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O LANCE DE DADOS DE STÉPHANE MALLARMÉ

E A MENSAGEM

Jean Hypronrru

NOTA PRÉVIA: UMA ANÁLISE TEÓRICO-INFORMATIVA


DO LANCE DE DADOS

O estudo de Jean Hyppolite, aqui apresentado em versão


brasileira, é uma das mais importantes contribuições que recen-
temente se fizeram à aquilatação do real significado do poema-
-constelar de Mallarmé perante o pensamento contemporânco.
Quando, no início do ano passado, tive a oportunidade de
escrever sobre a Nova Estética que estava sendo elaborada por
Max Bense (Supl. Literário de O Estado de S. Paulo, 21-3-59 |.
4-4-59), apontei o que me parecia a principal lacuna na fase
crítica, ou de verificação, da estética bensiana: a não aborda.
gem do poema-ápice de Mallarmé, com os instrumentais de mais
alta precisão que Bense procurara colher na teoria matemática
da informação (Shannon & Weaver), na cibernética (Norbert
Wiener), na lingiiística estatística (Miller, Apostel, Mandelbro!)
e tornar operacionais no campo de uma estética em situação,
Esta lacuna, tão carente de preenchimento, veio a ser suprida
com pleno êxito — e ao que parece sem qualquer conexão di-
teta com a obra estético-crítica do filósofo de Stuttgart —. ntra-
vés da comunicação oferecida ao XII Congresso Internacional
de Filosofia, reunido em Veneza em 1958, pelo filósolo fran-
cês Jean Hyppolite, a seguir publicada na revista Les Brtudes
Philosophiques, número de outubro-dezembro 58, que tras 6
subtítulo “Le Langage”.

ns
São os próprios teóricos da informação que abrem seus do-
mínios à investigação estética. Weaver, em apêndice à obra de
Shannon, “The Mathematical Theory of Communicetion”, escre-
ve: “A palavra comunicação será usada aqui num sentido muito
amplo, de modo a incluir todos os procedimentos pelos quais
a mente pode afetar uma outra. Isto, por certo, envolve não
apenas a linguagem escrita e otal, mas também a música, as
artes visuais, o ballet e, afinal, todo comportamento humano.”
Se Bense, agora, do ponto de vista estético, pode considerar a
informação como medida para o grau de ordem, correspondente
a uma distribuição improvável, selecionada, excepcional, original
de elementos, como — no seu estado mais alto — ocorre numa
obra de arte, não será preciso muito esforço de argumentação
pata trazer de imediato à cena o “Lance de Dados” de Mallar-
mé — “essa suprema conjunção com a probabilidade” — como
pedra de toque não apenas de uma nova concepção artística,
mas de uma nova fundação estética por extenso. Max Bense
caminha itresistivelmente em sua teorização para este ponto
de confluência com a idéia mallarmaica (e é por isto mesmo
que a omissão do “Coup de dés” em sua obra constitui uma
surpresa): no 3.º volume da Estética ( Aesthetik und Zivilisation),
dedicado à comunicação estética, o processo estético, como pro-
cesso de signos, passa a ser denominado “constelação”; em sua
“Allgemeine Textheorie” (Awgenblick, 5, out./nov. 58) com-
para ele a passagem da estética clássica para a não-clássica, com
a da física clássica para a não-clássica; na física, “é a passagem
da equação diferencial para a amplitude probabilística”; na es-
tética, “a substituição do conceito de criação pelo de realização,
sendo que a realização deve a sua existência e a sua perceptibi-
lidade à construção de fregiiências e suas posições, à seleção, ao
(se processo que calcula o acaso”; na estética moderna, “não se
irrompe no ser a partir do nada, mas se vai de uma desordem
de alta entropia a uma ordem de alta informação”.
Lançando os dados de sua obra máxima em 1897, no
dealbar do século XX e no cutso da Primeira Revolução Indus-
trial, Mallarmé se recusava a “presumir do futuro”. Não obs-
tante, numa extraordinária prospecção, seu poema-crítico se in-
sere em cheio numa superestrututa ideológica de relações de
que só hoje, mais de sessenta anos depois, começamos a ter uma
consciência mais completa, no mundo da Segunda Revolução In-

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dustrial, a revolução da Cibernética, anunciada por Norbert
Wiener. Nesse poema, condensada em poucas páginas, rarefeita
à mais extrema síntese, está toda uma cosmologia, toda uma cpis-
temologia do homem contemporâneo. Epopéia set e
dialética reduzida ao cidos. Nova “Commedia” — humana,
não divina — onde a razão e o absoluto se enfrentam e se cri-
ticam para se resolverem num lance fulgurante e instantânco,
breve ponto-evento, a obra-constelação, medida do homem, que
não abole, mas incorpora o acaso so seu projeto de existência,
ao seu processo de realização,
Ao “Mallarmé obscuro” — delícia dos caçadores do inefá-
vel — nossa civilização técnica não estará em processo de subs-
tituir um Mallarmé alistado, que, por um lance de dados, há
de ser o seu novo Dante?
HaronDo pt CAMPOS

Posr ScripTUM 1973

Esta nota, acompanhada da versão brasileira do texto de


Hyppolite, foi publicada em 14-8-60, na página “Invenção”,
do Correio Paulistano.
Posteriormente, os meus trabalhos sobre a Nova Estética
de Max Bense, nela referidos, foram incluídos em livro (Meta-
linguagem, Petrópolis, Vozes, 1967; 2.º ed. 1970). Voltei ao
assunto em meu ensaio introdutório à Pequena Estética de
Max Bense (São Paulo, Perspectiva, 1971, pp. 31-34), em tó
pico sobre a “teoria do caos”.
Até 1960 eu já havia feito uma primeira versão do poema
constelar de Mallarmé, versão da qual publicara dois fragmentos
em 1958, no número de agosto do Jornal de Letras, do Rio de
Janeiro, como parte de um estudo intitulado “Lance de Olhos
sobre Um Lance de Dados”. À presente altura, o texto defi-
nítivo dessa tradução já se encontra em vias de publicação, in-
tegrando um volume antológico de Mallarmé, a ser lançado
ainda este ano na coleção “Signos” da Editora Perspectiva.
É desse texto revisto e retrabalhado que extraio as citações in-
corporadas ao trabalho de Hyppolite.

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Quanto a “Le coup de dés de Stéphane Mallarmé et le
message”, gostaria de assinalar que é um ensaio que, nos últimos
anos, tem chamado a atenção da mais exigente crítica francesa,
para a qual, como era de esperar, o poema de Mallarmé passou
à categoria de verdadeiro marco entre os chamados “textos de
ruptura”. Assim, Jacques Derrida, em seu “La double séance”
(La dissémination, Paris, Seuil, 1972), utiliza a noção avan-
çada por Hyppolite de um “matérialisme de Pidée”, para esta-
belecer o “deslocamento” do pensamento mallarmaico em tela-
ção ao idealismo platônico e mesmo hegeliano. Também Julia
Kristeva, “Sémanalyse et production de sens, quelques problê-
mes de sémiotique littéraire à propos d'un texte de Mallarmé:
Un coup de dês... (In A.J. Gteimas, Essais de sémiotique
poétigue, Paris, Larousse, 1972), recorre ao ensaio de Hyppo-
lite, pata concluir que, no texto de Mallarmé, desenha-se uma
contradição, “historicamente situável e explicável: por um lado,
a prática duma análise rigorosa da lógica do significante; por
outto, o enunciado precioso de uma ideologia metafísica que,
na época, sem embargo, ia na confluência da vanguarda do pen-
samento europeu: o hegelianismo.”
H.C.

Sabe-se hoje que Stéphane Mallarmé, desde a crise metafí-


sica de 1866, foi assediado pela idéia duma obra, dum livro
único, que jamais conseguiria concluir. Escrevera a Villiers:
“Pude, graças a uma grande sensibilidade, compreender a cortre-
lação íntima da Pocsia com o Universo, e para que ela fosse
puta, concebi o projeto de resgatá-la do sonho e do acaso e de
justapô-la à concepção do Universo”. Por obra do Dr. Henri
Mondor e de Jacques Scherer, temos agora uma edição de
cerca de 200 folhas de esboços desse livro, e podemos tentar
reconstituir o projeto mallarmeano, que parece ota uma loucura,
ora a aventura espiritual máxima em que um ser humano se
poderia engajar (1). O livro de Mallarmé teria sido a mensa-
gem absoluta, encerrando em seu âmago “o máximo de signi-

(1) J. Scherer Le “Livre de Mallarmé”, prefácio de H. Mondor,


Gallimard, 1957.

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ficação no mínimo de matéria”. Como a Lógica de Hegel, que
Mallarmé certamente não ignotava, essa mensagem teria sido a
revelação do Ser, seu Logos, uma metafísica e uma física do
pensamento. “Tudo no mundo existe para culminar num livro,”
Mallarmé, justificando-se com a prova e a ascese de sua vida,
totalmente consagrada a essa tarefa, poderia dizer: “Iiscrevo,
logo sou”, e acrescentaria que esta existência é ao mesmo tem-
po uma «espersonalização: “Sou agora impessoal e não mais
e Stéphane que você conheceu — mas uma aptidão que tem o
Universo espiritual para se ver e se desenvolver através daquilo
que fuí cu.” (2) Esta mensagem evidencia afinal não ter outro
conteúdo senão sua própria forma, ou seja: o problema da
mensagem, «a própria possibilidade da mensagem; tal mensa-
gem da mensapem seria a Idéia da Idéia.
Imaginemos a Lógica de Hegel transformada na discussão
de si própria, inseparável de sua existência, e se empenhando
todavia em refutar ela própria o acaso e substituílo por uma
necessidade intrínseca: teremos assim uma idéia da tentativa
mallarmeana. Inquanto que em Hegel a Idéia é pressuposta
e a Natuteza não existe senão para lhe permitir aparecer atra-
vés de sum alicnação, em Mallarmé a mensagem é um quase-
“impossível, um milagre que surgiu “do fundo dum naufrágio”
para desaparecer quase inevitavelmente, pois “um lance de da-
dos jamais abolirá o acaso”. A mensagem de Mallarmé é
aquilo que os modernos teóricos da informação opõemà en:
tropia. Num sistema fechado, a entropia sempre cresce, o sif-
tema tende ao acaso puro ou à homogeneidade de distribuição;
pode apenas ocorrer que numa zona singular este crescimento Eo
a go
da entropia seja por um instante evitado, que a otdem exista
PM

em lugar da desordem, o original e o imprevisível em lugar duma


indiferente monotonia. Norbert Wiener estuda a possibilidade
do demônio de Maxwell que, informado do infiniteslmal, tus
penderia esse crescimento inexorável da entropia e essa ma
em direção à morte térmica. Ao fim de certo tempo, o demê:
nio de Maxwell é ele próprio submetido a um movimenta
sordenado que corresponde à temperatuta ambiente, e, como
Leibniz de suas mônadas, “recebe um grande número de pegue

(2) Carta a Cazalis, a 14 de maio de 1867.


nas impressões que o fazem tombar numa espécie de vertigem,
tornando-o incapaz de perceber claramente” (*). De fato, ele
cessa de funcionar como demônio de Maxwell. No entanto,
pode-se passar um intervalo de” tempo realmente apreciável an-
tes que o demônio cesse de estar condicionado para o exercício
de suas funções, e este intervalo pode ser suficientemente longo
para que se possa falar duma fase de atividade durante a qual
o demônio permanece num estado meta-estável. Como o ot-
ganismo vivo e os catalisadores,o demônio de Maxwell pode-
tia assim retardar a queda no equilíbrio estável ou morte, mas
este retardamento, que é uma aquisição de informação,é sin-
gular e ameaçador. A informação ascende por um declive, mas
o declive é fatal.
No poema a que precederam os fragmentos e esboços de
Igitur, Mallarmé deu uma antecipação desse livro com o qual
sonhava. Eis aí o homem, um velho, resistindo vaâmente à
tempestade, sugerida pela tipografia da página; por um instante,
ele domina as vagas evocando antigos cálculos e o vigor de ou-
trora, mas sucumbe “cadáver pelo braço apertado do segredo
que guarda”, e a desordem pura da tempestade o arrebata, ni-
velando tudo, “cortando cerce as ondas” (4). Seja-nos perdoada
a estranha comparação do demônio de Maxwell com o antepas-
sado mallarmeano, cujos “duros ossos” logo se perderão “por
entre as pranchas”, enquanto que em sua desaparição ele talvez
legará seu fantasma, sua sombra espiritual, a luta da pena com
a brancura do papel, mas o que transmitirá será sempre aquele
“ulterior demônio imemorial”. A expressão é o próprio Mallar-
mé no poema; ela acrescenta ao ator artificial de Maxwell uma
dimensão de memória, estranho apelo recíproco do futuro e do
passado, um ulterior e um originário que talvez predigam o ca-
ráter singular dessa mensagem poética ou filosófica confrontada
com aquilo que a cibernética moderna denomina mensagem.

(3) N. Wiener, “A entropia e o demônio de Maxwell, p. 289 de


Cybernétique et societé, Deux rives, 1952. [Trad. brasileira: Cibernética
e Sociedade, S. Paulo, Cultrix, 2.2 ed., 1968.)
(4) Nossas citações são tiradas da edição do Coup de dés de 1914,
sem preocupação de reproduzir a disponição tipográfica. [Ver Nota
Prévia para a versão brasileira.)'

“236
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aves)! rd
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O livro sonhado por Mallarmé, em luta contra o acaso e


as circunstâncias, eternas que fossem, é, como a mensagem da
cibernética, um cálculo infinitamente complexo e minndoso do
máximo possível de informação, opondo-se àquilo que é sem-
pre o mais provável, o estado de acaso puro, desordem e repe-
+ Z

tição a um tempo, “nem mais nem menos, indi temente,


mas tanto quanto”... “Se fosse o número seria o acaso”.
Como um Hamlet, Mallarmé medita toda a sua vida sobre
as possíveis combinações do livro, quer frustrar de antemão as
interpretações que poderiam se ajuntar de fora a um texre: “Aos
melhores espíritos, quantos erros prometidos”; ele imagina, neste
materialismo da idéia, as diversas possibilidades de ler o texto.
encontrando vm número que ultrapasse o milhão na organização
de apenas 10 páginas. Não é sem propósito que falamos de
informação ro sentido mais banal do termo; Mallarmé pensa
nas disposições tipográficas dos jornais, que acentuam ou dis-
persam as informações e por assim dizer as modulam. Ele em-
preende a luta com o acaso tanto na concepção como na inter-
pretação possível que o texto implica virtualmente. Necessita
simultaneamente da forma em sua regularidade e da originali-
dade em sua imprevisibilidade, síntese sem dúvida impossível
das duas ordens bergsonianas; pois aí está a dificuldade da em-
presa e como que o conflito íntimo que ele envolve; uma men-
sagem, uma comunicação devem poder se distinguir por seu
relevo desses ruídos de fundo que são o acaso e a dissipação de
toda mensagem, o desaparecimento dos detalhes em certa escala
sobre a placa sensível ou a agitação inorgânica dos elétrons so
bre a linha. Mas a regularidade e a simplicidade da forma não
são suficientes para constituir a essência da mensagem, é preciso
ainda a originalidade, o aportamento duma novidade que trans-
cenda todo modelo preconcebido. Ora, como distinguir ta” no
vidade dum arbitrário puro? Não há mensagem sem recepção.
ao menos virtualmente concebível, da mensagem, mas o receptor
poderá receber mais do que ele próprio transmitiria?”Apora
platônica, seja como for, nós não podemos conhecer senão re-
conhecendo, e todo aposteriori se funda na forma do a prior:.
não há mais mensagem. Inversamente, todo aportamento cuja
otiginalidade fosse completa faria desaparecer a possibilidade
mesma duma recepção. Pois o que guiou Mallarmé foi a medita-
ção desta aporia no próprio plano da mensagem. A obra que

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não se pode libertar de sua transmissão e de sua recepção (que
é como sua ressonância interna) deve conter em si mesma a
forma e a originalidade, donde esta singularidade aparente que
a faz misteriosa à força de inteligibilidade acumulada, e inteli-
gível à força de mistério, de disparidade e heterogeneidade no
cerne da forma; é uma forma que se inventa a si própria e deve
inventar-se marcando-se como forma, acaso que se faz necessi-
dade abolindo-se como acaso.
Mallarmé deixou-nos no Coup de dés um testemunho de
sua meditação. Mas como discernir nesse poema o que é essen-
cial do que é arbitrário? Quando contemplamos sob este ponto
de vista suas 9 páginas, essa disposição de brancos e negros,
essas inclinações que evocam o abatimento da vela na tempes-
tade, a dispersão dos caracteres que sugere a própria tempesta-
de, enfim a acentuação dos traços que, como na otquestta, per-
mite passar de um jogo de instrumentos ou de um tema a
outro, perguntamo-nos com inquietude se se trata da grafia
dum louco ou dum maníaco, a qual teria podido ainda ser qual-
quer outta coisa, ou da informação por excelência, da mensa-
gem, “o único Número que não pode ser um outro”. Mallarmé
não dissera a Valéry, ao lhe ofertar a obra: ““Tudo isto não
vos parece afinal insensato, um ato de demência?”, No entanto,
é bem assim a mensagem, na medida em que ela tenta, em vão
talvez, arrancar-se ao acaso e inscrever-se contra ele, engendran-
do a significação que não é nem um modelo a priori, nem o
“não importa o quê” surgindo.
Valeria a pena prosseguir a comparação entre toda a teoria
matemática da informação e o tema da mensagem em Mallarmé;
seria preciso insistir particularmente sobre as possibilidades de
receber a mensagem ou de reconstituí-la quando submersa, tra-
balho de arqueólogo, de tradutor ou de exegeta. Da mesma
maneira que, segundo o teorema de Fourier, as mensagens
podem-se acumular em uma mesma linha para em seguida de-
compot-se, poder-se-iam imaginar as superposições de sentido no
seio de um mesmo texto. Guatdamos a preciosa recordação
duma conversa sobre esta comparação com um matemático mo-
derno, leitor devotado de Ux coup de dês.
No entanto, há uma diferença importante entre a teoria
da cibernética e a mensagem de que trata Mallarmé. Esta dife-

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rença torna ainda mais improvável a mensagem que seja filoso-
fia ou poesia. No primeiro caso, cogita-se somente de comuni-
car para governar: “a cibernética é o estudo das mensagens efe-
tivas de comando (...) À mensagem é o que modifica efetiva-
mente o comportamento daquele que a recebe” (*). A ciberné-
tica, desde o início, orientou-se, como seu nome indica, por
essa utilização possível da mensagem, comandando uma ação
eficaz cu uma reação. Todas as mensagens dos komeas 35
máquiras, das máquinas aos homens e das máquinas entre si
destinam-se a representar um papel eficaz no qual se conclui
a mensagem. Uma tal ciência não visa ao cancelamento, à re
constituição da ou à sua amplificação por intermédio
do Gu TE SE E sua conservação momentânea, senão do
pontode vista desse comando e a Mallarmé,
a mensagem é sem fim; é o “ulterior O imemorial” que
não leva senão a sí próprio e talvez à sua sobrevivência gratuita.
“Legado na desaparição a um alguém ambíguo.” Ela sur-
ge somente. com o risco permanente de se engolfar: é um pos-
sível impossível, cuja única finalidade é repetir-se numa acepção
bem diferente da reperição material. O Sentido pode emergir
do Ser sem mele retombar de imediato: “Por não haver cantado
a zona onde viver — quando do inverno estéril resplendeu o
tédio.” Então:
“Nada terá tido lugar
senão o lugar
exceto talvez uma constelação.” ;

Esta constelação, o sentido, arrisca o traçado duma men-


sagem que seja efetivamente mensagem, pois todo pensamento
emite um lance de dados. Se talvez não haja mensagem senão
porque há comunicação intersubjetiva:
“Nós fomos dois eu o mantenho”
resta que o próprio homem que emite a mensagem surgiu “do
fundo dum naufrágio”, e que não se saberá jamais se é a na-
tureza que se exprime por essa chance ociosa, esse acaso con-
tra o acaso, ou se é homem que contra ela suscita o sentido:

(5) N. Wiener, ob. cit., p. 21.

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“as águas pelo ancião tentando, ou
o ancião contra as águas, uma chance ociosa”.

Nosso propósito não era desenvolver muito longamente um


comentário desse Lance de Dados, mas esboçar-lhe uma espécie
de interpretação paralela ao tema duma mensagem que não seja
nem o Logos hegeliano triunfante, nem a finalidade externa do
governo mecânico ou humano. O poema de Mallarmé se de-
senrola sobre o branco do papel de maneira diversa do poema
clássico: “O papel intervém cada vez que uma imagem, por
si mesma, cessa ou tecede, aceitando a sucessão de outras, e
como aqui não se trata, à maneira de sempre, de traços sonoros
regulares ou versos — antes de subdivisões prismáticas da Idéia,
o instante de aparecerem e que dura o seu concurso, nalguma
cenografia espiritual exata —, é em sítios variáveis, perto ou
longe do fio condutor latente, em razão da verossimilhança,
que se impõe o texto.” (º) Vamos do drama cósmico ao drama
do escritor que é o seu herdeiro remoto. Eis de início o abismo,
a vela inclinada sobre a hiante profundeza, a tormenta na qual
se debate o antepassado. Mas ele não pode resistir muito tempo
à invasão das vagas que o submergem, Tudo se aplaina e se
iguala no “não importa onde”; entretanto, o instante roubado
a essa queda, e essa “asa de antemão retombada do mal de
alçar o vôo”, não desaparecerão; resta deles “uma insinuação
simples, ao silêncio enrolada em itonia”; o fantasma dum gesto,
uma sombra, uma pluma que esvoaça sem pousar:
esvoaça em torno ao vórtice
sem o juncar nem fugir
e lhe embalança o indício virgem.

É a pena do escritor que inscreve o negro sobre o branco,


como as estrelas constituem pontos brilhantes contra o céu som-
brio; preto no branco e branco no preto; simultaneamente o
gêmeo e o inverso do céu. Mallarmé nos desenha essa aparição
da mensagem que se completa no instante mesmo em que é
lançada. O conflito dos elementos e do homem se reflete como

sans Prefácio de Mallarmé para a revista Cosmopolis, maio de

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uma reminiscência nessa luta derradeira contra o acaso, pontos
negros dos dados que acabam de set lançados.
Em que condições uma mensagem é possível, o que é uma
comunicação em sua materialidade mesma? (Que ela posta tra-
zer consigo sua decifração virtual e sua aptidão a se sobrevl-
ver, eis aí o conteúdo da mensagem em si mesma, da qual Um
Coup de dés constitui somente uma aproximação. (")

[Título original: “Le coup de dés de Stéphane Mal:


larmé et le message”. Extraído de: Les Études Pdbana
ques — Le Langage, n.º 4, outubro-dezembro, Paris, P.U.F,,
1958. Tradução de Haroldo de Campos, revista para
esta publicação pelo mesmo tradutor e José Paulo Paes]

(7), Este texto foi objeto duma comunicação ao XII Congremo


Internacional de Filosofia (Veneza, setembro de 1958).

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