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A Psicanálise, um estranho no ninho.

Freud não é Dali. Quando o movimento surrealista, sob a batuta de André Breton,
declara com ardor sua afinidade com as idéias desenvolvidas por Freud, em particular em
relação aos sonhos, este protestava e foi com indiferença que recebeu o jovem emissário,
Salvador Dali, enviado à Viena para encontrá-lo. Freud não se propunha a criar um
movimento intelectual com a intenção de incomodar, provocar, contestar e inovar
parâmetros estabelecidos da ciência, da moral e da religião na Cultura Ocidental.

Foi um estudante de medicina e um jovem médico com ambições grandes, alguém que
desejava se tornar famoso fazendo descobertas importantes, mas certamente situadas dentro
dos marcos estritos da pesquisa científica clássica. É assim que, com vinte anos, fez suas
primeiras pesquisas dissecando as glândulas sexuais das enguias, em Trieste, sendo então
admitido no laboratório de Ernst von Brücke, considerado o pai da fisiologia na Áustria.
Trabalhou durante alguns anos ali. Fez estudos anatômicos sobre o sistema nervoso da
lampreia, tendo chegado perto da descoberta do que Waldeyer, alguns anos depois (1891),
chamaria de neurônio. Brücke era o representante em Viena de um grupo de cientistas que,
em torno de Helmholtz e de Du Bois Raymond, afirmavam a convicção de que não só é
possível mas necessário chegar ao conhecimento de fenômenos de qualquer natureza,
portanto biológicos e também psicológicos, estabelecendo os seus fundamentos com base
na Física e na Química.

Foi a contragosto que o rapaz teve que deixar a carreira incipiente e promissora na
pesquisa científica, pois não tinha condições financeiras para viver, ainda mais que tinha
noiva, queria casar-se e constituir família. Tornou-se amigo de um conhecido neurologista,
catorze anos mais velho que ele, Joseph Breuer. Este encontrou, no jovem, um excelente
interlocutor para suas idéias, passando a dar precioso apoio material e humano para ele.

Uma vez formado em medicina, aos 26 anos, Freud passou a trabalhar também como
neurologista, recebendo pacientes de Breuer. Eles discutiam com freqüência seus casos
clínicos e suas teorias. É assim que, quando Breuer passou a atender, em 1882, uma
mocinha, Berta Pappenheim, tornada célebre na Psicanálise sob o pseudônimo de Anna. O.,
não deixou de reportar o caso ao seu jovem protegido. Breuer a visitava diariamente. Em
sua presença, ela entrava em transe, um estado auto-hipnótico, pondo-se a dizer coisas as
mais variadas, sobre as quais, num segundo tempo, conversavam, ela já tendo recobrado
seu estado normal de consciência. Chegavam, desta maneira, a acontecimentos carregados
de emoção e que, uma vez falados, resultavam no progressivo desaparecimento dos
sintomas e numa nítida melhora do estado da paciente.

Breuer estava muito envolvido com este tratamento sem que pudesse imaginar que ele
próprio poderia se tornar objeto das fantasias da paciente. A descoberta da transferência só
seria feita por Freud nos anos noventa. O fato é que ela acabou se declarando grávida do
médico.Assustado com a situação criada e que ameaçava tanto a sua reputação profissional
como o seu casamento, interrompeu de imediato e de forma definitiva o atendimento da

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jovem e viajou com sua mulher para Veneza. Breuer guardava cuidadosas anotações deste
estranho tratamento, mas só iria retomá-las uma década depois, por insistência de Freud.

Este tinha então condições de ver no que ali se passara a descoberta um método
revolucionário para o tratamento da histeria. Eles o chamaram de método catártico, numa
publicação conjunta de 1893. Sustentaram a idéia de que a causa do sintoma era o
represamento de idéias e de afetos ligados a um acontecimento penoso ocorrido num
momento em que o paciente não tivera condições para pensar por não estar em plena posse
de seus meios, por encontrar-se em um estado alterado de consciência, do qual o estado
crepuscular, hipnóide, de Berta Pappenheim era o protótipo. Quer pelo uso da hipnose, quer
pela insistência do médico, era possível chegar à lembrança do acontecido, detalhe por
detalhe, fazendo ressurgir toda a carga de afeto implicada. A lembrança patógena tornava-
se desta maneira acessível ao fluxo normal da atividade de pensamento, do qual estava
cortada, isto é, passava a poder ser pensada como qualquer outro acontecimento da vida, o
que resultava no desaparecimento do sintoma, a paralisia de um membro, por exemplo.

O estágio de Freud no serviço de Jean Marie Charcot, no hospital Salpêtrière em Paris,


alguns anos antes (1885/86) teve uma influência decisiva nesta evolução. O grande
neurologista, do alto de seu prestígio, ousara dedicar-se ao estudo das neuroses, das
doenças nervosas, das histerias, que por não poderem ser relacionadas a qualquer lesão ou
alteração observável do cérebro, não mereciam, no estado de espírito da época, o interesse
da ciência médica. Eram falsas doenças, doenças imaginárias, que não deviam ser levadas a
sério.
Charcot reproduzia por indução hipnótica, sintomas (a paralisia de um braço, p.ex.) ou
crises histéricas “completas”, semelhantes às crises epilépticas, e as fazia desaparecer da
mesma maneira : ora, as ordens hipnóticas não eram senão idéias da quais a paciente nada
sabia, palavras com as quais ele criava e fazia desaparecer sintomas. Impôs-se de forma
definitiva para Freud a certeza de que pensamentos separados da consciência podiam existir
e produzir tanto efeitos patogênicos como curativos.

Estava entusiasmado e impressionado. Em uma carta à sua noiva escreveu de Paris :


“nenhum ser humano jamais me afetou desta maneira”, referindo-se ao neurologista
francês. De volta a Viena, aos trinta anos, passou a dedicar-se, em sua atividade clínica, às
doenças nervosas, às neuroses, fazendo palestras na Sociedade Médica sobre o pensamento
e a prática de Charcot, do qual traduziu as Conferências para o alemão. Deixou de lado a
eletroterapia, os banhos terapêuticos em estações de água e coisas assim, únicos recursos
então disponíveis para o tratamento de tais pacientes. Passou a tentar um caminho
terapêutico, usando em particular a hipnose para chegar aos elementos causais, na linha da
terapia catártica. Na França, em Nancy, um grupo de médicos, em torno de Hippolyte
Bernheim, estava usando a sugestão sob hipnose para tratar estes pacientes, os sintomas
sendo eliminados por ordem hipnótica, o que era diferente do caminho que Freud estava
tomando. Mas ele foi a Nancy ver de perto o que estavam fazendo e teve longas conversas
com Bernheim.

Freud escreveu ainda alguns artigos como neurologista, mas o interesse do jovem
médico se deslocara definitivamente para o tratamento das neuroses. Exceção feita a um
livro, publicado em 1891, sobre as afasias, isto é, enfermidades em que uma lesão cerebral

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causa perda da capacidade de compreensão da linguagem escrita ou falada, ou da
capacidade de expressão oral ou escrita. Contra as concepções “localizacionistas” dos
centros da linguagem, argumenta em favor de uma concepção dinâmica e funcional do
processamento das representações e da linguagem na área cortical, entrando num debate de
atualidade na época.

Em outra publicação, de1890, Freud dá conta do andamento de sua prática clínica,


mostrando-se decepcionado com o recurso à hipnose. Trata-se de um artigo que também diz
respeito à linguagem, mas numa outra perspectiva. O tratamento por meio da fala, tanto dos
males da alma como do corpo, remonta à origem dos povos, ocorrendo hoje pelas curas
milagrosas nos santuários e os próprios benefícios propiciados pela medicina vieram, em
grande parte, mais dos efeitos do fala prestigiosa do médico que da justeza de seu saber, em
geral inoperante. Só mais recentemente, com o desenvolvimento das ciências, que a
medicina encontrou um fundamento mais efetivo baseado no saber científico. Freud
interessa-se por este poder curativo milenar da fala e aposta que, apesar do tratamento pela
fala sob hipnose ter-se mostrado insuficiente, esta força poderá ainda vir a ser explorada de
forma metódica para a cura das neuroses.

Aproximando-se dos quarenta anos, Freud está na iminência de inventar este método. É
neste momento que se situa o seu interesse pelo antigo caso clínico de Breuer. Os Estudos
sobre a Histeria, livro publicado em 1895, em co-autoria com Breuer, retoma o antigo caso
de Anna O., além de vários casos, dos últimos anos, tirados da clínica de Freud. Pode-se
acompanhar nestes mudanças no modo de fazer, correlatas de modos de compreender que
vão se transformando, ao longo destes relatos, nos quais a terapia catártica de Breuer, vai
dando lugar à psicanálise. A última parte, escrita por Freud, é uma exposição meticulosa do
desenrolar de um processo analítico, incluindo o fenômeno por ele chamado de
transferências, ou seja, dos envolvimentos com o médico, assim como o modo de pô-los à
serviço do tratamento. As transferências são descritas como uma intercorrência, é verdade
que freqüente e inevitável, no tratamento. Não tardarão a se tornar o seu eixo.

A mudança que tudo muda é a idéia de Freud de que as representações psíquicas


patogênicas, inacessíveis normalmente à consciência, são assim mantidas por um esforço
ativo, contínuo, ignorado pelo paciente. Este esforço automático, compulsivo, é a defesa
face a um conflito intrapsíquico. A modalidade exemplar de defesa é o recalque.

A nova concepção é congruente com a constatação nos tratamentos do que Freud


chamou de resistência. Na medida em que o paciente é convidado a falar “o que lhe
ocorrer”, ao se aproximar de certas zonas, a fala vai escasseando, não ocorrem
pensamentos, o paciente vai ficando evasivo, por estar tocando em algo que tem alguma
conexão com o recalcado. Freud se convenceu que é preciso ser muito paciente ao esbarrar
na resistência, pois a necessidade de manter silenciado o que está recalcado é a mesma que
suscita angústia e evitamento na sessão, sob forma de resistência. Ele entendeu que se
forçasse o paciente, ou se insistisse em lhe fazer interpretações, estas funcionariam como
sugestão ou como as ordens do tratamento hipnótico. É preciso que o paciente tenha o
tempo e as condições psíquicas para achar com suas palavras, com suas imagens, numa
rede significativa de falas, algo que faça pleno sentido para ele, em relação com o
hipotético recalcado ou inconsciente.

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Impacientar-se, atropelá-lo, só reforçaria a defesa, pois ele ficaria mais preocupado em
atender à necessidade do médico e em agradá-lo, e até diria coisas na direção buscada pelo
médico, até melhoraria por amor transferencial a ele, como ocorre sempre na vida, mas
continuaria privado deste pedaço essencial do seu ser e que, alguns anos depois, no livro
sobre os sonhos, Freud chamou de desejo inconsciente. Será paulatinamente, seguindo vias
associativas numa fala não dirigida, e numa escuta também não dirigida que a resistência
pode ir sendo vencida, dando margem a que a fala diga coisas que soam tão verdadeiras
quanto estranhas, ao mesmo tempo que dizem respeito a episódios ou fantasias muitas
vezes minúsculos e que parecem sempre ter estado por ali, sem no entanto nunca terem sido
ditas ou pensadas.

O método psicanalítico tinha sido inventado e estava estreitamente sustentado por uma
rede coerente de hipóteses e conceitos, a que Freud chamou de metapsicologia, herdeira das
especulações neurológicas sobre o funcionamento do cérebro. No livro sobre os sonhos, de
1900, Freud, retomando hipóteses elaboradas em 1895, descreveu um dispositivo chamado
por ele de aparelho psíquico que comporta uma diferenciação espacial de lugares, uma
tópica (consciente, pré-consciente e inconsciente), atravessada por tensões e movimentos
decorrentes da conflitualidade intrapsíquica, uma dinâmica, e uma quantidade de energia,
que adquire a qualidade de afetos ou da libido (“energia” das pulsões sexuais), quantidade
que se desloca, se transforma, se condensa, caracterizando a dimensão econômica do
funcionamento deste aparelho.

Tais hipóteses evocadas de forma tão ampla devem, sem dúvida, dar a impressão de uma
compreensão árida e muito redutora, mecânica, da alma humana transformada em uma
máquina de sonhar, de sofrer, de rir, de amar. Testemunha, com efeito, da presença em
Freud do imperativo de construir uma psicologia com base num dispositivo nocional que
atendesse aos pressupostos da Física, na linha do que foi dito antes sobre a influência de
Brücke e Helmholtz.

Mas, para além disto, a metapsicologia é indispensável em função da natureza do que


a Psicanálise se propõe a elucidar, ou seja, uma gama de fatos psíquicos não acessíveis de
maneira direta à auto-observação, à introspecção consciente. O imediatamente acessível, o
mundo das motivações conscientes com as quais estamos familiarizados não permitem o
entendimento nem a resolução do sofrimento neurótico, apenas racionalizações defensivas,
também não fornecem meios para abordar a experiência do sonho e a interrogação sobre
sua natureza, sobre como se produz, de que se trata, a não ser fabricar alguma compreensão
sumária, com explicações redutoras de pouco alcance; também não são adequadas para o
entendimento do próprio processo analítico, do que ali ocorre, do que nele se transforma. A
meta-psicologia corresponde a hipóteses, conceitos e modelos auxiliares, com os quais a
psicanálise procura dar alguma inteligibilidade à experiência clínica, na extrema
diversidade de suas configurações.

Naturalmente que toda esta rede nocional é especulativa, fictícia, hipotética, e opera
colada na experiência, ou seja, ao “objeto” que está sendo pensado. Movimenta-se
continuamente com a linguagem e a inteligência imaginativa de quem nela toma pé. A
força de convicção que poderá produzir não é em sua natureza diferente da força de
convicção de um momento “de verdade” vivido pelo analisando em sua análise. A

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metapsicologia não opera tanto como recurso explicativo, mas sobretudo como suporte para
a inventividade teórico-clínica do analista. Ou seja, só se tornaria redutora, mecanicista, se
fosse considerada dissociada da experiência, sob um modo realista.

A psicanálise, sendo um tratamento pela linguagem, a linguagem com a qual é dita


precisa a cada vez reencontrar o seu fôlego no modo particular de dizer, tanto mais que seu
“objeto” é subjetivo por natureza e remete ao que está no âmago da vivência subjetiva de si
e do outro. Toda objetivação que se cristalize perde o essencial daquilo que se está
pretendendo dizer. Isto vale tanto para as teorizações em psicanálise, como para as falas no
interior do processo analítico.

Deixamos Freud no momento em que chegava aos fundamentos metodológicos e


teóricos da Psicanálise. É conhecida sua teoria da sedução sexual das crianças pelos adultos
como um acontecimento traumático, patogênico e que estaria na origem das neuroses. Não
é o momento de nos determos nas sutilezas desta teoria, nem nas intuições que se revelaram
justas posteriormente, ainda que a idéia de um acontecimento causal nunca deixe de nutrir a
imaginação clínica e teórica dos analistas, como dos analisandos, o fato é que teve vida
curta, ao menos nesta forma inicial.

Freud mergulha no que chamou posteriormente de auto-análise, para a qual a via régia
parece de fato terem sido os seus sonhos e o desencadeante, a morte de seu pai, em 1897.
Passa a dedicar grande interesse aos seus sonhos, anotando-os, assim como toda sorte de
fatos, idéias, por mais corriqueiros e sem significado que lhe ocorram sobre cada fragmento
do sonho. Uma coisa leva à outra, e por via associativa, criam-se seqüências de sentido que
se entrecruzam em um ponto que insiste e de onde, em dado momento, chega ao
equivalente de uma interpretação, de uma idéia inesperada referente ao desejo operante no
sonho; não há ponto final, ponto de chegada neste trabalho interpretativo e poderá
prosseguir com novas linhas associativas.

Nestes exercícios surgem muitos fatos corriqueiros acontecidos na véspera ou nos


últimos dias, mas também ressurgem fragmentos de memória de outros tempos, por vezes
da mais longínqua infância, e que provavelmente jamais lhe tivessem ocorrido de outra
forma. Neste processo analítico, a correspondência com um colega mais ou menos da sua
idade, um médico otorrino de Berlim, Fliess, se intensifica tanto em quantidade de cartas,
como na clara necessidade e dependência que ele passa a demonstrar em relação a seu
interlocutor. Costuma-se considerar que em meio à intensa mobilização psíquica que o
tomara, Freud encontra neste interlocutor o depositário e o destinatário privilegiado dos
estados transferenciais que esta mobilização implica.

Pode-se entrever, por muitas indicações, o imbricamento entra a análise de Freud e a


análise de seus analisandos neste período. Freud foi auxiliado em sua própria análise pelo
que encontrava na análise de seus pacientes e, com certeza, as condições em que se
encontrava, propiciavam uma abertura ao que não podia ser previsto por nenhuma reflexão
ou introspecção, e o tornavam especialmente permeável e capaz de ser receptivo aos efeitos
ou emergências do inconsciente, nas análises destes.

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Em 1987, Freud abandonou a teoria da sedução como causa, enquanto explorava toda a
eficácia das fantasias, o seu caráter sexual, descobrindo-as exuberantes já na infância,
mesmo na mais tenra infância. Até então ele partilhava da opinião comum que a
sexualidade só passava a existir a partir da com o puberdade. O centro da descoberta foi o
complexo de Édipo, testemunha da vida amorosa e de desejos assassinos na criança.

No livro A interpretação dos sonhos, de 1900, Freud expõe, sempre com a


meticulosidade do cientista, grande parte deste trabalho, sui generis pela fina articulação
que o atravessa de ponta a ponta, entre a ousada e precisa inventividade do intelecto e os
mais comezinhos episódios da vida, em geral a sua própria, permeada por desejos
mesquinhos e pueris. Encontramos ali uma inédita produção de fragmentos, em cortes
verticais, de torções e tensões, daquilo que se agita sob a lençol bordado da vida de uma
alma. A explícita intimidade que encontramos nesta obra entre o trabalho do intelecto e o
trabalho psíquico caracterizam, desde então, todo trabalho psicanalítico.

Uma fala ou um escrito, de um paciente ou de um colega, ou de quem quer que seja, que
discorra com impecável clareza sobre um assunto de forma que tudo se encaixe, tudo
encontre-se explicado com admirável justeza e engenhosidade, poderá ser apreciado pelo
didatismo e pela inteligência do autor, pelo pedaço de saber que tão bem transmite, mas não
despertará nada além disto no analista. Este é sensível às fissuras, aos restos clandestinos, a
alguma hesitação inesperada, às falhas... a um ato falho, por exemplo. Se, em meio a uma
conferência interessante, o conferencista fizer um lapso, este poderá causar risos divertidos
quebrando, seja por um momento, a atenção e a seriedade com que o público seguia a
exposição. O que Freud e a psicanálise chamam de inconsciente estará nestas paragens.

Mas, se radicalizarmos esta perspectiva, poderíamos perguntar se é no erro, na falha que


se encontra o que realmente importa, o essencial, para o sujeito que fala e para os que o
ouvem. A verdade de verdade para ele. Se isto não for apenas uma piada, se for para valer,
estaríamos minando o templo da Razão, estaríamos dizendo que a verdade não está onde
parece estar, mas onde parece não-estar ? Teria o bem comportado médico de Viena, ao
querer achar um tratamento para os neuróticos, encontrado coisas que afetam, que
interpelam, até a nossa tradição filosófica, bem como as bases da ciência que tanto nos tem
beneficiado? Com certeza, mas deixemos isto de lado para perguntar a mesma coisa de
modo diferente.

O mais importante para cada um de nós não está naquilo que falamos sobre nossas
intenções, sobre quem somos, sobre o que queremos, mas em algo marginal ao que
dizemos? A resposta aqui é direta e categórica, pois é esta convicção que fundamenta o
fazer clínico do psicanalista e a experiência da análise. Somente que ninguém tem
condições de dizer este “mais importante”, “esta verdade” senão o próprio sujeito que fala,
e este ninguém inclui antes de mais nada o próprio analista. O analista não dispõe apriori da
verdade do analisando, pois neste caso estaria no lugar do hipnotisador que age por
sugestão, desconsiderando o tempo psíquico da resistência, um tempo necessário : só será
analista enquanto for capaz de suspender qualquer saber, propiciando que no processo de
análise, fragmentos significativos, emudecidos, do desejo e de dores ignoradas do
analisando tomem vida e fala.

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Freud não é Dali, nem Breton. O sonho não é para ele o paradigma de uma vida mais
intensa, mais exuberante, ao contrário, ele o desmonta impiedosamente trazendo-o para os
fatos mais corriqueiros e modestos da vida e do corpo, só que, de fato, ali encontra, em
meio a pequenas coisas, a possibilidade de resgatar o que há de mais significativo e
importante e que se mostra ser único para cada um. A vida poderá se tornar sim mais
intensa, mas com a discreção do que tem a ver com o íntimo, por natureza pouco afeito às
miragens alheias.

Em descompasso com todo saber constituído, a Psicanálise criada por um cientista


convicto, não pode ser considerada ciência no sentido convencional, com certeza não é uma
filosofia, nem uma religião, nem uma arte. Mas foi engendrada no âmago da Cultura
Ocidental, numa densa encruzilhada da ciência, da filosofia, das artes e das religiões e de
todas elas se nutriu para surgir e delas se nutre, sobre elas diz coisas que nunca foram ditas
antes. Mas, sempre em descompasso...Estranho no ninho que, no momento que deixa de sê-
lo, tal é a natureza de sua prática e daquilo que visa, deixa de ser psicanálise. Pois o que
busca é sempre o que é, em cada um, estranho/familiar.

Luís Carlos Menezes


menezes@sbpsp.org.br
19/2/06

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