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SHAKESPEARE EM PORTUGUÊS DO BRASIL:

AS TRADUÇÕES EM VERSO DE JOSÉ ROBERTO O’SHEA

Paulo Henriques Britto


phbritto@hotmail.com

Marcia A. P. Martins
mmartins@puc-rio.br

Resumo: Este artigo faz, inicialmente, Abstract: The article begins with a
uma apresentação da estratégia global presentation of the global strategy
adotada por José Roberto O’Shea nas adopted by José Roberto O’Shea in his
três primeiras traduções anotadas que first three annotated translations of
realizou de peças de William Shakespeare: Shakespeare’s plays: Anthony and
Antônio e Cleópatra, Cimbeline, rei da Cleopatra; Cymbeline, King of Britain; and
Britânia e O conto do inverno. A seguir, The W inter’s Tale. Following that, a
dedica-se a examinar um aspecto formal specific formal aspect of his strategy is
dessa estratégia, que é uma métrica discussed: his use of decasyllables,
ancorada em decassílabos brancos ou unrhymed or rhymed in accordance with
rimados, de acordo com a distribuição the original. Particular emphasis is given
do original. A análise focaliza to the different ways how O’Shea
especialmente as soluções encontradas translates blank verse, the unrhymed
pelo tradutor para recriar em português iambic pentameter that is the most
o pentâmetro iâmbico branco, que é o characteristic meter of Shakespearean
metro mais característico da poesia drama. The passages analyzed indicate
dramática shakespeariana. A partir dos that in his later translations O’Shea relies
trechos analisados pode-se observar que less and less on unconventional stress
a tendência de O’Shea tem sido a de patterns. His tendency to use
recorrer cada vez menos aos metros decasyllables stressed on the fifth syllable,
pouco convencionais. Sua escolha do which he comments on his paratext to
decassílabo com acento na quinta sílaba, Antony and Cleopatra, seems to decrease
afirmada no paratexto de Antônio e in the two later translations, where the
Cleópatra, parece ter sido deixada de lado predominant forms of the decasyllable
nas duas traduções seguintes, em que are the more traditional martelo-agalopado
predominam os versos de corte mais and heroico, stressed on the sixth syllable.
tradicional, com acento tônico na sexta
sílaba, caso do martelo-agalopado e o
heroico.

Palavras-chave: Shakespeare. Tradução teatral. Versificação. Métrica.

Key words: Shakespeare. Drama translation. Versification. Metrics.

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A obra dramática shakespeariana, produzida há mais de
quatrocentos anos, continua viva e atual no mundo inteiro, como
demonstram as inúmeras encenações e adaptações para outros meios, que
vão do cinema aos HQ e videogames. As peças que compõem esse cânone
têm sido constantemente relidas e reinterpretadas à luz de diferentes teorias
e abordagens, com reflexos sobre as traduções, que vêm sendo feitas em
um ritmo bastante intenso e que podem, naturalmente, trazer marcas de
tais insights e concepções.
No Brasil não tem sido diferente: a voz de Shakespeare se faz
constantemente presente nos palcos sob forma de montagens que oscilam
entre tradicionais e vanguardistas, sem falar nas adaptações, imitações e
paródias; nas novelas de televisão, particularmente em sua temática; e na
indústria editorial, por meio tanto do lançamento de novas traduções e
adaptações para o público jovem, quanto de reimpressões e reedições de
antigas, que vêm sendo apresentadas sob os mais diversos formatos, como
caixas com vários volumes ou edições únicas com obras selecionadas. Dentre
os tradutores em atividade, destacam-se, pelo número de peças traduzidas
e pelo projeto tradutório consistente, Barbara Heliodora, que recentemente
terminou a transposição para o português das 37 peças do cânone dramático
tradicional; Beatriz Viégas-Faria, que entre 1998 e 2011 já publicou pela
L&PM 18 traduções de comédias, tragédias e romances, tendo ainda uma
finalizada e outra no prelo; e José Roberto O’Shea, que desenvolve há mais
de 20 anos um projeto de pesquisa em traduções shakespearianas, tendo
quatro publicadas, uma no prelo e uma em elaboração. Esses tradutores,
juntamente com outros como Elvio Funck, Aíla Gomes, Aimara Cunha
Resende e Erick Ramalho, marcam uma tendência recente no Brasil: são
todos estudiosos e pesquisadores, com profundo conhecimento de
dramaturgia. Os poetas-tradutores que tanto marcaram as versões brasileiras
da poesia dramática shakespeariana desde o seu início, em 1933, até meados
dos anos 1990 — Onestaldo de Pennafort, Péricles Eugenio da Silva Ramos,
Jorge Wanderley, Manuel Bandeira e Anna Amélia Carneiro de Mendonça,
dentre outros — dão lugar, agora, aos shakespearianistas com posição de
destaque na academia, que se dedicam não só ao estudo e à exegese da
obra original mas também à sua transposição para o português do Brasil
em traduções com graus variados de aparato crítico que resultam de projetos
tradutórios sólidos e bem fundamentados.
Diante da importância da contribuição desses estudiosos na difusão
do cânone dramático shakespeariano em português a partir de uma visão

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scholarly mas nem por isso erudita ou inacessível, examinaremos, neste artigo,
um importante aspecto da poética tradutória de um deles — José Roberto
O’Shea — que é o emprego de decassílabos brancos ou rimados.

A poética tradutória de José Roberto O’Shea

O’Shea já verteu para o português a tragédia Antônio e Cleópatra


(Mandarim, 1999, em edição bilíngue), as peças finais Cimbeline, rei da Britânia
(Iluminuras, 2002), O conto do inverno (Iluminuras, 2006) e Péricles, príncipe de
Tiro (no prelo) e a versão de Hamlet a partir do chamado Primeiro In-
Quarto (Hedra, 2010); seu projeto atual é a tradução de Two Noble Kinsmen,
até o momento inédito em português do Brasil. Professor Titular da
Universidade Federal de Santa Catarina desde 1992, leciona na graduação e
na pós-graduação disciplinas vinculadas às áreas de literatura inglesa
(especialmente teatro shakespeariano) e norte-americana; teoria da
performance; teatro e interculturalismo. Vem desenvolvendo pesquisa
acadêmica nas áreas de tradução de teatro e para o teatro, dramaturgia e
literatura dramática (texto e cena, e teoria da performance dramática), com
dois estágios pós-doutorais no Reino Unido — em 1997, em Stratford-
upon-Avon, na condição de Pesquisador Honorário e em 2004, no
Departamento de Drama, na University de Exeter, e um estágio como
fellow da Folger Shakespeare Library, em Washington, DC, em 2010. Suas
traduções shakespearianas são realizadas no âmbito do seu projeto de
pesquisa Tradução Anotada da Dramaturgia Shakespeariana, desenvolvido
desde 1994 com apoio do CNPq e que vem resultando em produtos
tradutórios com aparato crítico, que inclui textos introdutórios e notas que
abordam e esclarecem questões lexicais, semânticas (explicação de
trocadilhos), culturais, históricas e cênicas. Como esclarece o tradutor, no
ensaio que acompanha a edição de Antônio e Cleópatra da Mandarim
(O’SHEA, 1997, p. 27):

Para atender ao objetivo acadêmico-pedagógico do projeto e, decerto, para


auxiliar a análise temática da peça por parte de gente de teatro, direta ou
indiretamente ligada a determinada montagem, a tradução inclui comentário
crítico, em forma de anotação. No total, são cerca de 350 notas, em que
procuro esclarecer questões de texto, abordando, principalmente, aspectos
lexicais específicos ao inglês elizabetano, bem como problemas de
interpretação e tradução; e questões de contexto, fornecendo, prioritariamente,

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informações sobre o momento histórico e político em que transcorre a ação
da peça.

No caso das traduções já publicadas, além das exatas 357 notas


que aparecem no final dos respectivos atos de Antônio e Cleópatra, na edição
de Cimbeline há 39 notas de rodapé que fornecem informações culturais e
linguísticas importantes para a compreensão do texto e que apresentam as
escolhas tradutórias; na de O conto do inverno, 146 notas que, assim como na
primeira peça traduzida, vêm ao término de cada ato; e na do Primeiro
Hamlet, 114 notas de rodapé com variados esclarecimentos.
A escolha dos títulos a serem traduzidos tem seguido o critério de
privilegiar peças menos conhecidas, ou menos encenadas. Enquanto tragédias
como Rei Lear, Otelo, Macbeth e Romeu e Julieta circulam em português do
Brasil em pelo menos oito traduções diferentes cada uma, três das peças
trabalhadas por O’Shea que se inserem entre os chamados “romances” ou
“peças finais” só eram encontradas, na época em que ele escolheu traduzi-
las, no conjunto da obra completa de Shakespeare, em traduções produzidas
nas décadas de 1950 e 1960 (por, respectivamente, Carlos Alberto Nunes e
Cunha Medeiros/Oscar Mendes).
Em linhas gerais, O’Shea, sempre levando em conta que as peças
de Shakespeare foram escritas originalmente para o palco — embora tenham,
ao longo do tempo, adquirido o duplo estatuto de obra dramática e literária
—, procura produzir um texto igualmente teatral, que respeite a distribuição
de prosa/verso e versos brancos/versos rimados do original, empregando
decassílabos para as passagens em verso. Como ressaltam os estudiosos, o
pentâmetro iâmbico usado por Shakespeare reproduz a cadência da fala
em língua inglesa, fazendo com que o verso soe natural aos ouvidos do
público. O desafio dos tradutores é obter um efeito igualmente familiar em
língua portuguesa, reproduzindo a musicalidade da fala brasileira. A opção
pelo verso, no entanto, torna o processo de tradução muito mais complexo,
artesanal, na medida em que é preciso encontrar soluções ao mesmo tempo
concisas e precisas, dirigidas a um público muito distante no tempo e no
espaço da Inglaterra elisabetana. Assim explica O’Shea a sua opção pelo
verso:

Decidi manter em prosa os trechos que em prosa constam do original,


traduzir o blank verse em decassílabos, com ictos marcando, preferencialmente,
a sexta (ou a quinta) e a décima sílabas, e reproduzir os couplets, que

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frequentemente fecham as cenas, em dísticos aproximados. (O’SHEA, 1997,
p. 26)

Como exemplo, ele próprio cita o final da cena 11 do terceiro ato,


quanto Antônio se consola com Cleópatra, após ter fugido da batalha de
Ácio para encontrá-la:

Some wine within there, and our viands! Fortune knows,


We scorn her most, when most she offers blows.

O couplet foi assim traduzido, com rima incompleta:

Vinho e víveres, vamos! Sabe a sorte,


Quanto mais nos golpeia, tão mais fortes.

No que diz respeito a estilo e dicção, O’Shea busca uma linguagem


simples mas não empobrecedora, cuidando para evitar cacófatos, repetindo
as aliterações e imagens, recriando os trocadilhos e jogos de palavras,
mantendo a mistura de tratamentos (tu/vós). Como ele próprio observa,
“[a]o reescrever Shakespeare para um público distante do dramaturgo inglês
em termos de tempo, espaço e cultura, fiz a opção por um léxico e por
padrões de fala, espero, acessíveis ao público-alvo e inseridos na cultura de
chegada: o Brasil no final do século XX e início do século XXI” (O’SHEA,
2002, p. 38).
O’Shea explicita seu projeto tradutório global e comenta soluções
pontuais nos dois ensaios que integram, respectivamente, as edições de
Antônio e Cleópatra e Cimbeline, rei da Britânia. Intitulados “Antony and Cleopatra
em tradução” (Mandarim, 1997) e “Performance e inserção cultural: Antony
and Cleopatra e Cymbeline, King of Britain em português” (Iluminuras, 2002),
esses paratextos são particularmente reveladores do processo de tradução
de peças teatrais escritas em verso, que seguem um padrão métrico diferente
do nosso (acentual, em vez de silábico), e utilizam um vocabulário
extremamente variado e novo para a época. E se o tradutor se preocupou,
por um lado, com o aspecto comunicativo do texto, empregando estratégias
há pouco mencionadas, por outro procurou “evitar simplificações retóricas
que emprestarão coerência a discurso, em Shakespeare, ‘coerentemente
incoerente’” (O’SHEA, 2002, p. 38), fazendo alusão a expressão empregada
pelo estudioso Graham Bradshaw em palestra intitulada “Shakespeare’s
peculiarity” proferida no Shakespeare Institute em 1997.

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Em ambos os ensaios O’Shea apresenta e justifica algumas soluções
tradutórias que evidenciam a coerência do seu projeto. Em “Antony and
Cleopatra em tradução” (1997, p. 30), destacamos o relato a respeito de um
trocadilho que foi possível reproduzir (Ato I, cena 5):

[...] debatendo-se no tédio da ausência de Antônio, Cleópatra provoca


Mardiano, o eunuco, com a pergunta: “Hast thou affections?” O eunuco
responde, timidamente, “Yes, gracious madam.” E Cleópatra diz, “Indeed?”
A resposta de Mardiano revela sua percepção de double entendre nas palavras
da rainha: “Not in deed, madam, for I can do nothing / But what indeed is honest
to be done”. Valendo-me da insinuação à condição no eunuco sugerida pela
expressão “de fato”, que remete sonora e semanticamente à noção de ‘ato”,
espero ter preservado o trocadilho de Cleópatra:

Cleo. . . . conheces o desejo?


Mard. Sim, gentil senhora.
Cleo. De fato?
Mard. De fato, não senhora; nenhum ato
Posso cometer que não seja casto.

No ensaio que acompanha Cimbeline, Um exemplo é a tradução


proposta para a fala de Cecílio, pai de Póstumo, na cena 5 do quinto ato,
quando se refere à águia de Júpiter:

His royal bird


Preens the immortal wing.

Como explica o tradutor, a forma literal — “Sua ave real” — não


seria adequada, por criar uma elisão que resulta foneticamente no adjetivo
“suave”. Sua opção foi, então, omitir o pronome possessivo, visto que o
contexto já esclarece qual é o referente; a solução escolhida foi “A ave
nobre”.
Já a edição de O conto do inverno (Iluminuras, 2007) não inclui um
ensaio do tradutor, mas traz notas bastante esclarecedoras no que diz respeito
a estratégias e soluções tradutórias. A nota 3 (p. 39), por exemplo, informa
que “[o] nome do jovem príncipe [Mamillius] permanece na forma original,
a fim de ser evitada a cacofonia flagrante da opção aportuguesada Mamílio”.

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Todo esse cuidado e dedicação à tarefa tem sido devidamente
reconhecido e valorizado: O’Shea foi um dos dez finalistas do Prêmio
Jabuti 2008 na categoria “Tradução literária” com a peça O conto do inverno
e menção honrosa na mesma categoria em 2003 com Cimbeline, rei da Britânia.
Um dos aspectos de seu trabalho bastante responsável por esse
reconhecimento é, sem dúvida, a sua maestria no que diz respeito à métrica,
como será analisado a seguir, a partir de um corpus composto por suas três
primeiras traduções publicadas: Antônio e Cleópatra, Cimbeline, rei da Britânia e
O conto do inverno.

O decassílabo nas traduções de José Roberto O’Shea

Antônio e Cleópatra

Em sua primeira tradução shakespeariana publicada, O’Shea


mantém a divisão entre verso e prosa do original, adotando o decassílabo
para traduzir o pentâmetro iâmbico. Nas passagens em verso, para não ser
obrigado a fazer muitos cortes no material semântico, o tradutor adota a
estratégia de aumentar o número de versos por fala — recurso já utilizado
por Manuel Bandeira em sua tradução de Macbeth (v. Martins e Britto, 2009,
p. 140). Para estudar o decassílabo utilizado por O’Shea, escolhemos duas
passagens para análise: (a) a famosa fala de Enobarbus (II, ii) em que o
personagem descreve o primeiro encontro de Antônio com Cleópatra, e
(b) a fala de Cleópatra que fecha o quarto ato.
No texto introdutório de sua tradução de Antônio e Cleópatra, como
já vimos, O’Shea afirma que acentua, “preferencialmente, a sexta (ou a
quinta) e a décima sílaba”. Curiosa a opção pelo icto na quinta sílaba, que
não é acentuada nos dois padrões tradicionais do decassílabo no português,
o heroico (acentos em 6 e 10, com apoio em 2 ou 4) e o sáfico (4, 8 e 10),
nem no martelo-agalopado (3, 6 e 10, com possível apoio em 8), contribuição
brasileira ao repertório de formas do idioma. Vejamos a análise da primeira
passagem, iniciada com o verso “Ao desembarque, Antônio enviou-lhe”
(p. 113). Os números entre parênteses indicam a colocação mais provável
dos acentos secundários nos versos em que temos mais de três sílabas átonas
juntas.

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Nº do Escansão Comentários
verso
1 2-5-7-10
2 2-6-10
3 3-6-8-10
4 2-6-10 Diérese entre “batido” e “a”
5 2-(5)-7-10
6 1-4-7-10 Diérese entre “prata” e “ao”.
7 3-6-10
8 3-6-10
9 3-6-8-10 Sinérese: pronúncia monossilábica de “sua”
10 2-5-7-10
11 2-5-8-10
12 3-(6)-8-10 Enjambement forte (“Vênus / retratada”)
13 3-6-(8)-10
14 2-6-10
15 3-6-10
16 3-6-10 Diérese entre “risonho” e “abanava”
17 2-6-10
18 3-6-8-10
19 3-6-10

Dos dezenove versos da passagem, quatro são heroicos tradicionais


(os de número 2, 4, 14 e 17) e nada menos que nove são martelos-agalopados
(3, 7, 8, 9, 13, 15, 16, 18 e 19). Um verso (6) pode ser classificado como
gaita-galega: tendo ictos na quarta e na sétima sílabas, ele começa com
ritmo quaternário e termina com ritmo ternário; sua distribuição de acentos
é, portanto, o contrário do martelo-agalopado, que começa com duas células
ternárias e termina com uma quaternária (ou duas binárias). Não há nenhum
sáfico, e apenas três têm icto na quinta sílaba (1, 10 e 11). Dois versos são
de classificação duvidosa: os de número 5 e 12, que relutamos em classificar
como verso com acento na quinta e martelo-agalopado, respectivamente,
porque os ictos definidores são na verdade acentos secundários, e portanto
podem não ser marcados por alguns falantes. Ou seja, quase metade dos
versos são martelos-agalopados — o que é compreensível, dada a natureza
narrativa da passagem, quando se leva em conta que este metro é muito
empregado na poesia popular brasileira de teor narrativo. Somando-se os
heroicos aos martelos-agalopados, temos que treze dos dezenove versos

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— quase 70% do total — de fato apresentam icto na sexta sílaba, e apenas
três (quatro, se contarmos o verso 5) têm acento na quinta. Observe-se que
para se chegar à contagem de dez sílabas fomos obrigados, em três versos
(4, 6 e 16), a não combinar a vogal átona final de uma palavra com a vogal
inicial da próxima, como seria natural em português. O caso do verso 4 é
particularmente problemático porque o hiato forçado ocorre no mesmo
verso que uma fusão natural entre vogais átonas de palavras contíguas.
Examinemos a passagem (b). O verso que aqui aparece com o
número 1 é “Não mais que uma mulher qualquer, domada” (p. 299).

Nº do Escansão Comentários
verso
1 2-6-8-10
2 2-6-7-10 Enjambement forte (“jovem / leiteira”)
3 2-6-8-10
4 3-6-8-10 Enjambement forte (“contra / os deuses”)
5 2-6-10
6 3-6-10
7 2-4-8-10
8 1-4-6-10
9 3-6-10 Enjambement forte (“cão / danado”)
10 2-5-7-10
11 2-5-7-10
12 1-5-7-10
13 2-6-10
14 3-6-10 Enjambement forte (“nobres / meninas”)
15 2-6-10
16 2-5-7-10
17 1-4-6-10
18 3-6-10
19 2-5-7-10
20 2-6-10
21 1-6-10 Diérese entre “o” e “invólucro”
22 3-6-10
23 3-6-10
24 3-5-7-10
25 2-6-8-10

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Nesta passagem temos onze heroicos (1, 2, 3, 5, 8, 13, 17, 20, 21 e
25), sete martelos-agalopados (4, 9, 14, 18, 22 e 23), nada menos que seis
versos com icto na quinta e na sétima sílabas (10, 11, 12, 19 e 24) e um
único sáfico (7), que aliás pode ser lido como um verso perfeitamente
iâmbico se a sílaba tônica de “nossa” receber acento primário, o que é
possível. Aqui O’Shea cumpre o que promete: 72% dos versos têm icto na
sexta — ou 76 %, se “nossa” receber acento primário no verso 7 — e nos
restantes o acento recai na quinta. A menor presença do martelo-agalopado
nessa passagem, em comparação com a anterior, é de se esperar: este ritmo
costuma ser acionado na poesia narrativa, o que não é o caso aqui. Nesta
fala de Cleópatra, o tradutor recorre bem menos aos hiatos forçados — há
apenas um, no verso 21. Por outro lado, ele foi obrigado a utilizar quatro
enjambements fortes, quando na passagem original encontramos apenas um,
ao final do sétimo verso da fala (“Patience is sottish, and impatience does /
Become...”)

Cimbeline, rei da Britânia

Na sua tradução de Cimbeline, O’Shea, como antes, traduz em


decassílabos brancos as passagens em pentâmetro iâmbico e em prosa o
que está em prosa no original. Além disso, as canções do original, com
metro mais curto e rimas, foram recriadas de modo análogo. Tal como
fizemos com Antonio e Cleópatra, selecionamos duas passagens em
decassílabos para a análise formal. Por questões de espaço, não
examinaremos o tratamento dado por O’Shea ao verso rimado das canções.
O primeiro trecho em decassílabos que examinaremos é a fala de
Imogênia, rechaçando a tentativa de sedução de Giácomo (I, vi), na p. 82
da tradução de O’Shea. Iniciada com “Afasta-te! Condeno meus ouvidos”,
a passagem termina com um verso dividido entre Imogênia e Giácomo:
“Pisânio, corre aqui! Feliz Leonato!”

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Nº do Escansão Comentários
verso
1 2-6-10
2 2-4-6-10
3 3-6-10 Enjambement forte (“terias / relatado”)
4 3-6-10
5 1-3-6-10
6 (1)-2-4-6-10
7 3-6-8-10 Enjambement forte (“distante / do”)
8 4-6-8-10
9 2-6-10
10 2-6-8-10
11 2-4-6-(7)-10
12 1-3-6-(9)-10
13 2-6-10
14 2-6-10 Enjambement forte (“bordel / romano”)
15 2-4-6-10
16 3-6-8-10
17 4-7-10
18 2-4-6-8-10

A análise desta passagem nos revela uma situação muito diversa da


que vimos em Antônio e Cleópatra. Com exceção do verso 17, uma gaita-
galega, todos aqui têm icto na sexta sílaba, sendo dez heroicos, seis martelos-
agalopados e um (18) perfeitamente iâmbico, com acentos primários em
todas as sílabas de número par, e só nelas. Desapareceram os versos com
acento na quinta sílaba que eram frequentes em Antônio e Cleópatra. Observe-
se que desapareceram também as diéreses (hiatos forçados) cuja presença
foi apontada nas duas passagens estudadas da tradução anterior, e o número
de enjambements fortes é inferior aos do original (sete, em quinze versos). O
verso nesta passagem de Cimbeline é, portanto, bem mais regular do que o
das passagens estudadas de A&C — regular tanto por utilizar pautas acentuais
mais tradicionais quanto por recorrer menos a diéreses.
Para verificar se esta tendência a uma maior regularidade de fato
caracteriza esta segunda tradução shakespeariana de O’Shea, examinemos
outra passagem em decassílabos, escolhida por acaso. Em IV, ii, tomemos
a fala de Belário iniciada por “Ó deusa, Ó divina natureza” (p. 159), que
termina com um verso dividido por Belário e Guidério (“Poderá nos causar.
E meu irmão?”)

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Nº do Escansão Comentários
verso
1 2-4-6-10
2 4-8-10
3 3-6-10 Enjambement forte (“soprando / Na”)
4 3-6-10 Enjambement forte (“agitar / A”)
5 3-6-10
6 2-6-8-10 Sinérese (hiato de “real” passa a ditongo)
7 2-6-8-10
8 2-6-10
9 2-4-6-10
10 3-6-10 Diérese entre “instinto” e “invisível”
11 1-4-6-10
12 3-6-10 Diérese entre “cultivo” e “um”
13 3-6-10
14 2-6-(7)-10
15 4-8-10
16 2-6-10 Enjambement forte (“presença / De”)
17 2-6-10
18 3-6-10

A análise desta segunda passagem reforça a conclusão que tiramos


da primeira. Nove dos versos são heroicos, 7 são martelos-agalopados e 2
são sáficos. Mais uma vez, não encontramos um único verso com icto na
quinta sílaba. Porém temos aqui algumas diéreses — mas uma delas, a do
verso 12, é em parte justificada pela presença da vírgula. O número de
enjambements fortes, mais uma vez, é próximo dos do original (dois).

O conto do inverno

Para verificar nossa hipótese de que, em suas traduções mais


recentes1, O’Shea adota os padrões de acentuação do decassílabo mais
convencionais no idioma, examinemos duas passagens de sua tradução de
The winter’s tale escolhidas de modo aleatório. Comecemos com o trecho da
segunda cena do segundo ato em que Hermione reage após a ordem de
prisão dada por Leontes, iniciado com o verso “É influência negativa de
algum astro” (p. 72). O original contém onze versos — ou melhor, dez, se
considerarmos que a fala de Hermione começa no terceiro pé de um verso
e termina no terceiro pé de um verso. A tradução tem doze versos e meio.

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O primeiro verso da fala é completo (embora venha após um verso
incompleto de Leontes, com apenas seis sílabas), e o último termina na
sexta sílaba, sendo completado pela fala seguinte de Leontes. Eis a análise
métrica do trecho:

Nº do Escansão Comentários
verso
1 2-6-10
2 1-3-6-8-10
3 3-6-10
4 3-7-10
5 3-7-10
6 2-4-8-10
7 2-5-7-10
8 3-6-8-10
9 2-6-10
10 3-6-10
11 2-6-(7)-10
12 4-6-8-10
13 3-6-8-10

Temos aqui três versos com a acentuação na sétima sílaba (os vv. 4,
5 e 7), sendo que um deles tem também acento na quinta (o v. 7). No mais,
temos cinco martelos-agalopados (os vv. 2, 3, 8, 10 e 13) e quatro heroicos
(1, 9, 11 e 12). Um único verso — o de número 6 — não apresenta acentuação
na sexta sílaba, e sim na quarta, devendo portanto ser classificado como
sáfico. Aqui, ao contrário do que vimos em Cimbeline, reaparecem os versos
com acento na sétima sílaba, porém apenas um também é acentuado na
quinta. Mas o que mais chama a atenção no trecho em questão é a ausência
de hiatos, sinéreses e enjambements fortes (no original, há um único enjambement,
relativamente suave, em “but I have / That honourable grief ”).
Examinemos mais uma passagem, a fala de Leontes que encerra a
peça. No original, a fala tem vinte versos e meio — o primeiro verso
começa no quarto pé do pentâmetro. A tradução é bem mais longa que o
original, com 26 versos:

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Nº do Escansão Comentários
verso
1 1-4-7-10 Diérese entre “Paulina” e “aceita”
2 2-6-8-10
3 3-(4)-6-10 Diérese entre “esposa” e “é”, e enjambement forte (“É
o contrato / Que com juras”)
4 3-6-10
5 2-6-10
6 1-4-6-(9)-10
7 2-4-6-10
8 3-6-8-10
9 2-4-8-10
10 4-6-8-10
11 1-2-4-6-10
12 2-6-10 Diérese (hiato do segundo “sua” passa a ditongo)
13 2-6-(9)-10 Enjambement forte (“por dois reis / Confirmadas”)
14 3-6-10
15 1-4-8-10 Sinérese em “perdoai”
16 1-4-6-10 Diérese (hiato entre “dia” e “interposto”)
17 3-6-8-10
18 2-4-6-8-10
19 1-4-6-10
20 2-4-6-8-10 Sinérese em “boa”
21 2-6-10 Enjambement forte (“p’ra um lugar / onde”)
22 1-3-6-8-10
23 3-6-10
24 2-6-8-10 Enjambement forte (“longo / intervalo”)
25 3-6-8-10
26 4-6-10

Podemos classificar os versos da passagem como se segue: quinze


(mais da metade) heroicos (os vv. 5-7, 10-13, 16, 18, 19, 21, 24-26); sete
martelos-agalopados (3, 4, 8, 14, 17, 22, 23); dois sáficos (9 e 15); um verso
perfeitamente jâmbico, com o acento recaindo em todas as sílabas pares
(20), e um verso com acento na sétima sílaba, o primeiro da passagem,
uma gaita-galega. Ao contrário do que vimos na passagem anterior, portanto,
aqui temos apenas um verso com acentuação pouco comum, o primeiro;
por outro lado, aqui temos várias licenças poéticas no plano da métrica —
diéreses, sinéreses e enjambements fortes — tal como tínhamos visto antes em

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Antônio e Cleópatra; observe-se, porém, que o número de enjambements na
tradução — três — é o mesmo do original (“many” / “a prayer”, “justified”
/ “by us”, “since first” / “we were”).
Resumamos nossas conclusões, utilizando percentagens. Deixaremos
de lado as sinéreses, diéreses e enjambements, limitando-nos à classificação
métrica dos versos.

Peça A&C C CI
Passagem (a) (b) (a) (b) (a) (b)
Total de vv. 19 25 18 18 13 26
Heroicos (%) 21 44 55,6 50 30,8 57,7
Martelos (%) 47,4 28 33,3 38,9 38,5 27
Sáficos (%) 0 4 0 11,1 7,7 7,7
Iâmbicos (%) 0 0 5,6 0 0 3,8
Gaitas (%) 5,3 0 5,6 0 0 3,8
Outros (%) 26,3 24 0 0 23.1 0

Ainda que talvez seja precipitado tirar conclusões com base numa
amostra tão pequena, se considerarmos de um lado os metros mais
tradicionais — heroicos, martelos-agalopados, sáficos e iâmbicos perfeitos
— e de outro as gaitas-galegas e versos de difícil classificação, parece claro
que a tendência de O’Shea tem sido a de recorrer cada vez menos aos
metros pouco convencionais. Apenas o primeiro trecho analisado de Conto
de inverno parece destoar dessa tendência; nos outros três fragmentos das
duas traduções posteriores a Antônio e Cleópatra, a preferência do tradutor
recai nos versos com icto na sexta sílaba: o martelo-agalopado e o heroico.
Sua escolha um tanto excêntrica do decassílabo com acento na quinta sílaba,
afirmada no de Antônio e Cleópatra, parece ter sido deixada de lado nas duas
traduções seguintes, em que predominam os versos de corte mais tradicional.

Nota
1
Sem contar O primeiro Hamlet - In-Quarto de 1603 (2010), que não foi contemplado na
análise por estar ainda no prelo no momento de elaboração do artigo.

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REFERÊNCIAS
MARTINS, Marcia A. P.; BRITTO, Paulo H. “O verso de Manuel Bandeira em sua
tradução de Macbeth”. Scripta, n. 7, p. 133-150, 2009.
O’SHEA, José Roberto. “Antony and Cleopatra em tradução”. In: William
Shakespeare. Antônio e Cleópatra. Tradução e notas José Roberto O’Shea. São Paulo:
Mandarim, 1997, p. 21-33.
______. “Performance e inserção cultural: Antony and Cleopatra e Cymbeline, King of
Britain em português”. In: William Shakespeare. Cimbeline, rei da Britânia. Tradução e
notas José Roberto O’Shea. São Paulo: Iluminuras, 2002. p. 29-43.
SHAKESPEARE, William. The Winter’s Tale. Ed. Ernest Schanzer. The New Penguin
Shakespeare. London: Penguin, 1986.
______. Antony and Cleopatra. The Complete Works. Eds. Stanley Wells; Gary Taylor.
Compact Edition. Oxford: Clarendon Press, 1988.
______. Antônio e Cleópatra. Tradução e notas José Roberto O’Shea. São Paulo:
Mandarim, 1997.
______. Pericles. Ed. Stephen Orgel. The Pelican Shakespeare. London: Penguin,
2001.
______. Cimbeline, rei da Britânia. Tradução e notas José Roberto O’Shea. São Paulo:
Iluminuras, 2002.
______. O conto do inverno. Tradução, notas e bibliografia José Roberto O’Shea. São
Paulo: Iluminuras, 2006.

Paulo Henriques BRITTO


Mestre em Língua Portuguesa pela PUC-Rio. Notório Saber, titulo concedido pela
PUC-Rio, em 2002. Tradutor literário, escritor e organizador com Caetano W. Galindo
de um número temático de Tradução em revista (2011). Professor Associado de tradu-
ção, literatura brasileira e criação literária na graduação (Tradução e Produção Textual) e
pós-graduação (Estudos da Linguagem) em Letras da PUC-Rio.

Marcia A. P. MARTINS
Doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP. Tradutora técnica e pesquisadora
responsável pela criação e atualização da base de dados "Escolha seu Shakespeare"
(http://www.dbd.puc-rio.br/shakespeare). Professora Assistente do Departamento
de Letras da PUC-Rio, na graduação (habilitação em Tradução) e pós-graduação (Estu-
dos da Linguagem).
Artigo recebido em 12 de setembro de 2011.
Aceito em 14 de outubro de 2011.
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