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Vasta Periferia
fixa-se no Rio de Janeiro em 34). O fechamento dos canais de participação abertos pela
poesia ligada ao povo, o crescimento do enigma e o hermetismo da pedra interceptante
são formas correlatas à impossibilidade de dissolução dos conflitos entre a poesia e o
mundo. Do ponto de vista da conjuntura histórica, o crescimento do marxismo, a
ditadura Vargas e a guerra fria, como o fim de regimes totalitários, proporcionam o
estado de desengano e o pessimismo do Claro Enigma.
Diante desse panorama, a primeira conclusão importante é a de que se
examinarmos, por contraste, a lírica dos anos 40 e a dos anos 50, a poesia dita social ou
participante dos ideais comunitários e o classicismo dominante do pós-guerra, veremos
que a transformação completa dos caracteres histórico-culturais permite a gênese de
uma nova ordem de literatura. Na verdade, é o contexto de (extrema) crise que move a
poesia do Claro Enigma, mas em sentido perfeitamente atípico. Os acontecimentos que
“calaram o nosso maior poeta público”, como gostam de enfatizar os intérpretes, e que
estão pressupostos na epígrafe do livro, podem ser esboçados na forma de um duplo
movimento: primeiro, fuga de estetização da arte em sentido estrito, como era de
esperar da arte pela arte, da dita “torre de marfim”, ou outras formas de manifestação
artística facilmente criticáveis como entorpecentes do espírito crítico, e, segundo, a
incompatibilidade com uma literatura vinculada ou diretamente comprometida com o
político. De saída, portanto, o Claro Enigma tem a virtude de levar a experiência da
linguagem ao estado de máxima independência, sem desfazer por completo o
sentimento do mundo. Não podemos esquecer de que a recusa e a dificuldade de
comunicação entre o poeta e o povo, se atingem o apogeu na década de 50, são vencidas
pela forma privilegiada de expressão do silêncio — sem sobreposição dos planos
privado e público, isto é, sem desproporção entre o eu e o mundo —, de modo que o
Claro Enigma é a forma negativa de resultado expressivo, ou, se quisermos, a forma
positiva de silêncio do mundo. Importa menos a circunscrição dos domínios individual e
coletivo do que a percepção ainda bruta, não mapeada pela natureza das idéias, que está
na raiz da melancolia que gerou a sensação de dúvida e o tom esquivo, alegorias do
“sinal de menos” — conforme o “Poema-Orelha” de A Vida Passada a Limpo. A
transformação do poeta público em poeta precário é a própria metamorfose da
expressão poética nos limites do que é dizível. Mais ainda, é a forma de trazer para a
experiência da linguagem — mesmo que essa linguagem se dê sobre índices negativos
— a “precária síntese”, isto é, a forma impura de silêncio, que está na origem de
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Espírito da Verdade abria a seus olhos o tesouro de todas as ciências, nas quais ‘o
espírito humano não desempenhava nenhum papel’ e revelava ao ‘filósofo’ a fundação
da ciência admirável (mirabilis scientiae fundamenta).” É nessa direção que Romano
Sant’Anna menciona uma interessantíssima provocação do filósofo: “Inebriado por sua
visão e sucesso desafia: Dê-me extensão e movimento que construirei o universo”. Se
tomarmos o núcleo da idéia de Natureza mecanicista cartesiana, não será esse mesmo o
sentido da máquina, da mecânica, do mecanismo que movimenta o mundo? Lei
mecânica da natureza, sim, mas em última análise idéia, vontade inscrita no pensamento
de Deus. A máquina é o mecanismo (cada vez mais metafórico) de Deus. Mas Deus
também será, mais uma vez, cada vez mais metafórico, isto é, irá de entidade supra-
sensível a operador lógico-metafísico. É mais ou menos essa operação que se repetirá
em filosofias diferentes do absoluto. A maturidade de Drummond no Claro Enigma
recusa, ao mesmo tempo, a certeza universal de Descartes, as filosofias da consciência e
o absoluto de Hegel, postas em risco com a famosa “crise dos princípios ou dos
fundamentos” (antes mecânicos, agora transcendentais) da razão. Em vez de epifania,
ou, melhor, além de epifania (epí: posição superior; phainés: o que se mostra),
propomos a odisséia da razão, pensada desde o pontapé do Cogito. Se com ele o
pensamento é levado à concepção pura de si mesmo, e em seguida à condição suficiente
da verdade, a epifania tem lugar assegurado enquanto grau mais alto de evidência
abaixo de Deus, no caso de Camões, mas apta à forma ideada da consciência (que
implica a posição transcendental do mundo), no cenário posterior. Mas lembremos,
estamos no espaço idealizado pelo poema, assim como a Máquina é ideal, isto é,
sobrevinda como em sonho. Sonho da razão. No entanto, o mundo parece exigir outras
formas de tratamento, entre as quais a ambigüidade (e a ironia). O pensamento
drummondiano nesse poema, em todo caso, tem um duplo benefício: a consciência da
crise, que pontua a falha no coração do diamante, e por isso o ceticismo de Drummond
se faz tão resistente, isto é, apto a não cair na tentação do entendimento, que opera um
princípio de razão suficiente, e, em seguida, a recusa de uma significação do mundo
pela via puramente mecânica e não corpórea do pensamento. Em outras palavras,
decisão (de recusa) e crise, a um só tempo. [Cristiano Perius]
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II
paixão da subjetividade – digamos, o mesmo esforço por limitar e controlar a nossa in-
eliminável fé no futuro, no Mundo ou nos Trans-Mundos.
Para encerrar voltemos aos inevitáveis paralelos com Dante e Camões. Já
sugerimos a distância que separa a “metafísica” de Drummond (ou sua atualidade)
daquelas subjacentes aos dois grandes Poetas das línguas neo-latinas. Não quero sugerir
que meu Poeta predileto tenha a mesma estatura que os dois outros, embora... Mas
Dante e Camões fizeram tarefa semelhante, criando o italiano e o português como
línguas literárias, fazendo uma ponte entre o latim e as novas línguas que germinavam
(basta lembrar a língua falada pelo personagem do Nome da Rosa que termina por
morrer nas chamas da Inquisição. Drummond começa a escrever como poeta
moderno, a contrapelo do classicismo parnasiano (que gostaria de retornar à antiga
Hélade ou à Roma antiga, ignorando os conflitos do Brasil contemporâneo). Ao fim e ao
cabo, e sem perder o pé na realidade contemporânea e no nosso falar atual, é capaz de
elevar a nossa língua à complexidade e à reflexividade da poesia ibérica do século de
ouro. “Como ficou chato ser moderno”, diz Drummond; e não devemos tomar ao pé da
letra o verso seguinte, que parece exprimir uma aspiração à “eternidade” – o humor que
atravessa o poema proíbe qualquer elogio enfático da eternidade. Talvez devamos
interpretar esses versos da seguinte maneira: é preciso deixar de ser moderno para ser
verdadeiramente atual”. Mas que não se engane o leitor, se Drummond tivesse notícia
do chamado pensamento “pós-moderno” certamente recuaria, tomado do mais sagrado
horror. [Bento Prado Jr.]