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Vasta Periferia

CADERNO mais!, FOLHA DE SÃO PAULO, 27 DE OUTUBRO DE 2002

“O incompreensível é que o Mundo seja compreensível”


(Albert Einstein)

O Claro Enigma (1951) venceu aproximadamente meio século de


interpretações dissonantes. Foi desqualificado como tônica decadente, sobretudo para
aqueles que acompanhavam o poeta “participante”, marcado pela coletânea de 1945, A
Rosa do Povo, e, ao mesmo tempo, recebido como acontecimento ímpar de literatura. A
frase de epígrafe: “Les événements m’ennuient”, de P. Valéry, havia alcançado o grau de
relevo máximo, lançando luzes para uma leitura sombria do livro. Depois de meio
século de crítica, no entanto, o “susto” parece estar resolvido, e o Claro Enigma
determina, assim como a coletânea imediatamente sucessiva, Fazendeiro do Ar, um dos
mais altos pontos da poética drummondiana. É mais ou menos nessa direção que o
crítico José Guilherme Merquior caminha, chamando esse momento de “quarteto
metafísico” (Verso universo em Drummond. Rio de Janeiro: J.Olympio, 1975),
considerado como a segunda maturidade do poeta (a primeira corresponde à poesia
meridiana de A Rosa do Povo). É o período em que a poesia despede-se, por assim
dizer, dos poemas de temática histórica, chamados “dramas do cotidiano”, meditando
outra sorte de problema. Do ponto de vista conjunto da obra, tudo se passa como se
fôssemos de um grau maior de “comprometimento com a subjetividade do poeta”,
segundo a expressão de Luiz Costa Lima, à “eticização” do eu na poesia meridiana,
segundo a expressão de José Guilherme Merquior, até chegar ao fechamento do
horizonte visual no Claro Enigma, ou seja, a obstrução do foco sociológico e a
opacidade do mundo. Em outras palavras, é como se Drummond caminhasse do “humor
grotesco” (Merquior) de Alguma Poesia, ao humor cada vez menos imediato e mais
intelectualizado das coletâneas seguintes, Brejo das Almas e sobretudo Sentimento do
Mundo, até alcançar a tonalidade ética dos poemas urbanos dos anos 40 (Drummond
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fixa-se no Rio de Janeiro em 34). O fechamento dos canais de participação abertos pela
poesia ligada ao povo, o crescimento do enigma e o hermetismo da pedra interceptante
são formas correlatas à impossibilidade de dissolução dos conflitos entre a poesia e o
mundo. Do ponto de vista da conjuntura histórica, o crescimento do marxismo, a
ditadura Vargas e a guerra fria, como o fim de regimes totalitários, proporcionam o
estado de desengano e o pessimismo do Claro Enigma.
Diante desse panorama, a primeira conclusão importante é a de que se
examinarmos, por contraste, a lírica dos anos 40 e a dos anos 50, a poesia dita social ou
participante dos ideais comunitários e o classicismo dominante do pós-guerra, veremos
que a transformação completa dos caracteres histórico-culturais permite a gênese de
uma nova ordem de literatura. Na verdade, é o contexto de (extrema) crise que move a
poesia do Claro Enigma, mas em sentido perfeitamente atípico. Os acontecimentos que
“calaram o nosso maior poeta público”, como gostam de enfatizar os intérpretes, e que
estão pressupostos na epígrafe do livro, podem ser esboçados na forma de um duplo
movimento: primeiro, fuga de estetização da arte em sentido estrito, como era de
esperar da arte pela arte, da dita “torre de marfim”, ou outras formas de manifestação
artística facilmente criticáveis como entorpecentes do espírito crítico, e, segundo, a
incompatibilidade com uma literatura vinculada ou diretamente comprometida com o
político. De saída, portanto, o Claro Enigma tem a virtude de levar a experiência da
linguagem ao estado de máxima independência, sem desfazer por completo o
sentimento do mundo. Não podemos esquecer de que a recusa e a dificuldade de
comunicação entre o poeta e o povo, se atingem o apogeu na década de 50, são vencidas
pela forma privilegiada de expressão do silêncio — sem sobreposição dos planos
privado e público, isto é, sem desproporção entre o eu e o mundo —, de modo que o
Claro Enigma é a forma negativa de resultado expressivo, ou, se quisermos, a forma
positiva de silêncio do mundo. Importa menos a circunscrição dos domínios individual e
coletivo do que a percepção ainda bruta, não mapeada pela natureza das idéias, que está
na raiz da melancolia que gerou a sensação de dúvida e o tom esquivo, alegorias do
“sinal de menos” — conforme o “Poema-Orelha” de A Vida Passada a Limpo. A
transformação do poeta público em poeta precário é a própria metamorfose da
expressão poética nos limites do que é dizível. Mais ainda, é a forma de trazer para a
experiência da linguagem — mesmo que essa linguagem se dê sobre índices negativos
— a “precária síntese”, isto é, a forma impura de silêncio, que está na origem de
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expressões como o Claro Enigma, A Impureza do Branco, A Vida [não] Passada a


Limpo, formas ambíguas de composição do mundo.
A segunda conclusão importante e ligada à primeira diz respeito ao
formalismo clássico dos anos 50. Em estudo recente sobre a recepção crítica do livro,
Vagner Camilo (Drummond: Da Rosa do Povo à Rosa das Trevas. São Paulo: Ateliê
Editorial, 2001), além de fazer um recorte estratégico das disputas que marcaram o
terreno crítico desde Antonio Candido, delimita o que se poderia chamar de “viragem
histórica na fortuna crítica do poeta”, segundo Bento Prado Jr., ou seja, o golpe decisivo
sobre a tripartição clássica da poesia drummondiana: irônica, social e metafísica. José
Guilherme Merquior refere-se ao livro de 1951 como “clássico moderno”. Por
classicismo há que se entender a abstração do real, que vem a ser o ponto forte de
Drummond nesse período. Tal abstração, se mostra independência artística e
descompromisso ideológico, embora tivesse lugar privilegiado somente após o realismo
de A Rosa do Povo, é uma forma de “concentração sobre o essencial para fazer face à
crise da cultura”, segundo Vagner Camilo. Nesse caso, o contraponto de Drummond
pode ser perfeitamente reconhecido na literatura mundial contemporânea. Como nota
Guilherme Merquior: Mallarmé, Kafka, Rilke, entre outros, estão na mesma via de
percepção do mundo bruto. Perseguindo o flâneur baudelairiano, Walter Benjamin já
havia dado relevo ao spleen característico da metrópole moderna. A impossibilidade de
alcançar a totalidade obriga o poeta a um estado de concentração máxima para a
produção de algo mínimo: a consciência apurada da perda, em primeiro lugar, que
configura a ótica trágica e o que poderíamos chamar de “explicação órfica da terra”,
segundo a expressão de Mallarmé, mas também a procura da palavra tautegórica, isto é,
de uma linguagem que diga as próprias coisas.
Mas vamos ao coração do diamante. A Epifania da Máquina tem sido a
tônica principal da leitura crítica do poema. Guilherme Merquior, Romano Sant’Anna e
Alfredo Bosi reconhecem a “paternidade” do termo em Camões, pelo menos, mas é em
Romano Sant’Anna que essa pesquisa é mais regressiva, por assim dizer, alcançando os
poemas de Homero. Embora a pertinência dessa análise tenha razões para continuar,
vamos caminhar na direção de uma interpretação que vai além da Epifania da “máquina
cósmica”, “objeto apocalíptico” (segundo Guilherme Merquior).
Nosso ponto de partida será uma nota de Floyd Matson, encontrada em
Romano Sant’Anna: “Numa noite de novembro de 1619, Descartes teve a experiência
de um sonho premonitório em que (como lhe pareceu em reflexões posteriores) o
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Espírito da Verdade abria a seus olhos o tesouro de todas as ciências, nas quais ‘o
espírito humano não desempenhava nenhum papel’ e revelava ao ‘filósofo’ a fundação
da ciência admirável (mirabilis scientiae fundamenta).” É nessa direção que Romano
Sant’Anna menciona uma interessantíssima provocação do filósofo: “Inebriado por sua
visão e sucesso desafia: Dê-me extensão e movimento que construirei o universo”. Se
tomarmos o núcleo da idéia de Natureza mecanicista cartesiana, não será esse mesmo o
sentido da máquina, da mecânica, do mecanismo que movimenta o mundo? Lei
mecânica da natureza, sim, mas em última análise idéia, vontade inscrita no pensamento
de Deus. A máquina é o mecanismo (cada vez mais metafórico) de Deus. Mas Deus
também será, mais uma vez, cada vez mais metafórico, isto é, irá de entidade supra-
sensível a operador lógico-metafísico. É mais ou menos essa operação que se repetirá
em filosofias diferentes do absoluto. A maturidade de Drummond no Claro Enigma
recusa, ao mesmo tempo, a certeza universal de Descartes, as filosofias da consciência e
o absoluto de Hegel, postas em risco com a famosa “crise dos princípios ou dos
fundamentos” (antes mecânicos, agora transcendentais) da razão. Em vez de epifania,
ou, melhor, além de epifania (epí: posição superior; phainés: o que se mostra),
propomos a odisséia da razão, pensada desde o pontapé do Cogito. Se com ele o
pensamento é levado à concepção pura de si mesmo, e em seguida à condição suficiente
da verdade, a epifania tem lugar assegurado enquanto grau mais alto de evidência
abaixo de Deus, no caso de Camões, mas apta à forma ideada da consciência (que
implica a posição transcendental do mundo), no cenário posterior. Mas lembremos,
estamos no espaço idealizado pelo poema, assim como a Máquina é ideal, isto é,
sobrevinda como em sonho. Sonho da razão. No entanto, o mundo parece exigir outras
formas de tratamento, entre as quais a ambigüidade (e a ironia). O pensamento
drummondiano nesse poema, em todo caso, tem um duplo benefício: a consciência da
crise, que pontua a falha no coração do diamante, e por isso o ceticismo de Drummond
se faz tão resistente, isto é, apto a não cair na tentação do entendimento, que opera um
princípio de razão suficiente, e, em seguida, a recusa de uma significação do mundo
pela via puramente mecânica e não corpórea do pensamento. Em outras palavras,
decisão (de recusa) e crise, a um só tempo. [Cristiano Perius]
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II

Depois desta rememoração que Cristiano Perius fez da gênese da poesia de


Drummond, a partir da descrição da história de sua recepção, mas sobretudo depois de
seu último parágrafo que já abre a porta para a compreensão de A Máquina do Mundo,
torna-se mais fácil mergulhar nesse poema extraordinário. Estabeleçamos, de início,
uma espécie de esquema sumaríssimo do itinerário do Poeta, resumindo
caricaturalmente o que já foi dito (ou deixando de lado os necessários matizes
introduzidos nos parágrafos anteriores). Lembrando de alguns versos célebres, de
diferentes momentos de sua carreira, marquemos três momentos da relação entre “meu
coração” e “o Mundo”: 1. ...vasto mundo, mais vasto é meu coração...; 2. o mundo é
maior que meu coração; 3. meu coração desdenha ver, em transparência, a estrutura do
vasto mundo, de que é apenas parte insignificante. Num primeiro momento, a
singularidade de meu coração triunfa sobre a prosa do mundo. Num segundo, meu
coração, descobrindo seus limites (e seu narcisismo), abre-se para um fora, ao mesmo
tempo social e cosmológico. Finalmente, meu coração recua para sua precária
intimidade, sem esquecer o horizonte mais amplo que o engloba (ética e
metafisicamente), e desdenha algo como uma verdade absoluta.
Um poema jamais é um filosofema, como observou Eliot, em seus ensaios
sobre os metaphysical poets. Mas aqui, certamente, estamos diante de um poema
metafísico por excelência. Como compreendê-lo, sem confundir poesia e filosofia?
Como situar-nos nesse limite indefinido que separa esses gêneros literários, não por
essência (basta pensar, no passado, nos “poemas” de Parmênides e de Lucrécio), mas
nos dias de hoje? Já contei em outro lugar como em 1954, saindo da juventude
comunista e da prática de plagiar a “poesia engajada” de A Rosa do Povo, quando
descobria a filosofia, experimentei um verdadeiro alumbramento lendo A Máquina do
Mundo, numa manhã clara e inesquecível, caminhando pela Alameda Santos... Na
ocasião, perplexo, disse para mim mesmo: “ – Então é possível dizer essas coisas na
língua que falo e habito?” Era uma súbita e inesperada promoção. Em outra ocasião,
comentei o alcance “filosófico” da poesia de Drummond, contrapondo-a a certa tradição
da poesia alemã, em especial a de Rilke. Aí insistia que, ao contrário do grande poeta
alemão, Drummond elevava a poesia aos cumes da metafísica, sem perder seus pés na
terra, guardando a dimensão do humor, que garante a continuidade estilística de sua
obra por sob as revoluções que opera.
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Humor? Há certamente algo de trágico em A Máquina do Mundo. Como


conciliar humor e tragédia? Não é impossível: recentemente Davi Arrigucci aplicava a
Drummond as categorias criadas por Schiller com a oposição poesia ingênua/poesia
sentimental. Poesia sentimental, é claro, não significa expressão de sentimentalismo ou
da tirania dos afetos: pelo contrário, significa, por oposição à espontaneidade da poesia
grega (continuidade, sem conflito, entre visão mítica do mundo e expressão literária), o
estilo dramático da moderna concepção (germânico-cristã) do sujeito infeliz (coração
insulado), separado para sempre de um Deus abscôndito e de uma Natureza perdida ou
incontornável. Mas, justamente, se essa perspectiva “sentimental” levou o romantismo
alemão na direção da ironia (na oscilação entre o niilismo e o retorno à ortodoxia
teológica, numa deriva irresponsável segundo Hegel), no caso do poeta brasileiro a
infelicidade da consciência não o afastou de alguma forma de realismo que acompanha
sua obra poética de ponta a ponta. Não é possível ser idealista alemão em Minas Gerais
ou em meu País, em minha língua.
A situação exposta no poema é, a um só tempo, metafísica e dramática.
Alguém, um sujeito solitário, que percorre uma estrada de Minas, pedregosa, ouve, de
súbito, a voz da máquina do mundo que lhe oferece mostrar-lhe, gratuitamente, seus
mecanismos mais secretos. Alfredo Bosi e José Guilherme Merquior já compararam,
como era necessário, o teor do poema com estruturas semelhantes na Divina Comedia e
nos Lusíadas. Embora a língua comum favoreça o segundo paralelo, talvez o primeiro
seja mais pertinente. A começar pelo fato de que, no poema de Dante, já está inscrita a
obsessão como meio do caminho (Nel mezzo del camin...). E também pelo fato de que a
“máquina do mundo” (na verdade o sistema cosmológico de Ptolomeu) de Camões é
uma espécie de complemento quase que “científico-experimental” da grande descrição
da nova experiência do mundo navegável. Aí estamos mais perto de Bacon, mesmo nos
melhores versos consagrados às tempestades marítimas. Ao passo que com Dante
estamos em pleno Absoluto, que se abre generosamente aos olhos do poeta que o recebe,
de coração aberto, para poder assim, s’eternare (como o noûs poietikós de Aristóteles,
São Tomas e Dante, pode tornar-se eterno, retornando à sua fonte, o motor imóvel, esse
Amor che move il sole e l’altre stelle).
No nosso caso, o sujeito reticente ou o coração infeliz, sem denegar sua
inscrição num quadro que o ultrapassa, vê, na revelação assim súbito oferecida, algo
como uma demissão. No fundo, como se dissesse: - prefiro minha dor e meu não-saber
a um Saber que eliminaria minha dor e minha própria realidade – nada de Epifania!.
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Há algo de aufklärer em Drummond, de ponta a ponta, ou de um intransigente


racionalismo de quem está na periferia do Mundo (em todos os sentidos da palavra: no
sentido cosmológico, como já sabia Pascal, mas também no sentido político e
econômico como sabemos, hoje, cada vez mais). Em todo caso, nada de Teologia, meu
não-saber é lúcido como na Crítica de Kant ! Certamente o céu está vazio para todo
sempre, nos versos de Drummond. O movimento das estrelas nada tem a ver com as
batidas de meu coração. Não posso, pela contemplação, eternarmi.
Já mostramos em outro lugar como Drummond domestica os animais de
Rilke, deslocando-os para fora da hierática leitura de Heidegger, num ensaio
denominado “O Boi e os Marcianos”, onde terminávamos por dizer que o estratagema
do poeta consistia em criar uma dialética entre o ponto de vista interno da consciência
infeliz e o ponto de vista de Sirius, do ponto de vista de Deus.. O segredo da dialética de
Drummond estaria em confirmar, assim, de fora, o que estava dado desde início na
estreiteza da experiência subjetiva. A transcendência celeste e a calma imanência animal
não seriam apenas arabescos traçados no ar, mas cruas luzes lançadas sobre a intuição
de que o homem está embarcado no mundo sem quaisquer amarras ou âncoras. Talvez
esteja aí um dos traços dessa grande poesia que consegue retirar, do aprofundamento do
desencanto e da separação, o fôlego que lhe permite, invertendo a perspectiva natural,
dizer sim à condição humana e à idéia de solidariedade. Estamos embarcados juntos, até
em nossos desencontros. Comentando outro poema, falávamos indiretamente de A
Máquina do Mundo, que seria bom comentar, aqui, verso a verso, caso houvesse o
espaço necessário. Fiquemos apenas numa nota, sublinhando a fidelidade jamais
rompida com o espírito da Aufklärung. Lembremos os seguintes versos: “Mas, como eu
relutasse em responder/ a tal apelo assim maravilhoso,/ pois a fé se abrandara, e
mesmo o anseio,/ / a esperança mais mínima – esse anelo/ de ver desvanecida a treva
espessa/ que entre os raios de sol inda se filtra; // como defuntas crenças convocadas/
presto e fremente não se produzissem/a de novo tingir a neutra face// que vou pelos
caminhos demonstrando/ e como se outro ser, não mais aquêle/ habitante de mim há
tantos anos/ passasse a comandar minha vontade// (....) baixei os olhos, incurioso,
lasso, desdenhando colher a coisa oferta/ que se abria gratuita a meu engenho”. Não
me é possível dissociar esses versos, em minha imaginação tendenciosa, da peça
Nathan , der Weise, de Lessing. Lá também a “verdade absoluta” era colocada entre
parênteses, em nome da tolerância e do racionalismo, sem prejuízo para a inevitável
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paixão da subjetividade – digamos, o mesmo esforço por limitar e controlar a nossa in-
eliminável fé no futuro, no Mundo ou nos Trans-Mundos.
Para encerrar voltemos aos inevitáveis paralelos com Dante e Camões. Já
sugerimos a distância que separa a “metafísica” de Drummond (ou sua atualidade)
daquelas subjacentes aos dois grandes Poetas das línguas neo-latinas. Não quero sugerir
que meu Poeta predileto tenha a mesma estatura que os dois outros, embora... Mas
Dante e Camões fizeram tarefa semelhante, criando o italiano e o português como
línguas literárias, fazendo uma ponte entre o latim e as novas línguas que germinavam
(basta lembrar a língua falada pelo personagem do Nome da Rosa que termina por
morrer nas chamas da Inquisição. Drummond começa a escrever como poeta
moderno, a contrapelo do classicismo parnasiano (que gostaria de retornar à antiga
Hélade ou à Roma antiga, ignorando os conflitos do Brasil contemporâneo). Ao fim e ao
cabo, e sem perder o pé na realidade contemporânea e no nosso falar atual, é capaz de
elevar a nossa língua à complexidade e à reflexividade da poesia ibérica do século de
ouro. “Como ficou chato ser moderno”, diz Drummond; e não devemos tomar ao pé da
letra o verso seguinte, que parece exprimir uma aspiração à “eternidade” – o humor que
atravessa o poema proíbe qualquer elogio enfático da eternidade. Talvez devamos
interpretar esses versos da seguinte maneira: é preciso deixar de ser moderno para ser
verdadeiramente atual”. Mas que não se engane o leitor, se Drummond tivesse notícia
do chamado pensamento “pós-moderno” certamente recuaria, tomado do mais sagrado
horror. [Bento Prado Jr.]

Bento Prado Jr. (Professor de Filosofia na UFSCar)


Cristiano Perius (Mestre pela USP, doutorando em filosofia pela UFSCar)

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