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CRISES E TRANSFORMAÇÕES DO CONCEITO DE PAISAGEM

Michele Petruccelli Pucarelli


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CRISES E TRANSFORMAÇÕES DO CONCEITO DE PAISAGEM

Michele Petruccelli Pucarelli

Resumo:
.
O conceito de paisagem convive desde sua gênese com a difícil e delicada situação
de não ter nem um marco definitivo quanto à data de sua origem nem um local preciso
de início. Estabelecer um conceito que o defina se torna outro problema tal o grau da
abrangência dos grupos de saber que utilizam o termo. Contudo, a paisagem tem uma
história que vem através de evoluções e transformações, estabelecendo referências
que na contemporaneidade entram em uma crise que, tentamos neste artigo refletir o
contexto, além dos possíveis caminhos de continuidade.

Palavras chaves: paisagem, origem, crise, transformação.

Abstract:

The concept of landscape lives since its genesis with the difficult and delicate situation
of not having even a definite mark on the date of its origin nor a precise start site.
Establish a concept that the set becomes another problem as the degree of coverage
of the groups know they use the term. However, the landscape has a history that comes
through evolutions and transformations, establishing the contemporary references that
go into a crisis that, in this article we try to reflect the context, as well as possible
ways of continuity.

Keywords: landscape, origin, crisis, transformation.


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1.1. INDEFINIÇÕES NA GÊNESE DO CONCEITO DE PAISAGEM

Quando dizemos gênese, procuramos por um começo, uma origem. Contudo,


tentar determinar um exato começo para o conceito de paisagem significa abrir a porta a
inúmeras opiniões e fragilidades temporais, porque o termo paisagem sempre esteve
envolvido em uma relação variada quanto ao que se compreende como uma data de início.
Entre os muitos autores que discorreram sobre este tema encontramos um consenso geral
na ideia de que a utilização do termo “paisagem” surgiu associada ao desenvolvimento
da pintura, aparecendo na Europa em torno do séc. XV e XVI na Holanda. Mas também
encontramos autores que a posicionam de modo enfático no Quatroccento Italiano, como
Alain Roger em seu Pequeno Tratado da Paisagem,

“É verdade que a paisagem ocidental, como padrão de visão é


originalmente pictórica [...] Não foi a pintura que induziu a paisagem,
mas sim uma certa pintura que, inventando um novo espaço no
Quatroccento, que inscreveu de modo árduo e gradual a paisagem na
pintura. (ROGER, 1997, p. 65)1

Mas também há os que defendem que este conceito apareceu pela primeira vez
na história da humanidade na China, no século IV da nossa era. (BERQUE, 1997) E ainda
os que defendem que as pinturas rupestres, com mais de 30 mil anos A.C. não deixariam
de ser referências às expressões de observação e memória ao retratarem elementos
ritualísticos de caçadas, danças, alimentação, rios, conjunto de montanhas e habitação
(JELLYCOE. G, JELLYCOE, 1995). Do mesmo modo, podemos remontar ao Egito, na
IV dinastia, em 2000 A.C, quando se organizavam jardins ornados com apertes de água
e varandas, “a relação dos povos da Mesopotâmia com a paisagem se evidencia, por
exemplo, no aproveitamento do regime de cheias dos rios, na observação do céu e estrelas,
na construção de jardins.” (MAXIMINIANO, 2004, p. 84).

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Il est vrai que Le paysage occidental, em tant que schéma de vision, est originairement pictural [...] Ce
n’est pás le peinture qui a induit le paysage, mas cette peinture-là qui, inventant um nouvel espace au
Quatroccento, y a inscrit, progressivement et labourieusement, ce paysage-là. Court traité Du paysage
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Tantas variantes em relação a uma data de origem quanto ao uso do termo


paisagem se misturam ainda a própria noção do conceito desta e ajudam a reforçar o
porquê da fragilidade em se determinar o que seria o ponto de origem assim como o de
uma referência conceitual inicial precisa, já que inúmeros cruzamentos se interligam e se
misturam junto à própria ideia de natureza. E nesta procura retornamos ao local onde se
encontra a base fundamental do saber ocidental: a Grécia antiga. E não deixa de ser
curioso verificar que o termo paisagem também não fazia parte daquela imagem idílica
que surge ao se pensar nessa época.

“[...] vemos a Grécia com olhares enamorados e “caminhamos” pelas


descrições da Acrópole ao sol poente. Vemos a Grécia com olhos de
quadro. Quem, mais que os gregos, poderiam ter naturalmente a noção
de paisagem? Quem poderia fazer resplandecer, com um brilho mais
incomparável, a luz do sol sobre o mármore dos templos? [...] A Grécia
é isso. É possível que nenhuma ideia de “paisagem” tenha sido formada,
formulada, elaborada? Coisa aparentemente impossível. Contudo, é
isso mesmo. Para nosso grande desconcerto. (CAUQUELIN, 2007, p.
44-45).

De fato, frente à imagem de todas as ilhas gregas com o mar mediterrâneo em seu
entorno, suas colinas, seus rochedos e templos reunidos com apuro estético e harmonia,
se torna difícil entender o porquê de não se ter o termo paisagem presente já que
teoricamente estamos imersos em um dos mais belos da história. Mas como sempre é
possível levantar hipóteses, podemos sugerir que no universo da beleza grega, era a razão
e não a emoção que comandava o destino geral de uma sociedade tão inspiradora e
harmônica em sua estrutura e ideal. Portanto, a partir desta premissa podemos suspeitar
de que talvez possa estar na dificuldade em perceber, analisar e interpretar determinadas
cores a inexistência do termo paisagem.

Afinal, é preciso lembrar que cor é cor para cada retina, que cada uma sensibiliza
de um modo ligeiramente diferente em relação à outra, e não à toa, aí reside um dos
grandes problemas ainda existentes com a tecnologia digital das imagens – transferir para
o papel o que vemos na tela. E não podemos esquecer que na Grécia antiga ainda não
havia a amostra da cor azul, a cor predominante entre o céu e o mar em meio às ilhas
paradisíacas.
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As cores são ideias de cores, e quem não tem a amostra (o paradigma)


não tem a coisa. Ora, os gregos não tinham amostra de azul. As quatro
cores disponíveis eram o branco, o preto, o amarelo/ocre e o vermelho.
Para eles, o mar era verde-pardo e vermelho-violáceo, nos tempos de
tempestade, glauco, e o céu unicamente “luminoso” brilhante pelo fogo
do éter. O brilhante e o baço, o sombrio e o claro, o sol e sua sombra.
Muita sombra cercando o brilho. Na verdade, preto e branco compõem
o mundo visual, e sua mistura dá as outras cores (CAUQUELIN, 2007,
p. 37).

Chegamos então à hipótese, plausível, que o mundo grego antigo com toda sua
erudição e harmonia mantinha sua unidade em uma forte estrutura organizacional que não
necessitava de nenhuma paisagem sensível para delinear seus sentidos.
Consequentemente, a pureza de suas ideais era bem traduzida pelo preto, o branco e suas
misturas. E o azul, que apenas surgiria vindo do Oriente, traria junto consigo uma ideia
de decomposição dessa pureza, assim como a de uma nova composição. E a partir da
amostra do azul presente, toda uma nova gama de cores viria a dispersar e fragmentar as
linhas dos desenhos e convocar novos conjuntos de significantes e significados para
ajudarem a cruzar e misturar os novos destinos que fariam surgir enfim o termo paisagem.

Portanto, apesar das inúmeras possibilidades de marco inicial, nos deparamos com
o fato de que a noção de paisagem é um daqueles conceitos que escapam de uma
referência temporal precisa por parecer existir desde sempre. Deste modo a questão do
como a paisagem é compreendida passa a ser o fator decisivo para se estabelecer uma
data de referência inicial de acordo com os estudos e objetivos de cada pesquisa.

1.2. MARCOS DE ORIGEM DO CONCEITO DE PAISAGEM

Apontamos e defendemos o ano de 1337 como marco inicial do conceito de paisagem


por ser esta a data do início da realização da eloquente obra de Ambrogio Lorenzetti:
Allegoria del Buono e del Cattivo Governo. Esta obra é um grandioso conjunto de quatro
afrescos realizados entre 1337 e 1339, na Sala dos Nove do Palazzo Pubblico di Siena,
demonstrando aspectos gerais do Bom Governo e o efeito dom Governo na Cidade e no
Campo. Abaixo, observamos o afresco do Efeito do Bom Governo na Cidade que
apresenta uma perspectiva da cidade de Siena. Nesta imagem destaca-se a ideia de que a
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cidade esta sempre em movimento, com construções, andaimes, as relações entre trabalho
e o ócio que revela também as relações de poder como descrito por Le Goff, “... a cidade
está crescendo, o trabalho não para. A cidade é o reino da construção. São casas dos
poderosos e ricos.” (GOFF, 1988, p. 41).

Fig 1. Allegoria del Buono e del Cattivo Governo, 1337-1340. A vida na cidade. Os efeitos do Bom
Governo. Afresco (detalhe). Siena, Palazzo Publico. Lorenzetti, Ambrogio.

Contudo, reforçando a ideia de dúvidas e marcos de origem, outra obra de


Lorenzetti, Cidade à Beira Mar, datada de 1346, também é considerada como o primeiro
exemplo europeu da pintura de uma “pura” paisagem urbana. Nela vemos uma cidade
aparentemente deserta, vista do alto, com uma iluminação que incide nos telhados e nas
ruas. Mas, por se tratar de um mesmo autor não nos parece que haja razões para não ter a
obra Allegoria del Buono e del Cattivo Governo como uma referência mais precisa de
marco de paisagem, ao menos na questão urbana.

Contudo, apesar das obras importantes aqui citadas e, independente da definição


de um marco inicial definidor, parece haver um consenso de que o termo paisagem como
um conceito que revele o início de uma época com vasta produção a partir desta ideia
encontra seu melhor momento a partir da invenção da perspectiva exata. E esta nos leva
diretamente aos nomes de Leon Battista Alberti, o primeiro a sugerir à ideia de se
considerar a pintura como uma janela através da qual se contemplaria o mundo visível e
o de Leonardo da Vinci que viria dar substância a essa ideia. (GOMBRICH, 2006,p. 253).
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Mas como se sabe, toda origem somente pode ser analisada e estudada depois de
sua sedimentação e reavaliação histórica. E foi o historiador de arte alemão Erwin
Panofsky, alguns séculos mais tarde, quem melhor teve a consciência do valor histórico
e social da profunda transformação que a perspectiva introduziu no ocidente para então
nomeá-la como uma forma simbólica2 - “forma” por ela estabelecer um novo padrão de
naturalidade para o conteúdo visual geral ocidental; e “simbólica” por saber que ela unia
a base cultural da renascença e o plano de fundo de toda a modernidade.

Este ponto é decisivo não apenas para o conceito de paisagem, pois não foi apenas
uma nova técnica de pintura que estava sendo introduzida. A técnica propiciou não apenas
uma nova estrutura para a ideia de profundidade, mas estabeleceu também um corte
espacial e temporal na estrutura mental de uma época. Afinal com a ampla visão que
distância que o tempo permite, não é difícil perceber que o que de fato ocorreu com a
invenção da perspectiva exata foi uma profunda mudança de paradigma na forma do olhar
ocidental. Um corte de como o mundo era visto até aquele momento, e, o que não pode
deixar de ser relembrado com ênfase, de como ainda vemos nos dias atuais.

Para entendermos melhor este momento da história é preciso relembrar que um


pouco antes da invenção da perspectiva exata a região de Flandres3, era o local onde
estava a efervescência artística e intelectual da Europa onde havia uma intensa produção
pinturas paisagísticas, que viria a ser reconhecida como Escola Holandesa de Pintura.
Todavia, até a época Renascentista Italiana o que se destacava como paisagem era uma
representação figurada um tanto destacada do contexto geral do quadro. Nos quadros da
escola de pintura paisagística holandesa, apesar de toda maestria e esmero no uso das
técnicas existentes, sobressai uma sensação de estarmos frente às imagens sobrepostas;
ou porque parte delas estava sendo realizada em estúdios com a presença dos modelos,
os retratos, e parte porque mesmo nas pinturas paisagísticas a relação dos planos era
apenas a de uma perspectiva aproximativa e não exata.

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O ensaio A perspectiva como forma simbólica sustenta a tese de que todos os sistemas perspectivos são
historicamente plurais e demonstram como cada um deles se efetua a partir de uma concepção interligada
entre tempo, espaço e visão”. Para tanto o autor reconstrói a história da perspectiva desde o mundo antigo
até o século XVII.
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Região norte da Bélgica, cuja língua praticada era o holandês e o dialeto flamengo.
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Fig 2. Madonna com chanceler Rolin. Jan Van Eyck, 1435.

Mas, com a introdução da perspectiva exata, no renascimento italiano, ocorre uma


modificação substancial no desenvolvimento da pintura e de sua relação com conceito de
paisagem. Esta, antes destacada, passa a se misturar de modo tão harmônico e de tal modo
integrado com a realidade que ela mesma passaria a ser compreendida como outra
realidade,

“[...] a paisagem adquiriria a consistência de uma realidade para além


do quadro, de uma realidade completamente autônoma, ao passo que,
de início, era apenas uma parte, um ornamento da pintura. Aqui já
poderíamos nos admirar com tamanha autonomia para um simples
elemento técnico, com um vôo desses, com uma “naturalização”
dessas. Mas para podermos admirar realmente, é necessário ainda sair
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do círculo encantado da história da arte. [...] Pois essa forma simbólica


estabelecida pela perspectiva não se limita ao domínio da arte.
(CAUQUELIN, p 37, 2007).

Fig 3. Anunciação. Leonardo da Vinci, 1472-73.

A busca desta outra realidade integrada harmoniosamente faz parte de um longo


e mutável processo de sedimentação e transformação do conceito de paisagem4, que
talvez tenha sido incorporado e naturalizado de tal forma ao olhar acidental que já nem
conseguimos refletir que em algum momento da história da humanidade esta concepção
de olhar o mundo não existia. Mas com certeza sua invenção provocou uma nova história
que na verdade começa antes, ainda no olhar frontalizado, mas já escalonado em niveis
da escola de Siena com Lorenzetti, no sec. XII, e passa a ter relevância na escola
holandesa de pintura, no sec. XIII, através de nomes como Jan Van Eyck, quando ainda
a paisagem era utilizada como assunto de fundo para retratos no primeiro plano. No
Renascimento Italiano, séc. XIV, através da perspectiva exata, ocorre a integração
harmoniosa entre as figuras do primeiro plano e a paisagem ao fundo das pinturas de
artistas como Leonardo da Vinci, Rafael e Ticiano. A expressividade e a maestria técnica
destes artistas influenciarão e serão intensificadas na era Barroca, sec. XV, por nomes
como Peter Paul Rubens, Nicolas Poussin, Johanes Verrmeer e Claude Lorrain. Este
último considerado um dos grandes paisagistas do barroco francês e um dos primeiros a

4
A quantidade de nomes representativos na pintura de paisagem é extensa e qualquer lista sempre deixará
de fora vários outros nomes importantes. Sendo assim é importante ressaltar que os nomes que aparecem
neste artigo não elimina a importância histórica de tantos outros. Mas uma extensa lista com explicação
de cada nome provocaria uma fuga do objetivo central do artigo.
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ter na paisagem seu tema principal. Esta característica será rebuscada e exagerada no
Rococó com Jean-Antoine Wateau, séc. XVI, mas encontrará seu ápice na era romântica,
sécs. XVI / XVII quando a abordagem subjetiva e emocional aliada a uma visão de mundo
que destaca a imensidão e a natureza caótica do universo passa a estar presente nas
imagens feitas por nomes como John Constable, Caspar David Friedrich e William
Turner. Este processo de evolução técnica e modulações de representação expressiva
casado com a expansão das ferrovias e a invenção dos tubos de metal para tinta a óleo e
dos cavaletes portáteis vai permitir uma nova visão de mundo no universo impressionista,
séc. XVIII, com Monet, Degas, que se desgarram das instituições acadêmicas e expõem
diretamente ao público um universo que lida com a luz e com as sensações da luz nos
objetos, reunindo os costumes e paisagem urbana assim como dos subúrbios e do interior
da França, quando vai encontrar um extremo de expressividade em Cezánne e Van Gogh.
E a partir de então, abre-se espaço para novas possibilidades de se pensar, imaginar e
representar a paisagem que ecoam até a contemporaneidade, revelando tanto a
popularização do uso deste termo como também, passaram a dar sinais de uma crise.

Fig 4. Nascer do sol. Monet, 1872


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Fig 5. A casa do Sr. Gachet em Auvrers, Cezzánne, 1873.

1.3 A CRISE ATUAL E A CONTEMPORANEIDADE

A introdução de um novo paradigma visual através da perspectiva exata propiciou


uma valorização das expressões visuais, mas também trouxe, no decurso do tempo, uma
excessiva utilização do termo paisagem nos mais variados campos. Neste processo o
termo passou a ser utilizado em várias áreas como: arte, geografia, jardinagem,
arquitetura, engenharia, antropologia urbana, economia e política. O que demonstra que
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o conceito de paisagem se espalhou e popularizou, mas também perdeu a capacidade de


revelar uma referência precisa, fazendo com que seu conteúdo se dilate e disperse de tal
forma que ao se utilizar de forma genérica o termo paisagem não mais se saiba sobre o
que está se querendo dizer - o que, de certa forma, nos revela, que a paisagem, como
conceito, se encontra em crise.

Crise esta que, segundo Alain Roger, resulta de um duplo movimento de


deterioração in situ e de abandono in vitu. Mas para o autor esta crise é o resultado de
uma esclerose de um olhar que continua em busca de uma estética bucólica associada a
paisagens que já não existem. Ou seja, estaríamos em meio a uma dupla existência entre
a memoria e a realidade, em uma espécie de corte, ou talvez, uma separação entre dois
caminhos. Todavia, esta ideia já havia sido descrita na história por Santo Agostinho,
“quando Santo Agostinho declara que não é no espetáculo da natureza o local para se
buscar a verdade divina, está de certa forma retornando uma ideia platônica ao sugerir
que é na memória que o “Senhor” habita.” (BERQUE, 1997, p. 19). Esta separação vai
permitir todo um desenvolvimento de separação entre a natureza e a verdade e com o
descentramento das propostas de Copérnico irrompe a revolução científica do séc. XVII.
Com isto a modernidade europeia dividiu a “natureza” em dois mundos: de um lado, os
que nos revelam a ciência e a verdade e outro, que nos revelam os sentidos. E para Berque
é nesta separação que se encontra o reflexo da crise atual do termo paisagem.

Contudo, não se pode falar de crise da paisagem isolando-a. Afinal, tudo muda.
Mudam-se os tempos, mudam-se as sociedades e com elas também mudam as paisagens.
Vivemos uma era marcada por grandes avanços e grandes perdas que nos situa em um
momento de certa sensação de insegurança identitária (HALL, 1992, p. 13). Tanto em
função da diluição do sentido de fronteiras como também pelo aumento de desemprego e
empregos precários, atípicos e apenas temporários em vários países. Mas, sobretudo uma
época onde todas as referências foram embaralhadas, pois não se estabeleceu uma clara
ruptura com o que foi, mas também não se estabeleceu uma nova referência com o que se
apresenta como novidade. (HARVEY, 1994, p.43)

Estamos ainda imersos entre um processo de construção e desconstrução de novo


territórios físicos, mas também mentais. E talvez seja esse um dos problemas de certa
desorientação geral contemporânea. Hoje vivemos em meio a uma passagem com muitos
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acontecimentos embaralhados e, ainda nos falta a distância do tempo para que se possa
proceder uma análise crítica mais abrangente. O que se desenvolve nesta passagem,
segundo o filósofo Gilles Lipovetsky, é o que se pode chamar de uma hipercultura, ou
cultura-mundo:

“[...] Ela se define em primeiro lugar pela separação entre cultura e


economia, em segundo lugar pelo significativo desenvolvimento da
esfera cultural, em terceiro lugar pela absorção dela pela ordem
mercantil. A cultura que caracteriza a época hipermoderna não é mais
o conjunto das normas sociais herdadas do passado e da tradição, nem
mesmo o “pequeno mundo” das artes e das letras (a alta cultura).
(LIPOVETSKY, 2008, p. 68).

Entretanto, inserido em todo este processo se encontra a transformação das


cidades e, em particular, a questão da transformação da paisagem. E por mais que
saibamos que a paisagem não é uma espécie de revelação, que ela não existe fora de uma
construção individual ou coletiva, temos na atualidade certo tipo de concentração, ou
bloqueio da paisagem. Grandes cidades como São Paulo, Nova York, Paris, Londres,
Pequim, Cidade do México, cada vez mais se parecem umas com as outras engolidas por
arranha-céus gigantescos, shoppings-centers que se multiplicam de forma similar somado
a repetição de design de lojas com marcas globais que mais transmitem a sensação de que
todas caminham para tornar as paisagens em uma única que as traduzam.

Ou talvez não seja bem a questão de homogeneização da paisagem, mas sim que
todas se encontram em um processo onde é muito difícil de distinguir o que é natural do
que é artificial nelas, tendo-se como premissa o fato de que a paisagem artificial é a
paisagem transformada pelo homem, enquanto a paisagem natural é a que não foi mudada
pelo homem, como descrito pelo geógrafo Milton Santos:

“[...] A paisagem é um conjunto heterogêneo de formas naturais e


artificiais; A paisagem é sempre heterogênea. A vida em sociedade
supõe uma multiplicidade de funções e quanto maior o número de
destas, maior a diversidade de formas e de atores. Quanto mais
complexa a vida social, tanto mais nos distanciamos de um mundo
natural e nos endereçamos a um mundo artificial. Se levarmos em
conta a sucessão histórica dos modos de produção, nela
reconheceremos as diversas gradações do artifício, com o império do
cultural se tornando cada vez mais marcante e significativo. Este
parece ser o caminho da evolução.” (SANTOS, 1997, p. 65).
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Mas a tentativa de separação entre uma paisagem artificial e natural é frágil e


delicada, pois, ainda que o homem não toque em determinados, e cada vez mais raros,
lugares, eles ainda são objetos de interesses e intenções políticas ou econômicas - e sob
esse aspecto, não há como fugir do fato de que toda nossa atividade é política, o que
significa dizer que todo ambiente é político e social. Contudo, concordamos com o
geógrafo no sentido de que a paisagem não é única e nem criada de uma só vez, mas sim
constituída por acréscimos e substituições, e que a lógica pela qual se fez um objeto no
passado era a lógica de produção daquele momento histórico.

Afinal, na medida em que se mudam os tempos, mudam-se as sociedades e com


elas, as paisagens, ou seja, sempre, em algum momento, tudo muda. No caso particular
da era em que vivemos estas mudanças são rápidas e de tão rápidas são, às vezes, difíceis
de serem detectadas no decorrer de suas mudanças. O séc. XX se apresentou como um
século de rupturas e deslocamentos em inúmeros campos. Uma era enfim, caracterizada
pela descontinuidade com um “velho” mundo. Contudo, a partir de tantas quebras,
sobrevêm tantas outras renovações de conceitos e neste aspecto a paisagem se viu
multiplicada em inúmeros e variados campos que ajudaram a criar uma desorientação
sobre qual sentido está se querendo transmitir quando o termo é usado sem um contexto
específico.

1.4 PAISAGENS MÚLTIPLAS E O RETORNO AO REGIONAL

Um dos problemas que encontramos ao discorrer sobre o tema é o de se tentar


amalgamar vários sentidos em campos que ora se complementam ora em nada se
relacionam. Portanto, como discorrer de apenas uma paisagem? Na verdade elas,
enquanto conceito, são muitas e múltiplas, logo se torna decisivo delimitar uma esfera de
utilização a campos onde elas não sejam apenas uma metáfora, mas um conceito
definidor. Neste sentido defendo seu uso a dois campos: geografia e a arte. Não que se
ignore a importância e o uso deste termo nas outras aéreas, mas tal limitação nos serve
para expor e trabalhar em específico sobre as linhas de separação e reunião entre o
conceito de transformação da paisagem no domínio da arte em conjunto com a
transformação cada vez mais progressiva da ideia de cidade nos tempos atuais.
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Sob este aspecto preferimos observar o termo paisagem não sob a ótica de uma
transformação, mas sim sob a ideia de reinvenção, pois na primeira existe uma vaga ideia
de que algo permanece do que antes havia, enquanto que na reinvenção há efetivamente
uma mudança essencial. Mudança essa que acompanha a ideia de que esta era pós-
moderna padece de concretizações sobre o porquê de sua existência para além de ser uma
alta modernidade, ou seja, uma espécie de continuidade histórica, como alguns autores
como Harvey a criticam. Afinal, já estamos em tempo de fazer a curva de abandono dos
meios-termos e assumir a reinvenção em função do que de novo que já se desenhou e
estabeleceu. E neste sentido a cultura também pede por definições para além da ideia –
incompleta, de que esta é uma era de colagens, pois esta permite apenas situá-la em seu
início de descolamento da modernidade, mas não a traduz em suas complexidades e
contradições.

Hoje, entre os megaprojetos arquitetônicos e as preocupações ecologistas existe


um território e uma paisagem que em nada se assemelha com a ideia idílica de paisagem
– e neste sentido é relevante lembrar que na época medieval as montanhas e florestas
eram vistos como lugares penosos e repulsivos, devido aos rigores do clima e por medo
do desconhecido, depois, na era moderna, esses mesmos lugares passaram a ser
valorizados como lugares de lazer, descanso e retiro, e nos dias atuais como uns dos
espaços mais cobiçados para empreendimentos imobiliários. Portanto, frente a essas
mudanças, quais seriam então as paisagens que traduziriam nos dias atuais uma
reinvenção do conceito de paisagem?

A aposta está em um mergulho do que se encontra como sinais de resposta das


promessas não efetivadas do modernismo. Na percepção de que vagarosamente, porém
de modo gradativo, o local e o regional estão a se reinventar como forma de assegurar as
identidades que se diluíram e caminham em direção a retomar seu valor como
contrarreação ao discurso planetário e global. Do micro em relação ao macro. No sentido
cotidiano das cidades, talvez um processo de redescobrimento das pequenas praças, das
sapatarias, das pequeninas lojas de reparos, da costureira, do botequim e de tantos outros
estabelecimentos comerciais ainda existentes na história de muitos bairros ainda não
varridos pela especulação imobiliária em reação ao sempre igual e vazio de personalidade
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dos grandes arranha-céus envidraçados e das grandes arquiteturas sem personalidade dos
enormes shopping-centers das grandes cidades contemporâneas.

O caminho da reinvenção passa pela voz da cultura local de encontro ao seu


próprio valor frente não só a percepção, mas a constatação de que a cultura-mundo atende
a um sistema que privilegia apenas um numero ínfimo em detrimento de um numero
extraordinário de excluídos das promessas de uma era que já se esgotou. Entendendo
afinal, que a reinvenção da paisagem passa pela reunião de seu conceito na geografia com
seu conceito igualmente mutante no domínio da arte, que sempre está a se reciclar,
antecipando e antevendo os primeiros e quase invisíveis sinais que indicam tempos de
mudanças nas sociedades. E neste sentido, entre os muitos nomes de artistas que buscam
esta nova paisagem, apontamos o nome do fotógrafo Andreas Gursky como uma
referência para um novo caminho no campo da arte.

Fig 6. Rhein II_Gursky, 1999. Na imagem original haviam vários prédios que o artista optou por
apagá-los para que melhor traduzisse a sensação desta paisagem de sua infância.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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______. Teorias da arte. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
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