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Fronteiras

A filosofia de Declan Donnellan para uma


presença viva do ator1

CARVALHO, Luiz Otavio (UFMG)2 e ALBRICKER, Vinícius (UNIRIO)3

Resumo: Os autores propõem uma reflexão sobre uma atuação cênica viva e presente,
sem bloqueios, de acordo com a perspectiva do encenador britânico Declan Donnellan.
Para isso, discutem aspectos que frequentemente implicam o bloqueio do ator bem
como evidenciam fatores indispensáveis para que este consiga sustentar uma atuação
viva e presente. Como resultado, os autores apresentam uma reflexão com característi-
cas filosóficas e práticas, convocando o ator a compreender a natureza de uma atuação
cênica viva segundo as “escolhas incômodas” e o “alvo” de Declan Donnellan.

Palavras-chave: Atitude Cênica. Atuação Cênica Viva. Declan Donnellan. Presença.

Abstract: This text is an expanded study of the British director Declan Donnellan’s
ideas on acting. Those ideas are about problems that can damage acting, ‘uncom-
fortable choices’ the actor needs to make as well as a strategy with which the actor
can see things and react. Then, the actor should be familiar with some philosophical
and practical principles concerning acting. Afterwards, he needs to develop some
skills and by using the “target” to train some ways of reacting, in order to not to feel
blocked in his acting.

Keywords: Acting. Attitude. Declan Donnellan. Presence.

1 Artigo convidado em 18/06/2017.


2 Professor Associado do Curso de Graduação em Teatro da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Coordenador geral e
pesquisador orientador do Estúdio Fisções. Doutor em Artes Cênicas: Direção Teatral (USP). (stanlucar@gmail.com)
3 Professor Assistente do Departamento de Interpretação do Curso de Graduação em Teatro da Universidade Federal do Estado do
Rio de Janeiro (UNIRIO). Doutorando em Artes da Cena no Programa de Pós-Graduação em Artes da UFMG. Pesquisador do Estúdio
61 Fisções. Mestre em Artes, linha de pesquisa Artes Cênicas: teorias e práticas (UFMG). (viniciusalbricker@gmail.com)
Comecemos por imaginar uma orquestra. São vários músicos e todos responsáveis pela
coesão musical da execução de uma obra no momento de um concerto em apresentação públi-
ca. Cada um acompanha a sua partitura, que possui uma série de informações que o compositor
teve o cuidado de registrar para delinear a relação de cada parte com o todo de sua obra. Isso
significa que, se o grupo dos primeiros violinos, por exemplo, tiver que tocar a mesma partitura,
todos os músicos desse grupo deverão reagir em precisa sintonia às mesmas indicações do com-
positor. Entretanto, há a possibilidade dessa sintonia não ser tão precisa, resultando em reações
com nuances diferentes entre os músicos desse mesmo grupo. Nesse caso, isso ocorre porque,
ao reagir à partitura a sua frente, cada músico é regido por seu próprio ponto de vista musical.
Se ocorrerem essas pequenas variações nas reações de cada músico, a obra musical que estiver
sendo executada pode sofrer desafinações rítmicas e de outras naturezas. Isso resultaria em uma
audição, no mínimo, confusa.
Para evitar essa audição confusa, a presença do maestro é um recurso fundamental não
só para cuidar da unidade da orquestra em torno da obra musical, mas também para determinar
indicações às quais os músicos, ora individualmente, ora em grupo, devem reagir ao tocar seus
respectivos instrumentos. O maestro, dessa forma, funciona, além de outras funções preciosís-
simas no universo musical, como um provocador, um estimulador. Ele é aquele elemento que os
músicos devem ver, atentamente, para que possam reagir com precisão e adequação rítmicas
ao executarem seus instrumentos. Pode-se notar, inclusive, que em alguns idiomas, como é o
caso do inglês, o maestro é denominado conductor. Não significa que não possam ocorrer leves
variações de dia para dia. Provavelmente, o grupo dos primeiros violinos, por exemplo, jamais
tocará com cem por cento de sintonia, sem apresentar nenhuma leve nuance de um músico para
outro. Mas, com a presença do maestro, digamos, a variação de cada dia, constituirá a unidade
do dia. É natural. É arte viva!
Na arte da atuação cênica teatral, há algumas poéticas em que o chamado diretor perma-
nece presente à frente dos atores no momento da apresentação espetacular, desempenhando
um papel semelhante ao do maestro de uma orquestra. Entretanto, a reflexão que propomos
neste texto4, sobre a presença viva do ator em cena, considerará exatamente as inúmeras poé-
ticas em que não há a presença de um maestro no momento da apresentação pública. Assim, o
que temos no ato da realização da cena são os atores desenvolvendo seus trabalhos em meio a

4 A reflexão que propomos neste texto inclui um desdobramento do segundo capítulo da dissertação de Albricker (2014), coautor
deste artigo. Nesse sentido, para cumprir com os propósitos deste trabalho, utilizamos, revisamos, desenvolvemos, ampliamos e
adaptamos alguns trechos dessa dissertação, incorporando-os às nossas atuais percepções sobre o tema. 62
uma floresta de signos do espetáculo teatral, mas que não inclui o diretor ou encenador, isto é,
aquela figura equivalente ao maestro de orquestra. É bem verdade que, para que isso ocorra,
uma série de ensaios e ajustes cênicos já aconteceram. O diretor teatral já estabeleceu, em par-
ceria com seus atores, todo um percurso de trabalho cênico de acordo com as escolhas estéticas
realizadas por todo o grupo.
Entretanto, como o teatro é uma arte viva, a cada apresentação de cada dia da tempo-
rada podem surgir dúvidas, ou até mesmo novas percepções a respeito da obra encenada e do
espetáculo que está sendo apresentado. Pode, também, acontecer algum problema com um dos
integrantes do trabalho que resulte em uma insegurança dessa pessoa naquele dia de apresen-
tação. Enfim, há todo um contexto de seres vivos e em processo de vida pulsante ao longo de
todo o período das apresentações públicas que podem, naturalmente, trazer perturbações na
organização humana e material dos trabalhos. E, diferentemente de uma orquestra, não haverá
um maestro para, minimamente, orientar e chamar a atenção de todos para os elementos que
devem verdadeiramente funcionar como ‘provocadores ativos’ para que as reações de todos
possam garantir uma unidade comunicativa do trabalho a cada apresentação. Segundo o pensa-
mento do encenador britânico Declan Donnellan (2017b) em seu livro O Ator e o Alvo5, algumas
das inseguranças, perturbações e dúvidas, que atacam os atores, são manifestações decorrentes
de um sentimento desmantelador de reações denominado medo.

O medo: Um estorvo para o ator

O Medo é um estorvo que bloqueia a sensibilidade e a presença viva do ator em cena. O


intuito de Donnellan, em suas inúmeras reflexões sobre a atuação, é ajudar o ator que se sente
bloqueado e, por isso, não consegue atuar com frescor e espontaneidade. Esse autor preza por
um teatro vivo, por um ator sempre presente, por um fenômeno artístico que pulse vida, pois
“a vida é misteriosa e transcende a lógica” (DONNELLAN, 2017b, p. 08). Podemos entender uma
cena viva, na perspectiva de Donnellan, como uma cena repleta de provocações, reações, con-
tradições, urgências, conflitos, disputas e transformações. Elementos como esses perpassam a
vida dos seres humanos e, para esse diretor, devem constituir parte essencial da cena teatral.
Nesse sentido, o objetivo de Donnellan não é ensinar como atuar, de maneira geral, mas sim
mostrar como o ator pode se desbloquear, sem inibir o fluxo de vida de sua atuação.

5 O título original desse livro é The Actor and The Target. A tradução inédita deste para a língua portuguesa, cujo título é O Ator e o
Alvo, foi realizada por nós e está em processo de publicação pela editora Via Lettera, São Paulo.
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Donnellan (2017b) grafa a palavra “Medo” com “m” maiúsculo quando aborda esse ele-
mento como uma entidade. Em seus escritos, o autor personifica o Medo como uma criatura que
perturba, divide e atormenta o ator. Nesse sentido, Donnellan (2017b) traz até nós uma reflexão
sobre o Medo que, se não é uma verdade comprovada cientificamente, é muito bem vinda e útil
para, cada vez mais, o ator conseguir trabalhar a sua presença viva na atuação teatral.
Faz-se necessário evidenciar que, em suas ponderações, o encenador britânico não se
omite em chamar nossa atenção para que não confundamos esse Medo com aquele sentimento
inerente ao ser humano que contribui para a sua preservação existencial: o medo com “m” mi-
núsculo. Às vezes, esse autor escreve “medo” com “m” minúsculo para se referir ao sentimento
humano de medo que, muitas vezes, nos acomete na vida, como uma resposta emocional à
consciência de um perigo iminente. Esse medo consiste em uma estratégia de alerta da mais alta
importância para a preservação das espécies; em especial, do ser humano. Na cena teatral, até
mesmo esse medo funciona como um estorvo. Nesse sentido, Donnellan comenta que o Medo
indesejável “não deve ser confundido com o sentimento que qualquer um de nós poderia expe-
rimentar se um lunático invadisse a sala, agitando um rifle” (DONNELLAN, 2017b, p. 26). Assim,
em nosso entendimento do raciocínio de Donnellan, o sentimento de medo que o ator muitas
vezes enfrenta em cena não decorre de uma situação de extremo perigo de vida, mas sim de um
excesso de controle – ou de sua faceta oposta, a insegurança.
Uma das conjeturas de Donnellan (2017b) mais significativas sobre o Medo, como enti-
dade e que compromete a presença viva do ator em cena, está no fato de que este divide o tem-
po em duas partes, a saber: o passado e o futuro. Isso significa que o tempo presente, o aqui e
agora, sempre é abafado, anulado ou abandonado. Consequentemente, percebemos que, assim,
a presença viva do ator no aqui e agora foi abalada, ameaçada e desestruturada.
A imprevisibilidade do aqui e agora é algo que, muitas vezes, assusta o ator. Este, portan-
to, acaba assumindo uma postura desconfiada diante de algo tão supostamente instável como o
momento presente e procura concentrar em si toda a responsabilidade pelo desenrolar da cena.
Contra a instabilidade inerente a qualquer processo cênico vivo, o ator tenta controlar rigida-
mente cada etapa de sua atuação. Confiar somente em si mesmo, com uma atitude controlado-
ra, pode parecer uma forma de se manter firme e inabalável diante das adversidades. Mas para
Donnellan (2017b), o Controle é, na verdade:

[...] uma praga para o ator apesar de parecer tão prestativo


e amigável. O Controle sussurra: ‘Se você me utilizar, posso
ajudá-lo a escapar das garras do Medo.’ Mas isso não passa
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de uma armação ardilosa, de uma cilada. Quando tentamos
escapar do Medo utilizando o Controle, acabamos por ficar
ainda mais enlaçados com o Medo: ‘Eles fingiam que eram
inimigos, mas estavam juntos nisso o tempo todo!’ O Medo
ameaça, o Controle conspira. E nós ficamos cada vez mais
profundamente confusos. O Medo comanda o seu próprio
KGB onde não sabemos mais quem são os nossos verdadei-
ros amigos (DONNELLAN, 2017b, p. 102, aspas e itálicos do
autor).

Esse Controle conspirador reforça o Medo em sua sina de dividir o ator nas duas dimen-
sões temporais que bloqueiam a sua presença no aqui e agora: o passado, com os seus julga-
mentos de culpa, e o futuro, com sua máquina geradora de ansiedade. Dimensões estas que,
por comprometerem a presença viva do ator, não lhe são nada úteis.
Então, perguntamo-nos: como esse autor exemplifica a sua afirmativa de que o Medo
divide o tempo em passado e futuro, anulando o presente e, consequentemente, deslocando o
ator do aqui e agora, comprometendo a sua presença viva? Com o seguinte raciocínio: se o ator
entra ansioso em cena, ele pode alimentar, por exemplo, o medo de esquecer o texto. Isso gera
nele um aumento de ansiedade que o mergulha em um estado de insegurança. Essa ansiedade
o desloca do tempo presente para o futuro, pois o fato de “dar um branco” ainda não aconteceu.
Poderá até acontecer, principalmente se esse Medo o arremessar para o futuro. Por outro lado,
se a insegurança ou a dúvida leva o ator a ficar sempre analisando o que acaba de fazer em cada
etapa de sua atuação, porque tem a sensação de que não fez alguma coisa bem ou de que não
conseguiu reagir adequadamente, isso gera nele um sentimento de culpa. Essa culpa o desloca
do tempo presente para o passado porque sua atenção fica retida em algo que já ocorreu. O que
passou, passou. A cena continua em progresso para frente. A partir dessa perspectiva, Donnellan
conclui que:

O Medo não existe no “aqui e agora”. Para que ele possa resi-
dir e reinar, ele tem que inventar um tempo falso. Ele, então,
se apossa do tempo real, o presente, e o divide em duas fal-
sas dimensões temporais. Uma metade, ele chama de passa-
do e a outra, de futuro. Ele só consegue existir nessas duas
únicas dimensões. O Medo governa o futuro por meio da

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Ansiedade e o passado por meio da Culpa. [...] O Medo não
consegue respirar enquanto o ator permanecer no presente.
(DONNELLAN, 2017b, p. 27-28).

Para Donnellan (2017b), nem mesmo a História trata do passado. Segundo esse autor,
“a história não tem nada a ver com o passado. A história é como percebemos agora os eventos
precedentes” (DONNELLAN, 2017b, p. 85). Esse raciocínio é útil, segundo o encenador britânico,
para quando os atores fazem um estudo biográfico de suas personagens. Então, ao fazer esse
tipo de estudo, é preciso considerar a seguinte premissa: o passado de uma personagem não é
algo congelado e imutável, pois este é suscitado e transformado somente no instante presente.
Podemos pensar que na vida humana ocorre o mesmo: a nossa percepção de fatos passados se
transforma, constantemente, conforme nossas experiências que se desenrolam no instante pre-
sente. Nesse sentido, Donnellan (2017b, p. 85) afirma que “não há nada tão imprevisível quanto
o passado”. Essa afirmação pode soar como uma ironia, mas, na verdade, representa um princí-
pio concreto que pode ajudar o ator a se livrar daquela faceta do Medo que o prende ao passa-
do, a Culpa. É dessa imprevisibilidade apontada por Donnellan que o ator precisa se alimentar,
dedicando toda a sua atenção à dimensão presencial do tempo. Na realidade, só podemos atuar
no presente, pois até onde sabemos, ainda não é possível retroceder nem avançar no tempo.
Ainda em suas considerações sobre as artimanhas fabricadas pelo Medo há o chamado “olhar
trapaceiro”. Esse olhar divide o ator em duas pessoas ao mesmo tempo: aquele que “faz” e
aquele que “julga”:

Este segundo, que o monitora, é um crítico severo e emite


um implacável relatório dos seus progressos. ‘Como estou
indo?... Bem?... Meu Deus... Tão mal assim?’ E você não pode
nem se esconder nem escapar desse olhar trapaceiro. Então,
você acredita [...] que nada existe além de você e desse olhar
trapaceiro pairando acima de seu corpo [...] (DONNELLAN,
2017b, p. 31, aspas e itálicos do autor).

E como o ator acredita que nada existe além dele mesmo, ele não consegue ver as verda-
deiras coisas sobre as quais ele precisa reagir para transformar. Nesse caso, o ator acredita que
sua relação com o mundo exterior é esse estado egocêntrico, essa sensação pessoal e interior
com a qual convive. Assim, o ator passa a agir deliberadamente e por vontade própria em cena,
chegando, às vezes, a fazer isso por vaidade ou exibicionismo. Mas, o que é pior, sem ter essa
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percepção, pois se encontra completamente cego e manipulado por esse olhar trapaceiro. Isso
pode trazer um desequilíbrio não só rítmico ao espetáculo, mas também, o que é mais grave,
problemas de ininteligibilidade na condução dos acontecimentos dramáticos da peça.
Donnellan destaca, ainda, outras características muito significativas desse Medo destru-
tivo, tais como: ele “[...] vem vestindo uma máscara: a arrogância é seu disfarce favorito e
o maneirismo é outro”, e “ele está conectado com a Dúvida e tem ligações com a Vergonha”
(DONNELLAN, 2017b, p. 26).
Quando um ator não trabalha com confiança sobre o elemento que o provoca em cena,
costumamos presenciar um corpo que começa a forjar muscularmente posturas e aparências ou
uma sonoridade vocal que passa a imitar esse ou aquele modo de falar para expressar alguma
coisa que esteja sendo controlada pela mente do próprio ator e não, necessariamente, provo-
cada por um elemento do jogo cênico. No nosso entendimento do pensamento de Donnellan
(2017b), essas são possíveis manifestações do chamado maneirismo. Além disso, podemos dizer
que são oriundas, também, de um caráter de quem atribui a si mesmo o direito de assumir com-
portamentos ou atitudes em relação aos outros e às coisas por deliberação própria. Esse caráter,
por definição, é um tipo de arrogância. Dessa forma, tanto os maneirismos como as atitudes
arrogantes acabam por impingir à atuação características artificiais. Isso, dependendo do tipo
de trabalho cênico ou do momento dramático de uma atuação, pode afetar negativamente o
espectador, distanciando-o, no mal sentido, da verdadeira e contundente comunicação da cena.
Todas essas questões, que se apresentam como consequências desse Medo desmante-
lador, reforçam no ator ocidental uma característica inerente a sua cultura: o individualizar-se, o
cultuar o egocentrismo.

A primazia do eu: A ruína para o ator

Em consequência dos efeitos do Medo, o ator, nas várias culturas ocidentais, volta-se para
si. O Medo o convence que a solução é controlar a situação, mas, na verdade, prende o ator em
uma terrível e resistente teia de aranha...
Essa é outra questão fundamental, salientada por Donnellan: a primazia do ego. Donnellan
(2017b) infere um traço comum sobre essa questão a partir de suas experiências artísticas em
diversas culturas europeias. O “eu” costuma ser o mantra do ator bloqueado, pois o excesso de
olhar para si mesmo tende a anular o olhar para os outros e para as coisas interessantes que pos-
sam estar bem ao seu lado ou a sua frente. Como ele mesmo destaca: “organizar as coisas em

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torno do ‘Eu’ não ajuda em nada. [...] Não importa se é Eu, I, Ich, Je, Ya, Io, Yo ou qualquer outra
forma em qualquer outro idioma” (DONNELLAN, 2017b, p. 86, itálicos do autor). Nesse sentido,
o encenador britânico faz uma metáfora com as oito patas de uma aranha, para representar oito
questionamentos egocêntricos relacionados ao bloqueio que acomete o ator na cultura ocidental.
Cada questão decorre de algum temor específico, podendo ser a sua causa e também o seu sin-
toma. Conheçamos, então, esses temores, ou melhor, as “patas da aranha”:

‘Eu não sei o que eu estou fazendo.’


‘Eu não sei o que eu quero.’
‘Eu não sei quem eu sou.’
‘Eu não sei onde eu estou.’
‘Eu não sei como eu devo me movimentar.’
‘Eu não sei o que eu devo sentir.’
‘Eu não sei o que eu estou dizendo.’
‘Eu não sei o que eu estou atuando.’
(DONNELLAN, 2017b, p. 14, aspas do autor).

A aranha, um animal peçonhento temido pelo homem, aparece como uma feliz metá-
fora criada por Donnellan, pois representa bem o que é uma imagem desencadeada pelo Medo.
Animais como a aranha, quando se sentem ameaçados, procuram se defender com seu veneno
natural e se refugiam em um local seguro. O ator, de certa forma, também busca um refúgio se-
guro quando sente a sua atuação ameaçada. Parafraseando Donnellan (2017b), o ator tem como
falso mecanismo de defesa refugiar-se em casa. Isto é, o ator foge do mundo exterior, isolando-se
de seus parceiros de cena e ignorando as sutilezas do texto e até mesmo da luz, do figurino, da
sonoplastia. Por isso, o diretor inglês sempre recomenda, em diversas partes de seu livro: “não vá
para casa” (DONNELLAN, 2017b, p. 25). No teatro, provocados por essa ideia de Donnellan, pre-
cisamos nos submeter à relação efêmera e vigorosa do instante presente, sem temer o desconhe-
cido, o desafio e o erro.
O bloqueio é, na visão de Donnellan (2017b), uma atitude de inatividade: ficamos par-
alisados. Essa paralisia não está só relacionada ao nosso corpo imóvel no espaço, mas também
está vinculada, principalmente, a nossa atitude cênica. Assim, o excesso de movimentos afoba-
dos, titubeantes e despropositados também pode se caracterizar como uma situação de paralisia
cênica. Quando estamos bloqueados, não nos afetamos com nada ao nosso redor, porque não
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prestamos atenção às coisas que poderiam tocar nossos sentidos e não conseguimos ver nada a
nossa frente. Enquanto ficamos assim, bloqueados, a aranha vai tecendo sua teia à nossa volta,
atormentando-nos com suas interrogações venenosas.
O raciocínio de Donnellan acerca do bloqueio nos faz refletir sobre uma triste realidade:
na nossa cultura ocidental, temos o vício de vincular a ideia de sucesso ou de fracasso ao indi-
víduo e não ao coletivo. Quando tudo vai bem, seja em uma peça de teatro, um concerto musical,
ou até mesmo em uma partida de futebol, costumamos dar todos os créditos a apenas um ou a
outro indivíduo, desconectando-o do todo.
Com base nessa reflexão, podemos dizer que o ator não deveria desejar destacar-se em
um espetáculo, pois “destacar-se”, como o próprio termo sugere, implica uma desconexão, uma
independência dos demais elementos que integram o espetáculo. Por outro lado, é natural que o
ator almeje atuar bem. Mas, para fazer um bom trabalho, a sua meta não deveria ser “atuar bem”.
Não é a ambição pelo seu sucesso que deveria mover o ator, mas sim o interesse pelos temas e
assuntos que circundam a obra artística, a curiosidade pela relação singular que experimenta
com seus companheiros de cena e com o espectador. Sobre essa questão, Donnellan (1999, p. 23)
afirma que “o Teatro nasce da confluência dos nossos sonhos; não é o resultado dos esforços de
uma só pessoa”.6
Para desativar os efeitos daquele Medo improdutivo, sem que seja por meio de assum-
ir egocentricamente o controle de tudo, colocando-se no centro de todas as coisas, Donnellan
propõe um treinamento de ator em que este deve transformar suas atitudes cênicas e optar por
certos princípios indispensáveis para uma atuação viva e presente. Para essa transformação de
suas atitudes, Donnellan oferece ao ator as chamadas escolhas incômodas.

Escolhas incômodas: Atitudes indispensáveis para o ator

Na perspectiva de Donnellan, para que o ator possa livrar-se das “ilusões do Medo” e
da necessidade do Controle, para que ele deixe de se ensimesmar como única maneira de se
proteger desses terríveis assoladores da atuação viva, é necessário optar por certos princípios e
abdicar de outros. Esses princípios são explicitados em sete escolhas incômodas que perpassam
o seu livro O Ator e o Alvo. Essas escolhas são consideradas incômodas porque não permitem
relativização, exigindo uma tomada de decisão ímpar do ator. Vejamos quais são essas escolhas:

69 6 Esta e todas as traduções deste artigo do idioma inglês da fonte para o português foram realizadas por nós.
1. Concentração ou Atenção
2. Liberdade ou Independência
3. Ver ou Mostrar
4. Certeza ou Confiança
5. Criatividade ou Curiosidade
6. Originalidade ou Singularidade
7. Excitação ou Vida

Convidamos o leitor ou a leitora a pensar: qual opção escolheria em cada um dos sete
tópicos acima? Por quê?
Essas sete escolhas incômodas não são como os sete pecados capitais. Acreditamos que
Donnellan não pretende estabelecer o certo e o errado da atuação. O que o diretor inglês sugere,
com tais escolhas, são atitudes que podem ser eficazes no sentido de se livrar da “teia da aranha”.
Apesar de o autor adjetivar as escolhas como incômodas, percebemos aqui o quão podem ser
úteis para libertar o ator de seus incômodos. Assim, também podemos entendê-las como escol-
has para tirar incômodos. Entendamos, pois, as justificativas de Donnellan para cada uma de suas
escolhas.
Na primeira, Donnellan (2017b) considera que a atenção é mais útil do que a concen-
tração. Para o encenador inglês, a atenção nos ajuda a perceber o que está ao nosso redor e,
assim, nos permite ver coisas que podem nos provocar a reagir. A concentração, todavia, tende a
nos encerrar em nós mesmos, nos ensimesmando com as perguntas do “eu”. A concentração nos
envia para casa, nos bloqueia, nos prende ao Medo, mas a atenção nos abre caminhos para uma
relação sensível com o mundo exterior.
Diante da segunda escolha incômoda, Donnellan (2017b) assume a posição de que não
existe independência e que, portanto, só podemos optar pela liberdade. A perspectiva desse au-
tor nos mostra que tudo o que fazemos depende do mundo a nossa volta. Para vivermos saudav-
elmente nutridos, por exemplo, dependemos dos alimentos do mundo exterior. Nesse sentido,
parafraseando Donnellan (2017b), são as coisas a sua volta que alimentam o ator: sua energia não
brota de dentro de si, mas é oferecida por coisas provocadoras e instigadoras que sempre estão
exteriores ao ator.
Donnellan (2017b) diz que o ator bloqueado, além de não confiar no tempo presente,
também costuma duvidar da liberdade. Para o diretor inglês, “a Liberdade é um mistério. Ela é
uma dádiva assim como a presença” (DONNELLAN, 2017b, p. 33). Basta, portanto, que o ator
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lance um olhar atento para o presente para nutrir a sua atuação. Os estímulos da cena estão no
presente e somos livres para vê-los, somos livres para interagir com tudo o que está à nossa volta.
Todavia, infelizmente, tememos ser abandonados por algo tão grande e misterioso como a liber-
dade. Então, o ator se ilude e se bloqueia dizendo a si mesmo coisas como:

Eu não faço a minha liberdade, então não posso controlá-la.


Mas uma coisa que eu mesmo faço, essa coisa posso contro-
lar para que não me abandone. Então, vou inventar uma liber-
dade sintética, chamá-la de “independência”, e mantê-la na
coleira. Assim, ela vai fazer tudo que eu disser (DONNELLAN,
2017b, p. 33, aspas do autor).

“Eu’, ‘eu’, ‘eu’, ‘eu’, ‘eu”... Novamente o mantra da cultura ocidental ressoa na cabeça de
nossos atores. A ilusão da independência faz com que o ator se volte para si e não dê atenção ao
que está fora de sua área de controle.
Agora, se conectarmos as duas primeiras escolhas incômodas, podemos dizer que:

Para atuar com liberdade, o ator precisa prestar atenção às


coisas que estão ao seu redor.

De acordo com a terceira escolha incômoda, Donnellan (2017b) defende que o ator não
precisa mostrar nada em cena, deve apenas ver. Para esse autor, “atuar não é uma questão de
como vemos as coisas; atuar é uma questão de o que vemos.” (DONNELLAN, 2017b, p. 42). A
atitude de ver significa, portanto, perceber a particularidade das coisas sem julgá-las, apenas
observando-as muito atentamente.
Para Donnellan (2017b), a tentativa de mostrar algo resulta muitas vezes em uma atuação
sem vida. Nessa perspectiva, o ator não deve tentar mostrar sentimentos e emoções como amor
ou ódio. Tentar “mostrar” costuma levar a generalizações que esvaziam a atuação e desviam-na
de seu fluxo de vida. Perguntado sobre o seu conselho mais valioso para um ator que vai fazer um
teste de elenco, Donnellan (2017a)7 categoricamente responde: “certifique-se de que você pode
ver coisas”.
Ao conectarmos essa escolha incômoda às duas anteriores, podemos dizer que:

7<https://www.thestage.co.uk/features/interviews/2017/declan-donnellan-its-dangerous-when-actors-think-its-all-about-their-fee-
71 lings/>
Para atuar com liberdade, o ator precisa ver, com atenção,
coisas que estão ao seu redor.

Vejamos agora a quarta escolha incômoda: certeza ou confiança. Para Donnellan (2017b),
tanto na vida como no teatro não temos certeza de nada do que vai acontecer, então só podemos
optar pela confiança. Entendemos que a confiança, no contexto cênico de Donnellan, não é uma
crença cega e inabalável, mas uma atitude que ajuda o ator a renovar sempre a sua atenção. A
confiança sustenta o ator no instante presente, mas a ânsia por certezas – causada pelo Medo –
lança-o ao passado e/ou ao futuro.
Não podemos ter certeza, por exemplo, de que nosso parceiro de cena dirá a sua parte do
diálogo exatamente do jeito que foi ensaiado. Entretanto, podemos ter confiança nele e acreditar
que a sua fala, seja ela qual for, nos provocará e nos dará a energia necessária para que possa-
mos reagir com uma fala também provocativa e instigante. Querer ter a certeza de que isto ou
aquilo acontecerá nos prende ao futuro, pois são especulações que tendem a nos deixar ansiosos.
Ter confiança pode ser entendido, portanto, como acreditar na vitalidade do tempo presente da
cena e submeter-se a sua imprevisibilidade. Acreditamos que ter confiança, na perspectiva de
Donnellan, é confiar nas coisas ao nosso redor e na nossa liberdade de reagir aos seus estímulos.
Agora, após a abordagem das quatro primeiras escolhas incômodas, podemos com-
preender o seguinte:
Para atuar com liberdade, o ator precisa de atenção e con-
fiança para ver coisas a sua volta e, então, reagir.

Tratemos agora da quinta escolha incômoda: criatividade ou curiosidade. Para Donnellan


(2017b), não podemos nos forçar a ser criativos. Podemos apenas despertar e alimentar a nossa
curiosidade. Criar é algo inerente aos seres humanos. A criatividade está em todos nós e só estanca
quando nossos receios e temores bloqueiam o nosso fluxo natural de reações em vida. Em cena,
quando isso acontece, não convém tentar forçar a criatividade, mas sim apostar na curiosidade. A
curiosidade nos ajuda a ver a particularidade de cada coisa que existe para possibilitar que a criativi-
dade do ator flua, sem bloqueios. É a curiosidade que lhe permite, de fato, ver essas coisas.
Agora, continuando a proposta de concatenar as escolhas incômodas em uma só sen-
tença, podemos dizer o seguinte:

Para atuar com liberdade, o ator precisa ter confiança, des-


pertando sua atenção e curiosidade, para ver coisas a sua
volta e, então, reagir.
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Vejamos agora a sexta escolha incômoda. De acordo com Donnellan (2017b), entre origi-
nalidade e singularidade, convém optar pela segunda opção. Tentar ser original é como tentar
mostrar alguma coisa, ao invés de vê-la. Quando lutamos por uma originalidade, tendemos a fazer
força para empurrar sentimentos e emoções aos espectadores. Na perspectiva desse encenador
britânico, não é muito produtivo querer interpretar um Hamlet ou uma Lady Macbeth originais.
A singularidade é, por sua vez, algo inato ao ser humano, visto que nenhum indivíduo é idêntico
ao outro.
Para Donnellan (2017b), quando tentamos ser originais, sobrepujamos algo que já está
conosco desde nossa gênese: a nossa singularidade. Em cena, quando somos tomados pela
ânsia da originalidade, acabamos por bloquear aquilo que temos de único. Segundo o diretor
inglês, “quanto mais lutamos para ser originais, mais obliteramos nossa singularidade inata”
(DONNELLAN, 2017b, p. 155). A singularidade da atuação não é algo que se conquista, mas que se
deixa fluir quando prestamos atenção, quando assumimos uma atitude de ver o que se dá no aqui
e agora e para além dos limites do nosso ego.
Tendo sido abordada a sexta escolha incômoda, podemos agregá-la à nossa sentença que
sintetiza a filosofia de atuação cênica de Donnellan:

Para atuar com liberdade e singularidade, o ator precisa ter


confiança, despertando sua atenção e curiosidade, para ver
coisas a sua volta e, então, reagir.

Finalmente, diante da sétima escolha incômoda, Donnellan (2017b) considera mais


proveitoso que o ator opte pela vida e não pela excitação. Nessa perspectiva, a energia que dá
vida à atuação não pode ser fabricada por nós mesmos, não pode ser excitada com frenesi inte-
rior. Aludindo a um raciocínio insistente de Donnellan, as coisas que estão a nossa volta são as
fontes de toda a nossa energia. Assim, vale a pena repetir, são as coisas a nossa volta que fazem
germinar a vida na atuação, no sentido de estimular e instigar o ator a reagir com singularidade.
Para o diretor inglês, “quando tememos a nossa dependência à criação imprevisível,
usamos a excitação para fingir vida” (DONNELLAN, 2017b, p. 156). Para esse autor, o temor à
vida deve-se ao fato de não podermos controlá-la, pois podemos perdê-la a qualquer momento
(não somente no âmbito do ator, mas do ser humano). Então, assim temerosos, optamos por
fabricar uma vida genérica, que podemos controlar pela ingestão de pílulas de excitação. De
acordo com Donnellan (2017b), o caminho para uma atuação cênica viva está em ver as coisas
com atenção e curiosidade e não em forçar um estado de excitação que leva o ator a se perder
dentro de si mesmo.
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Agora que conhecemos todas as sete escolhas incômodas propostas por Donnellan,
podemos sintetizar seus princípios de atuação cênica nesta única afirmação:

Para que a atuação cênica tenha vida e singularidade, o ator


precisa ter confiança, despertando sua atenção e curiosida-
de para, com liberdade, ver coisas e, então, reagir.

Há, ainda, uma oitava escolha incômoda que Donnellan não registrou em livro. Desde
2016, em diversas entrevistas e vídeos disponíveis na internet8, o diretor britânico chama a
atenção para a escolha entre simpatia e empatia. De acordo com Donnellan (2017a), a simpatia
implica a identificação do ator com os sentimentos da sua personagem. Para ele, isso é per-
igoso, pois uma relação simpática tende a uma unilateralidade que exclui a ambivalência das
coisas. Já a empatia implica uma relação comunicativa entre diferenças, uma relação curiosa e
calorosa que busca se conectar aos sentimentos do outro e não de si mesmo. E “conectar-se
aos sentimentos do outro” não significa entendê-los, mas vê-los com os seus sentidos bem
aguçados para ampliar a sua percepção do contexto cênico que está repleto de coisas que pro-
vocam o ator a reagir com vida.
Para Donnellan (2017a), a atuação cênica ganha mais qualidades quando o ator procura
ver e jogar com as diferenças – relação de empatia – do que quando busca mergulhar nas per-
sonagens tentando encontrar-se dentro delas – relação de simpatia. Nesse sentido, Donnellan
(2017a; 2017b) afirma que é preciso haver uma distância entre o ator e a personagem para que
a verdadeira relação empática seja possível.
Incorporando mais essa escolha incômoda às outras sete anteriormente referidas,
podemos assim sintetizar o pensamento de Donnellan sobre a arte da atuação cênica viva:

Para que a atuação cênica tenha vida e singularidade, o ator


precisa ter confiança, despertando sua atenção e curiosida-
de para, com liberdade, ver coisas, em uma relação de em-
patia, e, então, reagir.

Não devemos entender essas escolhas incômodas como máximas absolutas da arte de
ator. Esses dilemas poderiam render grandes discussões e polêmicas no âmbito de outras áreas

8 Recomendamos o acesso aos seguintes links:


< https://www.youtube.com/watch?v=Ds5nB5eKTCo >
< https://www.youtube.com/watch?v=Sv-61MFhlys > 74
do conhecimento, como a filosofia ou a psiquiatria. Entretanto, Donnellan (2017b) propõe tais
escolhas com base na arte do teatro e em sua demanda de uma atuação viva e singular, livre
de bloqueios. Convém uma analogia com uma breve história de Nasrudin, transmitida pela
Tradição Sufi desde o século XIV, cujo título é Mais útil:

Nasrudin entrou na casa de chá proclamando:


“A Lua é mais útil que o Sol”
“Por que, Mullá?”
“Precisamos de mais luz durante a noite que durante o dia”
(NASR AL-DIN, 1994, p. 69)

Dentre muitos possíveis significados dessa anedota, podemos inferir que o valor que
damos a uma coisa ou outra depende diretamente do contexto em que sentimos falta dessa
ou daquela coisa. Quando não sentimos falta de uma coisa, não estamos focalizados em sua
existência. É nesse sentido, por exemplo, que Donnellan (2017b) considera a atenção mais útil
que a concentração. Em um contexto de bloqueio em que precisamos nos desvencilhar das
amarras egocêntricas do “eu”, a atenção desponta como uma lua que ilumina a nossa noite e
nos livra do Medo.

O alvo: A coisa que conduz o ator a uma cena viva

Para desativar o Medo improdutivo e suas consequentes manifestações, por exemplo,


em forma de maneirismo e arrogância, para não precisar recorrer ao Controle dominador in-
dividualista, Donnellan (2017b) oferece ao ator o seu operador conceitual denominado Alvo.
Este é o nome com o qual Donnellan batiza aquelas ‘coisas’ que mencionamos durante todo
este texto. Essas “coisas” são, na verdade, o que ele chama de alvos. Os alvos são coisas especí-
ficas que nos provocam a reagir com qualidades corporais específicas; para isso, basta vê-los
com verdadeira atenção. Sendo assim, o ato de ver, não somente com os olhos abertos, mas
com todos os sentidos envolvidos, é crucial para que o ator atue reativamente, ao invés de
demonstrativamente. O alvo é, então, nesse contexto, um elemento específico e ativo que,
verdadeira e presentemente, provoca e o instiga o ator a reagir com atenção, confiança, curi-
osidade, liberdade, singularidade e empatia. Paradoxalmente, para Donnellan (2017b), o alvo
não é um objetivo, um propósito ou uma meta; o alvo é a coisa que realiza uma ação sobre o
ator, provocando-o a reagir. E mais: o alvo, que sempre é exterior ao ator, coloca-se à sua frente
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como um obstáculo a ser superado, exigindo-lhe uma resposta – uma reação. Esse alvo será
cada vez mais potencializado na medida em que o ator transformar suas atitudes.9
Em nossa reflexão sobre o Medo e o Controle, percebemos que o ator nunca pode deixar
o alvo de lado, nunca pode deixar de vê-lo; porque esse é o seu alimento que o manterá vivo,
presente e confiante. Uma vez que o ator está vivo, presente e confiante, o Medo e o Controle não
conseguem atacar; pois o primeiro somente se encontra no futuro ou no passado e o segundo não
consegue conspirar sem uma ameaça em processo, como a dúvida e a insegurança. O ator não
pode, também, controlar os alvos. Ao contrário, ele precisa sempre procurá-los para vê-los com
atenção e confiança, pois “toda energia origina-se do alvo” (DONNELLAN, 2017b, p. 22). Se quiser
que a sua atuação seja presente e viva, precisa se abrir para vê-los, encontrá-los.
Parece-nos, então, em função da necessidade de ver alvos, de se livrar do Medo e do
Controle, que o ator deve sempre tentar estar presente. Primeiramente, para ver os alvos e, em
segundo lugar, para reagir, de fato, sobre esses alvos na condução eficaz do trabalho cênico.
ERRADO! Mais uma vez, Donnellan nos surpreende com um raciocínio mais simples e, até mes-
mo, menos laborioso do que esse de “tentar estar presente”:

Não podemos tentar nos tornar presentes, precisamente


porque já estamos presentes. Então o que podemos fazer?
Podemos trabalhar com a versão negativa dessa questão? Por
exemplo, podemos tentar não ficarmos ausentes? A dificulda-
de é que qualquer “ato de tentar” tende a deixar o ator con-
centrado, o que congela o fluxo de atenção e elimina o alvo.
‘Tornar-se presente parece muito difícil; permanecer presente
parece ainda mais difícil!’ Ambas as situações são ilusões do
Medo (DONNELLAN, 2017b, p. 28, aspas e itálicos do autor).

Aquele que julga, que duvida, que força e se força, que se arroga, que tenta estar pre-
sente, que controla, que se culpa, que anseia, que se envergonha, etc., etc. Observem como essas
expressões e atos são voltados para si e não para o mundo que o rodeia, para um contexto exte-
rior com o qual o ator deve estar atuando, jogando, apostando, reagindo e transformando. Afinal
de contas, ele entra em cena, em um mundo, em um contexto, em um jogo presente. A atuação

9 Deixamos claro que não é nosso foco, neste texto, abordarmos as várias regras e características que determinam o alvo. Esta refle-
xão versa sobre questões filosóficas transculturais que fazem com que um ator possa se encontrar bloqueado.
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cênica, por mais que seja ensaiada, ela é do momento, pois ela é viva e única a cada apresentação.
Isso, no mínimo, deve proporcionar uma necessidade de que naquela apresentação, daquele dia,
daquele momento, daquele lugar, o ator tem que prestar a atenção em um mundo que pulsa e
vive naquele instante e não no ontem e nem no amanhã. São os alvos daquele instante, que, na
verdade, não serão diferentes em suas essências porque o ator ensaiou com eles, mas se diferirão
em qualidades rítmicas, de intensidade, de tamanhos, de volumes, de precisão e de dinâmicas,
que precisam ser vistos. São sobre os alvos do instante presente que o ator reagirá, adequando-
se, também, com as qualidades solicitadas, desse instante, para que a atuação cênica seja verda-
deiramente viva.

Mesmo que seja realizada com as melhores intenções pos-


síveis, a atuação planejada se apresentará artificial porque
resulta do tedioso e antigo medo de que o mundo exterior
não estará lá quando necessitarmos dele. Dessa forma, o ator
declara sua independência daquilo que pode ou não ver no
calor do momento e, assim, se fecha em si mesmo. Não quer
deixar nada ao acaso; prepara tudo para que não perca o con-
trole da situação. Defende-se do imprevisível. Entretanto, ra-
pidamente, sua fortaleza se torna sua prisão (DONNELLAN,
2017b, p. 101).

Dessa forma, Donnellan costuma inferir, de suas experiências com atores de várias culturas
e, consequentemente, com várias percepções do mundo social à sua volta, que o mais importante
para uma atuação viva, ativa e verdadeira não é o fato de se solicitar do ator “expressividade” a
cada apresentação, pois como ele mesmo comenta,

[...] “expressivo” é uma palavra pesada para o ator. Não pode-


mos “expressar” ativamente nada de maneira geral. Portanto,
quando vemos um ator que parece estar expressando alguma
coisa de maneira fluida, o que realmente estamos vendo é
um ator que tem virtude, ou talento, ou treinamento para
não se bloquear. Estamos vendo um ator que se move espon-
taneamente. Por outro lado, quando um ator tenta ativamen-
te ter um corpo expressivo independentemente do espaço,
então, problemas alarmantes podem acontecer. As técnicas
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inúteis se pulverizam sobre o trabalho de um corpo artificial
e, com isso, a verdadeira fluência do corpo fica mascarada
por baixo de uma fluência pretensiosa (DONNELLAN, 2017b,
p. 101, aspas do autor e grifos nossos).

Expressividade e fluência fabricadas pretensiosamente são resultados de um isolamento


em si mesmo, fechando-se para tudo que está em sua volta. Equivale-se a dizer que, “ironica-
mente, o ator bloqueia a sua própria motilidade inata” (DONNELLAN, 2017b, p. 101). Para que
haja expressividade e fluência espontâneas, estas têm que ser consequências de reações pre-
sentes e vivas aos alvos do instante presente. Observem que na citação acima, o autor utiliza-se
de uma palavra, talvez não muito familiar, que é “motilidade”. Ele importa esse termo de concei-
tos oriundos da biologia e da fisiologia que, por sua vez, expressam a capacidade dos seres de
se movimentarem espontaneamente. Donnellan adapta o termo e o introduz em suas reflexões
sobre o trabalho de ator, ponderando que é “preciso um nome próprio [motilidade] para essa
capacidade do corpo do ator estar aberto ao menor estímulo” (DONNELLAN, 2017b, p. 94).

Considerações finais

Com sua companhia Cheek by Jowl, Donnellan e seu parceiro Nick Ormerod já realizaram,
desde 1981, mais de 30 espetáculos bastante aclamados pela crítica internacional. A principal
característica de seus espetáculos é que os atores pulsam vida e sempre ocupam uma posição
central na criação. Segundo o diretor Peter Brook, “[…] Declan Donnellan conduz sutilmente jo-
vens atores a uma tomada de consciência do processo vivo por trás de seu trabalho” (BROOK
in DONNELLAN, 2006). Trabalhando principalmente com elencos britânicos, russos e franceses,
Donnellan lança um olhar atento e criterioso ao ator ocidental, ajudando-o em sua criação como
um perspicaz propositor, instigador e provocador. Os alvos podem levar o ator a viver intensa-
mente cada instante da cena e, portanto, o ator de Donnellan é um ator que reage e que não teme
a imprevisibilidade inerente ao ato teatral. Em favor de uma atuação viva, livre e singular, o ator
de Donnellan aprende a se desapegar de seu ego, dispondo-se ao outro e ao contexto que lhe
acena com toda sorte de alvos. A filosofia de trabalho do Cheek by Jowl pode ser resumida nestas
palavras de Donnellan:

Para mim, a principal prioridade é que o trabalho que realiza-


mos seja vivo, e não morto. Deixo isso nortear meu trabalho

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e me entrego à simplicidade desse objetivo. Então, a prova
de fogo não é: “está certo ou errado?” A prova de fogo não é:
“gosto ou não gosto disso?” A prova de fogo é, sempre, e tem
que ser sempre: “está vivo ou não está?” (DONNELLAN, 2010,
p. 31, aspas do autor).

Esse belo raciocínio do mestre britânico é como um mantra que perpassa toda a sua filoso-
fia de vida e artística. Com esse mantra, Donnellan sintetiza e nos revela seus princípios éticos e
estéticos, como também podemos perceber nesta sua outra fala poética e reflexiva:

O intrigante sobre um excelente espetáculo é que jamais con-


seguimos dizer por que é excelente. É como escrever um obi-
tuário. Podemos fazer várias tentativas descritivas, mas, ao
fim do dia, a coisa bonita sobre a pessoa é que ela estava viva
(DONNELLAN, 2013, p. 40).

A filosofia de Donnellan sobre a atuação cênica abre perspectivas que transcendem os


limites do teatro. Acreditamos que suas ponderações sobre o Medo, o Controle, o alvo e as es-
colhas incômodas tenham o potencial de desencadear pesquisas em diversas disciplinas e áreas
do conhecimento. Então, por exemplo, os princípios éticos e estéticos de Donnellan poderiam
fundamentar o trabalho do músico. Se considerarmos que, para tocar seu instrumento com vida
e singularidade, o músico da orquestra depende de diversos fatores, tais como as indicações da
partitura e do maestro, poderemos dizer que, assim como o ator, ele também precisa assumir
uma atitude atenta, curiosa e confiante para ver os alvos e, então, reagir. Mas isso é assunto para
novas reflexões. O que nos interessa com essa analogia é concluir este trabalho, sempre provi-
soriamente, com o seguinte jogo de palavras: enquanto o maestro é o alvo do músico, o alvo é o
maestro do ator.

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REFERÊNCIAS

ALBRICKER, Vinícius. A fala cênica sob o entrelaçamento dos princípios e procedimentos de


Konstantin Stanislávski e Declan Donnellan. Orientador: Ernani de Castro Maletta. 2014.
Dissertação (Mestrado em Arte e Tecnologia da Imagem) – Escola de Belas Artes, Universidade
Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2014. Disponível em: < http://www.bibliotecadigital.
ufmg.br/dspace/handle/1843/EBAC-9QBN75 >. Acesso em 14 jun. 2017.

CARVALHO, Luiz Otavio. Ação Física e o Alvo: um percurso didático em atuação cênica. Belo
Horizonte: Ed. UFMG, 2017. No prelo.

CHEEK BY JOWL. Site da companhia de Teatro de Declan Donnellan e Nick Ormerod. Disponível
em: < http://www.cheekbyjowl.com >. Acesso em 14 jun. 2017.

DONNELLAN, Declan. “About Macbeth. Entrevista a Declan Donellan. Forma: revista d’estudis
comparatius”. Art, literatura, pensament, Núm. 01 Primavera. Barcelona: Universitat Pompeu
Fabra, 2010. Entrevista concedida a Miguel Berga i Bagué. Disponível em: < http://www.raco.cat/
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______. “Declan Donnellan: ‘It’s dangerous when actors think it’s all about their feelings”. The
Stage, Londres, 16 mar. 2017a. Entrevista concedida a Michael Conevey. Disponível em: <https://
www.thestage.co.uk/features/interviews/2017/declan-donnellan-its-dangerous-when-actors-
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______. “In the Beginning Was Breath: Lloyd Evans talks to Declan Donnellan about his acclaimed
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Books & Arts. Entrevista concedida a Lloyd Evans. Disponível em: < https://www.spectator.
co.uk/2013/03/in-the-beginning-was-breath/# >. Acesso em 14 jun. 2017.

______. O Ator e o Alvo. Tradução de Luiz Otavio Carvalho e Vinícius Albricker. São Paulo: Via
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______. On Directing: interviews with directors. Nova York: St. Martin’s Griffin, 1999, p. 19-23.
Entrevista concedida a Gabriella Giannachi e Mary Luckhurst.

______. The Actor and the Target. Londres: TCG, 2006.

______. The Actor and the Target. txt: ACTOR AND TARGET most recent version 2014. Londres,
2014. Documento do Word for Windows.

80
NASR AL-DIN, Khawajah. Histórias de Narsrudin. Tradução de Mônica Udler Cromberg e Henrique
Cukierman. Rio de Janeiro: Dervish, 1994.

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