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Resenha: Os Dois Primos Nobres, de William Shakespeare (1564-1616) e John

Fletcher (1579-1625). Tradução: José Roberto O’Shea. São Paulo: Iluminuras,


2017, 198 p.

Embora seja uma das menos célebres do rol daquelas atribuídas a Shakespeare, a
peça Os Dois Primos Nobres tem tudo para mover os ânimos do público
contemporâneo: tematiza os limites do amor e da amizade, em trama sombria que
termina inevitavelmente em morte; embaralha referências ao mundo greco-romano com
as convenções medievais do amor cortês e os princípios éticos de seu próprio tempo,
reinventando tópicas; põe em cena lutas, dança, canto, bodas, loucura, duelo, lirismo. É
uma tragicomédia em cinco atos breves, com a balança pendendo mais para o trágico do
que para o cômico, deslocando as fronteiras entre os gêneros. Aborda o homoerotismo,
numa época em que os rumores sobre a intimidade entre o rei Jaime I e o jovem conde
de Somerset estavam prestes a provocar um escândalo em Londres. Enfim, a peça ainda
instiga curiosidade por sua autoria compartilhada - teria sido composta por Shakespeare
e John Fletcher, dramaturgo mais jovem da mesma companhia teatral, a King’s Men -,
motivando estudos sobre seu dinamismo linguístico e inventivo, e pondo finalmente em
xeque o culto romântico ao gênio solitário de Shakespeare.
Por essas e outras razões, é de se comemorar a publicação da primeira edição
brasileira de Os Dois Primos Nobres (Iluminuras, 2017), com tradução e notas de José
Roberto O’Shea. O prefácio é de Marlene Soares dos Santos, autora de diversos estudos
sobre a obra shakespeariana. De saída, Marlene afirma que a peça, provavelmente
escrita entre 1613 e 1614, é “plena de peculiaridades” (p. 9). Cita o fato de que não
integra nenhuma das primeiras grandes coletâneas das obras de Shakespeare publicadas
ao longo do século 17, a começar com o Primeiro Fólio, de 1623. De fato, The Two
Noble Kinsmen, seu título original em inglês, foi registrada e publicada pela primeira
vez em 1634, em edição in-quarto, com atribuição de autoria a Shakespeare e Fletcher,
referidos como “memoráveis Ilustres de seu tempo”. Ambos já estavam mortos -
Shakespeare morrera em 1616, Fletcher em 1625. A peça foi posteriormente incluída na
segunda coletânea das obras compostas conjuntamente por Francis Beaumont e John
Fletcher, em 1679, reforçando sua vinculação a este último dramaturgo. A crítica
contemporânea retoma a atribuição dupla a Shakespeare e Fletcher firmada no primeiro
in-quarto: edições modernas da peça, como as da Oxford Series (1989), Arden (1997) e
Folger (2010), nomeiam os dois autores já na capa. A nova edição brasileira segue essa
tendência.

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Lavínia Silvares

Outra peculiaridade de Os Dois Primos Nobres é o fato de anunciar


explicitamente sua fonte literária já no Prólogo da peça, coisa rara na dramaturgia da
época: “Chaucer, tão admirado, doa a história, / que em sua obra vive sempre em glória”
(p. 29). Refere-se ao poeta medieval Geoffrey Chaucer, autor de Os Contos de
Canterbury, um conjunto de 24 histórias narradas predominantemente em verso e
amplamente conhecido pelo público da época de Shakespeare e Fletcher. O núcleo
temático dramatizado em Os Dois Primos Nobres é uma reapropriação da história
contada por Chaucer no “Conto do Cavaleiro”. Porém, a amplificação da relação entre
os dois primos nobres, Palamon e Arcite, a caracterização das personagens de origem
mitológica, como Teseu e Hipólita, e a diversidade elocutiva das falas na peça
extrapolam o âmbito marcadamente mais delineado e unido do estilo inventivo de
Chaucer. Ademais, os eixos temáticos secundários de Os Dois Primos Nobres,
responsáveis pela dimensão cômica e mais espetacular da peça, são invenções novas,
imprimindo outra dinâmica sobre a trama principal. Nesse sentido, a composição da
peça segue de perto o modus operandi da invenção dramática (poética, em geral…) de
sua época: a emulação. Toma emprestado tópicas ou até mesmo histórias inteiras já
criadas por outros autores e as transforma em algo novo - amplificando certas
passagens, variando o estilo, invertendo a ordem narrativa, acrescentando obstáculos,

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Resenha: Os Dois Primos Nobres, de William Shakespeare (1564-1616) e John
Fletcher (1579-1625). Tradução: José Roberto O’Shea. São Paulo: Iluminuras,
2017, 198 p.

revigorando a agudeza elocutiva. Procedendo, enfim, à imitação criativa que caracteriza


a composição literária nas cortes européias dos séculos 16 e 17.
A primeira tradução brasileira de Os Dois Primos Nobres conta com a
experiência de José Roberto O’Shea - a única outra tradução em língua portuguesa é a
de Énio Ramalho, publicada em Portugal, em 1974. Pesquisador da dramaturgia
shakespeariana e de sua performance, O’Shea é responsável também pelas traduções
anotadas das peças Antônio e Cleópatra (Mandarim/Siciliano, 1997); Cimbeline, Rei da
Britânia (Iluminuras, 2002); O Conto do Inverno (Iluminuras, 2007); Hamlet, o
Primeiro In-Quarto (Hedra, 2010); Péricles, Príncipe de Tiro (Iluminuras, 2012); e
Tróilo e Créssida está em fase de revisão. Como é de seu costume, O’Shea traduz Os
Dois Primos Nobres em decassílabos - salvo, é claro, as passagens originalmente
escritas em prosa -, e segue os princípios da tradução/transposição cultural, pressupondo
o que chama de “dimensão intercultural inescapável” do texto dramático vertido para
outra língua/cultura/tempo. A tarefa exige a busca de soluções tradutórias que garantam
o sentido e a relevância do texto original no âmbito linguístico-cultural do português
brasileiro contemporâneo, observando também os efeitos poéticos dos versos e a função
retórica que cumprem no discurso mais amplo da peça. Por exemplo: as falas de Teseu,
rei e herói ateniense, são quase sempre elevadas, metafóricas, adquirindo uma função
moralizante que reflete a superioridade hierárquica do soberano. Assim, referindo-se aos
primos Palamon e Arcite, que lutaram contra Atenas, Teseu diz:

TESEU
Pelo elmo de Marte! Vi-os na guerra,
Como dois leões sujos pela presa,
Abrindo trilhas nas tropas perplexas.
Cravei os olhos neles - mereciam
Ser vistos por um deus.

(Ato 1, cena 4)

Fluente no português brasileiro contemporâneo, com sintaxe direta e vocabulário


de uso corrente, a fala de Teseu não deixa de efetuar também a força poética e retórica
dos versos. Ao cotejar com o original em inglês, vê-se que a solução tradutória preserva
a figuração metafórica que representa os dois guerreiros tal qual leões ensanguentados,

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furando as fileiras da tropa inimiga e gerando espanto, imagem digna de um espectador


divino:

THESEUS
By th’ helm of Mars, I saw them in the war,
Like to a pair of lions, smeared with prey,
Make lanes in troops aghast. I fixed my note
Constantly on them, for they were a mark
Worth a god’s view.

(Act I, scene 4, 20-25)1

Ao mesmo tempo, elabora o efeito retórico que constitui Teseu como


espectador, com a excelente solução “cravei os olhos neles”, traduzindo a longa frase “I
fixed my note constantly on them”. O verbo em “cravar os olhos” expressa
perfeitamente a ação de fixar-se longamente em algo, com a vantagem de verter com
concisão a ideia original - difícil façanha na tradução para língua portuguesa dos
pentâmetros iâmbicos constituídos frequentemente de monossílabos e dissílabos em
inglês.
Mas nem só de falas elevadas em estilo grave consiste o texto de Os Dois
Primos Nobres; definitivamente, Shakespeare não é Sófocles, e nem Fletcher. O
tradutor tem ainda de lidar com a versatilidade dos estilos, que efetuam ora o grave, ora
o cômico; o vigoroso e o simples; o burilado e o conciso, etc. Muitas vezes, o estilo de
uma fala é apenas determinável em função de sua adequação no contexto imediato em
que aparece, exigindo conhecimento prévio de códigos sociais, lugares-comuns e
estereótipos da época. Por exemplo: ambientada no bosque que cerca a corte de Teseu,
uma determinada cena põe no palco um mestre-escola, camponeses rústicos e algumas
mulheres que estão a ensaiar uma performance. O mestre-escola, comparativamente
mais culto que os demais, sai dando ordens e lançando interjeições em latim. Longe de
constituírem um estilo refinado ou elegante, as falas do mestre-escola efetuam o cômico
resultante do ridículo da situação, o que somente se depreende do contexto histórico e
social da época. Estereótipo cômico das peças elisabetanas, o mestre-escola corporifica
o pseudo-culto que é socialmente inadequado, soberbo, e risível:

1
Todas as citações da peça em inglês são da Folger Shakespeare Library, editada por Barbara A. Mowat e
Paul Werstine, e disponível em http://www.folgerdigitaltexts.org.

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Resenha: Os Dois Primos Nobres, de William Shakespeare (1564-1616) e John
Fletcher (1579-1625). Tradução: José Roberto O’Shea. São Paulo: Iluminuras,
2017, 198 p.

MESTRE-ESCOLA
Quo usque tandem? Falta-nos aqui uma mulher.

QUARTO CAMPONÊS
Demos com o burro n’água; agora é que vão ser elas.

MESTRE-ESCOLA
Conforme enunciam os autores mais eruditos, a vaca foi para o brejo; fatuus somos, e
em vão trabalhamos.

SEGUNDO CAMPONÊS
Foi aquela criatura desprezível, aquela rameira ordinária que prometeu estar aqui - a
Cecília, filha da costureira. As próximas luvas que eu der a ela serão de pele de
cachorro. [...]

(Ato 3, cena 5)

Aqui, a comicidade se efetua pelo choque entre o linguajar pretensamente formal


do Mestre-escola e a banalidade do que de fato se diz, reforçada pelas falas realmente
engraçadas dos camponeses. Para alcançar esse efeito, o tradutor tem de transferir
elementos de uma ambientação cultural historicamente específica para outra, ao mesmo
tempo mantendo, sempre que possível, a intenção cômica do original. São verdadeiras
transposições culturais as expressões típicas do português brasileiro de uso corrente -
“Demos com o burro n’água”; “agora é que vão ser elas”; “a vaca foi para o brejo”,
entre outros achados. Elas substituem ditos proverbiais do inglês elisabetano com
finalidade comunicativa análoga, preservando aspectos elocutivos de estilo também
semelhantes.
Aqui se nota com clareza a opção do tradutor pela transposição cultural que
atualiza as expressões do texto original hoje obsoletas, o que demonstra uma atenção
especial para a potencialidade performática dessas passagens. Por exemplo, no trecho
referido acima, o quarto camponês lança mão de máximas populares de uso corrente,
coloquial, na época em que a peça foi escrita: “We may go whistle; all the fat’s i’ th’
fire”. Significam algo como: “Só nos resta assobiar; toda a gordura já foi queimada”.
Embora seja até possível inferir o sentido figurativo pelo contexto da peça, é claro que a
comicidade da fala não se efetuaria com a rapidez desejada caso uma tradução mais
literal fosse mantida - como ocorre, aliás, em muitas traduções de Shakespeare para a
língua portuguesa. Levada ao palco atual, a tradução de O’Shea possibilita resgatar a

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agilidade do estilo agudo típico das falas cômicas do drama elisabetano e jacobino. É
um dos paradoxos da tradução o fato de ser necessário em certa medida romper com o
texto original para lograr ser mais fiel a ele. Por fim, como se trata de uma tradução
anotada, o leitor de Os Dois Primos Nobres tem ainda à disposição o significado das
frases latinas do mestre-escola, esclarecimentos sucintos sobre trechos de entendimento
mais difícil, de casos em que a comicidade se efetua por um jogo intransponível de
duplo sentido do original, ou que requerem um conhecimento pontual de seu contexto
histórico.
Para além dos trechos marcadamente trágicos e cômicos da peça, o que talvez
mais chame a atenção em Os Dois Primos Nobres seja o diálogo entre os primos
Palamon e Arcite, na segunda cena do ato dois. Prisioneiros em Atenas após a derrota
contra Teseu no campo de batalha, os jovens tebanos conversam, sozinhos em suas
celas, sobre como será a vida dali em diante. De início, imaginam um destino tomado de
privações, perdas, sofrimento, lamento: nunca mais lutariam por sua pátria; nunca mais
defenderiam sua honra; nunca casariam, nunca veriam sua semelhança impressa na face
de filhos; nunca mais sentiriam o galope veloz de seus cavalos:

PALAMON
[...]
Ah! Jamais haveremos de com armas
Nos exercitar, qual gêmeos em honra,
E sentir nossos fogosos cavalos,
Embaixo de nós qual o mar revolto.
Nossas espadas - o próprio deus Marte
Melhores não teve - são arrancadas
Dos nossos flancos e, qual velharia,
Vão enferrujar e ornar os templos
De deusas que nos odeiam [...].

(Ato 2, cena 2)

Essa primeira reflexão, pessimista em sua essência e elevada em sua natureza


elocutiva, prepara o clima para o que vem em seguida: uma reviravolta discursiva que
transformará toda privação em ganho, superação, vitória. Os primos prometem fazer da
prisão um lar, da companhia um do outro um convívio edificante, da ausência de
mulheres uma oportunidade de cultivar sentimentos mais nobres etc. Em chave
neoplatônica de exaltação do ócio produtivo e da amizade masculina, Palamon e Arcite
metaforizam a clausura física em união conjugal, dizendo que são “esposos”, um a
família do outro:

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Resenha: Os Dois Primos Nobres, de William Shakespeare (1564-1616) e John
Fletcher (1579-1625). Tradução: José Roberto O’Shea. São Paulo: Iluminuras,
2017, 198 p.

ARCITE
Tenhamos a prisão por santuário
Que nos livra da corrupção dos vis.
[...]
Juntos, aqui,
Somos u’a mina infinda, um para o outro;
Somos esposos, cujo afeto sempre
Renasce; somos pais, amigos, sócios;
Um a família do outro; sou teu herdeiro,
E tu és o meu. O nosso legado
É este lugar; que nenhum tirano
Ouse tirar-nos; aqui, com paciência,
Teremos vida longa e afetuosa.
[...]

PALAMON
Terá existido dois que mais se estimem
Do que nós, Arcite?

(Ato 2, cena 2)

É uma cena de amor sutil entre dois homens, sustentado no éthos neoplatônico
dos discursos sobre a amizade masculina que circulavam desde o século XV nas cortes
europeias.
Mas o teatro não é só feito de palavras: o forte potencial performático dessa cena
permite entrever a relação homoerótica entre os primos. As palavras afetuosas de um e
de outro podem funcionar como a letra para uma música, um ponto de partida verbal
para todo um movimento de corpos - toques, gestos, afagos - que realiza a sexualidade
apenas latente, como era de se esperar, na enunciação. É certamente um elemento cruel
em Os Dois Primos Nobres o fato de que as relações amorosas nunca se cumpram por
completo. No início da peça, há uma brusca interrupção do casamento de Teseu e
Hipólita, com a aparição de viúvas pedindo o enterro dos cadáveres de seus maridos,
mortos em batalha contra Tebas: a leve alegria das festividades de núpcias dá lugar a
lágrimas e à guerra que se segue. O declarado amor entre Palamon e Arcite é também
bruscamente interrompido quando Palamon de súbito se diz apaixonado por Emília -
irmã mais nova de Hipólita-, num deslocamento do objeto sexual tão repentino que
parece se dar como sublimação da homossexualidade proibida. Em desforra, Arcite
declara-se também como pretendente de Emília, canalizando toda a afetividade recém

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Lavínia Silvares

demonstrada ao primo em ódio e perplexidade. A partir daí, a rivalidade entre os primos


torna-se tão brutal quanto inesperada. A performance de Os Dois Primos Nobres pela
Royal Shakespeare Company em 2015, por exemplo, pôs em cena personagens que
questionam sua própria sexualidade, explorando potencialidades que, no contexto das
convenções sociais de seu tempo, seriam impossíveis de se realizar. Logo no início da
peça, a jovem Emília revela que não se sente atraída por homens, dizendo que nada
supera o verdadeiro e puro amor entre as mulheres. Em uma das tramas secundárias,
uma moça pobre enlouquece por um amor impossível. O espelhamento dessas cenas
com a do diálogo de homoafetividade entre os primos reforça o caráter não
convencional da sexualidade das personagens, abrindo o leque interpretativo que cada
performance pode explorar. Isso posto, fica a torcida para que a nova edição de Os Dois
Primos Nobres enseje em breve montagens nos palcos brasileiros.

Lavinia Silvares
Universidade Federal de São Paulo

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