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A MÁQUINA DE FRAGMENTOS, a

construção da arquitetura através dos primeiros


instrumentos óticos.

A MÁQUINA DE FRAGMENTOS,
a construção da arquitetura através dos primeiros instrumentos óticos.
A domesticação da visão. 1

Fernando Freitas Fuão

1
“Não acreditamos que a verdade continue sendo verdade depois de ser retirado o véu.” (Nietzsche)
A elaboração de uma teoria dos fragmentos, dos fragmentos fotográficos, passa
pela formação da imagem na câmara escura. A imagem fotográfica é precedida
por toda uma estética da visão: uma moralidade higiênica de mais luz que orienta
e conduziu durante séculos toda a história das práticas pictóricas e arquitetônicas.
No quatrocentos, foram dados os primeiros passos na construção de uma
máquina de fragmentos da representação. Com seus hábeis olhos, os arqueiros
italianos perfuraram o mundo medieval, derrubaram a pirâmide e inverteram o
sentido do cosmo-mundo. Os símbolos que conectavam o acima-abaixo em um
eixo vertical foram substituídos pelo eixo horizontal da representação em
profundidade. Através dos buracos, e das janelas, projetaram novos horizontes
livres de obstáculos.

Para Edmundo Couchot, o espaço das relações homem/imagem/Deus, com os


góticos, podia ser representado metaforicamente por um cilindro vertical, onde a
base correspondia ao homem e a outra extremidade a Deus, A função da imagem
era então não apenas representar Deus, mas evocar sua palavra que se
transmitia pela escritura, de figurar o invisível e de conduzir ate ele. A profunda
mudança introduzida no Renascimento reduziu a seção do cilindro a um ponto W,
transformando o cilindro em dois cones opostos unidos por seus vértices. No
universo visual, esse ponto corresponde ao orifício da pupila (o “piñole” da
câmara obscura ou a objetiva da atual câmara fotográfica). Ele condensa o germe
da luz que emana dos objetos e a reparte sobre o fundo da retina, a base do
pequeno cone, transformando assim em imagem o olho do pintor da perspectiva
moderna. A singularidade desse ponto 'X', é justamente passar do global ao local,
do universal ao particular.2

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Câmaras escuras, espelhos, miras, vedutas, e todo tipo de instrumentos óticos
foram empregados freqüentemente e seu uso foi tão indispensável quanto o uso
do próprio pincel, no meio artístico da época. Ainda que a história da arte oculte
esse fato na maioria das vezes, eles articularam todo o espaço da representação
desde o Renascimento, do mesmo modo que a fotografia constitui um modo de
ver e de construir o mundo.
A perspectiva de ciclope foi o procedimento pelo qual os florentinos aprenderam a
dominar o campo da visão profunda no mesmo instante em que lhes permitiu
perfurar o mundo. A história da câmara escura se entrecruza com a própria
formação da perspectiva, sendo o seu próprio instrumento de investigação e de
difusão. A representação da arquitetura em perspectiva pode ser compreendida
mais facilmente se estivermos familiarizados com a câmara escura.

A Camara escura como definição, não é mais do que uma caixa fechada, ou um
compartimento com um pequeno orifício (piñole) o qual permite a passagem da
luz, que se projeta no fundo da caixa, também chamado Plano da Pintura.
Leonardo da Vinci assim definiu: “Digo que se um compartimento tem diante de
si uma fachada de um edifício ou praça, ou bem uma campina, iluminada pelo sol
e que se no lado da casa que não vê o sol abrimos um orifício circular, todos os
corpos iluminados projetarão suas imagens através de tal orifício. No interior da
habitação e sobre a parede oposta que deve ser branca. Aí apareceram ao ponto
de cabeça para baixo. E se abrires orifícios semelhantes em outros lugares da
parede, obterias por cada um o mesmo efeito.” 3
3
As primeiras referencias que se tem desse aparelho é atribuído aos chineses, que
já conheciam e usavam desde o século V ac, mas foi Aristóteles, durante IV a.c.,
quem primeiramente descreveu a totalidade da ocorrência, do efeito da câmera
escura, quando ele observou durante um eclipse solar varias imagens de meias
luas que se formavam no chão devido aos pequenos buracos que se formavam
pela trama das folhas das arvores. Posteriormente, no século X, o que seria uma
das maiores influencias sobre o mundo cientifico do quattrocentos, foi o Tratado
sobre óptica do físico Alhazen, que fez uma serie de experiências com a formação
da imagem. Roger Bacon no século XIII mencionava também a utilização da
camara escura para observar eclipses do sol, e também como atividade para
divertir seus alunos. Lentes, óculos e espelhos côncavos já haviam sido
produzidos no inicio do século XIII, entretanto as lentes ainda não haviam sido
colocadas nos pequenos orifícios, ou no piñole de uma camara escura. 4

Durer, Veduta

Artistas como Brunelleschi, Alberti, Durer e Leonardo utilizaram instrumentos


óticos como espelhos, lentes, miras, câmaras escuras para construir suas
perspectivas. Na arte ocidental, durante quase quatrocentos anos, pelo menos, a
câmara dominou a experiência de olhar. Canalleto, Vermeer e muitos outros
artistas a utilizaram e naturalmente ficaram fascinados pelo que ocorria em seu
interior.5

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Os termos “perspectiva” e “ótica”, até então, tinham o mesmo significado, se
constituíam praticamente em uma mesma coisa, e só a partir desse momento se
passará a distinguir esses termos: perspectiva naturalis (ótica) e perspectiva
artificialis (propriamente dita).
As câmaras escuras foram de grande utilidade para projetar aquilo que o olho
medieval decididamente não podia ver, porque não exisia: a ortogonalidade em
profundidade. As câmaras escuras são obviamente um aparato ilusionista,
mágico. Naturalmente, com ou sem lentes, obtiveram seu êxito materializando o
imago (imagem formada no buraco da câmara, suspensa, virtual) a custo de uma
fixação do olho e do corpo.6

Os buracos das camaras escuras permitiam ver o mundo mecânico que se opunha
à idolatria religiosa. Permitiam simultaneamente contemplar as leis da
perspectiva e desvelar a realidade medieval. O olho que perfurava em busca da
profundidade da matéria construía a era moderna. Recortar, perfurar era fazer
buracos no mundo, descobrir.
A formação da visão moderna se produziu mediante a utilização sistemática e
imperativa desses instrumentos, permitindo estender a capacidade de
visualização humana; voltando-se, num primeiro momento, para exterioridade do
mundo em rechaço à visão interior. Ao utilizá-los para a construção da
perspectiva, acabaram provocando um distanciamento dos corpos no espaço, não
apenas em relação ao ponto de vista do observador, mas em relação aos próprios
corpos mesmos.
Um distanciamento psicofísico entre o homem e a arquitetura. Eles impuseram
um novo modo de construir a realidade com base as exigências e leis
operacionais dessa “representação em profundidade”.
Tal como observou Leonardo da Vinci “a perspectiva parecerá sem graça, se a
coisa representada não for vista através de um pequeno buraco” e “tanto maior
será o número de coisas vistas por este orifício quanto mais remotas estejam de
tal olho”.7
Enfim, o renascimento havia conseguido racionalizar totalmente no plano
matemático a imagem do espaço mediante uma progressiva abstração da sua
estrutura psicofisiológica, como observou Panofsky8

A estética ocidental depois do renascimento se impregna de uma moral visual no


sentido de superfície e a exteriorização dos corpos, em todos os campos da
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representação e das ciências. Foucault observou este mergulho do olho que parte
das superfícies dos corpos para a profundidade microscópica do interior. O
desfocado, mexido, o incerto, borrado, todos os valores tácteis e cinéticos são
recusados, reprimidos em prol de uma pretensa “objetividade” deste olhar
mumificante.

Peep show, também conhecida como Tavoletas de Brunelleschi

O buraco, e as miras garantiam não apenas um centro correto de visão, mas o


requisito de que a imagem fosse vista com um só olho, com o conseqüente
aumento de realismo. Por exemplo, Brunelleschi utilizou o seu peep show9 para
aumentar o realismo da representação. Seu instrumento colocava o olho do
observador no centro de projeção, dando uma total ilusão de profundidade.
Brunelleschi utilizou o orifício para aumentar o realismo da representação.
O uso do buraco na sua primeira demonstração foi o principal instrumento a
produção da experiência da profundidade que envolvia diretamente a arquitetura,
e pouco importa que Brunelleschi tenha feito o seu peep show in situ, como
indicou Marinetti, ou não. Seu aparelho colocava o olho do observador no centro
de projeção, dando uma total ilusão de profundidade. Evidentemente, a borda do
orifício tinha por objetivo eliminar o campo periférico , ou seja descurvar o espaço
perceptivo e dar-lhe a maior homogeneidade possível à zona focal central, onde a
curvatura é mínima. Essa circunscrição do olhar é condição da geometrização do
campo de visão, e toma como ponto de partida o buraco da câmara. O invento
põe o olho do observador dentro do espelho, justo no ponto virtual do imago,
produzindo assim o efeito de profundidade, de realismo, e destruindo o sentido de
orientação. Jogava o observador dentro da cena, dentro do representado. Algo
muito similar às fotografias estereoscópicas do século XIX.

É certo, como afirma H. Damish, que o dispositivo de Brunelleschi é um dispositivo


que não se parece em nada a uma caixa ótica, e muito menos com a câmara
obscura; é exatamente o contrário, é aberta, móvel, extensível e também funciona
à luz do dia. A tavoleta não se comparava em nada à câmera escura. A imagem que
aparece no fundo do dispositivo, dentro do campo do espelho, não está impressa
nem tampouco reflete a realidade exterior. O dispositivo corresponde, ao contrário,
a um modo de colocação entre parênteses que vai do painel ao espelho, onde o real
fica excluído.
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O impacto do peep show foi ter mostrado através do experimento que uma correta
projeção central, um imobilismo da visão, um entre parênteses, podia ser
confundido com a cena real, se se observasse desde o centro de projeção.
Brunelleschi instaurava a prática do voyerismo, da centralidade da fixação do olhar
no centro, tanto na arte como na arquitetura ou nas ciências
Desde então, toda a representação das imagens passou a formar-se sobre a
metáfora dos buracos provocados pelo olho ou por flechas que lhes permitem ver
e representar essa aparência da realidade que se chamou curiosamente ‘objetiva‘.

Perspectivas, buracos e flechas foram objetos de comparação em alguns escritos


e pinturas no ciclo de artistas do quatrocento. No livro de Michael Kubovy, The
psycology of perspective and renascence art, encontra-se uma análise sobre a
metáfora das flechas na pintura O arqueiro alvejando a São Sebastião, de
Mantegna. A analise centra-se em um detalhe do quadro, no pano de fundo, onde
se encontra um personagem, na janela de uma casa, atingido no olho por uma
flecha perdida de um soldado que está executando São Sebastião, por diversas
flechas. Alegoricamente para Kubovy este personagem, ferido no olho se trataria
de Alberti.
A partir desta pintura, Kubovy vê as flechas como uma metáfora direta da arte da
perspectiva. Mantegna, provavelmente leu o tratado de Alberti, De la pintura e as
suas referências à janela e aos raios luminosos como flechas, para expressar a
gramática da perspectiva. 10

A flecha consistia no vértice da pirâmide visual. A idéia de flecha correspondia


exatamente à metáfora gráfica dos raios visuais que se formam no olho.
A saber, segundo Louis Marin, o trabalho da razão em perspectiva depende de
três elementos: o conhecimento do olho (raio visual, pirâmide visual), a luz e a
distância do olho ao objeto.11
Filareto, o conhecido arqueiro de Sforzinda, no seu Tratado de Arquitetura,
propunha ao arquiteto servir-se da perspectiva, como o arqueiro o faz de um
ponto fixo para alcançar seu objetivo.

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A perspectiva não foi o apenas produto de uma doutrina de acomodação do olho
para podermos ver em perspectiva as representações mas sobretudo em seu
projeto ela deveria constituir-se num fato concreto, real, uma realidade, cujo
papel lhe designou a arquitetura em sua construção.

Deste modo, os artistas passaram a estabelecer uma sintaxe de correspondência


entre o objeto visível, em princípio fora da caixa (o objeto exteriorizado) e seu
correspondente rastro (projeção) no plano da pintura no fundo da câmara (o
objeto interiorizado, capturado em sua virtualidade, imago).

A câmara escura ajudou a retratar o drama do olhar, como expressão mecânica


da verdade na narrativa da pintura. Tanto o olhar exposto no retrato quanto a
perspectiva coincidem com a colocação da imagem no interior, no âmbito do
privado, na privatização da representação.
Como expôs Norman Bryson, "na Europa a representação do olhar procede de um
desajuste do campo visual em dois componentes que nunca se comunicam. O
sujeito da enunciação, que não pode fugir dos limites da janela albertiana, e toda
essa energia ocular passa ao sujeito do enunciado onde ela é retratada no drama
europeu do olhar. Completamente distinta da pintura chinesa, onde a
representação busca sistematicamente tapar essa ruptura, ela (a representação)
acolhe e cativa o sujeito do enunciado, ela contem o corpo do pintor tanto como
do espectador, e o absorve inteiramente seu corpo dentro de uma ordem
simbólica".12
Uma psicologia dos egocêntricos segundo Kubovsky, o ponto de vista individual.
A câmara escura foi a máquina destinada a estimular o ego, no retrato pintado,
assim como posteriormente a fotografia acabaria representando a presença
objetiva desse “eu”, destacado em primeiro plano, isolado, glorificado,
democratizado. Do ‘eu’ retratado no drama do olhar, como expressão mecânica da
verdade da narração.

Simultaneamente, o arquiteto-artista entrou na escola da ótica geométrica a fim


de que a superfície plástica, a exterioridade da arquitetura desempenha-se um
papel de representação similar ao espelho, e pudesse ele mesmo de alguma
forma refletir-se.13

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O arquiteto a partir do renascimento se tornara o observador ideal de suas
próprias cenas: confeccionando-as, como um costureiro, na medida de seu olho
de ciclope, nem mais nem menos.

A cidade ideal é ideal ao olhar do príncipe e do arquiteto, em simultaneidade de


visão.
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O velo de Alberti , ou o buraco que deixa passar a luz (piñole), obviamente não
configuram a realidade tal como se apresenta à visão nua. É um falso
espelhamento, a realidade do espelho ou a do buraco é outra totalmente distinta
daquela que está fora.
A questão que se coloca aqui já não é sómente do refletido, do registrado, ou
recortado; mas do iluminado. O tema do iluminado, a iluminação será motivo de
inquietação durante alguns séculos. Tanto é assim que o conceito de beleza
renascentista estava relacionado diretamente com a higiene visual, que é o
conceito de visibilidade de luminosidade, e a apreensão dos objetos pelo olho, e
do distanciamento.

Será básico para a visão humanista, a ilusão de uma profundidade aplastada na


superfície, na exterioridade da tela. Ilusão esta que carregaremos por séculos, e
que solicitarão continuamente: luz e distancia para que se realize a ilusão
humana do poder.
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Condições para a representação do objeto na câmara obscura: ’distância’ e ‘luz’.
Luminosidade será sinônimo de higiene e expressão de verdade. Limpa a imagem
de todo a subjetividade do narrador medieval, esta passará a responder às três
exigências da civilização tal como as definiu Freud em O mal estar da cultura:
‘limpeza, ordem e beleza’. 15
Assim se casariam Verdade e Limpeza no interior da camara escura.

Dominique Laporte na História da merda, comenta essa relação referindo-se a


cidade do século XVIII e XIX, “A cidade será devolvida ao olhar e se poderá
percorre-la com o olhar sem impressionar o olho ou tampouco corrompe-lo. Essa
assunção do olhar, entretanto não se fará sem uma desqualificação paralela do
cheiro. A primazia do visível é acompanhada dessa conseqüência, que veremos
lançada por Kant, de que, o belo não fede.

Os historiadores ignoram que aí uma história dos sentidos muda de orientação:


da promiscuidade se passa ao pudor e essa mudança não se dá sem que se afine
o olfato, em qualquer caso que sejam sentidos como fedorentas as coisas que
antes, ao parecer, não eram. O que fede pertubava a visão. Mas o mal cheiro que
se suprime do campo do visível e se consagra ao oculto, longe de desaparecer, de
apagar-se, passa a inscrever-se positivamente numa economia do visível” 16

Buracos, frestas e fendas, reflexos, objetivas têm a função de secionar e afastar a


realidade no intento de representa-la. Projetam um determinado tipo de

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arquitetura no qual o distanciamento é a marca visível da razão destes
instrumentos. A arquitetura, ao tornar-se pictórica, representação, terá suas leis
de representação e construção na gramática da perspectiva, ou seja, nas leis da
ótica da câmara obscura.

LUZ E DISTANCIA.

As flechas da perspectiva feriram gravemente a arquitetura. Cortou o cordão que


a conectava com as demais formas de representação do mundo e com o próprio
corpo humano. Negou-lhe o direito de ser suporte para as demais formas de
expressão, formas da arte. Antes, a arquitetura medieval se auto-apresentava
nas paredes e pisos e não havia limites de representação, se apresentava
(representava) em seu próprio corpo, enquanto crescia e envelhecia.
A ótica euclidiana construiu uma geometria a partir da suposição de que nosso
campo de visão tem a forma de uma pirâmide ou cone em cuja base está o
objeto visto e o vértice no olho. Arquitetura e pintura, então, caminharam juntas
por uma exigência da ciência ótica do olho, do olho como espelho do cosmos e
casa da alma.17

Através de uma repressão imposta sobre a docilidade, domesticação do órgão


olho, a câmara estabeleceu uma relação de cumplicidade entre a ‘objetiva’
(buraco) e o ‘objeto arquitetônico’, exigindo um distanciamento suficiente para
que a flecha luminosa pudesse cruzar o piñole e projetar-se no fundo da caixa

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como se de um São Sebastião se tratasse. É assim que a arquitetura se exibe e
se santifica através do buraco.
As imagens produzidas pela câmara obscura redobram a realidade, a distância
existente, a luminosidade, em uma eterna reduplicação sempre do mesmo. O
peep show de Brunelleschi, o velo de Alberti, o Tratado de Leonardo e todos os
demais tratados de pintura/perspectiva que vieram em continuação cumpriram a
função de ensinar a escrever as marcas das imagens deixadas nas superfícies de
representação. Por trás das diferenças dos métodos construtivos da perspectiva,
todos se assentavam sobre o mesmo plano de base do discurso que regula,
ordena, reparte, seciona, afasta, projeta os corpos no espaço e que compõe a
escritura da imagem amputada do próprio corpo.
“O espaço do texto e o espaço da figura não procedem de uma única extensão
neutra onde foram inscrever-se marcas às vezes gráficas, às vezes plásticas.
Supõe um espaço receptáculo suscetível de receber indiferentemente texto e
figura: o espaço geométrico.”18

A perspectiva foi proposta como instrumento de interpretação e controle da


realidade pela razão e sua mais óbvia função foi a racionalização do espaço, como
assinalou Panofsky.19 A perspectiva é uma abstração teórica e fez com que algo se
perdesse e algo se ganhasse, a princípio o que se ganhara era emocionante, mas
lentamente se percebeu o que se havia perdido e uma dessas perdas era
justamente a representação da passagem do tempo. Ela detém seu fluxo, o homem
abandona a arquitetura como livro, escolhe o papel da história para demonstrar o

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valor do tempo que perdeu. Nada melhor para assinalar a passagem do tempo do
que as flechas do relógio.
O prejuízo da representação que se pretende realista é a fragmentação do mundo

NOTAS

Esse texto foi produzido entre os anos e 1987-1990, e faz parte da tese de doutorado do autor,
Arquitectura como Collage, defendida na Escola Tècnica Superior d’Arquitectura de Barcelona,
Universitat Politècnica de Catalunya, 1992. O subtítulo A domesticação da visão foi incorporado
em 2014, ao estudar "arquitetura e domesticação'.
Sobre a teorização da câmara obscura, oferece interesse a interpretação de Edmund Couchot, no
artigo “Imagens, do ótico ao numérico”, Paris, 1988. “P. 49. Frances titulo
Leonardo da Vinci, Tratado de Pintura, Madrid, 1976, p. 129.
Sobre a história da câmera escura recomendo John Hammond. The camera oscura, a chronicle,
Bristol, 1981. Gian Piero Brunetta, I sentiei luminosi, storie di profeti, viandanti, pellegrini e
cavalieri dell luce, em Le lanterna magiche. Padiova. 1988
Sobre os diversos tipos de instrumentos óticos utilizados para a fabricação de pinturas em
perspectivas veja-se: Martin Kemp, The science of art, New Haven and London, 1990, em especial
o capítulo IV.
Com referência à perspectiva do renascimento, uma distinção que Kepler faz nos ajuda a
distinguir certos pontos essenciais sobre a verossimilhança da perspectiva Albertiana e a produção
das imagens nas câmaras escuras com relação à Arquitetura. E talvez colocar em relevo a
importância do imago no discurso da era do virtualismo que se aproxima. Pintura e imago podem
ser ditas imagem real e virtual respectivamente. A imagem virtual é chamada assim pela sua não
realidade, no sentido físico, isso é evidente na imagem no espelho, a qual não se pode tocar com
a mão. Para Kepler, imago era justamente o ponto em que se formava a imagem no orifício da
câmara (piñole). O imago é efêmero e a pintura é tangível, e ambos pertencem ao mesmo
fenômeno visual. Segundo T. Kaori Kitao, Imago and Pintura perspective, câmera obscura and
Kepler’s optics, em AAVV, “La prospettiva rinascimentale. Codificacione e transgressioni. Atti Del
convegno internacionale”. Firenze, 1980, p 499-510.
Leonardo op. cit.; p. 383 e 146.
Erwin Panofsky, “A perspectiva como forma simbólica” 6a. edição, Barcelona, 1991, p. 47.
Peep show: expressão utilizada por Kubovy para designar a tavoleta construída por Brunelleschi
(1377-1446. A bibliografia sobre a tavoleta de Brunelleschi é bastante extensa e controvertida
quanto à forma do objeto. Me remeto aqui às mais significativas e que aportam uma interpretação
original em relação aos demais: Hubert Damish, La fissure, p. 30-36, Francesco Gurrieri, La ville
de Brunelleschi, p. 57-151, Giorgio Vasari, Vie de Brunelleschi, p. 152-164, na AAVV La nascence
de l’architecture moderne, Fontenay-Sous-Bois, 1980, J. F. Lyotard, Discurso, figura, 1974.
Michael Kubovy, The psycology of perspective and renascence art, Cambridge, 1986, veja-se
especialmente sobre este tema as p. 1-17.
Marin, Louis. Détruire La peinture. Paris , p.60
Bryson, Norman. Herméneutique de la perception, em Les Cahiers Du Musée National D’art
moderne, n.21, setembro 1987, p.116
O filme O contrato do desenhista de Peter Greenaway trata sobre olhar através de vedutas, velos
eburacos no século XVIII.
Veja-se Da Pintura, Alberti.
Freud
Laporte, Dominique. Historia de la mierda. Valencia.1988, p.24
A arquitetura e a pintura proporcionaram os instrumentos á astronomia, sobre essse aspecto esta
o trabalho de Werner Oechsling, Architecture, perspective, and helpful gesture of geometria, em
Daidalos n.11, marz 1984, pp.39-54.
Lyotard op. cit.p.173
“A perspectiva é por natureza uma dupla arma; por um lado oferece aos corpos o lugar para se
despregar plasticamente e mover-se mimicamente, mas por outro oferece à luz a possibilidade de
extender-se no espaço e diluir os corpos pictoricamente; procura uma distância entre os homens
e as coisas, ‘o primeiro é o olho que vê, o segundo, o objetivo visto, terceiro a distância
intermediaria’ como disse Dürer).

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