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BRASÍLIA – A CONSTRUÇÃO DE UMA PAISAGEM

BRASÍLIA – THE CONSTRUCTION OF A LANDSCAPE

Joseana Paganine/UnB1

RESUMO
O artigo mostra como o urbanista Lúcio Costa e o arquiteto Oscar Niemeyer projetaram o
traçado urbanístico e os monumentos da futura capital da República de forma a criar uma
“paisagem”. Para isso, seguimos o entendimento de que a paisagem não é sinônimo de
natureza, mas um conceito que surge em determinado momento histórico, e marca uma
forma de ver o mundo. No caso de Brasília, Costa e Niemeyer formularam um vocabulário
visual para fazer surgir uma paisagem no terreno sem relevos do cerrado brasileiro. Esse
vocabulário dialoga com o construtivismo e representa o ideal de progresso técnico que
imperava no país nos anos JK.

PALAVRAS-CHAVE
Brasília; Lúcio Costa; Oscar Niemeyer; Paisagem

ABSTRACT
The article shows how urban planner Lúcio Costa and architect Oscar Niemeyer designed
the urban layout and monuments of the future capital of the Republic in order to create a
“landscape”. For this, we follow the understanding that landscape is not synonymous with
nature, but a concept that arises at a certain historical moment, and marks a way of seeing
the world. In the case of Brasília, Costa and Niemeyer formulated a visual vocabulary to
bring out a landscape in the terrain without relief from the Brazilian cerrado. This vocabulary
dialogues with constructivism and represents the ideal of technical progress that prevailed in
the country in the JK years.

KEYWORDS
Brasília; Lúcio Costa; Oscar Niemeyer; Landscape

Em 1883, Dom Bosco, padre italiano fundador da Ordem dos Salesianos, teve um
sonho em Turim, o qual julgou premonitório:

Entre os graus 15 e 20, existia um seio de terra bastante largo e


longo, que partia de um ponto onde se formava um lago. E então
uma voz me disse, repentinamente: ‘quando vieres escavar os
minerais ocultos no meio destes montes, surgirá aqui a Terra da
Promissão, fluente de leite e mel. Será uma riqueza inconcebível’.
(ATHAYDE, 2015, p. 36).

O mito se encontrava, assim, com a vontade política de transferir a capital do Brasil


para o interior do país. Essa vontade foi manifestada pela primeira vez logo após a
declaração da Independência2, em 1822, quando o deputado constituinte Menezes
Palmiro propôs a criação de uma província central para a construção da capital
definitiva do Império (ATHAYDE, 2015, p. 34).

Foram muitas as etapas até que o sonho se tornasse realidade3. Em 1956, o


presidente da República, Juscelino Kubitschek, eleito no ano anterior, deu início às
ações para erguer Brasília. Uma delas foi o concurso para seleção do projeto
urbanístico e arquitetônico que daria forma à nova cidade. O resultado saiu no ano
seguinte. O escolhido, entre os 26 inscritos, foi o projeto do arquiteto e urbanista
Lúcio Costa.

Antes vinculado ao estilo neoclássico, Lúcio Costa se converteu aos princípios da


arte moderna em 1930 ao assumir a direção da Escola de Belas Artes do Rio de
Janeiro. Seis anos depois, ele foi convidado pelo ministro Gustavo Capanema a
projetar o prédio do Ministério da Educação no Rio de Janeiro. Para executar essa
tarefa, Costa se associou aos arquitetos Affonso Eduardo Reidy, Carlos Leão, Jorge
Moreira, Ernani Vasconcelos e Oscar Niemeyer, e convidou para chefiar o grupo o
arquiteto franco-suíço Le Corbusier, já visto como o grande nome da arquitetura
modernista europeia.

A nova sede do Ministério é considerada o marco inaugural da arquitetura moderna


brasileira, junto com o Pavilhão do Brasil na Feira Mundial de Nova York (1939),
desenhado por Costa em parceria com Niemeyer, e o Conjunto da Pampulha (1944),
projetado apenas por Niemeyer.

Em relação ao projeto para a construção da nova capital, a topografia do cerrado


brasileiro proporcionava facilidades ao desenho e às obras, mas também trazia
problemas. Com elevações naturais quase inexistentes ou muito suaves, como
construir a paisagem na nova capital? Essa questão foi expressamente colocada por
Niemeyer no documentário O risco – Lúcio Costa e a utopia moderna, de 2003,
dirigido por Geraldo Motta Júnior. Não havia paisagem na região, diz o arquiteto. Era
preciso construí-la com a arquitetura e o traçado urbanístico.

Ideia construída
Mas o que significa “construir a paisagem”? Para o senso comum, paisagem não se
constrói, ela é dada pela natureza. Ou é a natureza que se dá à visão humana tal
qual “vista”, “panorama” ou “quadro natural” (CARCHIA; D’ÂNGELO, 2009, p. 270),
como se a paisagem fosse tão natural quanto a própria natureza.

Contudo, tanto o termo paisagem quanto o conceito são local e historicamente


situados. Ambos surgem a partir de um determinado ponto do desenvolvimento da
cultura europeia e indicam o aparecimento de uma visão de mundo que traz em si
também uma nova forma de ver a natureza.

O Dicionário Houaiss traz quatro definições do termo “paisagem”. As três primeiras


confirmam o entendimento do senso comum: “1. extensão de território que o olhar
alcança num lance; vista, panorama ‹do alto, essa p. é mais bonita›; 2. conjunto de
componentes naturais ou não de um espaço externo que pode ser apreendido pelo
olhar; 3. espaço geográfico de um determinado tipo ‹p. costeira› ‹p. campestre›”. A
quarta definição remete ao gênero pictórico: “pintura, desenho, gravura, fotografia
etc. em que o tema principal é a representação de formas naturais, de lugares
campestres ‹Frans Post pintou várias p. de Pernambuco› ‹o filme mostra belas p. do
Oriente›”.

As utilizações iniciais do termo são bem demarcadas, de acordo com o Dicionário


Houaiss. O primeiro registro da palavra francesa paysage ocorre em 1549, com a
acepção de “belas-artes”. Em seguida, ela aparece como “conjunto de países”
(1556) e como “extensão de terra que a vista alcança” (1573). Etimologicamente, a
palavra deriva do francês pays (século X) que, por sua vez, vem do latim tardio
pagensis (século VI), habitante de uma aldeia, aldeão.

Assim, os primeiros registros da palavra coincidem com a consolidação da Idade


Moderna. Na Antiguidade e na Idade Média, não havia ainda manifestações claras
da noção de paisagem, como a pintura de paisagem, tal qual seria conhecido o
gênero a partir do Renascimento. Os antigos e os medievais não possuíam a ideia
de paisagem porque não havia ainda a percepção da natureza como parte, mas
apenas como totalidade (a beleza dos cosmos, para os antigos, a beleza da criação,
para os medievais). Nem havia ainda o conceito de sujeito para o qual a natureza se
mostra como objeto, que é uma invenção da Idade Moderna.
No entanto, segundo Carchia e D’Ângelo, embora a ideia de paisagem não esteja
plenamente formulada na Idade Média, a sensibilidade para com o tema começa a
se desenvolver nesse período e “progride pari passu com a objetificação da natureza
que o pensamento científico vai produzindo” (2009, p. 270-271), sendo incorporada
à cultura europeia como um tipo específico de experiência do olhar a partir da Idade
Moderna.

O filósofo e historiador francês Jean-Marc Besse atribui ao poeta italiano Petrarca


(1304-1374), já no final do período medieval, a primeira imagem literária que pode
ser entendida como a descrição de uma paisagem. Petrarca teria posto em
evidência a postura moderna do olhar direto sobre o mundo, que transforma a
natureza em algo distinto da totalidade divina, algo a ser repartido e estudado pelo
olhar científico.

Os historiadores da paisagem há tempos atribuem à carta na qual


Petrarca faz o relato de sua ascensão ao monte Ventoux um valor
inaugural. Com efeito, Petrarca, decidindo escalar a montanha para
simplesmente fruir da vista que pode ser desgrudada do seu cimo,
teria sido o primeiro a encontrar a fórmula da experiência paisagística
no sentido próprio do termo: a contemplação desinteressada, do alto,
do mundo natural aberto ao olhar. (BESSE, 2006, p. 2)

Em A invenção da paisagem, a filósofa Anne Cauquelin ressalta a desnaturalização


do conceito de paisagem. O que vemos não é o que está lá, mas o que a cultura
permite ver por meio de um olhar formado de determinada maneira. A paisagem
como imagem é uma forma simbólica que é estruturada por outras formas
simbólicas, sejam elas visuais ou literárias. Para Cauquelin, o mundo não é como
ele se apresenta, mas um esquema mental, formado por projeções anteriores. A
visão da natureza como paisagem foi formada por uma constante redução do olhar
aos limites de um quadro, redução preparada durante gerações (CAUQUELIN, 2014,
p. 20).

Inata, a paisagem? Não seria isso confundi-la com aquilo que


manifesta à sua maneira, a Natureza? O inato, sob a forma, entre
outras, de Natureza, fica fora da extensão – a natureza é uma ideia
que surge apenas paramentada, isto é, em perfis perspectivistas,
mutáveis. Ela surge sob a forma de coisas paisagísticas, através da
linguagem e da constituição de formas específicas, elas próprias,
historicamente constituídas (CAUQUELIN, 2014, p. 22).
Portanto, a própria natureza, de acordo com Cauquelin, não possui um sentido
estanque, ela mesma é uma ideia que pode mudar conforme a visão de mundo.
Para a filósofa, é a pintura que “enquadra” a natureza e a transforma em paisagem,
desenhada com o auxílio de formas e de cores retiradas do arsenal cultural. O que
vemos, então, segundo ela, não seria senão “a afluência dos projetos que haviam
atravessado a história, obras que se apoiavam umas nas outras até formarem esse
conjunto coerente na sua diversidade” (CAUQUELIN, 2014, p. 22)4.

Tanto Cauquelin quanto Besse são orientados por uma abordagem fenomenológica
do tema paisagem. Se a natureza não é algo simplesmente dado, o sentido dela
também não é um mero produto da subjetividade humana, mas é revelado pelo
homem na experiência, em diálogo com o mundo. É por isso que o sentido da
natureza muda historicamente — o cosmos na Antiguidade, o divino na Idade Média,
os recursos naturais a partir da Idade Moderna.

Paisagem de Brasília

A partir do século XVII, a paisagem é definida como a extensão de um território que


se descortina num só olhar desde um ponto de vista elevado, segundo a fórmula
tornada clássica pela pintura (BESSE, 2006, p. 21). Assim, como construir a
paisagem nesse centro “plano e alto” do Brasil? Na capital da República, arquitetura
e urbanismo trabalharam conjuntamente para fazer surgir a paisagem para seus
moradores e visitantes.

É possível identificar, já no projeto apresentado por Lúcio Costa, a preocupação em


dotar a cidade de uma paisagem, apesar das dificuldades colocadas pelo relevo
local. É lógico que qualquer lugar propicia algo para ser visto, mas isso que é visto
não se configura, necessariamente, como “paisagem”. Para ser paisagem, a vista
precisa, como define Besse, ser panorâmica, combinar elementos naturais e/ou
culturais, ter um ponto de observação para orientar o olhar humano (BESSE, 2006,
p. 21). E precisa, sobretudo, ser “estética”, ou seja, bela, agradável ao olhar,
convidativa à contemplação. O parâmetro do que é ser belo ou estético é fornecido
pela tradição e, principalmente, em se tratando de paisagem, a tradição visual a
partir do Renascimento.
No projeto de Lúcio Costa para Brasília (Figura 1), o ponto escolhido para “fazer
surgir a paisagem” foi justamente o cruzamento do eixo monumental, sentido leste-
oeste, e o eixo rodoviário residencial, sentido norte-sul (Figuras 2 e 3), tendo uma
plataforma situada entre ambos. O terreno por onde está disposto o eixo
monumental apresenta um declive suave, mas acentuado quando se considera toda
a sua extensão, tendo numa ponta o Lago Paranoá e, na outra, a antiga
Rodoferroviária de Brasília. Os edifícios situados ao longo desse eixo respeitam a
escala monumental idealizada por Lúcio Costa5: o Palácio do Congresso Nacional,
os Ministérios, a Torre de Televisão, o Palácio do Buriti, a Catedral e outros.

Figura 1. Projeto do Plano Piloto de Brasília, 1957. Reprodução fotográfica/Acervo da Casa de Lúcio
Costa. Fonte: Livro Brasília 55 anos – da utopia à capital, p. 94

Figura 2. Juscelino Kubitschek e Lúcio Costa, no local de construção do eixo monumental, 1957.
Fotografia de Mário Fontenelle/Arquivo Público do DF.
Fonte: Brasília 55 anos – da utopia à capital, p. 50
Figura 3. Vista área do cruzamento do eixo monumental com o eixo rodoviário, 1957.
Fotografia de Mário Fontenelle/Arquivo Público do DF.
Fonte: https://www.archdaily.com.br/br/945354/a-capital-colonial

Os prédios construídos ao longo do eixo monumental respeitam uma proporção


entre si, de modo a não impedirem a visão uns dos outros (Figura 4). Da plataforma
da rodoviária, avista-se o complexo cultural — de um lado, o Teatro Nacional
Cláudio Santoro, de outro, a Biblioteca Nacional e o Museu da República, seguido
pela Catedral. Mas quem domina a paisagem é a sequência de Ministérios,
colocados simetricamente e cuja visão em perspectiva aponta para o Palácio do
Congresso Nacional ao fundo (Figura 5). Se o observador se distancia, as
construções menores vão sumindo na paisagem, mas a perspectiva formada pelos
Ministérios e pelo Congresso Nacional permanece visível (Figura 6).

Figura 4. Vista aérea das obras na Esplanada dos Ministérios, com o Palácio do Congresso Nacional
no canto inferior à esquerda e plataforma da rodoviária no canto superior direito, 1958. Fotografia de
Mário Fontenelle/Arquivo Público do DF. Fonte: Brasília 55 anos – da utopia à capital, p. 158
Figura 5. Vista aérea da Esplanada dos Ministérios, com a Catedral no canto inferior à direita e o
Palácio do Congresso Nacional ao fundo, 2019. Fotografia de Marcello Casal Jr./Agência Brasil.
Fonte: https://agenciabrasil.ebc.com.br/politica/noticia/2021-03/decretos-da-reforma-ministerial-sao-
publicados-no-diario-oficial

Figura 6. Vista área do eixo monumental a partir da Torre de TV, 2020. Fotografia de Marcelo
Camargo/Agência Brasil. Fonte: https://agenciabrasil.ebc.com.br/foto/2020-10/torre-de-tv-reabre-para-
visitacao-1601673693-0

Observando a partir da Torre de TV, a Esplanada se destaca. Desse ponto, a


plataforma da rodoviária, menor e mais baixa que o restante, praticamente
desaparece.

No documento Memória descritiva do Plano Piloto, apresentado no concurso em


1957 junto com o projeto urbanístico, Lúcio Costa mostra como o conjunto foi
pensado, de modo criar a visualidade do local:

A Catedral ficou igualmente localizada nessa Esplanada, mas numa


praça autônoma disposta lateralmente, não só por questão de
escala, tendo-se em vista valorizar o monumento, e ainda,
principalmente, por outra razão de ordem arquitetônica: a perspectiva
de conjunto da Esplanada deve prosseguir desimpedida até além da
plataforma onde os dois eixos urbanísticos se cruzam. (COSTA,
apud ATHAYDE, 2015, p. 103)

Lúcio Costa prossegue explicando a disposição dos equipamentos culturais do setor


de diversões da cidade, que fica sobre a plataforma da rodoviária. A face da
plataforma debruçada sobre a Esplanada dos Ministérios não foi edificada para se
manter a visão dos Ministérios e do Congresso Nacional. Nesse setor, Costa previu
restaurantes, clubes e casas de chá, que teriam visão livre, de um lado, para a
Esplanada inferior, e de outro, para ao aclive do prolongamento do eixo
monumental, onde ficariam hotéis e a Torre de TV, tratada como elemento plástico
integrado na composição em geral. Infelizmente, esses restaurantes, clubes e casas
de chá não se concretizaram.

A preocupação de Lúcio Costa em propiciar aos moradores e aos visitantes uma


contemplação da cidade vai até o traçado rodoviário:

O sistema de mão única obriga os ônibus na saída e na volta, num e


noutro sentido, fora da área coberta pela plataforma, e que permite
ao viajante uma última vista do eixo monumental da cidade antes de
entrar no eixo rodoviário — residencial — despedida [grifo dele]
psicologicamente desejável. (COSTA, apud ATHAYDE, 2015, p. 104)

O cuidado com a apresentação da cidade e com a experiência visual do morador e


do visitante se estende a outras partes da futura capital. Na atual Avenida das
Nações, que ele chamara de “alameda”, o “bairro das embaixadas e legações”, foi
prevista edificação apenas num dos lados da via, deixando o outro com “vista
desimpedida para a paisagem” (COSTA, apud ATHAYDE, 2015, p. 107).

Do mesmo modo foram pensados os “setores ilhados”, como escreve o urbanista, ou


os Lagos Sul e Norte, “cercados de arvoredo e de campo, destinados a loteamentos
para casas individuais, sugerindo-se uma disposição em cremalheira, para que as
casas construídas nos lotes de topo se destaquem na paisagem, afastadas uma das
outras” (COSTA, apud ATHAYDE, 2015, p. 108).

Considerações finais

A construção da paisagem em Brasília seguiu os princípios do projeto construtivo,


que orientou a idealização urbanística e arquitetônica da cidade, conforme ressalta a
crítica Grace de Freitas. Segundo ela, Lúcio Costa obedeceu aos rigores da
gramática funcionalista e construtivista de Le Corbusier, adicionando características
regionais brasileiras (FREITAS, 2007, p. 40).

O construtivismo internacional, iniciado na Rússia no início do século XX, se


espalhou pela Europa como modelo racional para as artes, capaz de contribuir para
o progresso do homem, por meio de formas retas, geométricas, que obedeceriam à
linguagem universal da matemática. Na Europa, uma prova da força do estilo
construtivista foi a escola Bauhaus, fundada em 1919, que até hoje é referência em
arquitetura e design.

Embora nem Le Corbusier nem Lúcio Costa tenham sido ligados direta ou
indiretamente ao movimento, os fundamentos do estilo já circulavam no Brasil desde
1933, quando foi realizado o 1º Salão de Arquitetura Tropical, cujo catálogo trouxe
um texto do arquiteto alemão Walter Gropius, fundador da Bauhaus. Na década de
1950, o construtivismo se consolida no Brasil como “concretismo”, por meio do
Grupo Ruptura, que lança seu manifesto em 1952. O grupo reforçou a crença na
abstração e na geometria matemáticas como linguagem universal e aderiu à
proposta de conjugar arte, tecnologia e indústria em busca do desenvolvimento
social.

Não só a arte concreta propagava esse ideal. Também a nova capital foi erguida sob
essa égide. JK prometeu 50 anos de progresso em 5 anos de realizações em seu
governo. O Brasil do futuro precisava de uma capital moderna, afinada com as
novas tendências não só artísticas, mas também técnicas e industriais, vide o
privilégio que recebeu o automóvel no planejamento de transporte de Brasília.

Assim, a paisagem na nova capital da República foi construída conforme a visão


predominante na época. Linhas retas e curvas dispostas em equilíbrio geométrico
nos monumentos que privilegiam o concreto como material, mas sem abdicar da
leveza visual, simetrias que estimulam a sensação de perspectiva, longas avenidas
para automóveis margeadas por árvores, imitando bucólicas alamedas. A ausência
de relevos naturais foi superada pela construção de elevações, pela escala
monumental dos edifícios e pela livre visualização de determinadas áreas.
Esses são alguns dos elementos do vocabulário urbanístico e arquitetônico da
cidade. Esse vocabulário não é fruto somente do talento de Lúcio Costa e de Oscar
Niemeyer. Ambos dialogam com o construtivismo, como destaca Grace de Freitas. A
paisagem de Brasília, criada em conjunto pelo urbanista e pelo arquiteto, é uma
forma simbólica — na esteira do pensamento de Anne Cauquelin —, construída com
uma linguagem específica e historicamente situada, e que também possui um
significado dentro da história da arte e da história do país.

Notas
1
Doutoranda em Teoria e História da Arte pela Universidade de Brasília (UnB), é jornalista e formada em Teoria,
Crítica e História da Arte, com Especialização em Filosofia e Mestrado em Teoria Literária, todos pela mesma
Universidade. Contato: joseanap@gmail.com
2 Em 1810, ainda durante o período colonial, o chanceler Veloso de Oliveira sugeriu, em memorial enviado a

Dom João VI, a mudança da capital para um lugar “são, ameno, aprazível e isento de confuso tropel de gentes
indistintamente acumuladas”, mas não propôs a interiorização da sede da Colônia (ATHAYDE, 2015, p. 33).
3 A primeira Constituição republicana do país, promulgada em 1891, ditou: “fica pertencente à União, no Planalto

Central da República, uma zona de 14.400 km, que será oportunamente demarcada, para nela estabelecer-se a
futura Capital Federal”. No ano seguinte, o presidente Floriano Peixoto instituiu a Comissão Exploradora do
Planalto Central do Brasil, chefiada pelo belga Luiz Cruls, que ficou conhecida como Missão Cruls, para
demarcar a área da nova capital. Em 1922, o presidente Epitácio da Silva Pessoa assinou um decreto
determinando o assentamento da pedra fundamental que simbolizava a transferência da capital para o Planalto
Central (ATHAYDE, 2015, p. 35-36).
4 Percebe-se no ensaio de Anne Cauquelin, em expressões e ideias como esquema mental, historicidade das

formas e caráter linguístico da imagem, uma aproximação com o pensamento de Ernst Gombrich. O historiador
da arte austríaco, que foi diretor do Instituto Warburg em Londres, entende a obra de arte como uma linguagem,
a qual possui um vocabulário de formas fornecido pela tradição. Esse vocabulário se modifica conforme o lugar e
o período histórico, mas pode ser entendido pelo espectador que conhecer o contexto linguístico em que se situa
a imagem (GINZBURG, 1989, p. 79).
5
São quatro as escalas previstas pelo urbanista. Além da monumental, há a escala gregária, que está contígua à
plataforma de cruzamento e contendo os aparelhos culturais; a escala residencial, situada ao longo do eixo
rodoviário; e a escala bucólica, que se estende ao longo do Lago Paranoá.

Referências

ATHAYDE, Danielle. Brasília 55 anos – da utopia à capital. Brasília: Artetude Cultural,


2015.

BESSE, Jean-Marc. Ver a terra: seis ensaios sobre a paisagem e a geografia. Tradução
Vladimir Bartalini. São Paulo: Perspectiva, 2006.

CARCHIA, Gianni; D’ANGELO, Paolo. Dicionário de estética. Tradução Abílio Queirós e


José Jacinto Serra. Lisboa: Edições 70, 2009.

CAUQUELIN, Anne. A invenção da paisagem. Tradução Pedro Bernardo. Lisboa: Edições


70, 2014.

FREITAS, Grace de. Brasília e o projeto construtivo brasileiro. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 2007.

GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas, sinais. Tradução de Federico Carotti. São Paulo:
Companhia das Letras,1989.
HOUAISS, Antonio. Dicionário Houaiss. Disponível em:
https://houaiss.uol.com.br/pub/apps/www/v3-3/html/index.php#0. Acesso em: 30/06/2021.

MOTTA JR, Geraldo. O risco – Lúcio Costa e a utopia moderna. Disponível em:
https://tamandua.tv.br/filme/?name=o_risco_lucio_costa_e_a_utopia_moderna. Acesso em:
30/06/2021

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