions divines, IV, 3: «deorum cultus non habet sapientiam, quia nihil
ibi discitur quod proficiat ad mores excolendos vitamque formandam».

Você também pode gostar