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Embora seja uma das menos célebres do rol daquelas atribuídas a Shakespeare, a
peça Os Dois Primos Nobres tem tudo para mover os ânimos do público
contemporâneo: tematiza os limites do amor e da amizade, em trama sombria que
termina inevitavelmente em morte; embaralha referências ao mundo greco-romano com
as convenções medievais do amor cortês e os princípios éticos de seu próprio tempo,
reinventando tópicas; põe em cena lutas, dança, canto, bodas, loucura, duelo, lirismo. É
uma tragicomédia em cinco atos breves, com a balança pendendo mais para o trágico do
que para o cômico, deslocando as fronteiras entre os gêneros. Aborda o homoerotismo,
numa época em que os rumores sobre a intimidade entre o rei Jaime I e o jovem conde
de Somerset estavam prestes a provocar um escândalo em Londres. Enfim, a peça ainda
instiga curiosidade por sua autoria compartilhada - teria sido composta por Shakespeare
e John Fletcher, dramaturgo mais jovem da mesma companhia teatral, a King’s Men -,
motivando estudos sobre seu dinamismo linguístico e inventivo, e pondo finalmente em
xeque o culto romântico ao gênio solitário de Shakespeare.
Por essas e outras razões, é de se comemorar a publicação da primeira edição
brasileira de Os Dois Primos Nobres (Iluminuras, 2017), com tradução e notas de José
Roberto O’Shea. O prefácio é de Marlene Soares dos Santos, autora de diversos estudos
sobre a obra shakespeariana. De saída, Marlene afirma que a peça, provavelmente
escrita entre 1613 e 1614, é “plena de peculiaridades” (p. 9). Cita o fato de que não
integra nenhuma das primeiras grandes coletâneas das obras de Shakespeare publicadas
ao longo do século 17, a começar com o Primeiro Fólio, de 1623. De fato, The Two
Noble Kinsmen, seu título original em inglês, foi registrada e publicada pela primeira
vez em 1634, em edição in-quarto, com atribuição de autoria a Shakespeare e Fletcher,
referidos como “memoráveis Ilustres de seu tempo”. Ambos já estavam mortos -
Shakespeare morrera em 1616, Fletcher em 1625. A peça foi posteriormente incluída na
segunda coletânea das obras compostas conjuntamente por Francis Beaumont e John
Fletcher, em 1679, reforçando sua vinculação a este último dramaturgo. A crítica
contemporânea retoma a atribuição dupla a Shakespeare e Fletcher firmada no primeiro
in-quarto: edições modernas da peça, como as da Oxford Series (1989), Arden (1997) e
Folger (2010), nomeiam os dois autores já na capa. A nova edição brasileira segue essa
tendência.
TESEU
Pelo elmo de Marte! Vi-os na guerra,
Como dois leões sujos pela presa,
Abrindo trilhas nas tropas perplexas.
Cravei os olhos neles - mereciam
Ser vistos por um deus.
(Ato 1, cena 4)
THESEUS
By th’ helm of Mars, I saw them in the war,
Like to a pair of lions, smeared with prey,
Make lanes in troops aghast. I fixed my note
Constantly on them, for they were a mark
Worth a god’s view.
1
Todas as citações da peça em inglês são da Folger Shakespeare Library, editada por Barbara A. Mowat e
Paul Werstine, e disponível em http://www.folgerdigitaltexts.org.
MESTRE-ESCOLA
Quo usque tandem? Falta-nos aqui uma mulher.
QUARTO CAMPONÊS
Demos com o burro n’água; agora é que vão ser elas.
MESTRE-ESCOLA
Conforme enunciam os autores mais eruditos, a vaca foi para o brejo; fatuus somos, e
em vão trabalhamos.
SEGUNDO CAMPONÊS
Foi aquela criatura desprezível, aquela rameira ordinária que prometeu estar aqui - a
Cecília, filha da costureira. As próximas luvas que eu der a ela serão de pele de
cachorro. [...]
(Ato 3, cena 5)
agilidade do estilo agudo típico das falas cômicas do drama elisabetano e jacobino. É
um dos paradoxos da tradução o fato de ser necessário em certa medida romper com o
texto original para lograr ser mais fiel a ele. Por fim, como se trata de uma tradução
anotada, o leitor de Os Dois Primos Nobres tem ainda à disposição o significado das
frases latinas do mestre-escola, esclarecimentos sucintos sobre trechos de entendimento
mais difícil, de casos em que a comicidade se efetua por um jogo intransponível de
duplo sentido do original, ou que requerem um conhecimento pontual de seu contexto
histórico.
Para além dos trechos marcadamente trágicos e cômicos da peça, o que talvez
mais chame a atenção em Os Dois Primos Nobres seja o diálogo entre os primos
Palamon e Arcite, na segunda cena do ato dois. Prisioneiros em Atenas após a derrota
contra Teseu no campo de batalha, os jovens tebanos conversam, sozinhos em suas
celas, sobre como será a vida dali em diante. De início, imaginam um destino tomado de
privações, perdas, sofrimento, lamento: nunca mais lutariam por sua pátria; nunca mais
defenderiam sua honra; nunca casariam, nunca veriam sua semelhança impressa na face
de filhos; nunca mais sentiriam o galope veloz de seus cavalos:
PALAMON
[...]
Ah! Jamais haveremos de com armas
Nos exercitar, qual gêmeos em honra,
E sentir nossos fogosos cavalos,
Embaixo de nós qual o mar revolto.
Nossas espadas - o próprio deus Marte
Melhores não teve - são arrancadas
Dos nossos flancos e, qual velharia,
Vão enferrujar e ornar os templos
De deusas que nos odeiam [...].
(Ato 2, cena 2)
ARCITE
Tenhamos a prisão por santuário
Que nos livra da corrupção dos vis.
[...]
Juntos, aqui,
Somos u’a mina infinda, um para o outro;
Somos esposos, cujo afeto sempre
Renasce; somos pais, amigos, sócios;
Um a família do outro; sou teu herdeiro,
E tu és o meu. O nosso legado
É este lugar; que nenhum tirano
Ouse tirar-nos; aqui, com paciência,
Teremos vida longa e afetuosa.
[...]
PALAMON
Terá existido dois que mais se estimem
Do que nós, Arcite?
(Ato 2, cena 2)
É uma cena de amor sutil entre dois homens, sustentado no éthos neoplatônico
dos discursos sobre a amizade masculina que circulavam desde o século XV nas cortes
europeias.
Mas o teatro não é só feito de palavras: o forte potencial performático dessa cena
permite entrever a relação homoerótica entre os primos. As palavras afetuosas de um e
de outro podem funcionar como a letra para uma música, um ponto de partida verbal
para todo um movimento de corpos - toques, gestos, afagos - que realiza a sexualidade
apenas latente, como era de se esperar, na enunciação. É certamente um elemento cruel
em Os Dois Primos Nobres o fato de que as relações amorosas nunca se cumpram por
completo. No início da peça, há uma brusca interrupção do casamento de Teseu e
Hipólita, com a aparição de viúvas pedindo o enterro dos cadáveres de seus maridos,
mortos em batalha contra Tebas: a leve alegria das festividades de núpcias dá lugar a
lágrimas e à guerra que se segue. O declarado amor entre Palamon e Arcite é também
bruscamente interrompido quando Palamon de súbito se diz apaixonado por Emília -
irmã mais nova de Hipólita-, num deslocamento do objeto sexual tão repentino que
parece se dar como sublimação da homossexualidade proibida. Em desforra, Arcite
declara-se também como pretendente de Emília, canalizando toda a afetividade recém
Lavinia Silvares
Universidade Federal de São Paulo