Você está na página 1de 69

A I N V E N1 9 A O

DAP A IS A G E M
ANNEfl;auquelin

i
| lf '

I ■
martins
Martins Fontes
O original desta obra foi publicado em francês com o título
L'invention du paysage
© 2000, Presses Universitaires de France.
© 2007, Livraria Martins Fontes Editora Ltda., São Paulo, para a presente edição.

Tradução
Marcos M ardonilo
Preparação
M aria do Carmo Zanini

Revisão
Eliane de Abreu Santoro
Regina L. S. Teixeira
Produção gráfica
Demétrio Zanin

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Cauquelin, Anne
A invenção da paisagem /Anne Cauquelin;
tradução Marcos Marcionilo. — São Paulo : Martins, 2007. —
(Coleção Todas as Artes)

Título original: L'invention du paysage.


ISBN 978-85-99102-53-4

1. Arte - Teoria 2. Natureza (Estética) 3. Paisagem na arte


4. Paisagem na literatura
I. Título. II. Série.
ttíínooQ

07-1485 CDD-111.85
índices para catálogo sistemático:
1. Paisagem : Estética : Ontologia 111.85

Todos os direitos desta edição para o Brasil reservados à


L ivraria M artins Fontes E ditora Ltda. para o selo M artins.
UFPB - Sistema de Bibliotecas

Rua Prof. Laerte Ramos de Carvalho, 163


01325-030 São Paulo SP Brasil
on

Tel. (11) 3116.0000 Fax (11) 3115.1072


info@martinseditora. com. br
www.martinseditora.com. br

Biblioteca de Ciências Humanas e Educação-Artes


Editora WMF Martins Fontes Ltda
A invenção da paisagem
Termo. 325/2010 R e g is tr o 496976
24/06/2010 LICITAÇÃO
R$ 32,33
AS FORMAS DE UMA GÊNESE
Gênese de uma forma. Quem diz gênese diz "come­
ço". Ora, é sempre difícil dizer "eu vou começar pelo co­
meço". Impossível apontar o dedo para esse "começo".
Cada vez que tentamos datá-lo, o encontro repentino de
algum acontecimento nos provoca, desmente de modo
cruel nossa afirmação, mostra-nos a inanidade desse pre­
tenso começo.
A decisão arbitrária é o único modo de evitar esse mau
passo. O mesmo vale para a paisagem. Quando é que ela
surgiu como noção, como conjunto estruturado, dotado de
regras próprias de composição, como esquema simbólico
de nosso contato próximo com a natureza?
Autores confiáveis situam seu nascimento por volta
de 1415. A paisagem (termo e noção) nos viria da Holan­
da, transitaria pela Itália, se instalaria definitivamente em
nossos espíritos com a longa elaboração das leis da pers­
pectiva e triunfaria de todo obstáculo quando, passando
36 ANNE CAUQUELIN

a existir por si mesma, escapasse a seu papel decorativo e


ocupasse a boca de cena.
Tais asserções são perfeitamente aceitáveis quando
se trata apenas da pintura, isto é, da apresentação de ele­
mentos paisagísticos na moldura de um quadro. A inven­
ção da perspectiva é justamente o nó da questão. Ao fixar
a ordem de apresentação e os meios de realizá-la em um
corpo de doutrina, a perspectiva tida como "legítima" justi­
fica o aparecimento da paisagem no quadro: com efeito, de
início encontramos na pintura - ou nos intarsia (marche­
tarias) - as severas arquiteturas das "cidades ideais". Elas
não passam de praças desertas, de esquinas de edificações,
de recortes de janelas, de arcos que se abrem para outros
traçados, de monumentos de diversas formas, que parecem
ser um repertório para a construção. Cidades-esboço, de
núcleo estrito, sem nenhuma vegetação nem arbustos, sem
a emoção desordenada dos corpos, nem a emoção, tem­
pestuosa, das nuvens. Ao longe, na ponta-seca do olho, o
ponto de fuga. A perspectiva - que é passagem através,
abertura (;per-scapere) - alcança o infinito, um "além" que
sua linha evoca. Mas é um além nu, uma geometria, o nú­
mero de uma busca. A sensualidade está ausente, assim
como o acaso, mas eles logo vão voltar à cena e exercerão
seu encanto: aqui, uma planta se apoiará sobre um balcão;
ali, o pináculo aéreo de uma árvore atrás daquele muro;
enfim, um mar que, bem na linha do horizonte, virá como
um falar tentador do absoluto. A paisagem parece se ins­
talar timidamente, hesitar, vacilar, para depois se afirmar.
A INVENÇÃO DA PAISAGEM 37

Os três célebres painéis de Urbino, de Baltimore e de Ber­


lim dão testemunho desse rigor apenas esboçado de uma
paisagem ainda expectante. Quanto às intrincadas mar­
chetarias que apresentam as mesmas perspectivas de cida­
des ideais, é ao polimento, ao grão, ao lustro, ao calor das
madeiras nobres que elas devem o poder de evocar algo
como uma paisagem.
Tomada exclusivamente no contexto da pintura, a pai­
sagem se reduziria, pois, a uma representação figurada,
destinada a seduzir o olhar do espectador, por meio da ilu­
são de perspectiva. A inesgotável riqueza dos elementos
naturais encontraria um lugar privilegiado, o quadro, pa­
ra aparecer na harmonia emoldurada de uma forma, e in­
citaria então o interesse por todos os aspectos da Natureza,
como por uma realidade à qual o quadro daria acesso.
Em suma, a paisagem adquiriria a consistência de
uma realidade para além do quadro, de uma realidade
completamente autônoma, ao passo que, de início, era
apenas uma parte, um ornamento da pintura. Aqui já po­
deríamos nos admirar com tamanha autonomia para um
simples elemento técnico, com um vôo desses, com uma
"naturalização" dessas. Mas, para podermos nos admirar
realmente, é necessário ainda sair do círculo encantado da
história da arte. Abandonar as obras, os artistas - mesmo
que esse sacrifício seja penoso - e perguntar pelas novas
estruturas da percepção introduzidas pela perspectiva. A
meu ver, só então nos fixamos no mistério da paisagem, de
seu nascimento.
38 ANNE CAUQUELIN

Pois essa "forma simbólica" estabelecida pela pers­


pectiva1 não se limita ao domínio da arte; ela envolve de
tal modo o conjunto de nossas construções mentais que só
conseguiríamos ver através de seu prisma. Por isso é que
ela é chamada de "simbólica": liga, num mesmo dispositi­
vo, todas as atividades humanas, a fala, as sensibilidades,
os atos. Parece bem pouco verossímil que uma simples téc­
nica - é verdade que longamente regulada - possa trans­
formar a visão global que temos das coisas: a visão que
mantemos da natureza, a idéia que fazemos das distâncias,
das proporções, da simetria. Mas é preciso render-nos à
evidência: o mundo de antes da perspectiva legítima não é
o mesmo em que vivemos no Ocidente desde o século xv.
Parece que se deu um salto que leva mais longe que a
mera possibilidade de representação gráfica dos lugares e
dos objetos, que é um salto de outra espécie: uma ordem
que se instaura, a da equivalência entre um artifício e a na­
tureza. Para os ocidentais que somos, a paisagem é, com
efeito, justamente "da natureza". A imagem, construída
sobre a ilusão da perspectiva, confunde-se com aquilo de
que ela seria a imagem. Legítima, a perspectiva também
é chamada de "artificial". O que, então, é legitimado é o

1. E. Panofsky, La perspective como forme symbolique et autres essais (Paris,


Les ÉditiOns dê Minuit, 1976 [em português: A perspectiva como forma simbólica,
Lisboa, Edições 70, 1999]). Consciente de sua importância histórica e social pa­
ra o Ocidente, Panofsky nomeia a perspectiva como "forma simbólica". Forma no
sentido de que é inevitável para todo conteúdo visual e desempenha o papel de a
priori. Simbólica por unir num só feixe as aquisições culturais da Renascença que
ainda estão em vigor em nossos dias e que constituem o fundo, o solo (Grund) de
nossa modernidade.
A INVENÇÃO DA PAISAGEM 39

transporte da imagem para o original, uma valendo pelo


outro. Mais até: ela .seria a única imagem-realidade pos­
sível, aderiria perfeitamente ao conceito de natureza, sem
distanciamento. A paisagem não é uma metáfora para a
natureza, uma maneira de evocá-la; ela é de fato a nature­
za. Aqui se poderia dizer: "Como? Se a paisagem não é a
natureza, o que seria ela, então?". Falar, portanto, de uma
construção retórica (de um artifício, desta vez lingüístico)
acerca da paisagem é crime de lesa-majestade. A natureza-
paisagem: um só termo, um só conceito - tocar a paisagem,
modelá-la ou destruí-la, é tocar a própria natureza.

Aqui, convoca-se uma ontologia que torna vã toda


discussão sobre uma provável gênese. Que a forma simbó­
lica "paisagem" tenha se constituído no decorrer de sécu­
los é então inadmissível, pois, se a paisagem é identificada
com a natureza, ela esteve presente desde sempre. Sempre
houve paisagens, não é? Que a paisagem-natureza tenha
evoluído, sofrido mudanças, até se admite; assim como os
climas, as estações e o solo se transformaram, mas isso de­
corre de uma natureza em evolução contínua. As "formas"
evoluem, mas a partir de um dado existente desde toda a
eternidade. Nada a ver, diz-se, com uma construção men­
tal. A paisagem participa da eternidade da natureza, um
constante existir, antes do homem e, sem dúvida, depois
dele. Em suma, a paisagem é uma substância.
Para essa ontologia, a pintura é um intermediário in­
teressante, porque faz ver de maneira sensível, mostra, exi­
40 ANNE CAUQUEUN

be, exalta essa preeminência e anterioridade. A pintura é


variação a partir do princípio. Nada além. Na verdade, se
é mediadora, não é indispensável, é um adendo atrativo, às
vezes emocionante e, por sorte, desvinculado, no domínio
especializado que é o seu, de toda a distância que a estéti­
ca mantém "[d]a vida".
Do contrário, acrescenta-se, seria preciso fiar-se ape­
nas nos críticos de arte para perceber a natureza? Con­
cepção elitista que favoreceria por demais os eruditos
e privaria cada qual de sua relação com a natureza. Em
tais condições, não haveria paisagem para o diletante em
arte? Absurdo.
Esses argumentos defendem e ilustram a relação
confusa que mantemos com essa paisagem-natureza,
ou com essa natureza-paisagem. Uma dupla operação se
manifesta aqui: de um lado, restituir a paisagem à na­
tureza como a única forma de tomá-la visível (logo, de
transformá-la por intermédio do trabalho paisagístico);
de outro lado, desdobrá-la em direção do princípio inalte­
rável da natureza, apagando então a idéia de sua possível
construção. Confusão bem marcada no fluxo de noções
de "sítio", de "meio ambiente", de "ordenamento" ou de
"integração".
Pois os mesmos que querem salvaguardar a natu­
ralidade da paisagem como dado primitivo se dedicam
também a proteger os "sítios" depositários de uma certa
memória, histórica e cultural. Ora, o "sítio", o que "per­
manece ali", designa tanto o monumento (esse arco, essa
A INVENÇÃO DA PAISAGEM 41

cidade antiga, esse vestígio) quanto a forma geológica sin­


gular que intervém num meio natural.
Nessa ótica, a paisagem é um "monumento natural de
caráter artístico"; a floresta, uma "galeria de quadros natu­
rais, um museu verde". Essa definição, elaborada pelo Minis­
tério da Instrução Pública e das Belas-Artes francês em 1930,
destaca a ambigüidade; reúne em uma fórmula os dois aspec­
tos antagônicos da noção de paisagem: o ordenamento cons­
truído e o princípio eterno; enuncia uma perfeita equivalência
entre a arte (quadro, museu, caráter artístico) e a natureza.
Uma definição dessas tinha ao menos o mérito de não
eliminar a dificuldade, de reconhecer que se trata de uma
forma complexa, com duas vertentes que intercambiam
atributos segundo uma regra desconhecida e cuja unidade
é mantida na e pela experiência ordinária.
Experiência que, de minha parte, na descrição do so­
nho de minha mãe, absorvi integralmente, pensando que
aquele jardim enunciava o campo que enunciava a paisa­
gem que enunciava a natureza, encontrando nessa entrada
multiplicada a revelação do "belo natural". Como poderia
eu de outro modo aproximar-me dele, a não ser pelo qua­
dro emoldurado de um jardim composto, pelo artifício de
sua disposição perfeita?
Mergulhada, aniquilada no sentimento de uma pre­
sença, sem tomar consciência, nem um único instante se­
quer, da operação que dessa forma o oferecia a mim, do
aprendizado que, de muito longe, para além do jardim so­
nhado, construíra a segurança de que era exatamente aqui-
42 ANNE CAUQUEUN

lo, de que eu não me enganava, de que aquilo que eu via


era evidentemente uma paisagem: a natureza.

Dobra onde se juntam, ponta com ponta, a natureza


e sua figuração - essa dobra de sombra, essa lenta ascen­
são de uma forma da qual jamais poderíamos pensar que
não fosse dada desde o início como realidade.
Desfazer essa dobra? Estender o tecido amarfanhado,
tatear a textura dessa forma, desfazer e refazer as evidên­
cias, testar os implícitos? Isso consiste sempre em remontar
a "antes da dobra". Apoiar-se na matéria-prima da "causa
mental". Decompor os elementos, que, à beira dessa flores­
ta de símbolos que é a história da edificação da paisagem,
foram suas condições de possibilidade.
Da Grécia a Roma, de Roma a Bizâncio, de Bizâncio
à Renascença, produziram-se algumas formas que gover­
nam a percepção, orientam os juízos, instauram práticas.
Esses perfis perspectivistas passam de um a outro, dese­
nham "mundos" que foram, para aqueles que os habitam,
a evidência de um dado.
Esse trabalho de restituição, ao explicitar a dobra, não
tem, contudo, a pretensão de nos separar de nossas cren­
ças, da evidência de nossas intuições. Mesmo que saiba­
mos que o sol não se põe, diz Gadamer, seguimos dizendo
que ele se põe, e não poderíamos nos separar daquilo que
a língua diz com a justeza do sentimento.
Inversamente, um saber não sabido, as pistas, refugos
de crenças e de mundos antigos, ressoam longamente em
A INVENÇÃO DA PAISAGEM 43

nós. Saber ignorante de si mesmo, que forma, a nossa re­


velia, a maioria de nossos juízos de gosto.
É para o reconhecimento dessa mescla e para o misto
de composições que ela gera em nossas avaliações comuns
que se volta essa "gênese".
1
A NATUREZA ECÔNOMA

No limiar de nossa pesquisa, uma surpresa nos espera.


E de vulto. Na verdade, não voltamos a ela e a ela dificilmen­
te retomaremos. Há quem tenha dificuldade em acreditar
nisso e tente dar mil voltas à dificuldade: é que não há, en­
tre os gregos antigos, nem palavra nem coisa semelhante,
de perto ou de longe, àquilo que chamamos "paisagem"...
Profunda estupefação em relação a nossa admiração secu­
lar por este céu e esta terra, as ilhas ao longe, as praias, as
colinas áridas e as florestas delicadas, e a luz.
Aterrorizados pelas recordações literárias e pelos es­
tereótipos de uma cultura herdada, vemos a Grécia com
olhares enamorados e "caminhamos" pelas descrições da
Acrópole ao sol poente. Vemos a Grécia com olhos de qua­
dro. Quem, mais que os gregos, poderia ter naturalmente
presente a noção de paisagem? Quem poderia fazer res­
plandecer, com um brilho mais incomparável, a luz do sol
sobre o mármore dos templos? O rochedo acima do mar
A INVENÇÃO DA PAISAGEM 45

porta suas colunas como um fruto perfeito. Harmonia, be­


leza. Unidade espontânea de uma razão nascente com sua
forma visível. A Grécia é isso. É possível que nenhuma
idéia de "paisagem" tenha sido formada, formulada, ela­
borada? Coisa aparentemente impensável. Contudo, é isso
mesmo. Para nosso grande desconcerto.
Deveríamos sondar bem essa ausência, por mais sur­
preendente e frustrante que ela seja. Não nos restaria al­
go dela nas mil dobras de nossa memória? Seríamos nós
um pouco gregos em algum aspecto? Tão longa história
não teria deixado marcas? E como nos haveremos com essa
ausência? Porque, se a paisagem responde "ausente", a na­
tureza está lá. Haveria, então, uma distância, um "buraco"
entre os dois conceitos, que hoje temos o hábito de confun­
dir em uma mesma figura?
Não há dúvida de que a Natureza não era figurada na
forma da paisagem. Se ela aceitava ser representada con-
cretamente, era em termos de ordenamento, de distribui­
ção organizada. Potência atuante nos objetos animados e
inanimados, a metáfora que se encarregava dela para tor­
ná-la inteligível era de ordem antropomórfica.
Com efeito, Aristóteles a apresenta como uma boa do­
na de casa. Uma ecônoma cuidando das reservas cuja guar­
da lhe foi dada, distribuindo-as com medida e bom senso.
Suas reservas, tesouros inestimáveis, ela as divide do
melhor modo possível para a preservação dos seres que pro­
duziu (a natureza nada faz em vão), dotando o rinoceron­
te indiano de duros cascos, mais úteis para ele nos rochedos
46 ANNE CAUQUELIN

áridos do que se tivesse chifres na testa. De resto, boa moça,


ela lhe concede, contudo, um só chifre, para se defender.
E como toda boa mãe de família que, por vexes, se
engana na repartição, privilegiando um, ela fica sem na­
da para dar ao outro... Ou dá muito, ou o insuficiente: os
monstros são erros por excesso ou falta, assim como os aci­
dentes. Um problema de gestão.
Mas se recebem dons apropriados a suas constituições,
os seres também são instalados em lugares específicos, pla­
nícies, rios, montanhas, desertos. A natureza se mostra ge­
nerosa (ou avarenta) em sua atribuição: há condições de vida
e de sobrevivência, um meio ambiente necessário que expli­
ca as particularidades de suas formas e de suas "partes". A
relação entre uma suposta paisagem e o animal que nela
se instala é da ordem da economia das partes que a com­
põem. Um pântano é indispensável para um elefante, que,
andando pesadamente pelo fundo lamacento, tira a tromba
da água para respirar. A planície árida é necessária ao aves­
truz, para que ele possa ali esconder seus ovos. Esse curio­
so bípede de pálpebra humana, que não anda nem voa, está
instalado em seu meio, o deserto de areia.
Contudo, esse ambiente - o "meio" que determina
os comportamentos animais e a eles está ligado de ma­
neira estrita - não apresenta nenhuma característica pela
qual pudesse valer por si mesmo. Ele envolve os corpos que
contém, não é um "mundo" no sentido em que não é parti­
cularmente visado por meio das formas de sensibilidade e
de percepção - uma forma simbólica ou uma construção.
A INVENÇÃO DA PAISAGEM 47

Em contrapartida, o "mundo" da Natureza, aquele


que os gregos apresentaram como evidência do implícito
de sua visão, seu "mundo", é o do logos, essa razão lingüís­
tica que atravessa as coisas de lado a lado e que instaura
um entendimento, uma escuta, mais que uma visualiza­
ção, dos objetos desse mundo. Heráclito vive nos repetin­
do isso na maior parte de seus fragmentos. Basta que um
princípio (o logos como princípio da natureza) assegure
a coesão, o ajuntamento dos elementos políticos, sociais,
conceituais, para que a unidade esteja presente como tota­
lidade indivisível. "Pois uma só é a (coisa) sábia, possuir o
conhecimento que tudo dirige através de tudo1."
Dessa forma, é inútil - de verdade, com toda a certeza
- destacar um fragmento dessa unidade. O invólucro visí­
vel, o lugar dos seres, é entendido - compreendido ou in­
cluído - no estado das coisas tal qual elas se apresentam ao
logos integrador.

O templo não está sobre o rochedo, não se situa em


uma paisagem; reúne em si uma totalidade. O templo-ro-
chedo é atravessado pela linguagem que o faz existir como
parte do estado de coisas que revela ao se manter ali. Ele
não designa, não significa: é o conjunto de um mundo que
se deixa compreender em sua extensão. Com ele estão da­
dos, ao mesmo tempo, a história, a lenda, o mito.

1. Heráclito, "Fragmento 41", segundo Diógenes Laércio, ix, 1, em Pré-socrá-


ticos (trad, de José Cavalcante de Souza, São Paulo, Nova Cultural, 2000, coleção
"Os Pensadores"), p. 92.
48 ANNE CAUQUELIN

Temos de reler Pausânias:



No cume do teatro se encontra uma gruta nos roche­
dos, ao pé da Acrópole; lá também há um tripé, sus­
tentando uma cena que representa Apoio e Ártemis
fazendo perecer os filhos de Níobe. Essa Níobe, eu
mesmo a vi subindo ao monte Sípila; visto de perto, é
um rochedo escarpado que não tem nada da forma de
uma mulher, muito menos de luto, mas, se nos afastar­
mos um pouco, teremos a impressão de ver uma mu­
lher em prantos e devastada pela tristeza2.

A distância, reconhecemos a lenda que a totalidade


desse rochedo concentra. Isolado, visto como fragmento
ou detalhe, ele não conseguiria encher a vista e, especial­
mente, a compreensão das coisas. Só podemos percebê-lo
como um "mundo".
Nenhuma pedra, nenhum rochedo que seja pedra ou
rochedo para Pausânias, mas signo para uma memoriza­
ção de valor pedagógico ou apologético.
O mesmo ocorrerá com os historiadores-geógrafos da
Antiguidade. Heródoto ou Xenofonte não são nada ava­
ros em descrições de "lugares". Mesmo assim, não cons­
tituem o que chamamos de paisagens: simples condições
materiais do evento, uma guerra, uma expedição, uma len­
da, é a ele que estão submetidas. Fatores de causalidade e

2. Descrição da Ática, i, xxi, 3.


A INVENÇÃO DA PAISAGEM 49

de significação organizando o discurso e servindo de mol­


dura aos saberes numerosos: o relevo, a flora, a fauna, os
arranjos humanos, os vestígios do passado: tantas "loca­
ções" indispensáveis às narrativas e que a elas estão li­
gadas. O objeto paisagem não preexiste à imagem que o
constrói para um desígnio discursivo.
A imagem não está voltada para manifestações ter­
ritoriais singulares, mas para o acontecimento que solici­
ta sua presença. E assim como o lugar (topos) é, segundo
a definição aristotélica, o invólucro dos corpos que limita,
a pretensa "paisagem" (lugarzinho: topion) nada é sem os
corpos em ação que a ocupam. A narrativa é primeira e sua
localização é um efeito de leitura3.
Nessa qualidade, o que vale como paisagem não tem
nenhuma das características que estamos acostumados a
lhe atribuir: relação existencial com seu preexistir, sen­
sibilidade ou sentimento, emoção estética ausente. Sua
apresentação, portanto, é puramente retórica, está orien­
tada para a persuasão, serve para convencer, ou ainda, co­
mo pretexto para desenvolvimentos, ela é cenário para um
drama ou para a evocação de um mito.
Quanto às paisagens estrangeiras (a cheia do Nilo)
com as quais Heródoto nos encanta, elas são a exploração
de uma opinião, segundo a qual tudo o que se oferece fora
da Grécia é curiosamente o reverso, excitante, misterioso.

3. Cf. o belo texto de Christian Jacob, "Logiques du paysage dans les textes
géographiques grecs", em Lire le paysage, lire les paysages, Colloque de l'Université
de Saint-Étienne, 1982 (Actes..., Saint-Étienne, c ie r e c , 1982).
50 ANNE CAUQUELIN

Sua descrição é fictícia, deriva do romanesco, da peripécia.


Essas "paisagens" descritas são conjuntos nos quais se ins­
talam seres exóticos, de comportamentos curiosos. Tenhga
ou não Heródoto ido ao Egito, fato é que ele, sobretudo,
ouviu contar - rumores - o relato de viajantes dos quais ele
se fez eco. É o fio da narrativa, as etapas de um périplo que
fazem existir os lugares sucessivos. Desse modo, os "diz-se
que" e os "diz-se que se diz" se acumulam, traçando cír­
culos cada vez mais longínquos através de um mapa fanta­
sioso. A voz de Heródoto é uma voz em "off", que fala por
meio de uma multidão de outras vozes4.
O exemplo extremo desse tipo de descrições, talvez, se
encontre em Plínio, o Velho, que, no livro vn de sua História
natural, sobrepõe os prodígios dispensados pela Natureza,
essa parens melior homini [mãe benevolente para o homem],
que também pode se transformar em tristior noverca [ma-
dastra severa].
Aqui, as anotações ambientais destinam-se a indicar,
pela extravagância de suas formas, a extravagância dos se­
res que habitam as regiões remotas.

Quanto às árvores, conta-se que elas são tão altas que é


impossível lançar flechas acima de seus topos. A fecun­
didade do sol, o clima do céu, a abundância das águas
fazem com que (si libeat credere Icaso se possa crer]) uma
única figueira possa abrigar esquadrões de cavalaria...

4. Como o nota C. Darbo Peschanuki em Le discours du particulier (Paris,


Seuil, 1987).
AINVENÇÃO DA PAISAGEM 51

Que a natureza seja ecônoma, que seu princípio se­


ja © aprovisionamento, eis-nos num mundo no qual a pai­
sagem não pode ter valor em si, trata-se de uma peça útil
a sua economia, como lugar-invólucro dos seres que ela
âprovisiona.
* Que não faça nada em vão, mas tire partido dos re­
cursos disponíveis, em nada indica que o território que ela
leva em conta preexista a sua obra. Justo ao contrário, o
território é "dado côm", não constitui "caso à parte". E, so­
bretudo - e é isso o que nos interessa aqui ela não se
"diz" sob a forma figurativa da paisagem visual, mas vem
a se apresentar sob a forma de um poder, cuja descrição é
da ordem do discurso, não da sensibilidade.
O fio da narração e a viagem do pesquisador têm pre­
cedência sobre os lugares, que, por sua vez, acompanham
a história; não são o objeto principal, apesar de serem in­
dispensáveis à compreensão das coisas.
À semelhança do que ocorre com a tragédia na Poética
de Aristóteles, a visão (opsis) - todo o lado espetacular do
espetáculo - é secundária. Já tendo indicado que a opsis é
uma das partes constitutivas da tragédia, depois da fábula,
dos personagens, da elocução e do pensamento, Aristóte­
les, com efeito, acrescenta:

O espetáculo (opsis), mesmo sendo de natureza a se­


duzir o público, é tudo o que há de mais estranho à
arte e menos adequado à poética, porque o poder da
tragédia subsiste mesmo sem multidão nem atores e,
além disso, para a encenação, a arte do homem pre-
52 ANNE CAUQUELIN

posto aos acessórios é mais importante que a do poe­


ta (1450 bl7-20).

A fábula (mythos) e a narrativa são, primordialmente, o


que reúne num todo a ação humana. É a fala, a lexis, que é
"ouvida" como entendimento, como persuasão, e não o ver
cênico. Um lugar é sempre um lugar "dito". Ele é sempre to­
mado na "unidade reinante de uma relação que chamamos
um 'mundo'.. É só assim que o rochedo (o lugar onde o templo
se ergue) manifesta a obscuridade de seu surdo portamen-
to"5. Tomado assim na repetição e nos estereótipos lexicais.
Sabe-se bem que os autores devem passar por isso e que, ao
definir um cenário para o acontecimento, que é a única coisa
que importa, basta qualificar sobriamente os elementos geo­
gráficos que o acompanham. E isso por um jogo de termos
opostos: árido/fértil, planície/montanhas, seco/úmido, po­
voado/despovoado. Sobriedade que não exclui a diversidade
de termos, mas designa o parco interesse pelas particulari­
dades sensíveis. O regato será sempre fresco; o bosque, pro­
fundo; a planície, vasta. Vocabulário testado, de conotações
antropomórficas, ligadas à metáfora fundadora da natureza
como boa ecônoma6.
E, se ainda fosse necessário desdobrar essa dobra até
sua raiz, para além da Natureza provedora e gestora de

5. Heidegger enfatiza esse "mundo" ("De l'origine de l'œuvre d'art", em


Chemins qui ne mènent nulle part, trad. de E. Martineau, Paris, Gallimard, 1980).
[Cf., em português: Martin Heidegger, A origem da obra de arte, Lisboa, Edições
70,2000. (N. de E.)]
6. Christian Jacob, cit., p. 164.
A INVENÇÃO DA PAISAGEM 53

Aristóteles, insistir nesse "esquecimento" da dimensão vi­


sual sensível pela qual qualificamos hoje o que é da natu­
reza, deveríamos citar Homero. No canto x iii de A odisséia,
quando Ulisses, por fim aportando às praias de ltaca, ajo­
elha-se e beija a terra de seus ancestrais, não é o entusias­
mo de um reconhecimento visual que o move. Aquela ilha,
ele não a reconhece. Ele não a "vê". O sentimento do lu­
gar como lugar próprio por fim alcançado, ele não o expe­
rimenta. Aliviado de estar em terra firme. Só isso. É preciso
que Atena se desvele, e desvele para ele, por meio da fala,
a caverna e o bosque sagrado, a gruta e a oliveira, para que
seus olhos enfim se abram, para que a lembrança sobreve­
nha, não a propósito dos objetos que a ele se oferecem, mas
pelo artifício dê uma comemoração.

- ... Diga-me: é verdade que ali está minha Pátria?


- Vê comigo o solo de tua ítaca, o porto de Forco, o
velho do mar, e eis a oliveira que frondeia... eis a caver­
na arqueada, eis a grande sala onde vinhas, tantas vezes,
oferecer uma hecatombe perfeita às Náiades, e eis, re­
vestido de madeira, o Nérito.
Dizendo isso, Atena dispersou a noite. A terra apare­
ceu. Quanta alegria o herói experimentou.

E que diz ele? "Ó vós, filhas de Zeus, ó Ninfas, ó Náia­


des que acreditei jamais voltaria a ver, eu vos saúdo..."
54 ANNE CAUQUELIN

Uma paisagem omitida

"Da noite deserta aos olhos de cego"


Empédocles

Aberta unicamente ao mundo do logos, reunida em


torno de um princípio de reunião, de uma unidade que fa­
la a quem a escuta, a "paisagem" grega é omitida. Ela só
comparece ao chamado de uma voz, de uma nomeação dos
elementos que compõem uma cena. Ela não se oferece à vi­
são, mas ressoa no ouvido, na luz da inteligência. O res­
to é esquecimento profundo, cegueira. "Todo o privilégio
que subtrai aos olhos, ela o devolve ao ouvido", diz Plutar-
co nas Quaestiones convivales (vni, 3,1).
Omitida? A expressão designa o ato pelo qual negli­
genciamos o todo ou parte de uma mensagem; essa omis­
são, aplicada singularmente à paisagem grega, diz respeito
à cegueira particular dos gregos para a cor azul7.
Temos grande dificuldade em imaginar a Grécia pri­
vada do azul que banha as ilhas, inunda o céu, transforma-
se em violeta nas colinas longínquas, matiza-se em rosa e
em verde-cinza ao cair da noite. Mas devemos nos render
aos fatos: as cores são idéias de cores, e quem não tem a
amostra (o paradigma) não tem a coisa. Ora, os gregos não
tinham amostra de azul. As quatro cores disponíveis eram

7. Cf. o texto de Nietzsche em Aurora, § 436 [em português: São Paulo,


Companhia das Letras, 2004, (N. de E.)], e Manlio Busatin, Histoire des couleurs
(Paris, Flammarion, 1986).
A INVENÇÃO DA PAISAGEM 55

o branco, o preto, o amarelo/o ocre e o vermelho. Para eles,


o mar era verde-pardo e vermelho-violáceo nos tempos de
tempestade, glauco, e o céu unicamente "luminoso", bri­
lhante pelo fogo do éter. O brilhante e o baço, o sombrio e
o claro, o sol e sua sombra. Muita sombra cercando o bri­
lho. Na verdade, preto e branco compõem o mundo visual,
e sua mistura dá as outras cores.
Empédocles dá, segundo Teofrasto8, "o branco ao fo­
go, o preto à água", e assegura, diz Plutarco9, que "a cor do
rio surge da sombra negra", conhece apenas "quatro cores,
tantas quanto os elementos: o branco, o preto, o vermelho,
0 amarelo"10.
São três apenas as que bastam a Platão, no Timeu, pa­
ra recompor os outros matizes: em princípio, o preto e o
branco, respectivamente ligados à dissociação (o branco) e
à concentração (o preto) das partículas da chama emitidas
pelos objetos na direção do fogo dos olhos. Pois, se as par­
tículas ígneas que entram em movimento a partir de um
objeto são maiores que o órgão a que visam (o olho), elas
dissociam (diacriticon) o corpo da visão. Se, ao contrário,
são menores, elas o unem (syncrinon). Além do mais, no
caso em que a grandeza é a mesma que a do olho, obtém-
se o diáfano, o transparente. O vermelho (erytron), a ter­
ceira cor, provém do choque dos dois fogos em movimento,
o das partículas das flamas saídas do objeto e o do fogo in-

8. Teofrasto, De sensibus, § 59.


9. Plutarco, Quaestiones naturales, § 39.
10. Aécio, i, 15,3; e Plínio, o Velho, xxxv, 12.
56 ANNE CAUQUELIN

tenor; propriedade do olho. Quando seu efeito se mescla,


vê-se vermelho...11
Todas as outras cores provêm da mistura dessas três,
e o azul (cyari), que é na verdade a cor lápis-lazúli, é obtido
pelo branco combinado com a cor brilhante (lampro te leu-
kon) caindo para o preto12.
Claro e escuro, obscuridade e luz, são assim os olhos
que Aristóteles se empenha em classificar como glaucos e
pretos13. Isso se aplica ao rio, que, segundo ele, deve ser
pintado de uma cor amarela (ocros), ao passo que o mar de­
ve assumir a cor verde amarronzado14.
A partir daí, metáforas se desenvolvem, ligando a su­
perfície ao brilho, a profundidade ao terroso, ao negro abis­
mo. "A água na superfície parece branca, e preta no fundo;
a profundeza seria a mãe da escuridão15".
Os olhos de Minerva, glaucos, são olhos de coruja que
enxergam à noite, por causa da indeterminação mesma de
sua cor, cujo matiz vê o semelhante: a obscuridade tinta da
noite. Quanto aos mares cantados por Homero, eles tam­
bém serão glaucos, mistura de claridade e de profundida­
des fuscas.

11. Timeu, 67d. "As partículas provindas dos outros corpos e projetadas no
órgão da visão são umas menores, outras maiores, outras, enfim, de mesma di­
mensão [...] É preciso chamar branco o que dissocia o corpo da visão, e preto o que
produz o efeito contrário [...] peló efeito da mescla do reflexo do fogo com o humor
do olho, se produz uma cor sangüínea que chamamos de vermelho."
12. Timeu, 68d.
13. Aristóteles, Problemas, xvt, 14.
14. Aristóteles, ibid., xxm, 6.
15. Plutarco, ibid., § 39.
A INVENÇÃO DA PAISAGEM 57

Teoria da cor que também procede dos atomistas, por­


que examina o escoamento das partículas vindas dos ob­
jetos e, paralelamente, dos fisiologistas no que diz respeito
ao fogo que sai do olho. Os dois movimentos se misturam
porque só o semelhante atua sobre o semelhante - trata-se
de dois fogos -, e a alteração (que produz a cor) é atribuída
a um elemento diverso do fogo: a água que o olho contém.
Encontro de elementos.JMistura.
Lá dentro, nada de geométrico. O processo da visão das
cores não é descrito como o esquema de um cone visual, de
uma refração ou de uma reflexão da luz, mas como abrasa­
mento que escapa ao pensamento geométrico.

Apenas um Deus sabe como mesclar em um mesmo


todo, para, em seguida, dissociá-los, elementos diver­
sos, e também só ele é capaz de fazê-lo. Mas nenhum
homem é realmente capaz de fazer nem uma coisa,
nem outra ('Timeu, 68d).

Também é adequado desistir de se ocupar da cor, con­


siderá-la como um mistério no qual o homem não tem par­
ticipação alguma. É assunto de Deus, ou até mesmo algo
que não seria verdadeiramente útil para o conhecimento.

Aristóteles, contudo, tenta compreender essa mistu­


ra introduzindo o "diáfano" como intermediário ativo en­
tre os fogos cruzados da luz do dia e do olho. Nada mais
de partículas provindas do objeto, entrando, em escala re­
duzida, no órgão da visão, mas uma teoria do "meio" ca­
58 ANNE CAUQUEUN

paz de homogeneizar esses dois semelhantes derivados de


fontes diferentes que são as duas radiações ígneas.
O diáfano, o transparente, deixa de ser o encontro
inesperado do tamanho de um objeto com a dimensão do
olho, como o afirmava Platão, para ser um princípio ativo
que possui a virtude de acrescentar à cor a superfície dos
objetos tornando sua iluminação possível.

É uma certa natureza, uma certa potência comum a to­


dos os corpos, que não existe separada, mas tem sua
existência nesses corpos... a cor pode, então, ser defi­
nida: o limite do diáfano em uma forma determinada"
(De sensu, m, 10).

A cor de um corpo é a superfície, não do corpo pro­


priamente, mas do diáfano que está nele e que passa ao ato
quando é iluminado por um elemento de mesma natureza
(o semelhante ilumina o semelhante), ou seja, o fogo do céu.
Vemos, então, as diferentes cores se modelarem segundo os
corpos em questão apresentem mais ou menos resistência
ao diáfano: se forem terrosos, ou mais aquosos, ou mais íg­
neos. É a partir daqui que se pode esperar estabelecer uma
certa proporção numérica entre branco e preto.
Com efeito, é a partir da oposição preto/branco que se
constroem todas as outras cores em detrimento do... azul,
que surge como uma irregularidade, não definida por um
número dado.
Se não é mais o olho que faz contato e ilumina o ob­
jeto, se as partículas não se deslocam mais dos corpos para
A INVENÇÃO DA PAISAGEM 59

percutir o olho, se o diáfano passa a substituir esses con­


tatos para introduzir o ato de uma potência instalada nas
coisas, voltamos ao mesmo ponto, contudo, naquilo que se
refere à cor. Nem a geometria nem a física estão habilitadas
ã captar o matiz, e o fenômeno da cor é trabalhado segun­
do uma "forma": a aparência de um corpo ou a marca de
um espelhamento. Em nenhum caso existiria para nós uma
paisagem colorida, em sua presença separada, insistente.
Essa cegueira ao azul é justamente o efeito de uma
dificuldade para pensar a cor, de uma tentativa de sim­
plificar, com os meios teóricos de que dispõem os anti­
gos, um fenômeno cativo do "contato" e dos "elementos":
a essência elementar da luz - fogo - e dos corpos - terro­
sos ou aquosos.
Uma teoria dos eflúvios, das marcas, como a dos ato-
mistas, ou a do "meio" ambiente - o diáfano que permite a
continuidade de uma visão em Aristóteles -, manifesta es­
sa outra cegueira, que é a das formas concretas da sensibi­
lidade ao que é da ordem da visão.
A economia da natureza, então, pouco atenta a distri­
buir uma fruição suplementar, porque não tem os meios
para isso, contenta-se em oferecer à compreensão pla­
nos de funcionamento - um desígnio e um desenho. Cabe
aos pintores preencher os contornos das formas assim re­
partidas. Mas sobriamente.

Possuem-se pinturas antigas cujo colorido é trabalhado


com a maior simplicidade (haplós) e que não apresen­
60 ANNE CAUQUEUN

tam variedade alguma nas tonalidades. Mas as linhas


são desenhadas com perfeição"16.

A cor é subsidiária. "O criador (a natureza) desenha


primeiro os contornos, depois (hysteron), ele escolhe as
cores...17"
A forma da idéia atravessa o mundo; e, se ela supor­
ta depois o brilho que vem cumulá-la, não se encontra, por
isso, submetida a seu aparecimento.
Fortemente estruturado, o mundo grego se defende
da invasão dos brilhos dispersos e contra tudo aquilo que,
separado, poderia prejudicar sua unidade: a natureza não
tem necessidade alguma da paisagem sensível para revelar
seu desígnio. O preto e o branco lhe convêm, lhe fornecem
os cheios e os vazios de uma escrita pura.

O azul, vindo do Oriente, sintoma de uma decompo­


sição, traz em si algo de selvagem, de bárbaro. Com ele,
uma gama cromática enriquecida dispersa a idéia única,
fragmenta o desenho, convoca à fruição, ao passo que au­
menta a diversidade dos atores, que se cruzam e misturam
as linhas de força de um "mundo" que se distancia sem
cessar. Essas separações exigem uma mediação, uma figu­
ra de passagem, que se esforça para reproduzir, por artifí­
cio, a simplicidade do Todo no interior de um lugarzinho
simbólico: o jardim.

16. Dionísio de Halicarnasso, De Isaeo, 4.


17. Aristóteles, Da geração dos animais, n, 6.
2
OS JARDINS DO ÓCIO

"... E a rama em que o pâmpano à rosa se alia."

Eis a longa teoria dos jardins, kepos-hortus1, lugares


de repouso e de meditação, que, ao romper com o espaço
indeterminado ou superinvestido de marcas por e para
uma história, constroem seus traços distintivos longe da
cidade. Essa forma, que os romanos levaram à perfeição,
aproxima-se de uma noção ainda não estabelecida, a de
paisagem. Trata-se, precisamente, de um impulso rumo a
uma natureza, de um recolhimento no seio de elementos
naturais, mesmo que os traços característicos do jardim o
distingam nitidamente daquilo que ele toca de raspão: a
paisagem está fora de sua visão.

í. Encontramos kepos em Platão, no Timeu (77), servindo de comparação ao


corpo humano. As veias e as artérias são, com efeito, análogas aos condutos de ir­
rigação das hortas. Comparação retomada em Aristóteles (Das partes dos animais).
Referência a uma utilização prática, o jardim aparece sub-repticiamente, mas não
é descrito por si mesmo. Ele deve, contudo, ser um lugar de delícias, se formos dar
crédito às expressões "jardim das musas", "jardim de Zeus".
62 ANNE CAUQUELIN

E primeiramente para si, isolado, retraído. Isolando


também o que parece melhor nas disposições da nature­
za a respeito de suas criaturas, a forma-jardim se àpóia em
uma dupla disjunção, em duas subtrações conjuntas.
Se o "Jardim de Epicuro" designava um lugar, o lugar
singular de um ensinamento, não conhecemos sua forma
concreta, porque a fórmula substituiu sua forma material
até recobri-la inteiramente. "Jardim de Epicuro" é metáfo­
ra para uma filosofia, sabedoria de uma vida ao abrigo das
tempestades do mundo. Esse afastamento conduz a uma
cerca, quase um claustro - um anteparo...
A descrição desses espaços desconhecidos que nos é
oferecida pelas Investigações (.História) de Heródoto, que
deles se encarregavam, dobra-se no espaço mensurado de
uma disciplina interior, concentra-se no sujeito que habi­
ta e modela seu próprio espaço. Lugar isolado de um espa­
ço típico: o campo, cuja existência é assegurada pelo corte
com a Cidade: Urbis amatorem, diz Horácio no princípio
da Epístola x. É assim que ele cumprimenta Fusco, aman­
te da Cidade, ele que amava os campos, Ruris amatores. O
campo oferece tudo o que a cidade subtrai - a calma, a
abundância, o frescor e, bem supremo, o ócio para medi­
tar, longe dos falsos valores.
Como um duplo invertido, o campo oferece o nega­
tivo da cidade, que, não obstante, toma dele emprestados
alguns traços sem os quais não poderia passar: o que se­
riam, pois, as colunas de mármore que adornam as casas
senão a imagem das florestas? E por que querer ter visão
AINVENÇÃO DA PAISAGEM 63

do campo longínquo senão por ser lá que se situa a ver­


dade? O "laudatur domus longo quse prospicit agros" de
Horácio ["elogia-se a casa que se abre para os campos ao
longe"; Epístola x] é um elogio à calma dos espaços agres­
tes, não à "visão" sensível.
Mas esse campo (rus, campus, ager), cujos méritos são
tã© louvados, só é bom à medida que refere às qualidades
de economia, de aprovisionamento generoso que caracte­
rizavam a physis aristotélica. É papel do jardim estabelecer
e manter a distinção entre os terrores naturais e os benefí­
cios dessa parens mater. Se o jardim se separa da cidade, ele
também se separa de uma natureza furiosa, tempestuosa
ou desértica. Nessa dupla condição, só o jardim é ameno
(iamcenus), prazenteiro. É preciso, pois, fugir da confusão
de Roma e de seu clima insalubre, passar setembro fora,
nesse fora que é um pequeno dentro. O jardim oferece,
com efeito, esse paradoxo amável de ser "um fora dentro".
Fugir também - porque a liberdade está na fuga - da fero­
cidade dos animais selvagens que vagam pelos campos, do
horror das matas fundas e das altas montanhas: "Tais lu­
gares", diz Lucrécio no livro v (39-42), "está em nosso po­
der evitá-los".
A meio caminho entre os dois perigos da natureza e
da sociedade, o jardim oferece o asilo desejado.
Desse modo, construir a distância essa pequena for­
ma, esse pequeno lugar - topiano - que é o jardim, viabi­
liza o espaço da fruição - o otium, o lazer, a liberdade. A
construção ideal da sabedoria - a dobra fora do mundo -
64 ANNE CAUQUEUN

tem como correspondente material a instalação do jardim


prazenteiro. As duas vertentes, sabedoria e lugar próprio
para exercer a sabedoria, estão unidas. Em uma formula­
ção rápida, podemos pretender que a forma da vida sábia
é ilustrada pela forma-jardim, cuidadosamente filtrada pe­
la tela de uma abundância magnânima (numera naturae),
cujos elementos são escolhidos com cuidado. São necessá­
rios a fonte ou o regato, o campo fértil, o bosque e a vinha,
o rochedo musgoso e, por vezes, a vista (prospectus). "Ego
laudo... rivos et musco circumilita saxa nemusque" ["Lou­
vo o campo ameno, com seus regatos, seus rochedos reco­
bertos de musgo e suas florestas"].

Reunidos esses elementos de amenidade, podemos


então nos entregar a uma descrição, a fazer deles um "qua­
dro" para seduzir os recalcitrantes. "Ut pictura poesis" [o
poema (deverá ser) como uma pintura], dirá ainda Horá-
cio, fórmula que se dissipou. É, sem dúvida, necessário
compreendê-la como resultado desse mesmo jardim que
descrevemos aqui: com efeito, a pintura é o que melhor
dá conta da moldura-cenário montada com cuidado e di­
ligência e que vale como a própria moldura da vida feliz. O
quadro "mostra" e, com isso, desempenha seu ofício apo­
logético e pedagógico. A poesia moral é quadro sedutor,
colorido com todas as virtudes do jardim. O jardim é, com
efeito, a imagem do que de melhor há no homem; ao re­
sidir no jardim, o homem se toma semelhante àquilo que
o circunda. A alegria e a mansidão do campo provocam a
AINVENÇÃO DA PAISAGEM 65

alegria interior e a mansidão do caráter. Se a vida sábia tem


como correspondente material o "lugarzinho próprio", es­
se lugarzinho tem como correspondente textual uma po-
esia-quadro. Entre os três termos, uma correspondência
simbólica propõe sua vinculação - eles se imaginam uns
aos outros, por similitude de essência.
Nada de "paisagem" aqui, de horizonte remoto, o lu­
garzinho fecha a visão em seu amável cenário. Mesmo
sendo um encanto a mais, a "vista" ao longe não é, contu­
do, necessária para a fruição do jardim:
"Neque enim mare et litus sed te, otium libertatem
sequor", escreve Plínio, o Jovem (carta vi, 14) ["Nem o mar,
nem sua costa, mas tu, o repouso e a liberdade que busco"].
O jardineiro não verá mais longe que a distância de seu pé -
meçam-se a isso. Para ele, o sol tem a largura do pé de um
homem - o dele mesmo... "Metiri se quemque suo modu­
lo ac pede" ["Medir-se cada qual com seu próprio pé, eis a
verdade"] (Horácio, Epístola vn).
É a dispensa e a despensa que o jardim designa, e não
o rio e o mar, o longínquo e a contemplação do mundo em
seu conjunto. Fruição do "próprio", da suspensão mensu­
rada, de uma vestimenta feita à medida de seu proprie­
tário. Fruição de uma parte de um pedaço escolhido da
natureza, e não sua metáfora condensada.
O jardim não é, portanto, a paisagem em formato re­
duzido; ele tem seu esquema simbólico próprio. Na pers­
pectiva do otium, ele não é a redução - na escala chamada
humana - da generosa Natureza, não mais que uma metá-
66 ANNE CAUQUELIN

bole ou sinédoque pela qual ela se apresentaria. É, bem ao


contrário, por meio de uma separação da Natureza que eje
se constitui - e quase em sentido oposto.
E, se mantém relações de proximidade e de conflito -
a cerca é, ao mesmo tempo, defesa e proximidade - com a
natureza em seu todo, ele não se transforma, por isso, em
forma de passagem entre a ausência de paisagem (termo,
noção e descrição) que destacamos entre os gregos e sua
aparição mais tardia.
O jardim não é um intermediário, um feto, ou um
germe de paisagem, mas ele entrega, na forma da éclo­
ga, das bucólicas, da ode, os elementos da constituição do
"campestre" —a árvore, a gruta, a fonte, o prado, o outeiro,
torrão ou talude, os animais e os instrumentos que com­
plementam seu léxico próprio. Eles serão retomados na tra­
dição medieval e seguem, até nossos dias, inseparáveis dos
atributos que conferimos à natureza na forma de paisa­
gem. Nós os reencontraremos nas artes contemporâneas
da paisagem, intocados. O jardim desenha uma das dobras
da memória e ali permanece, ao lado da paisagem, como
um modelo de naturalidade.
A fim de passar para o lado da paisagem, precisare­
mos voltar à fórmula de Horácio e transformar seu ut pic-
tura poesis em ut poesis pictura. É sem dúvida aqui, nessa
inversão semântica, que se decide o estatuto da imagem,
do quadro como paisagem, como figurabilidade da Natu­
reza... e isso é Bizâncio.
3
... E ISSO É BIZÂNCIO

É paradoxal constatar que é pelo desvio do debate so­


bre o ícone - de sua condenação e de sua defesa1- que pas­
sa a quase imperceptível linha de fuga, a fina fratura onde
se instalará a possibilidade de figuração da paisagem.
Paradoxal porque, naquele lugar e naquele tem­
po, nenhum signo icônico, assim como nenhuma descri­
ção literária, trata de perto ou de longe do que chamamos
paisagem. A questão de sua existência ou de sua não-exis-
tência, assim como a de sua representação, está comple­
tamente ausente.
Paradoxal porque nada mais que a pintura mural bi­
zantina dá provas de perfeito desdém pelos elementos na­
turais de qualquer paisagem. Não obstante, é justamente

1. Cf., para tudo o que se refere a Bizâncio, o admirável trabalho de M. J.


Baudinet, Les antirrhétiques de Nicéphore patriarche de Constantinople (Paris, Klin-
cksiek, 1988). Cf. também seu artigo "La relation d'image à Byzance dans les an­
tirrhétiques de Nicéphore, au-delà de l'aristotélisme", Les Études Philosophiques
(jan. 1978).
68 ANNE CAUQUELIN

aqui, justo nesse ponto preciso de formulação teórica, que


se cogita a condição de sua possibilidade.
Dobra bem oculta, que a história da arte não recomen­
daria - ela só vê o fogo, só olha para o que é dad<g como vi­
sível: a rígida, reta, frontal figura de madeira dos ícones.
Contudo, dobra que necessitamos desdobrar, pois ela
contém em germe, com a fortuna do quadro e de toda obra
pictórica futura, o simultâneo infortúnio de suas futuras
transformações.
Momento curioso, difícil de imaginar, indubitavel­
mente único na história do Ocidente, no qual o estatuto da
imagem - questão teórica que aparentemente deveria sus­
citar apenas um "debate" - se torna questão de vida e de
morte, de ultrajes e de insultos, de exílio e de destruição.
Guerra de Religião, para falar a verdade, devastações. A
imagem sangra por todos os lados. Má-fé, de um lado e de
outro, e Fé má. Tudo isso sob o signo do signo.
O estatuto da imagem é, inicialmente, a questão da
validade de uma representação mimética. Ou mais exata­
mente, no que diz respeito a esse momento preciso, a de
sua verdade.
Claro que não se trata da Natureza como princípio
nem de sua relação com sua figuração sob a forma da pai­
sagem, mas do princípio divino, o Deus cristão em três
pessoas, e de sua figuração sob a forma de imagens a sua
semelhança. Contudo, ao formular essa questão, e ao pro­
videnciar uma resposta para ela, é também a relação da na­
tureza com sua representação que está posta.
AINVENÇÃO DA PAISAGEM 69

Pode o princípio divino ser representado em uma forma


sensível (visível)? Não, dirão uns (os iconoclastas), porque
essa forma material trai a essência do divino e, ao propor a
ilusão de uma similitude, faz o signo ser tomado pela coisa e
conduz os cristãos à idolatria, Sim, dirão os outros (os iconó-
dulos), porque nem toda imagem é necessariamente simili­
tude ou visa à identificação do signo com a coisa.
Toda a discussão se dá em torno da distinção entre
uma imagem "semelhante a" e uma imagem "produzida
para". Em -resumo, em redor da distinção entre imagem
natural e imagem artificial, entre eídolon e eikon, simulacro
e retórica. Compreendamos aqui o que significa "produzir
segundo o princípio, ou modelo", e "copiar o modelo". Pe­
netremos os arcanos de uma distribuição providencial dos
signos e das coisas que eles assinalam, ou, se quisermos,
de uma economia geral dos signos.
Quando se pretende semelhante a seu modelo divi­
no, a imagem material é traição, pois exibe aquilo que é,
em essência, invisível. Vertente sensível de uma presen­
ça ideal, ela divide o que é único e, pior ainda, substitui
a ordem do espírito pela ordem da matéria. Habitada pe­
la homoousia, ou semelhança entre essências, ela usurpa a
essência daquilo que se considera que ela possa figurar e se
adona daquilo que não pode ser. Toda imagèm é, na pers­
pectiva iconoclasta, tomada no jogo de substituição fala­
ciosa da homoousia. Por isso é condenável.

Há outras maneiras de analisar o estatuto da imagem,


retrucam os iconófilos, pela voz do patriarca Nicéforo. Des­
70 ANNE CAUQUELIN

sa imagem fundada na semelhança de essência temos, cla­


ramente, um e o mais alto exemplo: o Cristo, imagem do
Pai, é a ele idêntico em essência, e contudo é ta^ibém sua
imagem de carne, a encarnação. Mas é aqui justamente
que se tem um caso particular, uma divina exceção ao ca­
ráter da imagem. Inútil pensar que nós outros, criaturas,
poderíamos rivalizar com essa homoousia. Condenar sua
prática é, por isso, absurdo. Seria o mesmo que castigar e
fustigar algo que nos é impossível por natureza.
Porque se Deus "realiza" absoluta e perfeitamente a
operação da homoousia, a saber, a adequação perfeita e es­
sencial do modelo e de sua imagem, nós outros só pode­
mos admirar e venerar sua obra, tentando simplesmente
dar, para fins apologéticos, a imagem da imagem.
Se assim é, o perigo passa a ser, então, o de confundir
em uma mesma vindita toda forma de produção de ima­
gens, supondo que toda forma de semelhança é do tipo
dessa única homoousia.
Ora, existem imagens de outro tipo, não apenas viá­
veis, sem traição, mas até mesmo necessárias para com­
preender o mistério divino e convocar a graça de sua
contemplação perfeita. Para tanto, basta estabelecer a legi­
timidade de se entregar a uma análise, de tipo aristotélico,
dos diferentes sentidos do termo "imitação".
Levar em conta e apoiar-se na imagem-produção,
aquela que Aristóteles chama de mímesis. Aqui, não é o
modelo que é diretamente imitado, mas o modo de pro­
dução do modelo. Assim, o célebre "imitar a natureza"
A INVENÇÃO DA PAISAGEM 71

não significa que se vão "copiar" os objetos que ela ofe­


rece, mas a "economia" pela qual a natureza ou Deus age
no mundo. Aqui, a relação da imagem com o modelo não
é uma relação de identidade, mas uma relação homônima:
um mesmo nome designa aqui dois objetos diferentes.
Como se diz no livro i das Categorias:

são chamadas de homônimas as coisas que só têm em


comum o nome, mas a noção segundo a qual o nome é
diferente pela essência..."homem"indica, desse modo,
o homem vivente, mas também o homem representa­
do em uma pintura.

Relação de heterogeneidade que não suprime a relação,


mas a assegura ao separar os termos. Com efeito, para que
haja relação, é necessária a esquiz(o), a separação do que é
posteriormente reunido - toda a questão do símbolo deri­
va dessa constatação.
Podemos, pois, produzir a homonímia, a homoiesis,
sem para isso substituir - por metáfora ou metonímia - a
coisa pela imagem que ela iconiza. Nesse sentido, o ícone
não é a parte de um todo, nem sua repetição material.
Do mesmo modo, a mímesis aristotélica não é simples
cópia, mas produção original: poíesis. A tragédia não é si­
mulacro das ações humanas, mas produção de um conjun­
to de traços, que por uma linguagem elevada, provocando
piedade e temor, obedecendo a leis específicas, às regras
do gênero, propõe ações exemplares à admiração e ao re­
72 ANNE CAUQUELIN

conhecimento dos atenienses. Cabe a eles preencher esses


traços, reunir os fragmentos em uma totalidade mnêmica.
Do mesmo modo, o poeta "imita" o processo produtivo da
natureza, cuja palavra de ordem é a economia. A distribui­
ção e a partilha de um bem comum em fragmentos que re­
fletem inteiramente sua potência.
Um distanciamento produtivo governa, desse modo, a
fabricação do ícone, distinto por natureza daquilo que ele
evoca. O ícone, produzindo-se como imagem artificial, pro­
duz ele mesmo uma tensão para, um ítpòcm [prosti]. Ele
pertence à ordem da prática, está voltado para o uso.
Em resumo, ele pertence à ordem da sedução e da per­
suasão retórica. Ele é, antes de qualquer coisa, um "traço".
Traço de união ou flecha atirada, apelo e convocação de
uma unidade - a da Santíssima Trindade - no fragmento
material. Longe de estabelecer aí uma similitude, ele pro­
põe simplesmente um suporte para o reconhecimento.
Desse modo, ele manifesta a potência do princípio di­
vino, que se mostra em todos os pontos da natureza, não
por efeitos isolados uns dos outros, mas de maneira total e
única até naquilo que nos parecem fragmentos. Essa facul­
dade de se dividir em mil fragmentos permanecendo único
provém justamente da natureza divina, e o ícone, essa for­
ma construída para a arte, esse artifício humano, participa
do desígnio geral da Providência, ao qual obedece.
Com efeito, se a natureza se comporta como ecônoma
e dispensa seu estoque, partilhando-o com exatidão (salvo
erros mínimos), vê-se Deus agir do mesmo modo, instau­
rando o plano geral de uma partilha. Com a distinção entre
A INVENÇÃO DA PAISAGEM 73

arquétipo e imagem, ele oferece o modelo de uma econo­


mia distributiva. Esse é o gesto que o poeta de Aristóteles
imita, e é o gesto que o artesão de ícones reproduz em seu
trabalho. Desse modo, a mediação do Cristo, imagem na­
tural, é fundadora do ícone, imagem artificial. Hierarquia
de signos, sem a qual nenhuma mímesis seria possível.
O traço que circunscreve a imagem separa-a de seu
modelo, mas, ao mesmo tempo, instaura por meio dessa
disjunção um chamado à reunificação. O traço circunda
um vazio, não um cheio. A pretensão da imagem icôni-
ca não é dar positivamente um substituto essencial, mas
cavar uma diferença. Diferença que virão esclarecer com
seus brilhos as cores resplandecentes da graça e a figura,
sempre ausente, do Cristo.
Portanto, o ícone e seu hieratismo austero, o man­
to de dobra rígida, os olhos circundados de preto, os joe­
lhos e a nuca que se pressentem retos. Uma economia de
signos que remete à Economia divina, mas, curiosamente,
nenhum traço de paisagem, de natureza, de floração diver­
sificada: a natureza está inteira dobrada e como que re­
fugiada no manto de seu Senhor. É idéia dele, nele está
contida. Evocá-lo, ele, o Senhor, por meio do traço icônico,
é designar economicamente o que ele criou para envolver
sua obra, o homem. Não há, portanto, a mínima necessi­
dade de insistir nesse invólucro.

Onde estão, então, os jardins do otium e do uti com


que Horácio e Plínio nos encantam? As bucólicas de Vir­
gílio, com Títiro tocando flauta sob os olmos, enquanto
74 ANNE CAUQUELIN

os pequenos deuses campestres protegem os rebanhos?


Nada de "bucólicas". Não se encontram mais nem fontes
nem bosques sagrados, relvados floridos de mil flores, so­
pro do zéfiro, e os próprios pássaros já não misturam mais
suas vozes aos murmúrios do vento. Onde está a poesia
que toma a pintura como modelo? Ao contrário, é a pin­
tura que, em Bizâncio, toma por modelo a poesia: a repre­
sentação icônica, o traço que circunscreve a ausência é um
traço retórico, uma figura do nome. Na verdade, sua figu­
ração. Dessa maneira, a apresentação de um pedaço da na­
tureza, apresentação que era habitual entre os latinos, cede
passagem a um dispositivo completamente distinto: da ho-
moousia passou-se à homoiesis: agora a imagem é uma fa­
bricação, distante daquilo que ela "iconiza", é um ícone (e
não um eídolon) onde se mostra a potência do nome, in­
termediário obrigatório de toda construção pictórica. Com
efeito, o jardim latino não podia ser paisagem, visto que
era um pedaço arrancado da Natureza, da mesma espécie
ou essência. Ele era uma parte dela, separada, e era justa­
mente essa separação que o tornava incapaz de designá-la
por inteiro.

Ao renovar o estatuto da imagem, Bizâncio, mesmo


sem se interessar pelo meio ambiente natural, torna pela
primeira vez possível a operação de substituição artificial
que a paisagem ilustrará.
Na natureza em que sua apresentação é de ordem icô­
nica, a paisagem responderá, com efeito, à regra de sepa­
A INVENÇÃO DA PAISAGEM 75

ração e de substituição dos termos de uma relação: será


ícone da Natureza, e não semelhante a ela; será construída,
artificialmente produzida para convocar a natureza a pre­
encher o vazio que o traço perigráfico estende ao olhar.
Assim é que se tornou possível a relação paisagem-natu-
reza como a de uma Verdade indizível e de seu correspon­
dente gráfico, de uma Voz ausente e do nome pronunciado.
Relação de homonímia.
Mas, no mesmo movimento, a travessia do signo ar­
tificialmente constituído em sua produção econômica ru­
mo ao modelo - Deus ou a Natureza - produz uma espécie
de confusão e incita (o que os iconoclastas temiam) à iden­
tificação abusiva das duas extremidades da cadeia. Tan­
to mais que o Oriente liberou, para o prazer dos olhos, as
suntuosas riquezas de suas cores: o ouro e o púrpura, mas
também o azul que se vê no céu das cúpulas, violetas de­
licados, matizes de verde, uma profusão de ocres pálidos.
Claro que era necessária essa passagem teórica, essa argu­
mentação densa que estabelece a imagem em seus direitos
e em seus limites, mas, sem dúvida, também era necessá­
ria essa passagem à cor para que a imagem, agora capaz
de funcionar como ligação entre dois mundos, pudesse ser
vista, sentida e imaginada enquanto análogon da Nature­
za... até tomar o lugar dela e responder em seu nome. Isso
decorrerá da pintura, de sua questão, de sua importância.
4
A QUESTÃO DA PINTURA

Até aqui, a pintura fez apenas uma tímida aparição.


De modo geral, sem dúvida, com o ut pictura, onde o termo
aparece, mas ainda na forma de simples promessa, dispo­
sição do espírito. Sim, seria preciso que a poesia pintasse
(pintar ou representar?), que arrastasse e incitasse ao visí­
vel, que fizesse quadro. Mas que espécie de quadro?
Ou teríamos falado da cor, de formas por meio das
quais a natureza podia ser evocada; mas qual natureza?
Uma natureza idealizada - a economia divina, a Provi­
dência, o destino. De pintura propriamente dita, nem uma
palavra, apenas a possibilidade de um ícone, signo de sua
duração como imagem.

Tempos da pintura, de sua questão. Como evitá-la? E


de situá-la em seu lugar: a Renascença. Não para, dora­
vante, passar a residir com ela, e com ela permanecer de­
finitivamente, dizendo: "A paisagem é a pintura", como a
A INVENÇÃO DA PAISAGEM 77

todo momento, na evidência implícita do natural, dizemos:


"Bem, a paisagem está a nossa frente", apontando o dedo
na direção desse "a nossa frente". Agora, bem que podería­
mos dizer, fundamentados em tanta arte, em tantos qua­
dros, em tantos planos azulados das telas quatrocentistas:
"A paisagem nos é dada pelo artifício da técnica, aqui e
também acolá..." Não teríamos nomes suficientes para no­
mear todos os pintores, todas as obras. E, mais uma vez,
nos encontraríamos numa dobra, numa sombra. E, dessa
vez, no quadro.
Com efeito, a questão - a da pintura propriamente -
não está em: "Como fazem os pintores com a paisagem?"
Seria fácil e, por assim dizer, apaixonante responder a isso.
A questão é, sobretudo, a seguinte: como pode ocorrer
que, em um domínio tão restrito - tela, madeira, paredes,
cores -, aquilo que os pintores da Renascença fabricaram
tenha se tornado a própria escrita de nossa percepção visu­
al? Teriam eles projetado uma espécie de máquina de olhar
a paisagem, ou melhor, de fazê-la aparecer em um lugar
onde ela não tinha a mínima razão de ser, impondo-a
assim como o único olhar possível para a natureza e em
vista da mesma?
Pergunta que não deixa de nos surpreender e que ma­
nifesta o estatuto singular da pintura, sua originalida­
de em comparação com as outras artes. Porque ninguém
contestaria, por exemplo, o poder de a arquitetura mode­
lar nossos comportamentos, gestos e maneiras, à medida
que sabemos perfeitamente que os espaços estruturados
78 ANNE CAUQUELIN

nos obrigam à ação comedida. Há nisso uma ação e reação


quase direta sobre nossos comportamentos, sobre o senti­
mento do pleno e do vazio, sobre as orientações, as distân­
cias a respeitar, sobre a própria consciência que temos de
nosso corpo e de suas possibilidades de agir no espaço que
nos é assim oferecido. Na cidade moderna, as estradas e as
vias expressas, as pontes e as ruas, as praças e os lugares
abertos transformam nossos usos, liberam ou entravam a
caminhada, provocam alguns de nossos gestos que se tor­
naram habituais e condenam outros.
Sem dúvida, o mesmo ocorre com o barulho, da­
do que deixamos de suportar bem o silêncio; vivemos em
uma espécie de zumbido contínuo, no qual a estridência
se combina com o ruído de fundo. Percebemos as artes do
construído e do sonoro como a presença de uma sociedade
determinada, conveniências de época, obrigações rituais e
submissão ao "as coisas são assim". Mas nem passaria por
nosso espírito confundir os acidentes necessários com a
"verdadeira natureza das coisas", muito menos com a pró­
pria natureza. Pensamos civilização, costumes, sociedade,
relatividade.
O mesmo não se passa com a visão, que, parece, se
apodera do que "realmente" existe. A pintura, então, à me­
dida que nos fornece esse olhar sobre coisas chamadas de
reais, e apesar de não passar de uma representação, tem
a ver com a verdade fora de toda relação com a conformi­
dade social. A questão da pintura depende disso: ela pro­
jeta diante de nós um "plano", uma forma à qual se cola a
 INVENÇÃO DA PAISAGEM 79

percepção; vemos em perspectiva, vemos quadros, não ve­


mos nem podemos ver senão de acordo com as regras ar­
tificiais estabelecidas em um momento preciso, aquele no
qual, com a perspectiva, nascem a questão da pintura e a
da paisagem.

Tratar-se-ia aqui da pintura como de uma questão que


sempre teria estado ali, implícita, mas que se viu, subita­
mente, desdobrada como questão?
Porque, se se trata de paisagens, e de paisagens pin­
tadas, elas estavam ali muito avant la lettre, antes da Re­
nascença. As vilas de Pompéia com suas cenas de ilusão:
as paredes são crivadas de céus e de pássaros, de ma-
rinas e de barcos. Ilusão que dão as janelas pintadas,
encaixadas em enquadramentos de colunas e de balaus­
tradas, no desdobramento das verticais, "vistas" se ofe­
recem à vista. Perspectivas de perspectivas: as janelas
pintadas se abrem para outras janelas, armários se en­
treabrem para prateleiras carregadas de objetos, enquan­
to Ulisses aparece ao longe, em um cenário de grutas e
de portos...
Contudo, a questão da pintura não está posta. A pai­
sagem "pintada" permanece cativa nas paredes cegas, é
história, narrativa. Não abre a natureza à visão por meio de
si mesma. Não é de dupla face. A plástica que a "relata" se­
gue encerrada em seu domínio técnico. Ela pensa moldura
e quadros isolados, ela pensa "ilusão". Ela aparenta pare­
cendo. A regra que a orienta é o bom senso, a ratio, prova
80 ANNE CAUQUELIN

de que seu critério propriamente pictórico ainda não nas­


ceu. Portanto, essa istoria figurada não enfrenta a relação
com a realidade, mas com o texto mitológico.
Desse modo, é o texto e sua coerência que fazem a lei;
o que o olho percebe deve dobrar-se a uma verossimilhan­
ça, permanecer nos limites do bom gosto, evitar o efeitis-
mo. Porque, se a virtuosidade leva a melhor, tem-se muitas
vezes um abuso de cores, desperdício, brilho, e nem um
dedinho de "verdade".
Vitrúvio declara guerra a esse mau gosto e notifica
(vm, 5, 9) que a pintura deve permanecer aquilo que é, um
conjunto de imagens; aconselha a não pintar o inverossí­
mil, a não defender, por exemplo, "um junco frágil de es­
tatuetas partidas ao meio, nem pintar candelabros como
suporte de edifícios que carregam talinhos delgados acom­
panhados de espirais, sobre as quais, contrariamente ao
bom senso (sine ratione), vêem-se estátuas assentadas".
A razão julga aquilo que viu. Ela diz: "Isso não po­
de". É impossível ver construções acima do céu, jardins so­
bre tetos, sustentando eles próprios outras construções. Ela
diz: "Isso é falso". Nada há acima do que está acima. A ra­
zão julga a pintura de acordo com a ordem do mundo, sua
idéia. Ela que conhece as leis põe as coisas no lugar. Privi­
legia a solidez, a coerência. Nulidades, esses cenários.
E, claro, a visão não é solicitada: não se trata de ver a
pintura. De mostrar algo, de levar a ver, mas de ilustrar,
do melhor modo possível, o relato, de maneira convincen­
te. Um vocabulário de elementos está à disposição, e a sin­
A INVENÇÃO DA PAISAGEM 81

taxe que os articula pertence à istoria. É a razão que vê, e


não o olho.

Seria precisopensar o momento de uma questão dapin­


tura como uma inversão de prioridades. De repente, dá-se
o seguinte: o "mostrar o que se vê" toma a dianteira da re­
presentação de uma idéia do mundo. Mostrar o que se vê,
esse é o novo imperativo que vai abalar as relações entre
realidade razoável e aparência, fazendo da técnica pictórica
o pedagogo de uma ordenação. Parece que existe uma or­
dem da visão, distinta das construções mentais pelas quais
estaríamos certos até mesmo da realidade.
E nenhuma outra lição, só a da pintura, pode nos en­
sinar essa ordem. Até valer para uma formalização do que
devemos ver, impondo uma construção simbólica (um elo)
entre os elementos - forma rigorosa que leva o olhar a re­
presentar o mundo para si mesmo segundo a pintura.
Quadro, forma, tela, como se queira, armadilha on­
de se cativa a natureza. Doravante, podemos recorrer ao
"mostrar" da pintura para organizar as aparências, e a
razão, que nada mais pode, dobra-se a esse imperativo,
recupera o atraso e justifica o conjunto. São as leis da pers­
pectiva, ela dirá.
Esse "mostrar o que se vê" faz nascer a paisagem, a
separação do simples ambiente lógico - essa torre para sig­
nificar o poder, essa árvore para significar o campo, esse
rochedo escavado para abrigar o eremita. A istoria e suas
razões discursivas passam para segundo plano: e, veja, fa-
82 ANNE CAUQUELIN

Íamos de "planos", de proximidade e de longes, de distân­


cia e de pontos de vista, ou seja, de perspectiva.
Luta, discórdia e reencontros, compromisso entre
aquilo que é próprio da pintura e aquilo que ainda é pró­
prio da solidez da coerência e da continuidade que atribuí­
mos ao mundo. Nascimento difícil quando, hesitando entre
razão do mundo, bom senso e a loucura do ver que des-
trói sua prioridade, os artistas só a muito custo encontram
seu próprio caminho. Nascimento tão vertiginoso que de­
le ainda não nos restabelecemos. Passagem inevitável para
quem toma a iniciativa de dizer o que é a visão, o que é que
o olho vê a propósito da natureza, como ele constrói esse
filtro, dá-se a si mesmo uma cena, instala uma perspecti­
va. São incontáveis os estudos eruditos sobre esse tema, e
cada autor que se põe a estudá-lo - mesmo que se trate de
uma análise das "novas imagens", as imagens da tecnolo­
gia contemporânea - vê-se levado a voltar à fonte, à ques­
tão da pintura: à invenção da perspectiva.
Ainda preso nesse conflito de nascimento, Leonardo
da Vinci recomenda observar uma coerência espacial nas
diferentes cenas de uma mesma "história" (istoria). Elas
devem ser mantidas na unidade do sujeito. Isso é bem pró­
prio da lógica da idéia - pelo artifício de uma perspectiva
em planos escalonados -, mas impõe também uma lógi­
ca do olhar1.

1. Leonardo da Vinci, Traité de la peinture (trad. de A. Keller, Paris, Berger


Levrault, 1987).
|fcINVENÇÃO DA PAISAGEM 83

É preciso articular duas coerências: uma é adquiri­


da, é a do sentido narrativo; a outra, que tenta construir
©trabalho pictórico, ainda está por nascer. Esse é o ponto
em que se situa a questão da pintura. Organizar e cons­
tituir a coerência do ponto de vista seria mostrar que se
vê aquilo que se vê: ou seja, o estado de coisas tal como a
razão cognoscente as apreende. Trata-se, portanto, de in­
terpor, entre a impressão dos sentidos e o conhecimento
das leis da realidade necessária, um protocolo de acor­
do: um "quadro" ou uma "forma" que os una fortemen­
te, de tal maneira que uma não possa dispensar a outra
e vice-versa.
Porque a pintura dá a ver não os objetos, mas o elo
entre eles, como se tentasse também tecer um vínculo in­
corruptível entre o que se sabe e o que se vê. E se existis­
se uma relação oculta entre essas duas ordens, relação que
a pintura mostraria?
Hipótese frágil, sempre carente de ser reanimada,
consolidada.
Por meio de qual conivência quase-divina o que eu sei
que sei sobre o estado das coisas que me cercam poderia
coincidir com as impressões de meus sentidos? Isso deriva
de uma verdade oculta, de uma ordem da transparência do
sensível ao intelectual, ordem permanentemente desmen­
tida pelas ilusões, pela relatividade das sensações, por sua
falta de constância e de consistência. Enquanto eu repro­
duzia a idéia das coisas tal como as concebia, a torre bem
que podia figurar a cidade e seu poder, a palmeira resumia
84 ANNE CAUQUEUN

o deserto, e são Jerônimo podia brincar com um leão três


vezes maior que a gruta que lhe servia de abrigo... Mas, se
eu confio em meus olhos, se existe uma ordem da visão,
então como fazer para coincidir a idéia da torre (potência,
triunfo, grandeza) - torre que se oculta no centro da cidade
e da qual só parcialmente me apercebo - com sua peque­
nez ou quase-desaparição? Isso só é possível em virtude
de um plano preestabelecido, de um desígnio geral, forte­
mente "mostrado": a exibição do vínculo existente entre o
pensamento e a visão.
É a lei da perspectiva que tece, entre os elementos ar­
mazenados no saber, a tela de uma visão sintética. A pro­
porção e a superposição dos planos levam a "ver", ou seja,
a compreender aquilo que a visão sensível, particular, mui­
tas vezes dissimula. A organização do conjunto terá vali­
dade para o conhecimento da istoria, cujos reféns são os
objetos pintados.
Passagem, ligação original, que reconcilia dois mun­
dos preservando sua relativa independência.
Dessa conjugação nasce a pintura, terceiro mundo.
Lugar onde, pouco a pouco, se arma e se desarma o vín­
culo, o olhar e a razão em acordo e desacordo, negando-
se mutuamente, ora para que a aparência triunfe, ora para
sua derrota. Quem dirá se as Demoiselles d'Avignon dão
razão à razão que analisa, discute, sabe, ou à lógica do
olho, que só vê azul ali? Quem dirá a verdade acerca da
Sainte-Victoire? A reconstrução de Cézanne está mais
próxima de enunciar a estrutura das colinas que a própria
A INVENÇÃO DA PAISAGEM 85

natureza, mais razoável que perceptiva, não deixa ver, ou


© contrário?

Uma constante revolução agita o par compreender-


ver. Compreendo porque vejo, e à medida que vejo, mas
só vejo por meio e com o auxílio do que compreendo que é
preciso ver naquilo que vejo.
A imagem, ao mesmo tempo, me desafia e me cumu­
la, dá e retira uma realidade, aquela que conheço conhecer.
Faz esse frágil saber vacilar. Visão, caminho do conheci­
mento além do conhecimento, o olho é a janela pela qual
compreendo as coisas. Trata-se da vigília da razão e do so­
no dos sentidos? Ou o contrário: o olho, obscuridade pela
qual me vem a dúvida, vela pela alma adormecida?
A questão da pintura não cessa de suscitar a questão
desse confronto, numa dialética compacta. Ela faz o papel
da importuna, despe gradualmente de suas vestes tanto a
mulher casada quanto as solteiras.
Pela janela pintada na tela ilusionista, vê-se o que é
preciso ver: a natureza das coisas mostradas em sua vin-
culação. Então, o que se vê não são as coisas, isoladas, mas
o elo entre elas, ou seja, uma paisagem. Os objetos, que a
razão reconhece separadamente, valem apenas pelo con­
junto proposto à visão. Porque a invenção da perspectiva
estabelece as regras de uma redução e de um ajuntamento.
Toda a natureza (o exterior) está lá, em uma apresenta­
ção que reduz sua dimensão ao que pode ser captado no
feixe visual; mas essa redução só pode se dar à medida
86 ANNE CAUQUEUN

que a totalidade for mantida, a unidade constituída - uma


unidade mental, isto é, uma construção. A razão, critério
do verossímil pré-renascentista, transformou-se em lógi­
ca visual.
E se pode dizer, tanto dos objetos como das palavras,
que eles só têm valor quando se compõem entre si e que,
se refulgem com algum brilho, é porque estão dispos­
tos com arte em algum ponto do discurso que os circun­
da. Os objetos da paisagem, essa árvore, essa fonte, essa
fronde encrespada ou inclinação de nuvens não remetem,
parte por parte, às coisas da natureza tomadas separada­
mente; é a ordenação de sua aparição que significa: "na­
tureza". A maneira de ordenar essas "coisas", o vínculo
que as une depende então de uma retórica. O que existe
de "natural" na natureza, sua sensualidade imediata, só
é percebido como enigma, por meio do artifício de uma
construção mental.
Ninguém duvida de que a paisagem não nasce aqui,
no momento da pintura, porque, por sua complexidade
"natural", ela responde melhor à questão do vínculo. A na­
tureza, sive Deus, exprime ao mesmo tempo o sensível e o
intelecto, é sua própria idéia, que ela mesma mostra sob a
forma e no espaço da paisagem... O "mostrado" (natureza)
e o "mostrar" (a arte) concorrem então para situar a de­
manda e a resposta e se conservam juntos.
A arte se alicerça sobre o conceito de "maravilha da
natureza", diz L. Wittgenstein. Um broto que eclode, que
tem isso de magnífico? Mesmo assim, é por meio da arte
A INVENÇÃO DA PAISAGEM 87

que digo o que vejo que devo ver na natureza. E o que vejo
dessa maneira é paisagem.

É preciso ver, ver diante de si, ver o que é "dado" a dis­


tância. Vê-lo como um todo e relacionar esse todo com a
natureza. Mas quem é que está encarregado de adminis­
trar a primeira aula? Quem, dentre pintores ou arquitetos,
por primeiro pôs sua marca no período que se abre à pin­
tura? Quem inventou, projetou, lançou a primeira pedra de
um edifício do qual ainda somos cativos? Tema de contro­
vérsias apaixonadas, de debates eruditos, de pesquisas.
Questão da construção de uma autonomia da pintu­
ra, de seu distanciamento do relato, de sua passagem para
o lado daquilo que ela mostra: a paisagem.
Entre tantas obras, escolherei uma por seu caráter
permanentemente enigmático: A tempestade, de Giorgio-
ne. Ela suscita *à própria questão da paisagem e desperta
inúmeras interpretações.
Os comentadores se perguntam se há ou não um "te­
ma" para esse quadro. Por "tema", deve-se compreender o
relato que estaria subjacente à pintura e que teria suscitado
uma ilustração como "a tempestade".
A pintura necessita ou não de um tema? Uma narra­
tiva que estenda sua tela de fundo, que faça o enredo, para
ligar os diferentes signos pictóricos, serve de elo (de ponto
de encadeamento) à tela pintada? O indecifrável enigma
do tema da tempestade fornece aos defensores da ausên­
cia do tema, de uma rejeição da narrativa, um exemplo
88 ANNE CAUQUELIN

incontornável: A tempestade é precisamente um quadro, é


precisamente pintura, e não tem tema explícito, nem mes­
mo oculto. Quanto aos defensores do tema na pintura, A
tempestade lhes fornece o exemplo ideal para exercitar seus
talentos de exegetas. O que é que mostra esse quadro, a
não ser o relato? Se o relato for difícil de encontrar? Não
mostraria ele nada além de si mesmo? E o que é, então, es­
se "si mesmo"?
O interesse de A tempestade é levantar essa questão.
Até Giorgione, não se tomava isoladamente o fundo em
forma de paisagem das telas. Dado que o tema já era muito
explícito por si mesmo, o fundo servia de cenário, instalava
a distância, dava o tom geral. Por sua vez, com A tempesta­
de, parece que não havia nada além disso: árvores, céu, nu­
vens, uma ruína, um regato e, perdidos, isolados nos dois
cantos extremos do quadro, dois personagens que parecem
se ignorar mutuamente.
Desde então, os comentários tiveram livre curso: o pri­
meiro (1530) menciona "uma paisagem sobre tela, com a
tempestade, a cigana e o soldado". Vasari declara, pouco de­
pois, não entender o tema e pensa que não se trata de mo­
do algum "de personagens ilustres da Antiguidade nem dos
tempos modernos". É preciso esperar os eruditos do sécu­
lo xix e o ateliê exegético2 para encontrar discussões sobre a
significação da tela. Ou ela tem sua significação em si mes­
ma, e o tema-pretexto é de pouca importância (Lionel Ven-

2. Salvatore Settis, L'invention d'un tableau (Paris, Les Éditions de Minuit,


1988). Cf. nas pp. 86-7 o quadro das 28 exegeses.
A INVENÇÃO DA PAISAGEM 89

turi), ou podemos nos entregar a todo tipo de hipóteses. O


problema é que, em meio às 28 exegeses diferentes (compi­
ladas e classificadas por Salvatore Settis) que se abateram
sobre A tempestade, nenhuma é realmente satisfatória, nem
dá conta de todos os elementos do quadro. Qualquer que se­
ja a perspectiva em que ele seja encarado, alguns pormeno­
res são refratários a uma explicação global.
Quem é a mulher amamentando uma criança de ar
melancólico, o homem que monta guarda no outro canto
do quadro? Onde estão essa cidade, esse rio, essas colunas
rachadas e, ao longe, o que é esse céu tumultuoso de tem­
pestade emoldurado por grandes árvores tristes, arbustos
magros e a terra ocre do primeiro plano?
Diante da hipótese de que se pode tratar ali da "fa­
mília de Giorgione", referindo-se a uma infância bastar­
da, ou da família humana em geral, abandonada por Deus,
ou ainda de um "repouso no Egito", quem poderia concor­
dar com uma delas se não se visse ali uma cidade e um rio
atrás da mulher e da criança? Tratar-se-ia de uma danaide
amamentando seu filho Perseu na presença de um raio ju­
piteriano, mas, então, que fazer com o homem no primeiro
plano à esquerda? De uma mulher (cigana) seduzindo um
soldado, provocando-o, para que abandone a guarda da ci­
dade? Mas o "guarda" não demonstra interesse e a mulher
com uma criança ao seio não parece querer seduzi-lo. De
uma ninfa amada por Júpiter - Zeus se manifestando por
seu relâmpago, um são Roque curador da peste... são tan­
tas as possibilidades que até as esqueço... A última em or­
90 ANNE CAUQUEUN

dem cronológica, a de Settis, extensamente argumentada,


faz um relato da iconografia acerca da exclusão do paraíso
depois da queda. O anjo exterminador tornou-se um sim­
ples fulgor, o paraíso perdido é essa Jerusalém celeste meio
arruinada; Adão se mantém a distância, como um pastor
laborioso, e Eva, levando ao seio Caim infeliz, tem o olhar
perdido que convém à situação.
Explicação engenhosa, mas que nada diz sobre a im­
portância da paisagem na obra, sobre as colunas em ruína,
sobre a ponte que salta o rio, sobre o tratamento do céu, al­
ta massa trabalhada na pasta, sobre a vibração das árvo­
res, sobre o primeiro plano terroso, em forma de pedestal.
A hipótese do tema está lá, mas a pintura, nessa explica­
ção, desaparece... e com ela a paisagem considerada como
um todo. Contudo, é justamente pela importância dessa
paisagem tempestuosa, de sua presença opressiva, que a
questão do "tema" é suscitada. Se não encontramos um te­
ma apropriado, se as duas figuras humanas do quadro pa­
recem ter pouca relação com o que se passa atrás deles, e
com qualquer outra história, é aí que a dominação da pai­
sagem (ela ocupa dois terços da tela) impõe sua ordem não
humana. A partir daí, todo comentário que tome a paisa­
gem por um simples fundo, concedendo o protagonismo
ao relato, frustra o próprio objeto. E o frustra porque o jul­
ga "excessivo". Ora, o que parece sobrar são os persona­
gens. Como que esmagados pelo espetáculo ao qual viram
as costas, e que só o espectador pode ver, eles parecem ex­
pulsos, não do paraíso terrestre, mas da representação da
A INVENÇÃO DA PAISAGEM 91

Natureza. Seus olhares meditativos (o homem) e melancó­


licos (a mulher) se ausentam, ao passo que atrás deles se
desenrola a cena primordial: o quadro pintado deixa apa­
recer a verdade-paisagem da Natureza.

Algo parecia sobrar, algo do qual história alguma po­


de resultar. Algo como a invenção da pintura de paisagem.
O tema "oculto", que assim se ausenta da representação co­
lorida do quadro, manifesta em sua nudez o fato-pintura,
sem o álibi ilusório de um tema qualquer. O fato-pintura: o
nascimento conjunto da paisagem e da pintura.
O "tema" do quadro bem que poderia ser a própria
pintura, e, particularmente, o vínculo que a cor e a forma
introduzem entre objetos: simples disposição das "coisas
da natureza" numa moldura. Os olhos dos personagens
pintados se desviam para deixar a natureza se expressar.
Não temos necessidade deles para "ver" a paisagem, dora­
vante nós mesmos a veremos. Ela foi descoberta.
Livres éstão os romancistas, fazedores de histórias
em seqüência, para comentar essas visões ofertadas uni­
camente ao olhar. Eles contam fábulas para ninar a visão,
falas que se ligam em arabescos aleatórios às cores e às for­
mas do quadro.
Proposições. Butor embarca a rainha de Sabá no
poema ritmado dos remos que levam seus tesouros até o
grande navio, qüe se move ao largo3.

3. Michel Butor, L'embarquement de la reine de Saba, d’après Claude Lorrain


(Paris, La Différence, 1989).
92 ANNE CAUQUELIN

É um porto, a noite cai. Uma luz dourada envolve os


edifícios, que têm algo de ruína em sua fachada altanei­
ra. O mar, ao nível do cais, lança seus últimos amplexos. O
coração também embarca. Há necessidade de uma histó­
ria? De um tema? A pintura refulge. Os barcos são de pra­
ta sobre o mar brilhante. Um sonho, o de Butor, se esforça
em seguir a bruma dourada, ao passo que a paisagem es­
tá lá, simplesmente lá.

Como são inventadas as paisagens

"Devo" ver. Esse imperativo se dá inicialmente como


um todo. Contudo, ele é construído com mil estratos jus­
tapostos, que até mesmo o historiador mais minucioso e
mais bem documentado não consegue apreender separa­
damente, no pormenor de sua exigência.
É o que se passa, por exemplo, com a descoberta da
montanha ou do litoral4. A sensibilidade social a essas "pai­
sagens" é historicamente atestada em épocas determinadas
e bastante recentes. "Descobre-se" a beleza, freqüentam-se
os lugares até então considerados desertos maléficos, ater­
radores. Eles entram na moda, primeiro para a elite da so­
ciedade, depois entram no vocabulário das "necessidades"
naturais, são um bem comum, disponível a todos.
Essa passagem de um estado a outro, como ela ocorre,
como e quando têm início as diferentes viradas, que levam

4. A esse propósito, cf. B. Kalaora e A. Savoye, La forêt pacifiée (Paris,


L'Harmattan, 1986); Alain Corbin, Le territoire du vide (Paris, Aubier, 1988), e He­
gel, Journal d'un voyage dans les Alpes bernoises (Grenoble, Jérôme Millon, 1988).
A INVENÇÃO DA PAISAGEM 93

multidões à praia ou a praticar esqui (o mesmo valendo pa­


ra o deserto, com ou sem safári)?
Aqui, as anotações se acumulam, se dispersam. Uma
onda de nomes e de datas me submerge. Qual é a chave
desse movimento? Temos de admitir que se trata de uma
trama de elementos heteróclitos que governa a sensibili­
dade de uma época a esse ou àquele aspecto da "Nature­
za". Também temos de admitir a importância da arte nessa
fabricação.
A arte, muito bem, mas qual? Parece que, para as duas
descobertas da montanha ou do litoral, a literatura foi a
primeira. Poemas, meditações, relatos de viagem abriram
caminho. A pintura vai no encalço. Ela abre uma segunda
vez o caminho e leva a partilhar a visão da imagem des­
crita pela língua. Uma vez representada em desenho e cor,
a paisagem que suscitava a emoção dos escritores adqui­
re certa realidade. Ela existe. A prova: eu estava lá, sentada
diante de meu cavalete.
A visualização de um lugar, qualquer composição fei­
ta pelo artista, atribui àquilo que é representado um va­
lor de verdade que o texto ainda não oferece: as palavras
podem mentir; a imagem, por seu lado, parece fixar o que
existe. Ela espera, porém, por seu turno, a ciência (a geo-
morfologia ou a geologia), para tomar assento entre as rea­
lidades comprovadas. Viollet-le-Duc desenha o mapa do
Mont Blanc com o traço de desenhista obstinado. Ruskin
é, por seu lado, sentimental e lírico: sugere, mas não prova.
94 ANNE CAUQUELIN

É que o território é um "palimpsesto"5, continuamente ès-


crito e redesenhado.
Parece que só se pode "ver" aquilo que já foi visto, is­
to é, contado, desenhado, pintado, realçado. E do relato ao
desenho, é o desenho que é "o instrumento epistemológi-
co" por excelência, como o atestam tão pertinentemente
Horace Benedict de Saussure em seu Voyage dans les Alpes,
e Viollet-le-Duc, que faz dele um princípio geral6.
Porque, se a descrição poética, romanesca, geralmente
vem por primeiro na ordem dos fatos, a imagem pintada ou
o desenho especializado vêm, ambos, por primeiro na ordem
da afirmação de uma realidade. Passamos, sem nos dar con­
ta, de uma para outra para chegar a estabelecer uma existên­
cia até então ignorada. Por um efeito de retomo, quase uma
anamorfose, a imagem, então, parece tomar a dianteira: é o
relato que parece seguir a representação pictórica... Não pos­
so ler Rousseau sem me remeter ao parque de Ermenoville,
sem "ver" o jardim de Julie; não posso pensar "praia" sem a
ajuda dos Boudin. O pintor-paisagista e o arquiteto de paisa­
gens se substituem sem lutar com a literatura.
Passagem tão suave, como se fosse natural, que Alain
Corbin, em seu belo livro sobre a invenção das praias, nem

5. Cf. Alain Corbin, "Le territoire comme palimpseste", em Diogène (Pa­


ris, Gallimard, 1983).
6. Isso é perfeitamente sabido pelos geomantes do Oriente Médio, cujos
estudos preparatórios para a instalação em um sítio apelam para uma grande
quantidade de desenhos, tomados a partir de todos os ângulos possíveis: seria
interessante comparar esses desenhos com os de Viollet-le-Duc, que podem ser
consultados em E. Viollet-le-Duc et le massif du Mont-Blanc 1868-1879 (Lausanne,
Payot, 1988). Cf. as pranchas anexadas ao texto.
A INVENÇÃO DA PAISAGEM 95

chega a marcá-la. A passagem de uma arte a outra não pare­


ce problemática para ele, como se um rumor geral se esten­
desse de um ponto a outro por meio de contatos sucessivos,
abarcando todo o campo das representações possíveis, se­
ja as que são sustentadas pelo escrito, seja as que são susten­
tadas pelo mostrado, logo apelando ao sentimento popular.
Ele relata apenas, de um lado, a batalha pictórica entre ita­
lianos e flamengos, a necessidade de os flamengos assegu­
rarem sua identidade nórdica pela produção de paisagens
marinhas. Por outro lado, a curiosidade dos pintores estimu­
lada pelas produções literárias de alguns "loucos" por mar,
pelas considerações da teologia natural e pela paixão inédita
pelos fundos submarinos. Se o "princípio" é quase indeci-
dível, o que se pode é dar atenção ao movimento do público
para beira-mar a partir dos quadros. Um uso social se ins­
taura, provindo da imagem. Função publicitária da pintura.

Mas quem, dentre o paisagista-pintor e o paisagista-


artesão de parques e jardins, leva adiante a questão?
Ninguém chama de "verdadeira" essa arte, a ilusão
e a imitação são igualmente distribuídas, é tanto o arte­
são imita o pintor como o pintor imita o que o artesão pro­
duz. Tanto no plano da cronologia como do conhecimento,
as práticas se mesclam para formar um todo, um arranjo a
três com a natureza.
A história não decide, ou as respostas são, sobretu­
do, circulares. Porque, se o pintor produz um modelo - por
exemplo, as paisagens-modelo de Lorrain e de Poussin pa­
96 ANNE CAUQUELIN

ra a gentry inglesa -, o jardineiro-demiurgo produz, por sua


vez, uma realidade que servirá de modelo para o pintor-pai-
sagista. Numerosos retornos, circuitos de influência7.
Tumer vem depois de Hegel, ele volta a abrir, segue o
mesmo percurso. "Coincidência? Contaminação?" Por sua
vez, ele "descobre" a montanha: ela já não é tão horrível as­
sim, visto que pode ser "representada"... Onde Hegel narra e
descreve um "caos indescritível", Tumer mostra, dá a ver. Lo­
go, logo, coortes de pintores associados passarão a se chamar
"pintores da montanha" e participarão da defesa de suas be­
lezas naturais (leia-se "picturáveis") em uma ótica do patri­
mônio. Passagem obrigatória para os pintores de paisagem.
Só vemos o que já foi visto e o vemos como deve ser
visto. "Vê, como é belo..."
O mesmo se dá com a paisagem, sua "realidade" so­
cial, uma construção que é passada por filtros simbólicos,
antigas heranças. Uma forma mista, tanto mais pregnante
quanto mais finamente trançada, a ponto de não se ver seu
início e de ela poder passar por original, como se não ti­
vesse origem determinável. Viagens de modernos Telêma-
cos, com a cabeça povoada de poemas antigos, nos passos
de Virgílio, e portanto de Enéias, ou nos de Cícero, de Dan-
te, de Fenimore Cooper, de Dickens, de Thackeray, de Jane
Austin (ah! o encantamento retrospectivo de Bath!), de Jú­
lio Verne - onde está, então, o capitão Grant?

7. Cf. o posfácio de M. Conan ao livro de William Gilpin, Trois essais sur le


beau pittoresque (Paris, Éditions du Moniteur, 1982), e seus numerosos trabalhos
publicados na coleção "Le Temps des Jardins".
A INVENÇÃO DA PAISAGEM 97

Literatura, pintura e paisagens formam um conjun­


to indissociável, e o melhor exemplo que disso se pode
produzir é, sem dúvida, De la composition des paysages, de
René Louis de Girardin, que "fez" Ermenonville. O tex­
to acompanha, redobrando seu efeito, a própria realização.
Trata-se, ao mesmo tempo, de um manual de pintura, de
um guia para o paisagista-arquiteto e de um guia turístico.
Além disso, ele não hesita em convocar textos de Jean-Jac-
ques: eis uma mensagem particularmente significativa.
Aqui, quem foi então o primeiro? Rousseau, ao escrever
A nova Heloísa, Girardin, ao ler o texto e ao formar a idéia de
uma paisagem "moral", a pintura à qual ele se refere (Nerval
não diz que o lago se inspira em Watteau, na viagem a Cite-
ra?), os jardins-paisagem ingleses do século xvn, ou a "sen­
sibilidade" inglesa, ela mesma provinda dos fisiocratas8?
Mas, isso é certo, é o conjunto encadeado que vem por
primeiro: "o princípio é que tudo esteja junto e que tudo
seja bem encadeado". Proposição que abre o capítulo n de
La composition des paysages.
São necessários esses retornos, esses atravessamen­
tos da linha9, e, dominando tudo isso, a perspectiva, pros­
pecto, o projeto iniciado pela pintura, sua questão, porque

8. Cf. o posfácio de M. Conan ao livro de R. L. Girardin, De la composition des


paysages (Paris, Éditions du Champ Urbain, 1979).
9. Passagem que parece se produzir, atualmente de modo mais freqüen­
te, do escritor ao paisagista. É o que se passa com Hamilton Finlay ou Philip Fry.
Suas realizações paisagísticas se inspiram diretamente em figuras de um discur­
so erudito, historicizante para o primeiro, ecologista para o segundo. A pintura
aqui é posta entre parênteses - ela só está presente, em Finlay, na forma de cita­
ções de nomes de pintores —, ainda que haja muitas relações estreitas entre a ar­
te conceituai e a de Finlay.
98 ANNE CAUQUELIN

é exatamente a pintura que "encadeia" os elementos da na­


tureza. Uma retórica, bem formada, governa desde já as
relações do conhecido e do visível, e isso na ordem do ve­
rossímil e no registro da sedução.
A questão da pintura - para além das exemplificações
e das modalidades passageiras— governa a apreensão de
uma paisagem que parece, para nós, evidente.
Longa travessia de signos. Idas e vindas entre ima­
gem e fala, entre idéia e imagem. Mundos sucessivos, on­
de entramos com dificuldade. Cegueira de nossa parte
àquilo quê chamamos cegueira nos outros. Movimentos
diversos que nos agitam com estupor. Bizâncio, com seu
mundo de imagens, mais próximo dos gregos que dos ro­
manos, que, porém, pareciam copiar seu modelo. A natu­
reza, de propriedades dessemelhantes, ao mesmo tempo
tão simples na formulação de seus atributos e tão distan­
ciada da possibilidade de se dar totalmente em imagens.
Seu retrato, por meio dos artifícios cada vez mais numero­
sos. A crescente multiplicidade de uma "engenharia" com
o crescimento das técnicas - e, em contrapartida, o senti­
mento cada vez mais vivo de uma "Natureza" a respeitar.
Um retrato que se envolve a si mesmo em esqueci­
mento e que, não obstante, se distingue na profusão de
termos da linguagem cotidiana. As palavras para dizê-lo
nunca são plenamente "próprias". Retomemos, portanto,
tais palavras, ajustando-as em um turbilhão de negativas:
"Meu jardim", diz meu vizinho, "não, não é o campo; o
campo são as extensões cultiváveis... não, não é uma pai­
A INVENÇÃO DA PAISAGEM 99

sagem; a paisagem é a vastidão, e meu jardim é pequeno;


não, não é a natureza, a natureza são a floresta, as monta­
nhas... meu jardim, não sei, eu quis que ele fosse assim...
mas, ao menos, é mais natureza que a cidade...".
O "ao menos" e o "mais... que" são as expressões de
um afastamento e de uma aproximação, de um "passo
além" que hesita e retorna sobre si mesmo. Eles marcam
a distância entre o evidente e a retomada. Eles remen­
dam continuamente o sentimento da totalidade, ao mes­
mo tempo em que desvelam seu afastamento. Que crença
surge para manter unidos movimentos contrários? Quem
nos garante que é justamente ali que se encontra a resposta
adequada à questão de nossa pertinência a um "mundo"?
Não é necessário entender o "eu quis que ele fosse assim"
de meu vizinho como a afirmação de uma adequação per­
feita entre a realidade e a linguagem?

O mesmo teria acontecido com o jardim descrito por


minha mãe, e que ela recebeu do sonho; e ainda que ela te­
nha tido a impressão de que ele era autônomo, de que sur­
gira por si mesmo, exprimindo a verdade tanto quanto a
natureza pode exprimi-la, ele tinha, com tudo isso, de es­
tar vinculado a uma disposição geral da linguagem.
O imperativo "Olhe isto, é uma paisagem" podia ser
traduzido por "Veja como a natureza está toda ligada, ad­
mire a harmonia que se manifesta aqui". Obviamente, é
justo na qualidade de imperativo que tenho de ver o que
está diante de meus olhos. E, ao contrário do que exigiria
100 ANNE CAUQUELIN

uma obra de arte (uma pintura dessa paisagem justamen­


te), a apreciação não é solicitada: é evidente que a natureza
é bela. Os critérios são implícitos.
Em virtude dessa gênese que tentei reconstruir, as di­
ferentes dobras da memória estão envolvidas nesse implí­
cito, estratificadas e seladas por numerosos acordos tácitos,
nos quais se acumulam as imagens de uma natureza ecô-
noma, diversa, rica, forte em sua perenidade, exprimível
em termos de razão, em um discurso que vai abandonando
pouco a pouco suas pretensões para ceder lugar a uma or­
ganização visual, tátil, emocional: a natureza se torna bela,
de certo modo sublime, sempre reiniciada em outras figu­
ras. E são principalmente os pintores que assumem essas
figuras da natureza, chamadas de "paisagens".
Se, por minha vez, pretendo desdobrar esses implíci­
tos, vou encontrar referências a esses estratos compósitos:
toda uma retórica em ação, a tecer o laço necessário entre
elementos antigos, dispostos segundo uma gramática, in­
terpretados e geridos por instituições da cultura, da língua,
dos costumes, pelos imperativos econômicos que gover­
nam não apenas as "coisas" da vida, mas também as ma­
neiras de apreendê-las.

Você também pode gostar