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M EN D IL O W , A dam A b rah am — O tem po e o romance. (T rad.

de Flávio
W olf. Supervisão, prefácio e nota final de D ionísio de Oliveira T o ­
le d o ) . P o rto Alegre, G lobo, 1972.

P ara M endilow, o tem po é o tem a fundam ental do século X X ; e o tra ­


tam ento a ele dado é um dos elementos fundam entais da estrutura de qual­
quer ro m an ce. E nquanto arte, o rom ance é um a das form as mais adequadas
p ara se expressarem as sensações, angústias e concepções dos hom ens diante
do tem po, já que a fo rm a de seu conteúdo, se assim se pode falar, é sem pre
a passagem dos hom ens de um a situação p ara o u tra .

O livro de M endilow destina-se a m ostrar com o o rom ance pôde ou pode


atingir esse status em relação ao tem po: o de ser um a das artes que m elhor o
expressa. O rom ancista trab alh a com um medium (a linguagem ) discreto e
sujeito “aos três grandes princípios do tem po: consecutividade, transitoriedade
c irreversibilidade” Assim sendo, com o consegue o rom ancista reproduzir a
im ensa riqueza tem poral da m ente e da vida hum anas, cheias de recordações,
antecipações, idas e vindas fantasiosas ao longo do tem po, enquanto este con­
tinua a correr, inexorável, fo ra do hom em , no relógio, no sol, no universo?
M endilow não dá um a resposta unívoca ao problem a, mas sugere que, quanto
m elhor o escritor souber, na prática, responder a esta pergunta, tanto m elhor
será seu rom ance.

O tem po e o romance divide-se em três partes: “ O problem a geral”, “A


teoria” e “A p rática” N a prim eira, o autor faz um levantam ento da im por­
tância do problem a tem po p ara os hom ens contem porâneos. N a segunda, rea­
liza m inuciosa análise da com plicada tram a que relaciona autor, leitor, per­
sonagem , texto, linguagem no instante mágico da leitu ra. N a terceira analisa
soluções de ordem prática que rom ancistas deram p ara os problem as do rela­
cionam ento entre tem po e ficção, em particular as de Tristam Shandy,, de Ster-
ne, e das obras dc V irgínia W oolf. O texto dá m ostra d a expecional erudição
de seu autor, tanto em term os de teoria do rom ance ou poética, com o em
rom ances propriam ente d itos.

N a prim eira p arte de seu livro, M endilow constata que os hom ens não
vivem m ais em um universo, mas sim em um multiverso conturbado por su­
cessivas crises de valores, notáveis descobertas científicas, um culto nem sem ­
pre justificável da rapidez e da velocidade. N esta vida, com portam -se todos,
diz ele num a im agem m uito britânica, com o se estivessem prestes a to m ar o
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últim o gole da cerveja antes que se feche o bar “p ara sem pre” C onstatando,
com H enry Jam es, que o rom ance é “a mais independente, a mais elástica, a
mais prodigiosa das form as literárias” (1 ), M endilow vê, nele, o principal
meio lingüístico de expressão p ara as angústias, inquietações e conquistas do
hom em em relação ao tem po.

Em “A teoria”, a preocupação do au to r foi a de esgotar o assunto das


lelações e do papel do tem po na estrutura de um rom ance. E ntram em cena,
i:ssim, desde o com plexo relacionam ento entre tem po e linguagem até o rela­
cionam ento — talvez mais prosaico, m as certam ente não m enos com plexo —
do escritor com o m ercado e com as casas editoras. U m rom ancista que viva
do que escreve, e trabalhe sob contrato, im porá à sua obra um ritm o diferente
do que aquele que escreva por “diversão” A o mesm o tem po, a consciência
de que o rom ance trabalha um mcdium descontínuo p ara produzir a im pres­
são de continuidade criou problem as técnicos novos p ara os autores. Partindo
das observações de Bergson sobre a duração ( durée) tem poral, M endilow d e ­
bate a validade e o alcance da palavra com o meio de com unicação, as trans­
form ações po r que passaram a estrutura e o enredo de um rom ance na p ri­
m eira m etade do século XX, p ara concluir que o objetivo rom anesco não po­
de ser o de reproduzir a realidade, mas sim o de provocar um a ilusão de
realidade. E m bora nunca o diga explicitamente, M endilow deixa sugerida, com
discrição, sua valorização dos rom ancistas que conseguem m anter, sem qual­
quer im pureza, esta ilusão de realidade, efetivam ente arrancando o leitor de
seu próprio presente e o m ergulhando na riqueza do m undo ficcional.

Em “A p rática”, Tristram Shandy, de Sterne, surge com o o prim eiro fruto


da “revolta” contra os padrões e conceitos que vêem, na vida e na arte, apenas
a rigidez do relógio e da cronologia exterior ao hom em . P ara M endilow.
Sterne abriu ao rom ance os inesgotáveis ritm os da interioridade h u m a n a . C on­
tra e fora do relógio, ele descobriu o livre devaneio da mente, que é capaz
de se m over para frente e p ara trás, no tem po. Esta conquista de Sterne teria
sido retom ada por V irginia W oolf e outros rom ancistas da corrente de cons­
ciência, ou influenciados po r esta técnica, no século atu al. N um a análise pers­
picaz de Orlando, M endilow m ostra que a construção deste personagem her­
m afrodita, que vive entre 1586 e 1928, passando de 16 p ara os 36 anos de
idade, reproduz, a seu modo, o crescimento real de um feto, que em nove
meses de vida reproduz m ilhões de anos de evolução.

N o prefácio, Dionísio de Oliveira Toledo situa a obra de M endilow “no


cam po da ciência literária” Valendo-se de conceitos da Teoria da Literatura,
de René Wellek e Austin W arren, classifica O tem po e o romance com o um a
análise intrínseca de obras literárias, por oposição à análise extrínseca, prati-

(1) H enry Jam es, Prefácio a The Ambassadors.


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cada por Lukács e o u tro s. A ponta, inclusive, a falta de um estudo extrínseco


mais aprofundado sobre o problem a do tem po no rom ance. P or o u tro lado,
vê neste livro um a contrapartida, enquanto técnica de pesquisa, a Conceitos
Fundamentais de Poética, de Em il Staiger, tam bém m arcado pela preocupa­
ção com o tem po, já que vê, no épico, no lírico e no dram ático, “três êxtases
do tem po existencial: passado, presente e fu tu ro ” (Cf. Em il Staiger, Conceitos
Fundamentais de Poética, T em po Brasileiro, 1969) A o invés do ensaio am ­
plo e abrangente do últim o, o livro dc M endilow propõe, com o técnica, a m o ­
nografia lim itada tem aticam ente, m as exaustiva.

D ionísio Toledo conclui seu prefácio colocando um problem a inquietan-


te . O universo de M endilow — correspondente à prim eira m etade do século,
já que a obra se publicou na Inglaterra em 1952 — foi o da absorção do es­
paço pelo tem p o . H oje viveríamos, com o o dem onstraria o estruturalism o, o
m ovim ento oposto: a espacialização do tem po. Paralelam ente, os centros mais
adiantados da civilizaçãa ocidental foram m arcados pela “ruptura da escritu ­
ra burguesa” ; ao invés da literatura, o texto na term inologia de Tel Quel. A
form a-rom ance, prossegue D ionísio Toledo, “só tem vez daqui por diante nos
países ditos subdesenvolvidos” São questões im portantes que, sem dúvida, o
tem po se encarregará de responder.

O tem po e o romance encerra um a série de publicações da E ditora Globo,


de P orto Alegre, de obras sobre T eoria L iterária, planejada por um a equipe
que se organizou em torno da cadeira de T eoria da L iteratura da Faculdade
de Filosofia, na U niversidade F ederal do Rio G rande do Sul .D a série fize-
ia m parte, além deste volum e, os seguintes: Princípios de crítica literária,
de I .A. Richards, O poético, de M. D ufrenne, Teoria da Literatura, coletânea
de textos dos form alistas russos, Aspectos do romance de E. M. F o rster e
Estrutura do romance, de E. M u ir.

C onform e a “N o ta F in al” de D ionísio Toledo, anexa a O tem po e o ro­


mance, havia planos p ara fo rm ar um a nova série de traduções, com obras que
pudessem com plem entar mais diretam ente o estudo da literatura b rasileira. L a­
m entavelm ente, a equipe foi obrigada a interrom per seus trabalhos em 1969.
O tem po, ou os tem pos não lhe foram favoráveis.

Flávio Wolf de Aguiar

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