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2/27/2020 Folha de S.

Paulo - Vontade e corrosão na poesia de Drummond - 25/02/2001

São Paulo, domingo, 25 de fevereiro de 2001

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Leia prefácio inédito do ensaísta para nova edição de


"Sentimento do Mundo"

Vontade e corrosão na poesia de


Drummond
Não há por que buscar na poesia de Drummond os jogos
clássicos de oposição entre o local e o universal, tão ao
gosto dos escritores e críticos das literaturas periféricas ou
emergentes

por Silviano Santiago

"Portanto, é possível distribuir minha solidão, torná-la meio de


conhecimento."
Carlos Drummond de Andrade, "América"

O mundo -o sentimento que dele tem o poeta- pode ser uma


abstração, como, aliás, o foi no poema que abre "Alguma
Poesia", primeira coleção de versos de Carlos Drummond de
Andrade. Ali, o mundo aparecia sob a forma de sortilégio da
vontade individual, bem ao gosto das vanguardas do início
do século. Recordemos: "Mundo mundo vasto mundo./ Se eu
me chamasse Raimundo/ seria uma rima não seria uma
solução". Já o sentimento do mundo -no livro que leva por
título essa expressão- é objetivo e material, visceralmente
político.
O sentimento do mundo passa a estar na imanência do corpo
solitário e rebelde do poeta ("Tenho Apenas Duas Mãos"), na
premência da vida presente e da solidariedade entre os
homens (ver o poema "Mãos Dadas"), na urgência da luta de
classes ("Para onde vai o operário? Teria vergonha de
chamá-lo meu irmão."), na violência da guerra contra Hitler
("O triste mundo fascista se decompõe ao contato de teus
dedos"), na iminência da revolução socioeconômica ("-Ó
vida futura! nós te criaremos") e na ardência da utopia
socialista ("Aurora,/ entretanto, eu te diviso, ainda tímida,/
inexperiente das luzes que vais acender/ e dos bens que
repartirás com todos os homens.").
Na terceira coleção de versos de Carlos Drummond,
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publicada em 1940, o sentimento do mundo se manifesta


também pelas palavras tristes, adornadas por "flores
amarelas e medrosas", de um "madrigal lúgubre". O
sentimento do mundo se nega a pactuar com um mundo e
com homens que, por artimanhas da macroeconomia
rearticulada pelo capital desde a Grande Depressão,
perderam a força e o viço ("Não serei o poeta de um mundo
caduco"). Nega-se a aceitar a falta de remédio para o que
remédio tem. Nega-se a conviver com a razão dos suicidas
em potencial. Nega-se, finalmente, a aceitar, sem gritar, uma
imagem sofrida que se tornou única e simbólica da
atualidade -a do menino que chora na noite. O sentimento do
mundo pode vir também do mais profundo da noite que toma
conta das metrópoles, trazendo para os homens a
incompreensão e a desesperança. É sombria e pessimista a
visão de mundo que se justapõe à esperança da revolução e
da utopia. O poeta pode querer se recolher a uma "casa de
cadáveres". Só ali -acredita passageiramente- esquecerá "o
jornal sujo embrulhando fatos, homens e comida
guardada...".

Fotografias intoleráveis No nosso tempo, o sentimento do


mundo não poderia ser diferente. As várias facetas oblíquas
que o constituem obedecem a uma única ordem, imperadora:
"Chegou o tempo em que a vida é uma ordem./ A vida
apenas, sem mistificação". Nem o verme conseguiu roer "o
imortal soluço de vida que rebentava" do "álbum de
fotografias intoleráveis".
Ao poeta maduro, consciente do seu ofício e da sua função,
compete a tarefa de dar forma concreta e atual, complexa, à
abstração de mundo, que, na sua poesia anterior, se
expressava de maneira irônica e, na fala corrente dos
mortais, se expressa de maneira alienada. Ao transformar o
mundo em objeto abstrato, ao caracterizá-lo como enleio seu
ou nosso, o poeta tornava a ele e ao sujeito que o enunciava
exóticos. Ou seja: em "Alguma Poesia" e na fala comum, o
mundo é objeto tão exótico quanto o será o cidadão
brasileiro caso nele não seja incluído de maneira crítica.
Daí advém, nos dois livros anteriores a "Sentimento do
Mundo", o sentido progressista, já que antiufanista, da
negação e da pergunta iconoclastas: "Nenhum Brasil existe.
E acaso existirão os brasileiros?". Já o livro que iremos ler,
que reúne poemas escritos sintomaticamente entre 1935 e
1940, inaugura uma nova fase na poesia de Carlos
Drummond de Andrade. Referendemo-la na passagem do
pronome eu ao pronome nós, na cumplicidade entre poeta e
leitor: "Não serei o poeta de um mundo caduco. (...) O
presente é tão grande, não nos afastemos./ Não nos
afastemos muito, vamos de mãos dadas".
A descoberta do mundo -e do complexo porque
multifacetado sentimento que inflama a sensibilidade do
poeta- se dá por um arriscado e definitivo mergulho no Brejo
das Almas, nome de cidade que serve de título para a
segunda coleção de poemas de Drummond. Brejo das Almas,
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nos diz a epígrafe do livro, "nada significa e nenhuma


justificativa oferece". E é ainda nessa simbólica cidadezinha
mineira, antes do mergulho, que o poeta enunciará a
irremissível atração pelo chamado feminino e sedutor que
chega do outro lado do vasto mundo. O canto da sereia -
como está no poema "Oceania"- foi-lhe entoado por "certa
menina enfezada/ para lá dos mares do sul". Com palavras
certeiras, das ilhas Fiji, a moça dá por encerrada a primeira
fase da poesia de Carlos Drummond: "fique quieto/ que
depois da Oceania/ o mundo acaba... e que a praia/ é só areia
e silêncio". Assim foi que a menina enfezada entoou para o
poeta o impasse do amor impossível e os limites do mundo
abstrato ou exótico, "docemente pornográfico", para ficar
com dois vocábulos de outro poema.
Essa praia da Oceania, para onde foge a imaginação
provinciana, não encontrará paralelo em "Sentimento do
Mundo". Aqui terá, quando muito, o seu sucedâneo pelo
avesso desconstrutor. Nas areias quentes do Leblon carioca,
praia da pseudoliberação pelo prazer, os sentimentos reclusos
do corpo jovem enganam vista e vida, ao mesmo tempo em
que entorpecem raciocínio e memória. Leiamos o final do
poema "Os Inocentes do Leblon" e recordemos, em
contraponto, os versos da menina enfezada de Fiji: "Os
inocentes, definitivamente inocentes, tudo ignoram,/ mas a
areia é quente, e há um óleo suave/ que eles passam nas
costas, e esquecem".
O mergulho abissal dado pelo poeta no brejo das almas não
significa, no entanto, a busca desvairada pelo
cosmopolitismo absoluto. Pelo contrário. O lugar de onde o
mergulhador atrevido salta para o mundo vem sempre
marcado em "Sentimento do Mundo" como o da margem
itabirana, ou mineira. Quem diz margem enuncia a origem
("Principalmente nasci em Itabira"), também enuncia a
perspectiva socioeconômica da observação ("Tive ouro, tive
gado, tive fazendas. Hoje sou funcionário público") e,
finalmente, enuncia o patamar onde se exercem a autocrítica
e a crítica ("sou triste, orgulhoso: de ferro"). Por isso, no
interior da visão concreta e cosmopolita, que brota
inarredável de "Sentimento do Mundo", exala, como
adocicado perfume de dama-da-noite, a "Confidência do
Itabirano". Sem o poema e/ou as confidências, o mundo
objetivo e material, multifacetado e cosmopolita, descrito na
terceira coletânea de versos do poeta, seria apenas e
definitivamente o avesso do exotismo ufanista.
Cosmopolitismo que seria, em última instância, mera
fancaria de poetastro.
Não há, pois, por que buscar na poesia de Carlos Drummond
os jogos clássicos de oposição entre o local e o universal, tão
ao gosto dos escritores e críticos das literaturas periféricas ou
emergentes. Entre região e mundo, nem equilíbrios nem
desequilíbrios, nem compromissos nem contradições
complementares. Depois de Machado de Assis, Drummond
com o seu sentimento do mundo é quem tem uma visão
simultânea e responsável dos acontecimentos sociopolíticos
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e econômicos no planeta Terra. Vale dizer: sua poesia


expressa certa certeza sobre o espaço e a geografia mundiais,
sobre o tempo e a história universais. (Na escrita de
Machado e Drummond, intelectuais que recusaram os
prazeres da viagem transcontinental para melhor e mais
lucidamente viajarem pelo espaço e pelo tempo, a visão de
mundo expressa pela dupla simultaneidade só pode ser coisa
de bruxo da linguagem.)
Em poema de "A Rosa do Povo", Drummond descreverá a
cidade natal como sendo uma única rua universal, à
semelhança da imagem que se encontra ao final dos filmes
clássicos de Carlitos: "Uma rua começa em Itabira, que vai
dar em qualquer parte da terra./ Nessa rua passam chineses,
índios, negros, mexicanos, turcos, uruguaios". Em poema do
livro "José", Drummond sintetizará no nome duma outra rua,
agora a parisiense rue du Regard, a rua itabirana: "Vem, farol
tímido,/ dizer-nos que o mundo/ de fato é restrito,/ cabe num
olhar". A cidade é coisa pública e universal.
Em "Sentimento do Mundo", Itabira é o lugar dos
acontecimentos simultâneos, e o poeta, seu privilegiado
observador. Nisso a cidade se assemelha ao jornal diário, e o
poeta, ao leitor crítico. Lugar privilegiado de espreita e
escuta, de arregimentação e camaradagem, de miséria e
denúncia, de choro e medo, de revelações e clamor, Itabira é
o centro da margem do mundo capitalista. Ali, no pulsar do
coração solitário do poeta, se aproximam e se congregam
todos os que estão sendo despossuídos pela centralização de
uma economia injusta. E são legião. Estão todos empenhados
nas múltiplas e paralelas batalhas contemporâneas de
liberação: "Aceitas a chuva, a guerra, o desemprego e a
injusta distribuição/ porque não podes, sozinho, dinamitar a
ilha de Manhattan". Natural que o poeta abdique dos valores
de classe para poder entender a direção para a qual o
operário aponta ao caminhar.

Ignorância e certeza "Para onde vai ele, pisando assim tão


firme?", pergunta o poeta. E logo responde: "Não sei". Na
sua caminhada, o operário ignora os fios telegráficos que o
poeta não ignora. A ignorância de um é a certeza do outro.
Se escutasse os fios telegráficos, o operário ouviria
"mensagens, que contam da Rússia, do Araguaia, dos
Estados Unidos". Só o poeta as escuta e, por isso, maior é a
sua curiosidade pelo destino do operário. Volta a perguntar:
"Para onde vai o operário?". Entre a ignorância de um e a
lucidez do outro, entre a classe social de um e a do outro,
sobressai a diferença irreconciliável. Buscamos o mesmo
fim, mas, entre nós, o abismo. A resposta à pergunta é outra:
"Teria vergonha de chamá-lo meu irmão. Ele sabe que não é,
nunca foi meu irmão, que não nos entenderemos nunca. E
me despreza... Ou talvez seja eu próprio que me despreze a
seus olhos". O populismo (de Vargas, de Perón, de Hitler ou
qualquer outro) pode aproximar ilusoriamente poeta e
operário, obrigando este a aceitar as idéias que não são dele,
mas as do ditador. A lucidez ideológica, por sua vez, ao
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fingir ignorar o mundo das idéias, pode levar à santificação


do operário na ignorância dele, tornando-o guia e mentor de
coisas já sabidas.

Santificação A recusa ao populismo levaria à santificação do


operário? Eis que ele caminha sobre as ondas do mar. Anota
o poeta: "Eu pensava que isso fosse privilégio de alguns
santos e de navios". No momento em que o operário busca o
fim da caminhada fora da terra firme é que surge uma espécie
de comunicação entre observador e observado. Nada de
palavras. Um sorriso distante. Apenas um sorriso úmido. O
poeta interpreta o sorriso já que lhe faltam as palavras de
comunicação: "Único e precário agente de ligação entre nós,
seu sorriso cada vez mais frio atravessa as grandes massas
líquidas, choca-se contra as formações salinas, as fortalezas
da costa, as medusas, atravessa tudo e vem beijar-me o rosto,
trazer-me uma esperança de compreensão". Enorme surge a
constatação final: "Quem sabe se um dia o compreenderei?".
"Sentimento do Mundo" permanece livro inigualável. Tanto
pela minuciosa e intrincada descrição de um tempo que é,
infelizmente, o nosso tempo, como ainda por dramatizar de
forma contundente e original os percalços de uma vontade
revolucionária que, ao querer se desvencilhar do papel
escrito, se esboroa em madrigais lúgubres e congressos
internacionais do medo. Vontade revolucionária que, ao se
esbater contra o dobre de sinos do final de século e de
milênio, perde o próprio sentido de ser numa história que foi
pouco a pouco corroendo as suas premissas mais
alvissareiras. O poeta previu o destino do seu livro: "Lagarta
mole que escreves a história,/ escreve sem pressa mais esta
história:/ o chão está verde de lagartas mortas.../ Adeus,
princesa, até outra vida".

Silviano Santiago é escritor, poeta e crítico de literatura, autor de "Em


Liberdade", "Keith Jarret no Blue Note", "Stella Manhattan" (Rocco) e
"Nas Malhas da Letra" (Cia. das Letras), entre outros.

Autor será reeditado


A editora Record planeja reeditar grande parte da obra de
Carlos Drummond de Andrade. Na primeira semana de
março, chegam às livrarias os livros "Alguma Poesia",
"Brejo das Almas", "Sentimento do Mundo" e "A Rosa do
Povo". Outros livros serão lançados, sem periodicidade
definida, até outubro de 2002, data do centenário de
nascimento do poeta.

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