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José Luiz Rangel • Vanessa Rodrigues • Nicolas Peixoto • Isabel Arcoverde

Introdução à arqueologia do conceito de ficção: considerações


sobre a Antiga Musa, de Jacyntho Lins Brandão.

Primeiramente, agradecemos ao Departamento de Letras Clássicas e Orientais


por dar acolhida à comunicação dos resultados, ainda incipientes, desta pesquisa que se
realiza, desde 2022, pelo grupo de estudos “Ficção e World Literatures”, coordenado
pelo Professor João Cezar de Castro Rocha, no âmbito da Pós-gradução em Letras, da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). O objetivo deste trabalho é,
portanto, apresentar brevemente a obra Antiga Musa: arqueologia da ficção (2015
[2005]), de Jacyntho Lins Brandão, professor titular de Língua e Literatura Grega, da
Faculdade de Letras da UFMG. Para os fins desta apresentação, nos dedicamos à análise
da figura da musa e do conceito de verossimilhança, que aparecem, na obra de Brandão,
articuladas em estruturas triádicas. A primeira delas é apresentada pelo tripé musa,
poeta e público, do qual surgem outras triangulações, tais como a que relaciona verdade,
mentira e verossimilhança. Portanto, os dois vértices acima citados (musa e
verossimilhança) servirão aqui como fio condutor deste trabalho, que visa uma entrada
específica na obra em tela.
No Prólogo de Antiga Musa, Brandão apresenta de modo resumido a questão
que se dedicou a investigar. Trata-se, portanto, de “examinar as condições que
motivaram o surgimento das teorias sobre a literatura na Grécia, concentrando-se em
seus princípios” (BRANDÃO, 2015, p. 16). Brandão opera com o conceito de “poéticas
implícitas”, retirado da obra de Earl Miner (1927-2004), como método de análise que
reflete de modo metalinguístico e metaliterário sobre o conjunto mais arcaico de textos
que recebemos da tradição grega antiga: as obras de Homero e Hesíodo. Nas palavras
do próprio autor, “uma investigação dos primórdios da reflexão poética na Grécia”
(Ibid., p. 16). Além disso, a noção de “arqueologia”, anunciada no subtítulo da obra,
interessa ao autor “nos três sentidos de arkhé: começo, princípio e poder” (p. 16).
Justifica-se, assim, o deslocamento de Platão e Aristóteles – locus classicus da
reflexão teórica inicial em torno da literatura – para Homero e Hesíodo. Entretanto,
antes de proceder com este movimento, Brandão trabalha as diferenças entre teoria e
crítica, tendo sempre em vista que não se trata de tomar partido de uma em detrimento
da outra. Além disso, para o autor é importante ter em vista que em todo esforço teórico

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há algo da crítica, assim como em todo esforço crítico há também elaborações teóricas.
Cabe à teoria construir modelos com base na experiência, devendo ser ela tratada como
um produto lógico que se constitui “no nível do discurso, ou do lógos” (Ibid., p. 12),
cuja função, como observa Brandão, “é elaborar modelos explicativos para os
fenômenos” (Ibid., p. 13). Assim, o autor conclui que a teoria apresenta “duas
características indispensáveis: estar aquém e além desses fenômenos” (Ibid., p. 13). Por
outro lado, há aquilo que Brandão relaciona mais especificamente ao trabalho da crítica,
que não se ocupa de generalizações, antes se apoia em casos particulares. Esse aspecto
torna-se evidente para quem se ocupa de estudar a obra homérica que, segundo
Brandão,
“sabe avaliar bem o que isso quer dizer, não devendo ser esquecido que a crítica nasceu,
no mundo helenístico, justa e principalmente a partir de problemas que levantam os
poemas homéricos, do ponto de vista filológico, linguístico, poético e exegético, ou,
dizendo de outro modo: das exceções ao que se julgava ser a regra homérica” (Ibid., p.
15).
Brandão, portanto, encontra em Homero e Hesíodo uma preocupação no que se
refere ao labor poético. Desde Homero percebe-se que a relação musa-poeta não se dá
pela subordinação de uma parte pela outra. O autor defende a existência de um modelo
de cooperação ao expressar, no primeiro capítulo do livro, noção que será norteadora
para sua investigação: “Sem o poeta não há poéticas” (Ibid., p. 21). Porém, nesse
momento inaugural, escolhido por Brandão, a figura do poeta ainda não existe, ou pelo
menos ainda não atende por esse nome. Se em Homero e Hesíodo ainda não se
concebem os termos “poietés (nome do agente), poíesis (nome da ação) e poíema (nome
do resultado da ação)” (Ibid., p. 22), no entanto – o autor pondera –, já se conhece “o
verbo poieîn, fazer, cujos significados têm impacto nas noções posteriores de poeta
enquanto fazedor ou produtor, da poesia como feitura ou produção e do poema como
feito ou produto (Ibid., p. 22).
Como veremos, se em Homero o poeta ordena à musa que cante, em Hesíodo a
cena de enunciação é alterada: a iniciativa do canto não é mais do
poeta/narrador/enunciador, mas das próprias musas. Se por um lado, em Homero, as
musas proclamam verdades, cabendo ao poeta saber ordená-las da forma mais ou menos
conveniente, em Hesíodo um novo problema se apresenta. E ele ganha corpo no prólogo
da Teogonia, quando as musas cantam, em primeira pessoa, saberem dizer muitas
mentiras semelhantes a fato, mas também proclamarem a verdade. Esta tensão será aqui
tratada a partir de exemplos retirados das obras de Homero e Hesíodo, em que
diferentes cenas de enunciação formam uma matriz de possibilidades narrativas, que

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uma vez dispostas em perspectiva arqueológica nos ajudam a pensar o estatuto da


ficção.
A partir do capítulo 2 intitulado Canta Musa, Brandão dedica maior destaque à
figura da musa, sobretudo, para discutir o estatuto do poeta, do poema e do poético. A
palavra musa retoma a mitologia grega. As Musas eram as filhas de Zeus, o rei dos
deuses, e da titânide Mnemosine, a personificação da memória. A partir da união,
Mnemosine deu à luz nove Musas. Elas resguardavam os conhecimentos do passado, do
presente e do futuro cantando-os junto a Apolo. As musas presidiam as ciências, as
letras e as artes liberais, bem como eram responsáveis por inspirar e guardar os seres
humanos que trilhassem o caminho da buscar pelo saber. Ao longo da história, as musas
se popularizariam como símbolo da inspiração daqueles que têm a criação como missão
de vida, os chamados posteriormente, poetas. Eram elas: Terpsícore (dança), Erato
(poesia lírica), Euterpe (música), Polímnia (música sacra), Melpômene (tragédia), Tália
(comédia), Calíope (Eloquência), Clio (História) e Urânia (Astronomia).
Desde a própria Grécia Antiga, segundo Brandão, o estatuto do poeta, do poema
e do poético é problemático. Tal fato revela a “necessidade recorrente de representar o
lugar do primeiro, explicitar os processos de composição do segundo e indicar as
finalidades dos diferentes gêneros de poesia" (Ibid., p. 29). A questão não se refere
apenas ao conteúdo em si, mas, sobretudo, à própria enunciação. O princípio clássico de
representação da relação poeta, musa e público o qual o inspirado pela Musa, canta a
palavra, a “verdade”, enquanto o público escuta-o para seu deleite, ao que parece, não é
a única estrutura representativa possível. Há outras possibilidades de arranjos. Os papéis
desempenhados, bem como as relações estabelecidas entre os três não são fixos. Isto é,
há tipos distintos de aedos que articulam, portanto, formas específicas de arranjo do
triângulo (poeta-musa-público). E os poemas homéricos despontam como laboratório de
possibilidades narrativas para nossa apreciação.
Nessa seção, o aspecto basilar da discussão reside na compreensão das
possibilidades de relação entre o poeta e a musa. Trata-se, mais especificamente, da
investigação do “quanto o poeta pode deslocar-se da Musa”, bem como da constatação
de que “cooperar com ela não implica assumir uma posição subalterna” (Ibid., p. 46).
Para tanto, o autor discute passagens em Homero pertinentes a três aedos, Tâmiris,
Demódoco, Fêmio e Aquiles.
No que tange a Tâmiris, na Illíada, aponta-se que era um “cantor que teria
rompido a cooperação com as Musas” (Ibid., p. 50). Isto é, ele desafiou as musas,

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vangloriando-se, “julgando vencer, se, caso as próprias Musas cantassem” (Illíada, II,
597-598). Como castigo, o Tâmiris ficou cego e privado do canto. Na Odisseia, tem-se
Demódoco, o modelo ideal, “o ponto de partida da imagem tradicional do aedo” (Ibid.,
p.51), ou seja, o exemplo clássico de aedo que canta com as musas. Já Fêmio, também
presente na Odisseia, expõe uma situação singular. Fêmio é um aedo que canta forçado.
Ele é coagido a cantar pelos pretendentes de Penélope contra a vontade da dona da casa.
E por fim, tem-se Aquiles, na Illíada, um herói que canta para ele próprio a fama dos
heróis para alegrar o espírito. Com efeito, o que Brandão ratifica é a existência de
quadros complexos envolvendo a figura do aedo, sua relação com as musas, e o papel
(substancialmente ativo) do público na composição de dada tríade.
Retomando a figura de Demódoco, tem-se o caso exemplar da harmonia entre
aedo e musa. Ele canta ordenadamente, em grego, katà kósmon. Demódoco canta com
perfeição o episódio do cavalo de madeira, de modo a emocionar todos os ouvintes. Seu
talento se dá justamente devido à excelente relação com as musas, daí o caráter de
ordem e de verdade do seu canto. Se a Musa ensina a cantar ordenadamente (katà
kósmon), em Homero há a distinção entre cantar em boa ordem, de forma conveniente
(eû katà kósmon) ou cantar desordenadamente, de forma inconveniente (oû katà
kósmon). Logo, ao que parece, o conteúdo de verdade está relacionado à ordenação e à
harmonia do que se conta.
No entanto, enquanto Homero nos mostra que a Musa ensina a cantar a verdade,
por outro lado, isso é problematizado em Hesíodo pelas próprias musas, que afirmam:
“sabemos muitas mentiras dizer a fatos semelhantes / e sabemos, quando queremos,
verdades proclamar” (Teogonia, 27-28, tradução de Torrano com alterações de
Brandão). Desse modo, o que caracterizaria um enunciado como verdadeiro ou falso?
Qual seria a garantia de que o que se ouve é verdade?
Para tanto, faz-se necessário compreender a distinção entre aletheia gerúsasthai
e pseúdea pollá légein etymoisin homoîa. O primeiro diz respeito às verdades a
proclamar enquanto o segundo se refere a dizer mentiras semelhantes à verdade. A
última forma é significativa, pois sugere uma possível definição antiga de ficção. Trata-
se da abertura de um novo campo semântico a partir da disposição dos termos gregos
eteós/étymos (autenticidade/verdade) em oposição a pseudés (mentira). Daí, surge a
possibilidade de um novo tripé: eteós, pseudés e pseúdea etymoisin homoîa. Ou,
respectivamente: a verdade, a mentira e a verossimilhança. Teríamos, então, ao que se
sugere, a aurora da ficção.

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Assim, somos levados ao que Brandão (Ibid., p. 80) classifica como “caráter
fictício do enunciado”, pois há de se levar em consideração as diversas formas de contar
histórias (ou “fatos memoráveis”). Surge, então, a inquietação: toda narrativa, para ser
ordenada, conveniente e verdadeira, prescinde de uma relação do poeta com a Musa?
Nesse contexto, há os casos singulares de dois “contadores” em Homero: Helena e
Ulisses. Esses personagens parecem estar no campo dos narradores que, apesar de não
serem ensinados pela Musa (característica do aedo), são capazes de contar um relato de
forma ordenada e conveniente, o que sugere também um conteúdo de verdade.
No caso específico de Helena, ela discursa para uma plateia, em busca de
apaziguá-los, e escolhe o episódio do cavalo de madeira. Para ser convincente, sua
narrativa se relaciona com a recepção, assim como a de Demódoco, mas ela utiliza
“coisas semelhantes”, além do phármakon com vinho, buscando reproduzir o efeito do
canto do aedo. Sua narrativa é composta de “coisas razoáveis ou convenientemente
contadas”, com ordenação “confirmada por Menelau” (Ibid., p. 100): seu discurso é uma
adaptação, uma narrativa adaptada ao acontecido, que Menelau reconhece como
semelhante. Ou seja, ela lança mão de recursos dos aedos e marcas de veracidade para
convencer os ouvintes de que narra o que ocorreu. Já Ulisses seria considerado “o
melhor contador de histórias”, ou ainda, o “príncipe e mestre” tanto dos poetas quanto
dos historiadores, segundo Luciano (apud Ibid., p. 105). Essa colocação nos leva a
pensar na célebre passagem de Aristóteles, em sua Poética, quando o pensador discute
sobre a história (o que ocorreu) e a poesia (o que poderia ter ocorrido), ilustrando o
papel de Ulisses como narrador: ele parece capaz de transitar entre as pseúdea
etymoisin homoîa (as “coisas semelhantes à verdade”, ou, pensemos, a
verossimilhança), pois é “historiador” (conta a experiência) e narrador (como se vê no
conto cretense, em que mistura entrechos “verdadeiros” com inventados, fazendo se
confundirem real e ficção), apresentando assim uma “técnica narrativa”.
Desse modo, Helena e Ulisses não são aedos, mas são capazes de, sem o auxílio
da Musa, contar fatos ordenadamente, semelhantes ao que ocorreu, adaptados à verdade,
causando assim um efeito de convencimento equivalente aos discursos verdadeiros.
Portanto, as estratégias utilizadas por Helena e Ulisses sugerem uma espécie de
deslocamento entre “mentira” e “verdade”, culminando no que podemos classificar
como verossimilhança. Assim, o que chamamos ficção pode ser entendido como
enunciado estruturalmente instável, pois depende do leitor/ouvinte.

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Brandão parte do dilema de Helena para iniciar sua busca epistemológica sobre a
verdade, porque é preciso examinar. A personagem da história homérica precisa decidir
se dirá a verdade ou uma mentira. A Partir disso, a pergunta que emerge é sobre o valor
que se não se supõe de antemão que o discurso seja verdadeiro? Note-se que desta
formulação, deve-se excluir a mentira que é contada para salvar a própria vida, a
chamada mentira justificada ou útil.
A diferença que se vê na compreensão do que seja verdade para as diferentes
culturas, sinaliza que há algo a mais a se depreender do binômio verdade-mentira e que
mais elementos possam implicar nesta relação. Para Brandão, está claro que não existam
somente os dois polos verdade-mentira, mas há uma gradação que precisa ser
investigada e analisada. Neste ponto, também é preciso entender onde se localiza a
verossimilhança apontada no capítulo 3.
Mesmo em Aristóteles é possível perceber que há uma compreensão de algo que
estaria entre o binômio verdade-mentira que seria aquilo que aparenta ser. Sim, porque
há coisas que não se classificariam exatamente como verdade ou mentira, já que
estariam no campo dos sonhos ou da ilusão, por exemplo.
Com Tomás de Aquino, Avicena e Averrois, é possível identificar três
elementos que implicariam na concepção da verdade. O primeiro, diz respeito a
“verdade da coisa”, que diz respeito àquilo que a coisa é. Esta “verdade da coisa”
precisa ser apreendida pela inteligência, alcançando uma nova formulação que seria a
“verdade da inteligência” que, por sua vez, ao ser expressa, culminaria na “verdade da
proposição”. Note-se então, que o grau de verdade de um discurso dependeria da
adequação destes três elementos ente-intelecto-enunciado. Já a pseudos seria uma
inadequação total ou parcial destes três elementos. Ou seja: erro ao falar de algo ou
porque não o compreendo ou porque foco o que ele aparenta ser.
A questão que se levanta a partir disso é a intenção de quem fala, pois esta
interfere no resultado do discurso. O foco aqui já não está no enunciado, mas na
enunciação, pois há aqueles que deliberadamente querem mentir, sem qualquer
justificativa. Por outro lado, há os que mentem sem querer, ou com alguma justificativa.

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