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Pedra Azul

Às vezes algo se rasga dentro de nós. Naqueles que são fortes como a pedra, o rasgo é trinca, e a
resistência produz cristais encantadores. Esse processo vale tanto para o planeta quanto para seus
habitantes humanos. A Terra produz quartzos depois de uma luta que envolve altíssimas
temperaturas, ar, água e magma. Seres humanos também trincam a depender da temperatura interna
das batalhas que cada um enfrenta em silêncio. Com sorte, as trincas psíquicas se cristalizam em
sabedoria de vida e em valorização do curto tempo que passamos no planeta azul.

A obra de Denise Milan une o drama existencial humano à grande ópera do planeta. Somos breves,
mas temos a capacidade de compreender o tempo da Terra a partir do contato com as pedras. Há
décadas a artista olha para o planeta como se examinasse um útero gerador de mistérios. Em
algumas pedras, Denise Milan percebe o desenho do contorno de uma proto-figura humana, e tenta
compreender o que essas pedras comunicam: “o que é comum pode nos unir/ o quartzo se agrega/
nos agrega/ num só corpo/ corpo comum/ Terra”. Ao observar as pedras, a artista faz poemas que
pulsam o incompreensível da criação. A poiesis, criação, vem tanto em palavras quanto em formas
matéricas tridimensionais: “no silêncio das pedras/ escuto histórias.” Intermediando uma
comunicação com entes geológicos de 130 milhões de anos, Denise Milan desenvolveu ideogramas
baseados na estrutura molecular de cada tipo de pedra, e com eles escreve elaboradas narrativas
míticas e partituras quartzianas que acompanham suas instalações e objetos.

Em 2022, obras de Denise Milan contaram várias histórias de transformação. TrincAr, obra exposta
a convite de Marcello Dantas na Bienal do Mercosul, é um grande rasgo na parede pelo qual reluz
uma estonteante sequência de cristais de quartzos de várias cores, cujo brilho há de cicatrizar
qualquer fissura. Ainda no ano do bicentenário da independência do Brasil, o SESC Ipiranga
instalou em frente ao Parque da Independência a obra Entes, formada por um conjunto de pedras de
crosta áspera e núcleo reluzente, que homenageiam o mito indígena da etnia Gavião, segundo o qual
os seres humanos nasceram de uma pedra. Em Chicago, o parque de esculturas Nathan Manilow
apresentou duas grandes peças da artista. E, ainda em 2022, Gabriel Perez-Barreiro assinou a
curadoria de “Petrafagia”, exposição de inauguração da Dan Contemporânea, na qual Denise Milan
apresentou o Banquete Magmático, fotografias e esculturas da série Tesouros.

Petrafagia é um conceito que já aparecera em 2021 na exposição de Denise Milan na Usina de


Artes, em Pernambuco, e refere-se a nutrir-se com os ensinamentos da pedra, mastigando a ideia do
tempo da terra: 4,5 bilhões de anos. Este banquete geológico-existencial poderá ser degustado
novamente a partir de abril de 2023 no espaço institucional da Dan Galeria no Museu Fama, em Itu,
na exposição “Útero Magmático”, com obras inéditas da artista e obras gestadas nos dois últimos
anos. Dispostos ao longo de uma mesa baixa de aço, os pratos do Banquete Magmático são
elaborados com quartzos, vidro e metais, convidando o espectador a dividir o espaço com
comensais silenciosos e impressionantes, grandes geodos antropomórficos antiquíssimos que
circundam a mesa. Protopoemas “cristalografam” – como escreveu certa vez Haroldo de Campos –
a voz da pedra.

Na obra de Denise Milan, ouve-se em alto e bom som o estrondo do tempo das origens. A beleza
das esculturas suavizam nosso estremecimento. Os grandes geodos, fechados em si mesmos, nos
observam, em indiferente intransitividade e certa benevolência.

Paula Braga, 2023.

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