Você está na página 1de 2

Anotações de Técnicas do Observador, de Jonathan Crary

 Questionamento da ideia tradicional de que a pintura e as artes modernistas se


desenvolveram "de fora" do establishment visual, que teria sido cada vez mais
marcado pelo realismo após a invenção da fotografia. Essa ideia pressupõe uma
estabilidade do observador, que, a-histórico, seria capaz de notar a ruptura em
comparação com o realismo. Para Crary, o que permitiu tanto o modernismo
como o realismo foi algo anterior, datado do início do século XIX - algo
marcado pelo surgimento de inúmeros instrumentos óticos que representaram a
intersecção de filosofia, ciência, estética e forças socioeconômicas. A concepção
de Crary se opõe ao determinismo científico que vê os aprimoramentos como
causa de mudanças específicas; o que há é uma sobredeterminação em que a
tecnologia é apenas um dos elementos decisivos.

 "A modernização é um processo pelo qual o capitalismo desestabiliza e torna


móvel aquilo que está fixo ou enraizado, remove ou elimina aquilo que impede a
circulação, torna intercambiável o que é singular." P. 19

 Com base em Baudrillard, para quem a modernidade está ligada à capacidade de


grupos recém-chegados ao poder de superar o exclusivismo dos signos com uma
proliferação de signos sob demanda (imitação, cópia, falsificação,
reprodutibilidade), Crary aponta para o potencial da fotografia e de técnicas
correlatas de industrialização para uma ruptura sistêmica e para a formação de
uma nova economia cultural de valor e troca (e não como continuação da
pintura)

 Antes da fotografia, o estereoscópio e outras tecnologias já haviam serializado e


"objetivado" a visão; de modo similar ao panóptico, os desenvolvimentos
filosóficos, políticos e econômicos do início do século XIX começaram a
normatizar o olhar (ancestrais do espetáculo debordiano). Há, ainda, uma
desvinculação entre visão e tato (ou entre visão e o que é mais próximo,
palpável), com a autonomização do olhar diante de referentes abstratos ou sem
relação imediata com o observador

 A câmara escura inaugura a indistinção entre natureza e representação, realidade


e projeção. O que passa a haver é o binômio a priori imagem/objeto. Com ele,
surge uma nova subjetividade, que se estabelece pelas relações estabelecidas
entre um sujeito privatizado (dentro da câmara, metafísica da interioridase,
distanciamento do mundo) e o exterior que pode ser separado. Outro efeito foi a
descorporificação do observador (cisão entre corpo e olhos). Por isso, há um
ocultamento discursivo do sujeito que observa e que está efetivamente fora do
que é observado. Ao mesmo tempo, há a criação de um espaço interior de auto-
observação (o eu que observa ao eu se observando) que permite uma
autodisciplina para que o eu se conforme a um dado conjunto de ideais.

 A câmara escura privilegia a visão, mas o que está em jogo é uma sensibilidade
prévia e que independe de um sentido em especial; não se trata de uma história
da visão, mas da formação de uma postura diante do mundo. Até o surgimento
do estereoscópio, havia uma concepção quanto à fungibilidade dos sentidos (tato
e visão), que não funcionariam por si, mas a serviço de uma racionalidade
centralizadora (um "espírito" ou uma alma)

 No século XIX, já há outra concepção sobre o que se vê. Goethe usa a estrutura
da câmara escura (antes sede da cisão entre corpo subjetivo e visão objetiva)
para refletir sobre "cores fisiológicas" que, manifestações da própria estrutura do
olho, são eminentemente subjetivas. Essa noção seria tanto produto como
produtora da modernidade e decorreria de uma interiorização do estudo da visão
(estruturas oculares, e não mais fenômenos ópticos). Há uma reversão (ou uma
integração, um achatamento) da separação inicial entre interior/exterior (cor
atópica). Não há hierarquia entre o sujeito e o ambiente - do que resulta que,
dada a possibilidade de erro interpretativo, há a possibilidade de criação de
realidades objetivadas puramente em função do funcionamento fisiológico do
olho (concepção bastante diferente das noções antigas de ilusão/caverna de
Platão). Se com a câmara escura havia uma concepção de objetividade pura
alheia ao observador, no século XIX passa a haver uma objetivação do subjetivo.

 Herbart, a pedagogia e a temporalidade do fenômeno da visão (percepções


sucessivas) como desdobramento da necessidade de controle e vigilância do
sujeito no tempo (como na disciplina do trabalhador assalariado do século XIX)
(p. 103)

Você também pode gostar