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Na shakespeariana arca
Há um caso em paralelo,
Sobre a morte de um monarca
E a loucura de um donzelo.
HAMLET1
Marcia A. P. Martins*
Resumo: O objetivo deste trabalho é apresentar e discutir uma adaptação da peça
Hamlet, de William Shakespeare, para a poesia de cordel brasileira. De autoria de
Stélio Torquato Lima, o Hamlet cordelizado integra o volume Shakespeare nas rimas
do cordel (Giramundo, 2013), com mais dez peças adaptadas pelo mesmo cordelista.
A proposta das adaptações de Lima é a de restaurar o caráter popular das obras de
Shakespeare a partir de sua transposição para uma forma de expressão identificada
com a cultura brasileira, embora não o fosse na sua origem. A primeira parte do artigo
aborda as origens e características da literatura de cordel, seguindo-se uma descrição
da edição da Giramundo e a análise do Hamlet, que enfoca aspectos relativos à forma,
ao enredo e ao perfil e função de personagens centrais. Trata-se de uma adaptação
que pode ser apreciada como obra independente, embora o conhecimento da peça
shakespeariana e a percepção da intertextualidade possam aumentar o prazer da
leitura ou da escuta desses versos em cordel.
Abstract: The purpose of this article is to present and discuss an adaptation of William
Shakespeare’s Hamlet to Brazilian cordel poetry. Authored by Stélio Torquato Lima,
this Hamlet in cordel is included in the volume Shakespeare nas rimas do cordel
(Shakespeare in cordel rhymes, Giramundo, 2013), which features ten additional plays
1
Fonte: adaptação para cordel de Stélio Torquato Lima (2013a).
*
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio)
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adapted by the same cordelist. The aim of Lima’s adaptations is to restore the popular
character of Shakespeare’s works by transposing them into a form of expression that
is closely identified with the Brazilian culture, although it was not so in its origins. The
first part of the article addresses the origins and characteristics of cordel literature,
followed by a description of the Giramundo edition and the analysis of Hamlet, which
focuses on aspects related to form, plot, and the profile and function of central
characters. It is an adaptation that can be appreciated as an independent work,
although knowledge of the Shakespearean play and the perception of intertextuality
might enhance the pleasure of reading or listening to this cordel verse.
2
Referimo-nos aqui ao modelo triádico de Roman Jakobson, que subdivide a tradução em três
tipos: tradução intralingual, ou reformulação, que consiste na interpretação dos signos verbais
por meio de outros signos da mesma língua; tradução interlingual, ou tradução propriamente
dita, que consiste na interpretação dos signos verbais por meio de alguma outra língua; e
tradução intersemiótica, ou transmutação, que consiste na interpretação dos signos verbais por
meio de sistemas de signos não verbais (JAKOBSON, 2011: 64-5).
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“Adaptations and appropriations can vary in how explicitly they state their intertextual
purpose”
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2. A literatura de cordel
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Nogueira, Carlos. O essencial sobre a literatura de cordel portuguesa. Lisboa: Imprensa
Nacional/Casa da Moeda, 2004.
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de seis versos, cada uma contendo sete sílabas, na forma conhecida como
redondilha maior.
Por fim, no aspecto gráfico, na Europa e em outros países do continente
americano os poemas eram impressos em folhas volantes, enquanto no Brasil os
poemas são bem mais longos, indo do folheto de 8 a 16 páginas, que trata de
fatos circunstanciais, até os romances de 32 páginas e as estórias, que podem
chegar a 64 páginas (MAXADO 1980: 42; VIANA 2010: 9).
Embora os folhetos sejam quase sempre em verso e com rima, podem ter
trechos em prosa, em uma combinação que nos faz lembrar a poesia dramática
shakespeariana. Segundo Maxado, as características básicas do folheto são
métrica, rima e oração, entendendo-se esta pelo encadeamento do assunto
pelas estrofes, numa sequência lógica (1980: 118). Uma outra característica
muito comum dos folhetos de cordel são as ilustrações em xilogravuras,
retratando os personagens ou passagens marcantes da história contada. A
prática veio da Europa, onde era empregada nas Bíblias impressas e inserida na
tradição das broadside ballads5, comuns na Inglaterra entre os séculos XVI e XIX
(MAXADO 1980: 48-50).
Um grande estudioso da literatura oral brasileira — e,
consequentemente, do cordel — foi Luís da Câmara Cascudo, autor de vasta
bibliografia sobre o folclore brasileiro, inclusive Literatura oral no Brasil (José
Olímpio, 1952) e Cinco livros do povo – Introdução ao Estudo da Novelística no
Brasil (José Olímpio, 1953). Nessa última, aborda cinco tradicionais novelas
populares vindas de Portugal, Donzela Teodora, Roberto do Diabo, Princesa
Magalona, Imperatriz Porcina e João de Calais, que ganharam nova vida em
folhetos nordestinos, “permanecendo até hoje na alma do povo” (OLIVEIRA 2012:
74). Cascudo insere o cordel na categoria de literatura popular 6, caracterizada
por ser impressa, com ou sem atribuição de autoria, embora anteriormente o
tenha considerado literatura oral, deixando transparecer a ambiguidade desse
modo de expressão, que oscila entre o registro oral e o escrito (OLIVEIRA 2012).
5
Balada impressa de um lado de um fólio que costumava ter a mesma função que os jornais de
hoje, informando sobre eventos recentes de interesse público (BENNET 2003: 43-44).
6
Segundo Câmara Cascudo, o cordel é um dos três ramos da literatura do povo, constituída pela
tríade literatura oral, literatura popular e literatura tradicional (OLIVEIRA 2012: 74).
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Franklin Maxado analisa que o poeta popular pouco cria: “a sua criação
se resume quase em achar as rimas a fim de traduzir o erudito para o popular”
(1980: 117). E assim traduz um filme, uma novela de televisão, um romance,
uma notícia e outros temas, colocando-os em uma linguagem inteligível para o
povo. Seria este o caso dos clássicos em cordel, como o Hamlet analisado mais
adiante, e também das versões de histórias infantis e bíblicas. Segundo os
estudiosos, a literatura de cordel só permanece ainda no Brasil, que tem, além
“do maior e mais variado romanceiro do mundo, o maior mercado consumidor”
(MAXADO 1980: 116). Calcula-se em 40 milhões o público leitor, com maior
concentração no Nordeste (MAXADO 1980). A literatura popular em verso
publicada em folhetos a partir da década de 1890 no Nordeste brasileiro
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Cantel, Raymond. A literatura popular em verso e a sua merecida importância. In: La
littérature populaire brésilienne. Poitiers: Centre de Recherches Latino-Américaines (2005:
367-380).
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Fonte: https://books.google.com.br/books/about/Acorda_cordel_na_sala_de_aula.html
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Exemplos extraídos de Hamlet, que tem 34 notas desse tipo.
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que interage com ela para muito além dos letrados, para
diferentes classes sociais.
O reconto de narrativas shakespearianas em cordel vem se somar
a essas versões. (LIMA 2013a: 3)
Meia-noite no castelo
Chamado de Elsinor
Horácio – aqui revelo –
Enche os olhos de pavor,
Vendo um fantasma singelo,
Que traz em seu rosto belo
Grande tristeza e dor:
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Daqui em diante, onde se fala em “leitores/as”, entenda-se também “ouvintes”, visto que o
cordel pode ser tanto lido silenciosamente como recitado.
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As aspas marcam, na edição, um pensamento do personagem. A maioria das estrofes do cordel
não está entre aspas, pois o sujeito da enunciação é o narrador.
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A dúvida arrefecia
O ânimo pra vingar
O pai, que então jazia
e que, assim, dera lugar
Ao irmão, que usufruía
Do que não lhe pertencia:
A rainha, o trono, o lar. (2013a: 19)
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Referindo-se a Hamlet.
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um dia / A carta horripilante” (2013a: 25), e logo escreveu outra, a qual trocou
pela do tio, onde pedia a morte de quem a portasse. Com ele viajava uma
“dupla aviltante” (os não nomeados personagens de Rosencrantz e
Guildernstern) à qual incumbe de levar a carta ao rei inglês, selando o destino
do par. Segue-se o relato do episódio dos piratas, em apenas quatro versos, e a
intervenção do amigo Horácio:
[...]
Só a ajuda devida
De Horácio trouxe a saída
Pro caso tão complicado.
13
Em seu ensaio Hamlet and His Problems (2000, publicado originalmente em 1919) T.S. Eliot
diz que a peça é um “fracasso artístico” por faltarem “correlatos objetivos” para as ações de
Hamlet, ou seja, as ações do príncipe não tinham motivação adequada, tornando a peça
deficiente em termos de estrutura dramática.
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(2013a: 29). Como Fortimbrás não tinha sido mencionado antes, o adaptador
preocupa-se, em nome do bom entendimento da história, em inserir a seguinte
nota de rodapé, de número 34, na segunda referência a ele, chamado de “o
nobre norueguês”:
4. Considerações finais
eminentemente popular e muito brasileira, embora não tenha sido assim desde
sua origem, que é o cordel. Stélio Torquato Lima, em 78 septilhas de sete
sílabas com métrica regular, salvo poucas exceções, conta a história com ênfase
na trama principal, reduzindo as subtramas ao mínimo. Como consequência,
alguns personagens desaparecem, enquanto a outros são feitas breves
referências, sem identificá-los pelo nome. É este o caso de Polônio, citado
apenas uma vez como o pai da “bela guria” que “Hamlet amara um dia” (LIMA
2013a: 23), e Rosencrantz e Guildenstern, mencionados três vezes apenas como
“a dupla” (2013a: 25).
Apesar do enxugamento do texto, características essenciais da obra e dos
personagens estão preservadas: o solilóquio “To be, or not to be” (III.I),
representado metonimicamente em quatro estrofes; algumas falas icônicas; a
incerteza de Hamlet quanto ao fantasma ser de fato o espírito do pai ou um
demônio tentando enganá-lo; o seu estratagema de se fingir de louco para
investigar a morte do pai e confirmar as acusações feitas pelo fantasma; a
ambição ilimitada do rei Cláudio; a dúvida torturante de Hamlet, que o impedia
de decidir o que fazer; o plano de usar uma trupe de atores que chegam ao
castelo para encenar uma peça com o objetivo de desmascarar o rei; a
hesitação de Hamlet em matar Cláudio no momento em que este se encontra
em oração, garantindo a salvação eterna, algo negado ao irmão por ele
assassinado; os planos de Cláudio para dar fim à vida de Hamlet, primeiro,
enviando-o para a Inglaterra com uma sentença de morte oculta e, depois,
instigando Laertes a desafiá-lo para um duelo de cartas marcadas; a cena do
cemitério, com a conversa dos coveiros e a briga entre Hamlet e Laertes no
funeral de Ofélia; e o desfecho da história, com as mortes de todos os membros
da família real e a chegada do novo ocupante do trono, Fortimbrás.
O papel das mulheres é bastante reduzido: Gertrudes e Ofélia mal
aparecem, e seu perfil complexo sofre uma grande simplificação. Gertrudes,
como já observado, parece não ter livre arbítrio, tendo sido levada a casar com
o cunhado por uma questão de dever (2013a: 18). Consequentemente, não há
qualquer questionamento de seus atos por parte de Hamlet, como ocorre na
cena IV do terceiro ato da peça (a chamada closet scene, ou “cena da alcova”).
Uma única referência é feita a tal cena, sem maiores detalhes ou explicações,
no contexto que leva à morte do não nomeado Polônio: “Essa ideia [de matar o
rei Cláudio] ainda ecoa / Em seu jovem coração, / Quando a mãe o magoa /
Durante uma discussão” (2013a: 23). Quanto a Ofélia, é apenas apresentada
como “moça linda” que Hamlet “vivia a cortejar” (2013a: 20), e depois, na
narração da morte de Polônio, como a “menina / Que Hamlet amara um dia”
(2013a: 23), com o verbo no passado, sem qualquer esclarecimento sobre o
término da relação.
Pelas características desse Hamlet, acreditamos que seja possível
apreciá-lo como obra independente, embora o conhecimento da peça original
e a percepção da intertextualidade possam potencializar o prazer da leitura ou
da escuta dos versos em cordel. Assim como as montagens do Grupo Galpão e
dos Clowns de Shakespeare, voltados para produções interculturais, “optando
por um tipo de expressão que incorpora as tradições populares da região que
cada um representa” (CAMATI 2013: 119), o gesto antropofágico de Stélio
Torquato Lima assimilou Shakespeare a uma tradição popular brasileira,
dotando-o de uma brasilidade que vai além da língua em si.
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