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Racker, Heinrich Estudos sobre Técnica Psicanalítica.

Porto Alegre, Artes Médicas, 1982

É sabido que, durante o século XIX, as doenças mentais, a neurose e outros fenômenos que
hoje se entendem como perturbações psicológicas ou psicogênicas, eram consideradas
como perturbações orgânicas, ou, mais precisamente, como expressão de uma
"degeneração" do sistema nervoso, cuja única causa era a hereditariedade. O matiz
depreciativo que para nós costuma ter a palavra "degeneração hereditária" já existia
naqueles tempos. As neuroses parecem não ter despertado a simpatia dos médicos, mas sim
desconfiança e rejeição. A histeria, por exemplo, era considerada, antes de mais nada, como
"simulação" e "teatro". Possivelmente esta posição provinha, em boa parte, da angústia que
provocava no médico a percepção de sua impotência diante das neuroses, dada a falta de
compreensão. E vice-versa, a angústia e o desprezo perturbaram a latente disposição e
capacidade de compreender alguma coisa dos fenômenos psicopatológicos. A situação
constituía, pois, um círculo vicioso, no qual Freud, aproximando-se destes problemas com
outro espírito, livre de angústia, rejeição e preconceitos, desejoso de descobrir o
desconhecido, e dotado de
uma genial capacidade psicológica e científica, abriu a brecha decisiva.
Devo citar alguns fatos da pré-história da psicanálise, que representam algo assim como as
marcas no caminho até a técnica analítica.
No ano de 1885, Freud, com 30 anos, viaja a Paris para estudar doenças nervosas com
Charcot, o primeiro a considerar seriamente os fenômenos histéricos.
Aí Freud constata que as paralisações histéricas podem ser produzidas por sugestão, em
estado hipnótico, do que se deduz que estas paralisações são o resultado de representações
mentais.
Um pouco mais tarde, Freud, já de volta a Viena, tem notícia de que dois outros médicos
franceses, Liébault e Bernheim, logram bons resultados terapêuticos com histéricos, por
meio da sugestão, predominantemente com hipnose. Em seu trabalho com os "doentes
nervosos", Freud afasta-se da eletroterapia (cujos êxitos parciais igualmente são
compreendidos logo como êxitos da sugestão médica) e utiliza-se, cada vez mais, do
método hipnótico-sugestivo. Este consiste em ordens (dadas aos doentes postos em estado
hipnótico), que devem resistir à manifestação dos sintomas patológicos. Este método tem
êxito em certo número de casos, porém é instável (os sintomas reaparecem) e não é
aplicável às pessoas que não podem ser hipnotizadas.
Mas Freud não se contenta com o método, pois este não o leva ao conhecimento da
origem da doença. Por isso procura outro caminho.
Antes de ir a Paris, um amigo, o médico Joseph Breuer, havia-lhe contado sua experiência
com uma de suas pacientes, Anna O . . ., que tinha sofrido paralisações histéricas e graves
estados de confusão.
Numa determinada ocasião, Breuer observou que a paciente ficava livre de sua
perturbação mental quando expressava com palavras as fantasia. e os efeitos que a
dominavam naquele momento.
Continuando, Breuer baseou nesta observação o seu método terapêutico, com esta
paciente: hipnotizava-a e fazia-lhe contar o que a afetava. A paciente, que, em estado
normal, nada sabia sobre a origem de sua doença, encontrou no estado hipnótico o nexo
entre seus sintomas e suas vivências. Os sintomas derivavam principalmente de
sentimentos e pensamentos que surgiram nela enquanto cuidava de seu pai enfermo e os
quais ela havia suprimido. Em seguida, em lugar deles, aparecera o sintoma. Quando a
paciente, na hipnose, recordava alucinatoriamente aquelas vivências e descarregava os
sentimentos suprimidos, o sintoma desaparecia. Este método de "ab-reação” de afetos
recebeu o nome de método catártico.
Freud o adota e, depois de uns anos, publica, junto com Breuer, o livro Estudos Sobre a
Histeria, em que os dois expõem suas observações e conclusões. Encontra-se também, nesta
obra, a descrição das diversas dificuldades e desvantagens do método hipnótico, por
exemplo, o fato de que o sono profundo só podia ser alcançado por um número limitado de
doentes. Estas dificuldades foram o bastante para incitá-lo a procurar uma técnica que
prescindisse da hipnose. Nesta procura, ajudou-o a lembrança de uma experiência que
Bernheim havia feito com um de seus doentes, e que Freud havia presenciado em uma
visita feita à clínica deste médico. O doente não se lembrava de nada que havia sucedido
durante seu estado hipnótico, mas Bernheim insistiu tenazmente para que se lembrasse, e,
pouco a pouco, o doente se lembrou de tudo. Isto significava que inclusive vivências que
parecem totalmente inconscientes podem ser recuperadas para a consciência, e sem a
hipnose, pois o doente se lembrava delas em estado normal. Baseado nesta experiência,
Freud começa a renunciar à hipnose e em lugar dela insiste com seus enfermos para que se
lembrem das vivências esquecidas ou "reprimidas". Ao mesmo tempo - e isto foi decisivo
para a posterior mudança no seu processo técnico - Freud vai obtendo, pouco a pouco, a
compreensão dos processos dinâmicos (quer dizer, do interjogo de forças e tendências
psicológicas) que tinham originado os esquecimentos ou "repressões", e que eram
responsáveis pelas dificuldades de lembrar ou de tornar consciente o inconsciente. Freud
descobriu, em especial, que existe uma força ou tendência que se opõe à lembrança, que
tende manter a repressão e que, portanto, se opõe também ao trabalho do médico, que
consiste em induzir o doente a lembrar. Freud deu a esta força o nome de resistência e este
descobrimento o conduziu à seguinte e decisiva mudança técnica. Freud compreendeu logo
que a resistência provinha, antes de tudo, do fato de que o que devia ser lembrado era
penoso para o doente, envergonhava-o ou era adverso a seus sentimentos morais.
Igualmente importante para a mudança técnica posterior foi a captação das diversas formas
por que se expressava a resistência. Os doentes calavam certas lembranças alegando, por
exemplo, que estas (ou o que a respeito lhes ocorresse durante a sessão) careciam de
importância ou de sentido. Freud compreendeu que estas objeções dos doentes não eram
mais que um disfarce, eram as lembranças buscadas ou, pelo menos, indicavam o caminho
para elas. O passo técnico seguinte consistiu, pois, em abandonar a "técnica de insistência"
(com que se uniram algumas medidas de sugestão como a de pôr a mão sobre a testa do
doente para facilitar a concentração, etc.) , e em instituir, em lugar daquela, uma regra para
o doente, que devia determinar sua conduta no tratamento, comprometendo-se este a
cumpri-la. Esta regra, que representava a base do tratamento - tanto que recebeu o nome de
regra fundamental -, consistia em o doente comunicar ao médico todos os seus
pensamentos, dizer-lhe tudo o que lhe ocorresse, sem omitir nada, ainda que lhe fosse
penoso dizê-lo ou ainda que lhe parecesse que tal fato carecia de importância ou de sentido
ou que estava deslocado. O doente devia, portanto, cuidar para que nenhuma objeção
interna, nenhuma autocrítica o impedisse de comunicar cada uma das ocorrências, de dizer
tudo sem seleção, entregando-se plenamente à associação livre.
O que resumi aqui em poucas palavras era o resultado - um dos muitos resultados - de um
árduo e longo trabalho de investigação, que havia levado Freud às compreensões básicas
das causas das neuroses. Destas compreensões surgiu a técnica analítica, principalmente a
substituição do método hipnótico e sugestivo pelo método da associação livre. A
compreensão básica consistia em que as neuroses se devem a um conflito interno uma
inconciliação ou intolerância entre diversas partes da personalidade, e, em especial, entre a
parte moral e social um lado, e a parte instintiva e egoísta, de outro. Digo "em especial",
porque este conflito não foi e não é considerado como único. Mais ainda, no princípio
apareceu como causa principal não a luta com os próprios instintos (embora apareça
assinalado nos primeiros textos de Freud), mas certas experiências sofridas passivamente,
como por exemplo, a sedução sofrida na infância, vivências "traumáticas", que Freud
considerou, numa certa época, como fator decisivo na etiologia das neuroses. A lembrança
ou "ab-reação" destas vivências (que constituíam preponderantemente "o reprimido") era o
que devia levar à cura. Este fator externo e o "trauma" precoce mantiveram também mais
tarde sua importância, mas Freud descobriu, cada vez mais, a vida instintiva autônoma da
criança, e os conflitos com os próprios instintos infantis mostraram ser o fator principal na
gênese das neuroses. Eram, pois, os próprios impulsos sexuais e agressivos que
constituíam, antes de tudo, "o reprimido" e cuja "lembrança" ou "conscientização" devia
levar à cura.
Nestas considerações baseava-se, portanto, a técnica. O doente devia associar livremente,
abolindo toda rejeição diante das próprias ocorrências, e assim devia aparecer na
consciência tudo quanto dela havia sido rejeitado. O que efetivamente aparece não é, em
geral, o reprimido propriamente dito, mas derivados dos conflitos infantis, expressões mais
superficiais, mais aceitáveis destes. O doente não costuma recordar, por exemplo, que tinha
desejos sexuais para com sua mãe, mas sim - e com sentimentos de culpa igualmente
intensos - que desejava a mulher de um amigo mais velho, etc. A função do analista era,
portanto, a de adivinhar através das associações livres (destes "derivados") os impulsos
infantis reprimidos e comunicar o que havia adivinhado ao doente. Um acesso
especialmente oportuno aos conflitos infantis era os sonhos, já que neles - pela diminuição
da censura moral e lógica durante o sono - o reprimido manifestava-se com maior clareza.
Freud esperava que comunicar o reprimido ao doente poria fim ao alheamento entre o ego e
os instintos, a causa última da neurose. A interpretação dos impulsos infantis constituiu-se,
pois, num instrumento terapêutico por excelência. Mas acontece que esta esperança só se
cumpriria em certo grau. Os doentes ouviam a interpretação, mas o que esta lhes dizia
freqüentemente continuava sendo sentido como alheio ao ego; não podiam reconhecer o
que o analista lhes dizia sobre eles como algo próprio, e a conscientização do reprimido e,
com isso, a integração da personalidade não se produzia. Freud viu logo a que se devia isso:
as resistências continuavam e impossibilitavam que o inconsciente se tornasse consciente.
Antes de comunicar ao doente seus impulsos reprimidos deviam, portanto, ser superadas
suas resistências. Mas como fazê-lo? Novamente, entendendo e assinalando as
manifestações das resistências, seus modos de atuar e seus motivos. E, deste modo, como a
investigação do reprimido levou ao descobrimento de todo um mundo de impulsos,
fantasias e sentimentos que desde a primeira infância atuam na psique humana, assim
também a investigação das resistências levou ao descobrimento de uma multidão de fatos e
processos, e, em especial, ao descobrimento de uma série de atuações internas ou
"mecanismos" que a psique efetua em sua necessidade de rejeitar aqueles impulsos,
rejeição que se expressa no tratamento justamente como "resistência" à análise; por
exemplo, superficialmente, como resistência a comunicar as ocorrências ou a aceitar a
interpretação do "reprimido". Não posso entrar aqui na descrição detalhada da outra parte
do mundo interno descoberto, e devo limitar-me ao necessário para que fique claro o
significado da interpretação das resistências, que, como sabem, deve preceder à
interpretação dos impulsos reprimidos, ou melhor, unir-se a ela. Trata-se, pois, antes de
tudo de assinalar os modos por que o ego rejeita os impulsos e também os motivos desta
rejeição. Quanto a estes últimos, já dissemos algo. Admitir que se tenham determinados
desejos ou fantasias é algo que se experimenta com vergonha, sensação de rebaixamento ou
de baixeza, com sentimentos de culpa, e temor ao castigo; em termos gerais, é
experimentado com dor ou angústia. O ego, para defender-se reage contra estas sensações
desagradáveis, afastando da consciência aqueles desejos e fantasias. Um belo exemplo
destes fatos encontra-se numa obra de Nietzsche, que - como alguns outros filósofos e
poetas - antecipou intuitivamente, embora de maneira isolada, um ou outro descobrimento
analítico. Em Além do Bem e do Mal, encontra-se a seguinte máxima : "Fiz isto” diz
minha memória. "Não posso ter feito isto” diz meu orgulho e fica inexorável. Finalmente a
memória cede.
Os diferentes modos pelos quais o ego realiza a rejeição se chamam mecanismos de defesa
do ego, já que se trata, em última instância, de defendê-lo de um perigo (ou mal) imaginado
ao eu ou a um objeto. A "repressão" (quer dizer, a exclusão de um conteúdo psicológico da
consciência por meio de uma "contracatexia") é apenas um destes mecanismos. A
"projeção" (colocar para fora e atribuir outro o que é nosso), a "introjeção" (colocar para
dentro e atribuir a nós o que é e outro), a separação entre as idéias e os afetos, a "regressão"
a etapas anteriores a evolução são outros dos muitos mecanismos de defesa. O conjunto
deles expressa-se como resistência à análise, já que a função e a tendência desta é integrar a
personalidade, quer dizer, mostrar como próprio do ser o que é próprio dele, anulando as
"defesas patológicas". Na medida em que estas são superadas, o doente pode sentir e
admitir desejos e fantasias instintivos como pertencentes ao eu, pode curar-se. Com a
interpretação das resistências e a interpretação dos impulsos rejeitados, a tarefa técnica do
analista estaria, praticamente, cumprida.
Entretanto, as coisas apresentaram,se mais complexas. Novos e inesperados fenômenos
apareceram no curso do tratamento. Aconteceu que, enquanto Freud estava ocupado em
interpretar as resistências e os impulsos e vivências reprimidos do passado dos doentes
que, até certa altura, tinham colaborado nesta tarefa, perdiam o interesse pelo passado e o
viravam para o presente, um presente muito determinado que era o da pessoa do próprio
Sigmund Freud. Uma das pacientes, por exemplo, no meio do trabalho analítico, abraça-
lhe o pescoço e Freud é salvo das dificuldades inerentes a esta embaraçosa situação pela
casual entrada de uma pessoa o serviço no consultório. Outras pacientes também
solicitavam, de várias maneiras, seu amor, fosse o amor em sua expressão sexual ou o
amor sublimado. Freud vence com facilidade a tentação de atribuir à irresistibilidade de sua
pessoa estes êxitos amorosos, suspeita de outras causas e descobre um fenômeno destinado
a ter um papel vital na terapia analítica: a transferência. Mas não apenas as mulheres,
também os homens costumavam mudar sua atitude para com o tratamento e para com o
terapeuta. Freqüentemente, depois de um período de colaboração, começavam, por
exemplo, a rebelar-se contra Freud, e importava-lhes mais ir contra ele, não dever-lhe nada
e mostrar-lhe sua impotência, que curar-se.
Que significava e a que se atribuía este fenômeno? Antes de mais nada, a aparição dos
desejos e sentimentos eróticos ou hostis para com sua pessoa interferia e perturbava o
trabalho analítico, e o que perturbava este trabalho costumava ser expressão da resistência.
A observação atenta de quando surgiam aqueles sentimentos confirmava esta suspeita, pois
era regularmente o momento em que a investigação do passado chegava a um ponto
sensível, a algum dos "complexos" psicológicos infantis intensamente reprimidos. Ao invés
de relembrar aquele complexo, o paciente reproduzia um ou outro sentimento contido no
mesmo complexo, dirigindo-o - “através de um enlace mental equivocado" - à pessoa do
médico. Com esta observação, Freud chegou a uma segunda e importante conclusão sobre o
fenômeno. A primeira era uma expressão da resistência, e a segunda consistia em serem
estes sentimentos uma repetição deslocada de velhos sentimentos pertencentes aos
complexos afetivos infantis, quer dizer, dirigidos originariamente aos primeiros objetos de
amor e ódio, de desejo e temor, que eram, geralmente, o pai, a mãe e os irmãos. Os
impulsos e sentimentos dirigidos ao analista eram, pois, transferidos dos objetos originais.
Daí Freud denominar "transferência" ao conjunto dos fenômenos e processos psicológicos
do paciente dirigidos ao analista e derivados de outras relações de objetos anteriores.
O fenômeno da transferência, que inicialmente parecia um fator perturbador, mostrou-se
logo um elemento sumamente valioso e até imprescindível no trabalho analítico. Antes de
tudo, Freud compreendeu que também a disposição de colaborar, a crença no trabalho do
médico, era uma expressão dos antigos sentimentos de carinho e crença nos pais, era
transferência de sentimentos "positivos", era "transferência positiva sublimada", enquanto o
impulso erótico aparecia em sua forma sublimada, isto é, como afeto e apreço. Mas também
a transferência sexual e a transferência "negativa" (enquanto predominavam os sentimentos
"negativos" de hostilidade, desconfiança, desprezo, etc.) mostravam-se sumamente úteis
para o trabalho analítico, já que representavam uma reedição de impulsos e sentimentos,
processos e "complexos" infantis, e a tarefa de superar as resistências, e a de analisar e
vencer os diversos mecanismos de defesa, podia fazer-se tanto nestas reedições das
vivências passadas como na recordação da própria infância. E, ainda mais, a experiência
mostrou que uma considerável quantidade destas lembranças não podia ser vivamente
evocada, as vivências originais não eram suficientemente acessíveis para a memória, mas
podiam ser recuperadas para a consciência, através de sua repetição ou "revivência" na
transferência. Por isso, alguns anos depois de descobrir a transferência, Freud já considera
que as batalhas decisivas para a recuperação da saúde psíquica encontram-se no campo da
transferência. Freud aconselha o analista a concentrar toda a libido do paciente na
transferência e livrá-lo de suas repressões através da análise de suas relações psíquicas com
o analista, nas quais retornam todos seus conflitos infantis. Se se conseguir isso - diz -, o
paciente ficará também livre de repressões em suas demais relações, uma vez terminada a
análise.
Esta "concentração da libido na transferência" representa um assunto de capital interesse.
Uma grande parte dessa "concentração" produz-se espontaneamente, já outra parte não,
porém constitui uma importante tarefa técnica. A concentração espontânea da libido na
relação com o analista deve-se a vários fatores. Freud acentuou três: primeiro, a
"compulsão à repetição"; segundo, a necessidade libidinosa (quer dizer, o desejo encontrar
no analista um pai ou uma mãe que dê ao paciente as satisfações que os pais não lhe deram)
; e terceiro - como já mencionei -,
a resistência, que leva ao aparecimento, na relação com o analista, de antigos desejos e
conflitos, como defesa diante da angústia que gera o trabalho analítico. Há outros fatores
que condicionam a concentração espontânea da libido na transferência, mas não posso
entrar aqui em maiores detalhes. Quanto à "concentração da libido" como tarefa técnica,
possivelmente será chocante que uma relação afetiva de tanta importância, como a do
paciente com o analista, seja - embora só em parte - um produto de um procedimento
técnico. Todavia, a técnica, neste caso, não merece desconfiança ou desprezo, porque não
constitui nenhum "manejo", mas consiste, essencialmente, no pronunciamento de uma série
de verdades, ou seja, na observância de uma série de fatos e processos psicológicos. "A
relação afetiva com o analista, que desta maneira é criada, é algo que já existe latente
dentro do paciente. Existe dentro dele desde seus primeiros anos de vida, determinada, em
alto grau, pelas fantasias e angústias irreais - porém vividas com realidade - da criança
constituindo uma relação de amor e ódio, de intensos conflitos, cheia de idealizações,
perseguições e depressões, e além disso, enterrada, em grande parte, sob as repressões e
negações. Existe dentro dele, porque suas relações com seus pais foram, por um lado,
sempre relações com imagos (quer dizer, com algo interno, e, por outro lado (enquanto
representavam algo externo), porque foram tomadas dentro, através da percepção, e se
conservaram dentro através das marcas mnêmicas, e mantidas pela subsistência dos
próprios impulsos instintivos e dos próprios conflitos. A criação da transferência é, neste
aspecto, um desenterrar destas relações que precisam ser revividas para que lhes seja dado
um novo e melhor destino. Na medida em que isso é conseguido, terão melhor destino
também todas as relações atuais, uma vez que estas são determinadas por aquelas. Cria-se,
portanto, - repito - o que já existe, porém transformado através da análise dos conflitos, o
que deve levar à mobilização das capacidades virtuais do que já existe, mas que tinha
ficado em estado potencial.

Neste sentido, toda análise podia ter como título o mesmo que deu Nietzsche a uma de suas
obras: Como chegar-se a ser o que se é. (Subtítulo de Ecce Homo). Não compartilho do
suposto protesto contra o fato de que a transferência seja, embora só em parte, produto de
um procedimento técnico, por outro lado sim, admito que algo nesta "criação" de
transferência incomoda com razão. É o fato de que toda esta relação afetiva intensa se
destine a uma pessoa que não a merece - o analista -, que não merece nem tanto amor, nem
tanto ódio; quer dizer, esta relação não se realiza no seu devido lugar, com o objeto
adequado. Mas é justamente isso que sucede à pessoa neurótica que se submete ao
tratamento, isto é, a pessoa "desloca" ou "transfere" conflitos infantis e internos a situações
e objeto atuais, também fora de lugar e inadequados à realidade. E durante o tratamento, ao
mesmo tempo que o analista colabora na criação da transferência, ele não se cansa de
mostrar ao paciente justamente isto, ou seja, o caráter inadequado e alheio à realidade do
que, em muitos aspectos, sucede psicologicamente ao analista. Cria-se a transferência para,
em seguida, destruí-la, pois - segundo Freud - "não se pode matar ninguém in absentia ou in
effigie".
A este novo enfoque técnico de Freud acrescentaram-se, logo, novas conclusões teóricas e
clínicas que reforçaram a tendência e enriqueceram as possibilidades de centralizar o
tratamento analítico na transferência, ou melhor, na neurose de transferência, já que o
retorno das relações com os pais implica o retorno dos conflitos neuróticos com eles. Uma
das conclusões teóricas mais importantes é a que se refere à dinâmica da transferência, isto
é, ao interjogo de forças que intervêm em sua formação.
Freud compreendeu que o impulso de repetição é inerente aos instintos, que o ego se opõe
a esta repetição, e que esta oposição é a que, antes de tudo, deve ser considerada como
resistência. O analista deve, pois, colocar-se ao lado dos instintos e lutar contra o ego e suas
resistências que se opõem à repetição, quer dizer, que se opõem à transferência dos
impulsos instintivos. A transferência que no começo havia sido considerada
predominantemente como resistência é agora considerada predominantemente como o
resistido, o rejeitado, e é por esta recuperação que o analista deve lutar. Acrescentaram a
isto um grande número de conclusões com respeito aos processos da primeira infância, que
tornaram possível uma elaboração muito mais intensa dos conflitos infantis em seu retorno
na transferência. Mas antes de descrever com maior detalhe o estado atual da técnica
analítica - resultado das velhas e novas conclusões - devo referir-me ainda a um outro
aspecto da técnica que até agora deixei de lado.
Ocupamo-nos quase exclusivamente do paciente, de seus processos e conflitos internos e o
que resulta da natureza deles, como a técnica indicada. Mas, evidentemente, na técnica
intervém também o analista, e, portanto, temos que referir-nos a ele e aos problemas que
lhe traz sua função. Dissemos, por exemplo, que o analista deve "adivinhar" ou intuir o
reprimido e interpretar os impulsos e resistências inconscientes, tanto nas relações de objeto
originais como também nas relações transferenciais do paciente. Mas como se faz isso?
Que deve, precisamente, interpretar o analista? Quando, quanto e como? Além disso, deve
o analista somente interpretar ou também aconselhar, ensinar, proibir, exigir, educar, guiar?
Colocam-se estas e muitas outras perguntas; problemas que têm sido estudados amplamente
e cuja elucidação deveria ser exposta. Porém aqui tenho que limitar-me a alguns aspectos
fundamentais.
Já sabemos que a função básica do analista é criar no paciente a possibilidade de tornar
consciente o inconsciente, já que é a discórdia da personalidade, provocada pela não
aceitação de uma e outra de suas partes pela consciência, o que constitui a causa final de
todas as perturbações psicológicas. Captar ou intuir o inconsciente do paciente - seus
impulsos, resistências e transferências inconscientes - e assim compreender suas situações
insolúveis de conflito é a primeira das tarefas fundamentais do analista. Esta "captação"
processa-se através do próprio inconsciente, posto que "só o igual pode conhecer o igual",
como dizia a sabedoria medieval, ou seja - em nossa linguagem -, só se pode conhecer no
outro o que é próprio de nós mesmos. Mais precisamente, só se pode captar o inconsciente
do outro na medida em que a própria consciência está aberta aos próprios instintos,
sentimentos e fantasias. É claro que existe a captação do inconsciente do outro no caso em
que a própria consciência se fecha à percepção do mesmo conteúdo do psíquico que é
próprio de nós mesmos, e ainda mais, é claro que às vezes percebe-se no outro justamente
algo que dentro de nós é rejeitado. Mas esta espécie de "captação" - como é, em especial, a
conhecida captação do paranóico, ou numa versão menos patológica, a captação paranóide,
através da qual intuem-se efetivamente certas tendências inconscientes no outro -, esta
captação não serve realmente, de um modo construtivo, ao analista, porque implica a
mesma rejeição que esta nossa parte sofreu, e porque distorce o percebido, convertendo a
mosca em elefante e o elefante em mosca. O analista só pode captar no outro aquilo que já
aceitou dentro de si como próprio e o que, portanto, pode ser reconhecido no outro, sem
angústia nem rejeição.
Assim, pois, para que na consciência do analista surja o que o paciente rejeita dela (conditio
sine qua non para poder suprir - através da interpretação - o que falta ao paciente), o
analista faz sua uma regra fundamental, aconselhada por Freud, semelhante à regra
fundamental que rege o paciente. Consiste em que o analista, ao escutar o que o paciente
lhe diz, e ao identificar-se com os pensamentos, desejos, temores e sentimentos dele, se
abandone também simultaneamente à associação livre; isto é, crie uma situação interna na
qual esteja disposto a admitir em sua consciência todos os pensamentos e sentimentos
possíveis. No caso de o analista estar bem identificado com o paciente e de ter menos
repressões, os pensamentos e sentimentos que surjam nele serão justamente aqueles que
não surgiram no paciente, ou seja, o reprimido e inconsciente. Esta disposição interna do
analista foi chamada por Freud de "atenção flutuante", porque consiste essencialmente em
um não-fixar a atenção em nenhuma direção determinada. Tal disposição ou atitude mental
- oposta à que adotamos ao concentrar-nos -, que constitui um "flutuar", é o estado ideal
para que a consciência do analista possa ser surpreendida por fantasias rejeitadas e
ocorrências reprimidas. Acrescente-se, à margem, que este método parece ter sido intuído
por um velho sábio chinês, de quem se conta a seguinte história. Um dia, o sábio perdeu
suas pérolas. Mandou seus olhos procurarem-nas, mas seus olhos não as encontraram.
Mandou então seus ouvidos, mas estes tampouco as encontraram. Mandou em seguida suas
mãos e estas também não as encontraram.E assim mandou todos os seus sentidos
procurarem suas pérolas, porém nenhum deles as encontrou. Finalmente mandou o seu não-
procurar procurar as pérolas. E o seu não-procurar encontrou as pérolas.
Mas o que acontece aqui é que nem sempre o não-procurar do analista encontra as pérolas
do inconsciente. Como já disse, sua capacidade de encontrar depende do grau em que ele
esteja consciente do seu próprio inconsciente. Este fato torna necessário o analista ser
analisado para estar em condições de analisar os outros. E a isto se acrescenta outro fato.
Expus antes como o trabalho do paciente de vencer suas resistências e admitir em sua
consciência os complexos instintivos e emocionais do seu passado sofre a interferência do
inesperado fenômeno da transferência. Pois bem, Freud um dia descobre que também o
trabalho do analista sofre interferência de fenômenos parecidos, que também no analista
surgem impulsos e sentimentos para com o paciente, alheios à sua função de compreender e
interpretar as resistências e os complexos infantis deste. Freud chama este fenômeno de
contratransferência, uma vez que constitui o equivalente da transferência, e assinala a
importância de conhecê-la e dominá-la para que não perturbe o trabalho do analista. A
contratransferência constitui, portanto, o outro fato que torna necessário o analista ser
analisado antes de começar seu trabalho com os doentes.
A história posterior do descobrimento da contratransferência e o destino desta quanto a seu
lugar na técnica analítica tem certa semelhança com a história da transferência e seu destino
nesta técnica. Como a transferência, também a contratransferência foi considerada primeiro
como uma perturbação e um sério perigo no trabalho do analista - como de fato pode ser.
Mais tarde constatou-se que também ela (como a transferência) pode ser um instrumento
técnico de grande importância, já que é, em boa parte, uma resposta emocional á
transferência e pode, como tal, indicar ao analista o que sucede ao paciente, em sua relação
com ele. Finalmente compreendeu-se que a contratransferência não só pode perturbar ou
ajudar a compreensão do analista e a sua capacidade de interpretar os conflitos
inconscientes do paciente, mas também, ao co-determinar a atitude do analista diante do
paciente, co-determina os destinos da transferência; pois o analista é o objeto da
transferência e a atitude do analista representa a atitude deste objeto, o que por sua vez
influi sobre a transferência. Assim, sendo a contratransferência decisiva para a transferência
e sua elaboração, ela o será também para todo o tratamento. Além disso, assim como a
transferência, segundo Freud, é o campo onde são travadas as batalhas principais pelo
extermínio das resistências, a contratransferência será a outra metade do campo, onde são
travadas as batalhas principais pelo extermínio das resistências do analista, as contra-
resistências.
Citarei um exemplo para este último aspecto. Segundo a observação analítica, as neuroses
estão centralizadas no complexo de Édipo. Dai, ao reeditar-se a neurose infantil na
transferência, o paciente repete também seu complexo edípico com o analista. Uma das
vivências edípicas mais dolorosas e angustiantes é a "cena primária", isto é, as fantasias
referentes ás relações sexuais dos pais. O paciente revive, com o analista, estas fantasias e
os sentimentos e impulsos que a elas estão ligados. Do grau em que pode tomar consciência
deles, superando as resistências e reintegrando em seu ego o que as defesas patológicas
mantinham afastado dele, dependerá, em boa parte, a cura. Para isso, necessita da ajuda do
analista. Mas também é possível que este encontre alguma resistência em interpretar para o
paciente, com franqueza, os detalhes concretos de suas fantasias e fazê-lo sofrer o total
impacto das angústias e dores da "cena primária". Entretanto, pouco a pouco, deve chegar a
isto, vencendo as resistências do paciente, e, ao mesmo tempo, superando suas próprias
contra-resistências.
Outro exemplo para ilustrar outros aspectos do papel da contratransferência.Tomemos o
caso de um paciente que por algum motivo inconsciente reage diante das interpretações do
analista, rejeitando-as com constância. A reação contratransferencial espontânea do
analista, depois de algum tempo, será possivelmente uma certa angústia e fastio ou
desânimo. Deixar-se dominar e levar por tais sentimentos representaria o mencionado
"perigo" ou a "perturbação" do tratamento pela contratransferência. Usar a percepção destes
sucessos contratransferenciais, depois de ter analisado sua origem e sua dinâmica, como
indicador do que sucede ao paciente, em sua relação inconsciente com o analista, seria um
exemplo da possibilidade de servir-se da contratransferência como instrumento para a
compreensão da transferência. Finalmente, sair do papel que o paciente inconscientemente
induz no analista ao provocar nele - em uma parte dele - angústia ou fastio, desânimo ou até
desesperança, romper o circulo vicioso no qual a transferência do paciente ameaça encerrar
o analista, recuperar a contratransferência positiva e redescobrir e redespertar a
transferência positiva reprimida, tudo isto exemplifica a contratransferência como fator que
co-determina a atitude do analista, objeto da transferência, dependendo desta atitude a
elaboração dos conflitos transferenciais; em uma palavra, exemplifica os sucessos na outra
metade do campo de batalha.
Receio alongar-me demasiadamente em detalhes, uma vez que meu plano era expor, em
linhas gerais, os aspectos básicos da técnica analítica. Retorno, portanto, a eles. Anunciei
no começo que ia referir-me ao passado, presente e futuro da técnica analítica. O passado,
propriamente dito, terminou, na verdade, quando terminaram a hipnose e a sugestão. Desde
que houve a substituição destes meios técnicos
pela regra fundamental (a associação livre) e pela interpretação das resistências e da
transferência, estamos em pleno presente, embora isto se sucedesse há 60 anos. Por outro
lado, muito se aprendeu desde então. Com o exposto - excetuando a exposição histórica -,
transmiti alguma coisa dos novos conhecimentos que se foram acumulando no curso de
meio século. Gostaria ainda de fazer uma breve síntese da técnica presente, de onde
poderão sair brevemente algumas idéias para o futuro.
O princípio básico de toda a técnica analítica é o antigo "conheça-te a ti mesmo" socrático,
já que a observação analítica ensinou que tanto os fenômenos patológicos propriamente
ditos, como as perturbações do caráter, das relações do ser com o mundo (com as pessoas e
as coisas), sua infelicidade, angústia e dificuldades de trabalhar e gozar, são o efeito de uma
única embora complexa causa: o desconhecimento de si mesmo. Contudo, devemos
acrescentar que o conhecimento de si mesmo a que nos referimos não é um saber
intelectual. O verdadeiro conhecimento é equivalente à união consigo próprio, a uma plena
aceitação na consciência e no sentir de todo o ser que antes foi rejeitado patologicamente.
Este conhecimento e esta união consigo mesmo implicam a superação da angústia e de
todos os meios hostis que - em defesa diante desta angústia - o ser utilizou contra si próprio,
desdobrando-se, mutilando-se, negando-se, aniquilando-se, fechando-se ou também
projetando-se em parte no mundo e lutando com ele para aliviar a discórdia interna, ou
afastando-se dele para encontrar uma paz aparente, porém empobrecido em comparação
com todas as suas possibilidades latentes. Neste sentido a técnica analítica é, como já disse,
um método para chegar a ser o que se é, posto que seu fim é tentar devolver ao ser o que é
dele e o que, no caminho de sua vida, no interjogo de conflitos internos e sucessos externos,
ele perdeu ou não pôde desenvolver.
No curso destes 60 anos, aprendemos muito sobre esta caminhada, desde que o ser a inicia,
no ventre materno, até que volte á mãe terra. Em especial, aprendemos, com crescentes
detalhes, os processos psicológicos da primeira infância, os múltiplos impulsos, fantasias,
angústias e métodos de defesa da criança que determinam em alto grau a vida posterior do
homem. Devemos ressaltar, neste contexto,
as contribuições clínicas e teóricas de K. Abraham, S. Ferenezi, E. Jones, e principalmente
a de M. Klein, que enriqueceram consideravelmente nossa capacidade técnica, já que
permitiram ver e interpretar, no material associativo dos pacientes, muito do que antes era
incompreensível. No tratamento analítico concentramos nossa atenção, como disse, no
retorno de todos estes processos infantis na relação do paciente com o analista, e é no
retorno e através dele - a transferência - que tratamos de superar a desunião do ser consigo
mesmo, a angústia ante si próprio e os métodos destrutivos de defesa diante de si mesmo.
Seguimos com igual atenção todas as suas demais relações com o mundo, nas quais
reaparecem igualmente os processos patológicos infantis, e aprendemos a captar o enlace
íntimo que sempre existe entre estas relações com o mundo externo e a transferência.
Quanto mais conhecermos estes processos, quanto antes os reconhecermos através das
associações e a conduta do paciente, tanto melhor saberemos que, quando e como dizer ao
paciente o que ele precisa saber para unir-se a si mesmo e ser o que realmente é.
Com isto, já teremos também uma base para fazer algumas previsões sobre o futuro
próximo da técnica analítica. Limitar-me-ei ao que se pode prever, com certa probabilidade,
dentro das linhas da evolução atual, deixando de lado idealizações sobre eventuais
descobrimentos de índole revolucionária. Por exemplo, enquanto no passado o analista
tinha que escutar horas inteiras - e, às vezes, semanas inteiras- as associações do paciente
antes de dar-lhes uma interpretação adequada, o analista de hoje pode, em geral, interpretar
várias vezes em cada sessão, o que representa um progresso nas possibilidades de uma
elaboração mais intensa e até mais rápida dos conflitos inconscientes. Este aumento da
nossa capacidade interpretativa deve-se aos avanços do conhecimento atual. Éramos, no
passado, como dois pobres judeus da história, que só podiam mudar a camisa uma vez por
semana. Atualmente já somos como o rico comerciante sobre quem os pobres judeus
afirmam com admiração, que muda a camisa diariamente ou até duas ou três vezes ao dia.
E, no futuro, seremos talvez - continuando a mesma história - como o banqueiro
Rothschild, que continuamente tira a camisa e põe uma nova, tira e põe, sem interrupção. E
assim como progredimos e progrediremos em relação à quantidade de interpretações que
podemos dar, também progrediremos em relação á qualidade, ao saber que, quando e como
interpretar. Podemos supor, portanto, que o futuro progresso do conhecimento psicológico
em geral e do conhecimento específico dos sucessos internos do paciente dentro da situação
analítica dar-nos-á a possibilidade de intensificar sempre mais e também de acelerar o
processo da transformação psicológica.
Isto depende, evidentemente, não só da ampliação do nosso conhecimento, mas também da
sua assimilação, isto é, da nossa capacidade de compreender e reconhecer o processo
inconsciente que jaz em cada frase do paciente, em cada movimento mental, cada silêncio,
cada mudança de ritmo e voz, e cada uma de suas atitudes. A microscopia psicanalítica a
que acabo de aludir - a que, em principio, existe desde Freud, mas sem ter encontrado até
agora o desenvolvimento sistemático e pleno que lhe corresponda - impor-se-á, creio,
pouco a pouco como matéria e disciplina específica, tanto nas investigações como também
no ensino analítico, e será um meio importante para a compreensão precisa e rápida do
material dos pacientes. A microanálise e a macroanálise - ou seja, a análise integral
("metapsicológica") de cada detalhe e de toda situação, de cada expressão e de todo estado,
de cada complexo e da estrutura total - desenvolverão muito e facilitarão a intervenção
sempre mais exata e eficaz do analista, capaz de aplicar a alavanca motora no ponto em que
deve mobilizar-se ou integrar-se a situação psicológica principal do momento em questão.
Progredindo a capacidade técnica, também serão mais eficazes as análises didáticas e os
analistas de amanhã trabalharão melhor que os de hoje, assim como estes trabalham melhor
que os de ontem.
Termino aqui, embora minhas previsões para o futuro tenham ficado um pouco truncadas.
Talvez voltarei em outra ocasião a este vasto tema: os múltiplos caminhos da investigação
técnica a seguir e os vários fins a alcançar. Espero, por outro lado, ter transmitido, em
linhas gerais, em que consiste a técnica psicanalítica e em que princípios se baseia.
Racker, Heinrich Estudos sobre Técnica Psicanalítica.Porto Alegre, Artes Médicas, 1982

Estudo I - INTRODUÇÃO À TÉCNICA PSICANALÍTICA


*Conferência pronunciada para os "Amigos da Associação Psicanalítica Argentina" em
1958.

Não só para o analista, mas também para o médico em geral, para o pedagogo e para todos
que de algum modo "exercem psicologia" (como, por exemplo, os pais para com os filhos
ou também os filhos para com os pais), é interessante conhecer os princípios em que se
baseiam e os métodos que levam às mudanças internas e externas que a técnica
psicanalítica persegue. Mas até para o que de nenhum modo exerça ativamente psicologia
(suponho que tal pessoa exista), até para o que somente sofra passivamente o "exercício da
psicologia" por outros, como ás vezes poderia considerar-se a si próprio o psicanalisado, o
tema é de certa importância. A própria pessoa que se submete a uma intervenção cirúrgica
costuma querer saber o que farão com ela e como o farão. Mas na psicanálise tal
curiosidade é ainda mais legítima e até indicada, pois, na realidade, não se trata de uma
experiência meramente passiva, o analista não é o único que “opera"; o paciente tem que
"co-operar". E para isso é útil que saiba qual será o método e qual a finalidade desta
"operação".
O interesse por um objeto implica o desejo de conhecer seu passado, seu presente e seu
futuro. Consideremos, pois, primeiro, a história da técnica psicanalítica. É sabido que,
durante o século XIX, as doenças mentais, a neurose e outros fenômenos que hoje se
entendem como perturbações psicológicas ou psicogênicas, eram consideradas como
perturbações orgânicas, ou, mais precisamente, como expressão de uma "degeneração" do
sistema nervoso, cuja única causa era a hereditariedade. O matiz depreciativo que para nós
costuma ter a palavra "degeneração hereditária" já existia naqueles tempos. As neuroses
parecem não ter despertado a simpatia dos médicos, mas sim desconfiança e rejeição. A
histeria, por exemplo, era considerada, antes de mais nada, como "simulação" e "teatro".
Possivelmente esta posição provinha, em boa parte, da angústia que provocava no médico a
percepção de sua impotência diante das neuroses, dada a falta de compreensão. E vice-
versa, a angústia e o desprezo perturbaram a latente disposição e capacidade de
compreender alguma coisa dos fenômenos psicopatológicos. A situação constituía, pois, um
círculo vicioso, no qual Freud, aproximando-se destes problemas com outro espírito, livre
de angústia, rejeição e preconceitos, desejoso de descobrir o desconhecido, e dotado de
uma genial capacidade psicológica e científica, abriu a brecha decisiva.
Devo citar alguns fatos da pré-história da psicanálise, que representam algo assim como as
marcas no caminho até a técnica analítica. No ano de 1885, Freud, com 30 anos, viaja a
Paris para estudar doenças nervosas com Charcot, o primeiro a considerar seriamente os
fenômenos histéricos. Aí Freud constata que as paralisações histéricas podem ser
produzidas por sugestão, em estado hipnótico, do que se deduz que estas paralisações são o
resultado de representações mentais. Um pouco mais tarde, Freud, já de volta a Viena, tem
notícia de que dois outros médicos franceses, Liébault e Bernheim, logram bons resultados
terapêuticos com histéricos, por meio da sugestão, predominantemente com hipnose. Em
seu trabalho com os "doentes nervosos", Freud afasta-se da eletroterapia (cujos êxitos
parciais igualmente são compreendidos logo como êxitos da sugestão médica) e utiliza-se,
cada vez mais, do método hipnótico-sugestivo. Este consiste em ordens (dadas aos doentes
postos em estado hipnótico), que devem resistir à manifestação dos sintomas patológicos.
Este método tem êxito em certo número de casos, porém é instável (os sintomas
reaparecem) e não é aplicável às pessoas que não podem ser hipnotizadas.
Mas Freud não se contenta com o método, pois este não o leva ao conhecimento da origem
da doença. Por isso procura outro caminho. Antes de ir a Paris, um amigo, o médico Joseph
Breuer, havia-lhe contado sua experiência com uma de suas pacientes, Anna O . . ., que
tinha sofrido paralisações histéricas e graves estados de confusão. Numa determinada
ocasião, Breuer observou que a paciente ficava livre de sua perturbação mental quando
expressava com palavras as fantasia. e os efeitos que a dominavam naquele momento.
Continuando, Breuer baseou nesta observação o seu método terapêutico, com esta paciente:
hipnotizava-a e fazia-lhe contar o que a afetava. A paciente, que, em estado normal, nada
sabia sobre a origem de sua doença, encontrou no estado hipnótico o nexo entre seus
sintomas e suas vivências. Os sintomas derivavam principalmente de sentimentos e
pensamentos que surgiram nela enquanto cuidava de seu pai enfermo e os quais ela havia
suprimido. Em seguida, em lugar deles, aparecera o sintoma. Quando a paciente, na
hipnose, recordava alucinatoriamente aquelas vivências e descarregava os sentimentos
suprimidos, o sintoma desaparecia. Este método de "ab-reação” de afetos recebeu o nome
de método catártico.
Freud o adota e, depois de uns anos, publica, junto com Breuer, o livro Estudos Sobre a
Histeria, em que os dois expõem suas observações e conclusões. Encontra-se também, nesta
obra, a descrição das diversas dificuldades e desvantagens do método hipnótico, por
exemplo, o fato de que o sono profundo só podia ser alcançado por um número limitado de
doentes. Estas dificuldades foram o bastante para incitá-lo a procurar uma técnica que
prescindisse da hipnose. Nesta procura, ajudou-o a lembrança de uma experiência que
Bernheim havia feito com um de seus doentes, e que Freud havia presenciado em uma
visita feita à clínica deste médico. O doente não se lembrava de nada que havia sucedido
durante seu estado hipnótico, mas Bernheim insistiu tenazmente para que se lembrasse, e,
pouco a pouco, o doente se lembrou de tudo. Isto significava que inclusive vivências que
parecem totalmente inconscientes podem ser recuperadas para a consciência, e sem a
hipnose, pois o doente se lembrava delas em estado normal. Baseado nesta experiência,
Freud começa a renunciar à hipnose e em lugar dela insiste com seus enfermos para que se
lembrem das vivências esquecidas ou "reprimidas". Ao mesmo tempo - e isto foi decisivo
para a posterior mudança no seu processo técnico - Freud vai obtendo, pouco a pouco, a
compreensão dos processos dinâmicos (quer dizer, do interjogo de forças e tendências
psicológicas) que tinham originado os esquecimentos ou "repressões", e que eram
responsáveis pelas dificuldades de lembrar ou de tornar consciente o inconsciente. Freud
descobriu, em especial, que existe uma força ou tendência que se opõe à lembrança, que
tende manter a repressão e que, portanto, se opõe também ao trabalho do médico, que
consiste em induzir o doente a lembrar. Freud deu a esta força o nome de resistência e este
descobrimento o conduziu à seguinte e decisiva mudança técnica. Freud compreendeu logo
que a resistência provinha, antes de tudo, do fato de que o que devia ser lembrado era
penoso para o doente, envergonhava-o ou era adverso a seus sentimentos morais.
Igualmente importante para a mudança técnica posterior foi a captação das diversas formas
por que se expressava a resistência. Os doentes calavam certas lembranças alegando, por
exemplo, que estas (ou o que a respeito lhes ocorresse durante a sessão) careciam de
importância ou de sentido. Freud compreendeu que estas objeções dos doentes não eram
mais que um disfarce, eram as lembranças buscadas ou, pelo menos, indicavam o caminho
para elas. O passo técnico seguinte consistiu, pois, em abandonar a "técnica de insistência"
(com que se uniram algumas medidas de sugestão como a de pôr a mão sobre a testa do
doente para facilitar a concentração, etc.) , e em instituir, em lugar daquela, uma regra para
o doente, que devia determinar sua conduta no tratamento, comprometendo-se este a
cumpri-la. Esta regra, que representava a base do tratamento - tanto que recebeu o nome de
regra fundamental -, consistia em o doente comunicar ao médico todos os seus
pensamentos, dizer-lhe tudo o que lhe ocorresse, sem omitir nada, ainda que lhe fosse
penoso dizê-lo ou ainda que lhe parecesse que tal fato carecia de importância ou de sentido
ou que estava deslocado. O doente devia, portanto, cuidar para que nenhuma objeção
interna, nenhuma autocrítica o impedisse de comunicar cada uma das ocorrências, de dizer
tudo sem seleção, entregando-se plenamente à associação livre.
O que resumi aqui em poucas palavras era o resultado - um dos muitos resultados - de um
árduo e longo trabalho de investigação, que havia levado Freud às compreensões básicas
das causas das neuroses. Destas compreensões surgiu a técnica analítica, principalmente a
substituição do método hipnótico e sugestivo pelo método da associação livre. A
compreensão básica consistia em que as neuroses se devem a um conflito interno uma
inconciliação ou intolerância entre diversas partes da personalidade, e, em especial, entre a
parte moral e social um lado, e a parte instintiva e egoísta, de outro. Digo "em especial",
porque este conflito não foi e não é considerado como único. Mais ainda, no princípio
apareceu como causa principal não a luta com os próprios instintos (embora apareça
assinalado nos primeiros textos de Freud), mas certas experiências sofridas passivamente,
como por exemplo, a sedução sofrida na infância, vivências "traumáticas", que Freud
considerou, numa certa época, como fator decisivo na etiologia das neuroses. A lembrança
ou "ab-reação" destas vivências (que constituíam preponderantemente "o reprimido") era o
que devia levar à cura. Este fator externo e o "trauma" precoce mantiveram também mais
tarde sua importância, mas Freud descobriu, cada vez mais, a vida instintiva autônoma da
criança, e os conflitos com os próprios instintos infantis mostraram ser o fator principal na
gênese das neuroses. Eram, pois, os próprios impulsos sexuais e agressivos que
constituíam, antes de tudo, "o reprimido" e cuja "lembrança" ou "conscientização" devia
levar à cura.
Nestas considerações baseava-se, portanto, a técnica. O doente devia associar livremente,
abolindo toda rejeição diante das próprias ocorrências, e assim devia aparecer na
consciência tudo quanto dela havia sido rejeitado. O que efetivamente aparece não é, em
geral, o reprimido propriamente dito, mas derivados dos conflitos infantis, expressões mais
superficiais, mais aceitáveis destes. O doente não costuma recordar, por exemplo, que tinha
desejos sexuais para com sua mãe, mas sim - e com sentimentos de culpa igualmente
intensos - que desejava a mulher de um amigo mais velho, etc. A função do analista era,
portanto, a de adivinhar através das associações livres (destes "derivados") os impulsos
infantis reprimidos e comunicar o que havia adivinhado ao doente. Um acesso
especialmente oportuno aos conflitos infantis era os sonhos, já que neles - pela diminuição
da censura moral e lógica durante o sono - o reprimido manifestava-se com maior clareza.
Freud esperava que comunicar o reprimido ao doente poria fim ao alheamento entre o ego e
os instintos, a causa última da neurose. A interpretação dos impulsos infantis constituiu-se,
pois, num instrumento terapêutico por excelência. Mas acontece que esta esperança só se
cumpriria em certo grau. Os doentes ouviam a interpretação, mas o que esta lhes dizia
freqüentemente continuava sendo sentido como alheio ao ego; não podiam reconhecer o
que o analista lhes dizia sobre eles como algo próprio, e a conscientização do reprimido e,
com isso, a integração da personalidade não se produzia. Freud viu logo a que se devia isso:
as resistências continuavam e impossibilitavam que o inconsciente se tornasse consciente.
Antes de comunicar ao doente seus impulsos reprimidos deviam, portanto, ser superadas
suas resistências. Mas como fazê-lo? Novamente, entendendo e assinalando as
manifestações das resistências, seus modos de atuar e seus motivos. E, deste modo, como a
investigação do reprimido levou ao descobrimento de todo um mundo de impulsos,
fantasias e sentimentos que desde a primeira infância atuam na psique humana, assim
também a investigação das resistências levou ao descobrimento de uma multidão de fatos e
processos, e, em especial, ao descobrimento de uma série de atuações internas ou
"mecanismos" que a psique efetua em sua necessidade de rejeitar aqueles impulsos,
rejeição que se expressa no tratamento justamente como "resistência" à análise; por
exemplo, superficialmente, como resistência a comunicar as ocorrências ou a aceitar a
interpretação do "reprimido". Não posso entrar aqui na descrição detalhada da outra parte
do mundo interno descoberto, e devo limitar-me ao necessário para que fique claro o
significado da interpretação das resistências, que, como sabem, deve preceder à
interpretação dos impulsos reprimidos, ou melhor, unir-se a ela. Trata-se, pois, antes de
tudo de assinalar os modos por que o ego rejeita os impulsos e também os motivos desta
rejeição. Quanto a estes últimos, já dissemos algo. Admitir que se tenham determinados
desejos ou fantasias é algo que se experimenta com vergonha, sensação de rebaixamento ou
de baixeza, com sentimentos de culpa, e temor ao castigo; em termos gerais, é
experimentado com dor ou angústia. O ego, para defender-se reage contra estas sensações
desagradáveis, afastando da consciência aqueles desejos e fantasias. Um belo exemplo
destes fatos encontra-se numa obra de Nietzsche, que - como alguns outros filósofos e
poetas - antecipou intuitivamente, embora de maneira isolada, um ou outro descobrimento
analítico. Em Além do Bem e do Mal, encontra-se a seguinte máxima : "Fiz isto” diz
minha memória. "Não posso ter feito isto” diz meu orgulho e fica inexorável. Finalmente a
memória cede.
Os diferentes modos pelos quais o ego realiza a rejeição se chamam mecanismos de defesa
do ego, já que se trata, em última instância, de defendê-lo de um perigo (ou mal) imaginado
ao eu ou a um objeto. A "repressão" (quer dizer, a exclusão de um conteúdo psicológico da
consciência por meio de uma "contracatexia") é apenas um destes mecanismos. A
"projeção" (colocar para fora e atribuir outro o que é nosso), a "introjeção" (colocar para
dentro e atribuir a nós o que é e outro), a separação entre as idéias e os afetos, a "regressão"
a etapas anteriores a evolução são outros dos muitos mecanismos de defesa. O conjunto
deles expressa-se como resistência à análise, já que a função e a tendência desta é integrar a
personalidade, quer dizer, mostrar como próprio do ser o que é próprio dele, anulando as
"defesas patológicas". Na medida em que estas são superadas, o doente pode sentir e
admitir desejos e fantasias instintivos como pertencentes ao eu, pode curar-se. Com a
interpretação das resistências e a interpretação dos impulsos rejeitados, a tarefa técnica do
analista estaria, praticamente, cumprida.
Entretanto, as coisas apresentaram,se mais complexas. Novos e inesperados fenômenos
apareceram no curso do tratamento. Aconteceu que, enquanto Freud estava ocupado em
interpretar as resistências e os impulsos e vivências reprimidos do passado dos doentes
que, até certa altura, tinham colaborado nesta tarefa, perdiam o interesse pelo passado e o
viravam para o presente, um presente muito determinado que era o da pessoa do próprio
Sigmund Freud. Uma das pacientes, por exemplo, no meio do trabalho analítico, abraça-
lhe o pescoço e Freud é salvo das dificuldades inerentes a esta embaraçosa situação pela
casual entrada de uma pessoa o serviço no consultório. Outras pacientes também
solicitavam, de várias maneiras, seu amor, fosse o amor em sua expressão sexual ou o
amor sublimado. Freud vence com facilidade a tentação de atribuir à irresistibilidade de sua
pessoa estes êxitos amorosos, suspeita de outras causas e descobre um fenômeno destinado
a ter um papel vital na terapia analítica: a transferência. Mas não apenas as mulheres,
também os homens costumavam mudar sua atitude para com o tratamento e para com o
terapeuta. Freqüentemente, depois de um período de colaboração, começavam, por
exemplo, a rebelar-se contra Freud, e importava-lhes mais ir contra ele, não dever-lhe nada
e mostrar-lhe sua impotência, que curar-se.
Que significava e a que se atribuía este fenômeno? Antes de mais nada, a aparição dos
desejos e sentimentos eróticos ou hostis para com sua pessoa interferia e perturbava o
trabalho analítico, e o que perturbava este trabalho costumava ser expressão da resistência.
A observação atenta de quando surgiam aqueles sentimentos confirmava esta suspeita, pois
era regularmente o momento em que a investigação do passado chegava a um ponto
sensível, a algum dos "complexos" psicológicos infantis intensamente reprimidos. Ao invés
de relembrar aquele complexo, o paciente reproduzia um ou outro sentimento contido no
mesmo complexo, dirigindo-o - “através de um enlace mental equivocado" - à pessoa do
médico. Com esta observação, Freud chegou a uma segunda e importante conclusão sobre o
fenômeno. A primeira era uma expressão da resistência, e a segunda consistia em serem
estes sentimentos uma repetição deslocada de velhos sentimentos pertencentes aos
complexos afetivos infantis, quer dizer, dirigidos originariamente aos primeiros objetos de
amor e ódio, de desejo e temor, que eram, geralmente, o pai, a mãe e os irmãos. Os
impulsos e sentimentos dirigidos ao analista eram, pois, transferidos dos objetos originais.
Daí Freud denominar "transferência" ao conjunto dos fenômenos e processos psicológicos
do paciente dirigidos ao analista e derivados de outras relações de objetos anteriores.
O fenômeno da transferência, que inicialmente parecia um fator perturbador, mostrou-se
logo um elemento sumamente valioso e até imprescindível no trabalho analítico. Antes de
tudo, Freud compreendeu que também a disposição de colaborar, a crença no trabalho do
médico, era uma expressão dos antigos sentimentos de carinho e crença nos pais, era
transferência de sentimentos "positivos", era "transferência positiva sublimada", enquanto o
impulso erótico aparecia em sua forma sublimada, isto é, como afeto e apreço. Mas também
a transferência sexual e a transferência "negativa" (enquanto predominavam os sentimentos
"negativos" de hostilidade, desconfiança, desprezo, etc.) mostravam-se sumamente úteis
para o trabalho analítico, já que representavam uma reedição de impulsos e sentimentos,
processos e "complexos" infantis, e a tarefa de superar as resistências, e a de analisar e
vencer os diversos mecanismos de defesa, podia fazer-se tanto nestas reedições das
vivências passadas como na recordação da própria infância. E, ainda mais, a experiência
mostrou que uma considerável quantidade destas lembranças não podia ser vivamente
evocada, as vivências originais não eram suficientemente acessíveis para a memória, mas
podiam ser recuperadas para a consciência, através de sua repetição ou "revivência" na
transferência. Por isso, alguns anos depois de descobrir a transferência, Freud já considera
que as batalhas decisivas para a recuperação da saúde psíquica encontram-se no campo da
transferência. Freud aconselha o analista a concentrar toda a libido do paciente na
transferência e livrá-lo de suas repressões através da análise de suas relações psíquicas com
o analista, nas quais retornam todos seus conflitos infantis. Se se conseguir isso - diz -, o
paciente ficará também livre de repressões em suas demais relações, uma vez terminada a
análise.
Esta "concentração da libido na transferência" representa um assunto de capital interesse.
Uma grande parte dessa "concentração" produz-se espontaneamente, já outra parte não,
porém constitui uma importante tarefa técnica. A concentração espontânea da libido na
relação com o analista deve-se a vários fatores. Freud acentuou três: primeiro, a
"compulsão à repetição"; segundo, a necessidade libidinosa (quer dizer, o desejo encontrar
no analista um pai ou uma mãe que dê ao paciente as satisfações que os pais não lhe deram)
; e terceiro - como já mencionei -,
a resistência, que leva ao aparecimento, na relação com o analista, de antigos desejos e
conflitos, como defesa diante da angústia que gera o trabalho analítico. Há outros fatores
que condicionam a concentração espontânea da libido na transferência, mas não posso
entrar aqui em maiores detalhes. Quanto à "concentração da libido" como tarefa técnica,
possivelmente será chocante que uma relação afetiva de tanta importância, como a do
paciente com o analista, seja - embora só em parte - um produto de um procedimento
técnico. Todavia, a técnica, neste caso, não merece desconfiança ou desprezo, porque não
constitui nenhum "manejo", mas consiste, essencialmente, no pronunciamento de uma série
de verdades, ou seja, na observância de uma série de fatos e processos psicológicos. "A
relação afetiva com o analista, que desta maneira é criada, é algo que já existe latente
dentro do paciente. Existe dentro dele desde seus primeiros anos de vida, determinada, em
alto grau, pelas fantasias e angústias irreais - porém vividas com realidade - da criança
constituindo uma relação de amor e ódio, de intensos conflitos, cheia de idealizações,
perseguições e depressões, e além disso, enterrada, em grande parte, sob as repressões e
negações. Existe dentro dele, porque suas relações com seus pais foram, por um lado,
sempre relações com imagos (quer dizer, com algo interno, e, por outro lado (enquanto
representavam algo externo), porque foram tomadas dentro, através da percepção, e se
conservaram dentro através das marcas mnêmicas, e mantidas pela subsistência dos
próprios impulsos instintivos e dos próprios conflitos. A criação da transferência é, neste
aspecto, um desenterrar destas relações que precisam ser revividas para que lhes seja dado
um novo e melhor destino. Na medida em que isso é conseguido, terão melhor destino
também todas as relações atuais, uma vez que estas são determinadas por aquelas. Cria-se,
portanto, - repito - o que já existe, porém transformado através da análise dos conflitos, o
que deve levar à mobilização das capacidades virtuais do que já existe, mas que tinha
ficado em estado potencial.

Neste sentido, toda análise podia ter como título o mesmo que deu Nietzsche a uma de suas
obras: Como chegar-se a ser o que se é. (Subtítulo de Ecce Homo). Não compartilho do
suposto protesto contra o fato de que a transferência seja, embora só em parte, produto de
um procedimento técnico, por outro lado sim, admito que algo nesta "criação" de
transferência incomoda com razão. É o fato de que toda esta relação afetiva intensa se
destine a uma pessoa que não a merece - o analista -, que não merece nem tanto amor, nem
tanto ódio; quer dizer, esta relação não se realiza no seu devido lugar, com o objeto
adequado. Mas é justamente isso que sucede à pessoa neurótica que se submete ao
tratamento, isto é, a pessoa "desloca" ou "transfere" conflitos infantis e internos a situações
e objeto atuais, também fora de lugar e inadequados à realidade. E durante o tratamento, ao
mesmo tempo que o analista colabora na criação da transferência, ele não se cansa de
mostrar ao paciente justamente isto, ou seja, o caráter inadequado e alheio à realidade do
que, em muitos aspectos, sucede psicologicamente ao analista. Cria-se a transferência para,
em seguida, destruí-la, pois - segundo Freud - "não se pode matar ninguém in absentia ou in
effigie".
A este novo enfoque técnico de Freud acrescentaram-se, logo, novas conclusões teóricas e
clínicas que reforçaram a tendência e enriqueceram as possibilidades de centralizar o
tratamento analítico na transferência, ou melhor, na neurose de transferência, já que o
retorno das relações com os pais implica o retorno dos conflitos neuróticos com eles. Uma
das conclusões teóricas mais importantes é a que se refere à dinâmica da transferência, isto
é, ao interjogo de forças que intervêm em sua formação.
Freud compreendeu que o impulso de repetição é inerente aos instintos, que o ego se opõe
a esta repetição, e que esta oposição é a que, antes de tudo, deve ser considerada como
resistência. O analista deve, pois, colocar-se ao lado dos instintos e lutar contra o ego e suas
resistências que se opõem à repetição, quer dizer, que se opõem à transferência dos
impulsos instintivos. A transferência que no começo havia sido considerada
predominantemente como resistência é agora considerada predominantemente como o
resistido, o rejeitado, e é por esta recuperação que o analista deve lutar. Acrescentaram a
isto um grande número de conclusões com respeito aos processos da primeira infância, que
tornaram possível uma elaboração muito mais intensa dos conflitos infantis em seu retorno
na transferência. Mas antes de descrever com maior detalhe o estado atual da técnica
analítica - resultado das velhas e novas conclusões - devo referir-me ainda a um outro
aspecto da técnica que até agora deixei de lado.
Ocupamo-nos quase exclusivamente do paciente, de seus processos e conflitos internos e o
que resulta da natureza deles, como a técnica indicada. Mas, evidentemente, na técnica
intervém também o analista, e, portanto, temos que referir-nos a ele e aos problemas que
lhe traz sua função. Dissemos, por exemplo, que o analista deve "adivinhar" ou intuir o
reprimido e interpretar os impulsos e resistências inconscientes, tanto nas relações de objeto
originais como também nas relações transferenciais do paciente. Mas como se faz isso?
Que deve, precisamente, interpretar o analista? Quando, quanto e como? Além disso, deve
o analista somente interpretar ou também aconselhar, ensinar, proibir, exigir, educar, guiar?
Colocam-se estas e muitas outras perguntas; problemas que têm sido estudados amplamente
e cuja elucidação deveria ser exposta. Porém aqui tenho que limitar-me a alguns aspectos
fundamentais.
Já sabemos que a função básica do analista é criar no paciente a possibilidade de tornar
consciente o inconsciente, já que é a discórdia da personalidade, provocada pela não
aceitação de uma e outra de suas partes pela consciência, o que constitui a causa final de
todas as perturbações psicológicas. Captar ou intuir o inconsciente do paciente - seus
impulsos, resistências e transferências inconscientes - e assim compreender suas situações
insolúveis de conflito é a primeira das tarefas fundamentais do analista. Esta "captação"
processa-se através do próprio inconsciente, posto que "só o igual pode conhecer o igual",
como dizia a sabedoria medieval, ou seja - em nossa linguagem -, só se pode conhecer no
outro o que é próprio de nós mesmos. Mais precisamente, só se pode captar o inconsciente
do outro na medida em que a própria consciência está aberta aos próprios instintos,
sentimentos e fantasias. É claro que existe a captação do inconsciente do outro no caso em
que a própria consciência se fecha à percepção do mesmo conteúdo do psíquico que é
próprio de nós mesmos, e ainda mais, é claro que às vezes percebe-se no outro justamente
algo que dentro de nós é rejeitado. Mas esta espécie de "captação" - como é, em especial, a
conhecida captação do paranóico, ou numa versão menos patológica, a captação paranóide,
através da qual intuem-se efetivamente certas tendências inconscientes no outro -, esta
captação não serve realmente, de um modo construtivo, ao analista, porque implica a
mesma rejeição que esta nossa parte sofreu, e porque distorce o percebido, convertendo a
mosca em elefante e o elefante em mosca. O analista só pode captar no outro aquilo que já
aceitou dentro de si como próprio e o que, portanto, pode ser reconhecido no outro, sem
angústia nem rejeição.
Assim, pois, para que na consciência do analista surja o que o paciente rejeita dela (conditio
sine qua non para poder suprir - através da interpretação - o que falta ao paciente), o
analista faz sua uma regra fundamental, aconselhada por Freud, semelhante à regra
fundamental que rege o paciente. Consiste em que o analista, ao escutar o que o paciente
lhe diz, e ao identificar-se com os pensamentos, desejos, temores e sentimentos dele, se
abandone também simultaneamente à associação livre; isto é, crie uma situação interna na
qual esteja disposto a admitir em sua consciência todos os pensamentos e sentimentos
possíveis. No caso de o analista estar bem identificado com o paciente e de ter menos
repressões, os pensamentos e sentimentos que surjam nele serão justamente aqueles que
não surgiram no paciente, ou seja, o reprimido e inconsciente. Esta disposição interna do
analista foi chamada por Freud de "atenção flutuante", porque consiste essencialmente em
um não-fixar a atenção em nenhuma direção determinada. Tal disposição ou atitude mental
- oposta à que adotamos ao concentrar-nos -, que constitui um "flutuar", é o estado ideal
para que a consciência do analista possa ser surpreendida por fantasias rejeitadas e
ocorrências reprimidas. Acrescente-se, à margem, que este método parece ter sido intuído
por um velho sábio chinês, de quem se conta a seguinte história. Um dia, o sábio perdeu
suas pérolas. Mandou seus olhos procurarem-nas, mas seus olhos não as encontraram.
Mandou então seus ouvidos, mas estes tampouco as encontraram. Mandou em seguida suas
mãos e estas também não as encontraram.E assim mandou todos os seus sentidos
procurarem suas pérolas, porém nenhum deles as encontrou. Finalmente mandou o seu não-
procurar procurar as pérolas. E o seu não-procurar encontrou as pérolas.
Mas o que acontece aqui é que nem sempre o não-procurar do analista encontra as pérolas
do inconsciente. Como já disse, sua capacidade de encontrar depende do grau em que ele
esteja consciente do seu próprio inconsciente. Este fato torna necessário o analista ser
analisado para estar em condições de analisar os outros. E a isto se acrescenta outro fato.
Expus antes como o trabalho do paciente de vencer suas resistências e admitir em sua
consciência os complexos instintivos e emocionais do seu passado sofre a interferência do
inesperado fenômeno da transferência. Pois bem, Freud um dia descobre que também o
trabalho do analista sofre interferência de fenômenos parecidos, que também no analista
surgem impulsos e sentimentos para com o paciente, alheios à sua função de compreender e
interpretar as resistências e os complexos infantis deste. Freud chama este fenômeno de
contratransferência, uma vez que constitui o equivalente da transferência, e assinala a
importância de conhecê-la e dominá-la para que não perturbe o trabalho do analista. A
contratransferência constitui, portanto, o outro fato que torna necessário o analista ser
analisado antes de começar seu trabalho com os doentes.
A história posterior do descobrimento da contratransferência e o destino desta quanto a seu
lugar na técnica analítica tem certa semelhança com a história da transferência e seu destino
nesta técnica. Como a transferência, também a contratransferência foi considerada primeiro
como uma perturbação e um sério perigo no trabalho do analista - como de fato pode ser.
Mais tarde constatou-se que também ela (como a transferência) pode ser um instrumento
técnico de grande importância, já que é, em boa parte, uma resposta emocional á
transferência e pode, como tal, indicar ao analista o que sucede ao paciente, em sua relação
com ele. Finalmente compreendeu-se que a contratransferência não só pode perturbar ou
ajudar a compreensão do analista e a sua capacidade de interpretar os conflitos
inconscientes do paciente, mas também, ao co-determinar a atitude do analista diante do
paciente, co-determina os destinos da transferência; pois o analista é o objeto da
transferência e a atitude do analista representa a atitude deste objeto, o que por sua vez
influi sobre a transferência. Assim, sendo a contratransferência decisiva para a transferência
e sua elaboração, ela o será também para todo o tratamento. Além disso, assim como a
transferência, segundo Freud, é o campo onde são travadas as batalhas principais pelo
extermínio das resistências, a contratransferência será a outra metade do campo, onde são
travadas as batalhas principais pelo extermínio das resistências do analista, as contra-
resistências.
Citarei um exemplo para este último aspecto. Segundo a observação analítica, as neuroses
estão centralizadas no complexo de Édipo. Dai, ao reeditar-se a neurose infantil na
transferência, o paciente repete também seu complexo edípico com o analista. Uma das
vivências edípicas mais dolorosas e angustiantes é a "cena primária", isto é, as fantasias
referentes ás relações sexuais dos pais. O paciente revive, com o analista, estas fantasias e
os sentimentos e impulsos que a elas estão ligados. Do grau em que pode tomar consciência
deles, superando as resistências e reintegrando em seu ego o que as defesas patológicas
mantinham afastado dele, dependerá, em boa parte, a cura. Para isso, necessita da ajuda do
analista. Mas também é possível que este encontre alguma resistência em interpretar para o
paciente, com franqueza, os detalhes concretos de suas fantasias e fazê-lo sofrer o total
impacto das angústias e dores da "cena primária". Entretanto, pouco a pouco, deve chegar a
isto, vencendo as resistências do paciente, e, ao mesmo tempo, superando suas próprias
contra-resistências.
Outro exemplo para ilustrar outros aspectos do papel da contratransferência.Tomemos o
caso de um paciente que por algum motivo inconsciente reage diante das interpretações do
analista, rejeitando-as com constância. A reação contratransferencial espontânea do
analista, depois de algum tempo, será possivelmente uma certa angústia e fastio ou
desânimo. Deixar-se dominar e levar por tais sentimentos representaria o mencionado
"perigo" ou a "perturbação" do tratamento pela contratransferência. Usar a percepção destes
sucessos contratransferenciais, depois de ter analisado sua origem e sua dinâmica, como
indicador do que sucede ao paciente, em sua relação inconsciente com o analista, seria um
exemplo da possibilidade de servir-se da contratransferência como instrumento para a
compreensão da transferência. Finalmente, sair do papel que o paciente inconscientemente
induz no analista ao provocar nele - em uma parte dele - angústia ou fastio, desânimo ou até
desesperança, romper o circulo vicioso no qual a transferência do paciente ameaça encerrar
o analista, recuperar a contratransferência positiva e redescobrir e redespertar a
transferência positiva reprimida, tudo isto exemplifica a contratransferência como fator que
co-determina a atitude do analista, objeto da transferência, dependendo desta atitude a
elaboração dos conflitos transferenciais; em uma palavra, exemplifica os sucessos na outra
metade do campo de batalha.
Receio alongar-me demasiadamente em detalhes, uma vez que meu plano era expor, em
linhas gerais, os aspectos básicos da técnica analítica. Retorno, portanto, a eles. Anunciei
no começo que ia referir-me ao passado, presente e futuro da técnica analítica. O passado,
propriamente dito, terminou, na verdade, quando terminaram a hipnose e a sugestão. Desde
que houve a substituição destes meios técnicos
pela regra fundamental (a associação livre) e pela interpretação das resistências e da
transferência, estamos em pleno presente, embora isto se sucedesse há 60 anos. Por outro
lado, muito se aprendeu desde então. Com o exposto - excetuando a exposição histórica -,
transmiti alguma coisa dos novos conhecimentos que se foram acumulando no curso de
meio século. Gostaria ainda de fazer uma breve síntese da técnica presente, de onde
poderão sair brevemente algumas idéias para o futuro.
O princípio básico de toda a técnica analítica é o antigo "conheça-te a ti mesmo" socrático,
já que a observação analítica ensinou que tanto os fenômenos patológicos propriamente
ditos, como as perturbações do caráter, das relações do ser com o mundo (com as pessoas e
as coisas), sua infelicidade, angústia e dificuldades de trabalhar e gozar, são o efeito de uma
única embora complexa causa: o desconhecimento de si mesmo. Contudo, devemos
acrescentar que o conhecimento de si mesmo a que nos referimos não é um saber
intelectual. O verdadeiro conhecimento é equivalente à união consigo próprio, a uma plena
aceitação na consciência e no sentir de todo o ser que antes foi rejeitado patologicamente.
Este conhecimento e esta união consigo mesmo implicam a superação da angústia e de
todos os meios hostis que - em defesa diante desta angústia - o ser utilizou contra si próprio,
desdobrando-se, mutilando-se, negando-se, aniquilando-se, fechando-se ou também
projetando-se em parte no mundo e lutando com ele para aliviar a discórdia interna, ou
afastando-se dele para encontrar uma paz aparente, porém empobrecido em comparação
com todas as suas possibilidades latentes. Neste sentido a técnica analítica é, como já disse,
um método para chegar a ser o que se é, posto que seu fim é tentar devolver ao ser o que é
dele e o que, no caminho de sua vida, no interjogo de conflitos internos e sucessos externos,
ele perdeu ou não pôde desenvolver.
No curso destes 60 anos, aprendemos muito sobre esta caminhada, desde que o ser a inicia,
no ventre materno, até que volte á mãe terra. Em especial, aprendemos, com crescentes
detalhes, os processos psicológicos da primeira infância, os múltiplos impulsos, fantasias,
angústias e métodos de defesa da criança que determinam em alto grau a vida posterior do
homem. Devemos ressaltar, neste contexto,
as contribuições clínicas e teóricas de K. Abraham, S. Ferenezi, E. Jones, e principalmente
a de M. Klein, que enriqueceram consideravelmente nossa capacidade técnica, já que
permitiram ver e interpretar, no material associativo dos pacientes, muito do que antes era
incompreensível. No tratamento analítico concentramos nossa atenção, como disse, no
retorno de todos estes processos infantis na relação do paciente com o analista, e é no
retorno e através dele - a transferência - que tratamos de superar a desunião do ser consigo
mesmo, a angústia ante si próprio e os métodos destrutivos de defesa diante de si mesmo.
Seguimos com igual atenção todas as suas demais relações com o mundo, nas quais
reaparecem igualmente os processos patológicos infantis, e aprendemos a captar o enlace
íntimo que sempre existe entre estas relações com o mundo externo e a transferência.
Quanto mais conhecermos estes processos, quanto antes os reconhecermos através das
associações e a conduta do paciente, tanto melhor saberemos que, quando e como dizer ao
paciente o que ele precisa saber para unir-se a si mesmo e ser o que realmente é.
Com isto, já teremos também uma base para fazer algumas previsões sobre o futuro
próximo da técnica analítica. Limitar-me-ei ao que se pode prever, com certa probabilidade,
dentro das linhas da evolução atual, deixando de lado idealizações sobre eventuais
descobrimentos de índole revolucionária. Por exemplo, enquanto no passado o analista
tinha que escutar horas inteiras - e, às vezes, semanas inteiras- as associações do paciente
antes de dar-lhes uma interpretação adequada, o analista de hoje pode, em geral, interpretar
várias vezes em cada sessão, o que representa um progresso nas possibilidades de uma
elaboração mais intensa e até mais rápida dos conflitos inconscientes. Este aumento da
nossa capacidade interpretativa deve-se aos avanços do conhecimento atual. Éramos, no
passado, como dois pobres judeus da história, que só podiam mudar a camisa uma vez por
semana. Atualmente já somos como o rico comerciante sobre quem os pobres judeus
afirmam com admiração, que muda a camisa diariamente ou até duas ou três vezes ao dia.
E, no futuro, seremos talvez - continuando a mesma história - como o banqueiro
Rothschild, que continuamente tira a camisa e põe uma nova, tira e põe, sem interrupção. E
assim como progredimos e progrediremos em relação à quantidade de interpretações que
podemos dar, também progrediremos em relação á qualidade, ao saber que, quando e como
interpretar. Podemos supor, portanto, que o futuro progresso do conhecimento psicológico
em geral e do conhecimento específico dos sucessos internos do paciente dentro da situação
analítica dar-nos-á a possibilidade de intensificar sempre mais e também de acelerar o
processo da transformação psicológica.
Isto depende, evidentemente, não só da ampliação do nosso conhecimento, mas também da
sua assimilação, isto é, da nossa capacidade de compreender e reconhecer o processo
inconsciente que jaz em cada frase do paciente, em cada movimento mental, cada silêncio,
cada mudança de ritmo e voz, e cada uma de suas atitudes. A microscopia psicanalítica a
que acabo de aludir - a que, em principio, existe desde Freud, mas sem ter encontrado até
agora o desenvolvimento sistemático e pleno que lhe corresponda - impor-se-á, creio,
pouco a pouco como matéria e disciplina específica, tanto nas investigações como também
no ensino analítico, e será um meio importante para a compreensão precisa e rápida do
material dos pacientes. A microanálise e a macroanálise - ou seja, a análise integral
("metapsicológica") de cada detalhe e de toda situação, de cada expressão e de todo estado,
de cada complexo e da estrutura total - desenvolverão muito e facilitarão a intervenção
sempre mais exata e eficaz do analista, capaz de aplicar a alavanca motora no ponto em que
deve mobilizar-se ou integrar-se a situação psicológica principal do momento em questão.
Progredindo a capacidade técnica, também serão mais eficazes as análises didáticas e os
analistas de amanhã trabalharão melhor que os de hoje, assim como estes trabalham melhor
que os de ontem.
Termino aqui, embora minhas previsões para o futuro tenham ficado um pouco truncadas.
Talvez voltarei em outra ocasião a este vasto tema: os múltiplos caminhos da investigação
técnica a seguir e os vários fins a alcançar. Espero, por outro lado, ter transmitido, em
linhas gerais, em que consiste a técnica psicanalítica e em que princípios se baseia.

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