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268 Resenhas de Traduções

Vladimir De areia. Estragon De Menino, completa o elenco dos


folhas. Silêncio” (p. 120). personagens da peça), em que a
E, como já dito, a ausência repetição dos pronomes e a asso-
de intriga e a presença cênica dos nância com o verbo ressalta, por
personagens maltrapilhos e tru- contraste, o processo de desagre-
anescos de Vladimir e Estragon gação da realidade. Assim em
são suportadas apenas pelo tênue francês: “Vous voulez vous en dé-
fio da expectativa de um compro- barrasser?”. Enquanto a tradução
misso perpetuamente adiado com proposta desarticula parcialmente
Godot e expresso por um refrão esse efeito: “O senhor quer se li-
que se repete ao longo dos dois vrar dele?” (p. 63 e 64).
atos: “Vamos embora. –A gente Para terminar, cabe lembrar
não pode. –Por quê? –Estamos um episódio trágico ligando a
esperando Godot. –É mesmo.” obra beckettiana ao teatro brasi-
Claramente, uma tradução leiro. Morreu aos 48 anos, em
tem sempre as suas perdas (e 1969, Cacilda Becker, em conse-
também os seus ganhos), em par- quência de um derrame cerebral
ticular quando a língua, no tex- ocorrido durante uma representa-
to original, tem menos um valor ção de Esperando Godot, numa
significativo do que significante particular versão criada por
ou, pelo menos, quando as duas Flávio Rangel. Encenador brasi-
funções se integram por uma pre- leiro que seria também tradutor
cisa opção estética e ideológica. da obra na edição publicada em
O que acontece, por exemplo, na 1976 pela Abril Cultural.
pergunta reiterada de Vladimir Andrea Santurbano
ao Pozzo (que, com Lucky e o UFSC

Recentemente, o Brasil ga-


Hardy, Thomas. A bem-amada: nhou mais uma tradução de um
esboço de um temperamento. romance de Thomas Hardy, A
Tradução, introdução e notas de bem-amada: esboço de um tem-
Luís Bueno e Patrícia Cardoso. peramento, feita por Luís Bueno
São Paulo: Códex, 2003. (Série e Patrícia Cardoso e publicada
Grandes Letras). pela Editora Codex em 2003. A
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edição apresenta um ensaio in- Cinco anos mais tarde e depois


trodutório dos tradutores, pro- da publicação do último romance
fessores da UFPR, em que eles que escreveu, Jude, the Obscure
estabelecem o lugar de Hardy na (1895), Hardy retomou o texto de
literatura inglesa e oferecem um The Pursuit, revisou-o extensiva-
panorama contextual da época e mente e o publicou em livro em
da obra. Ao fim do ensaio, apre- 1897 sob o nome de The Well-Be-
sentam também uma versão em loved: a sketch of temperament.
português do poema “The Well- Definido pelo próprio autor
Beloved” de Hardy que, além do como um romance “de natureza
título, compartilha a temática da ideal e subjetiva, e francamente fan-
busca inatingível por um ideal tasiosa” (Prefácio, minha tradução),
amoroso. Além do ensaio, os lei- The Well-Beloved pode ser conside-
tores contam com um “Mapa dos rada como a obra mais experimen-
lugares de A bem-amada” no fi- tal de Hardy e, até os anos 1970,
nal do livro, representando a ilha era vista pela crítica, influenciada
de Slingers. talvez pela categorização da obra
Há, porém, outra versão bra- completa feita pelo próprio Hardy,
sileira deste romance, de autoria como um romance menor.
de Xavier Placer, datada de 1944 A história se desenvolve en-
e reeditada pela Itatiaia (Belo tre a ilha de Slingers (inspirada
Horizonte, 2006), contando com na ilha de Portland) e Londres e
uma “Nota do tradutor” no iní- pode ser vista como um Kunstler-
cio do livro. Xavier Placer foi roman (romance sobre a vida de
professor, bibliotecário e escritor um artista), cujo foco narrativo é
niteroiense, falecido em 20081. centrado na vida do escultor Jo-
Nesta resenha, consideraremos celyn Pierston e sua busca inces-
apenas a edição de 2003, utili- sante por um ideal de belo, asso-
zando a tradução de Placer ape- ciado tanto à sua arte quanto às
nas para eventuais comparações. mulheres por quem se interessa.
Thomas Hardy, após a publi- Esta busca, entretanto, se mostra
cação de Tess of the D’Urbervilles inalcançável, pois a bem-amada
(1891), começou a trabalhar em se “aloja” apenas de maneira tem-
uma história para publicação porária em cada mulher por quem
serial com o título de The Pur- Pierston se sente atraído. Eventu-
suit of the Well-Beloved (1892). almente, essa “forma de muitos
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nomes”2 passa a se repetir e a se man of sixty”, a história se volta


corporificar em três gerações de para a incorporação da bem-ama-
mulheres (mãe, filha e neta) por da nas gerações de Avice Caro
quem Pierston se apaixona, res- e aqui, Pierston, ao se lamentar
pectivamente, aos vinte, quarenta por não perceber a bem-amada
e sessenta anos, sem nunca conse- na primeira Avice agora falecida,
guir materializar essas relações. tenta corrigir os erros do passa-
De início, o romance começa do ao se voltar para a filha que é
por tratar das angústias artísticas até mais bela que a mãe, mas não
e sentimentais por que passa o possui a mesma graça e intelecto.
jovem escultor em ascensão, que Mais uma vez, esta relação, entre
tenta lidar com as próprias ideali- Pierston e a segunda Avice, acaba
zações em sua busca por uma ex- sendo malograda para, vinte anos
pressão artística que o satisfizes- depois, a bem-amada se alojar na
se. Intimamente relacionados, o filha desta, a terceira Avice, uma
ideal de belo artístico e feminino, jovem bela e refinada que parece
em Pierston, se tornam continua- ser o resultado mais bem acabado
mente motivo de frustração para do ideal de bem-amada. Porém,
o escultor que nunca consegue al- o tempo, que aqui foi aperfeiço-
cançar nem um nem outro ideal. ando as gerações de bem-amadas
As referências às divindades que para epitomar toda sua maestria
representam a beleza e o femini- na terceira Avice, age em movi-
no (Afrodite, Juno, Freyja, As- mento contrário com o próprio
tarté) são abundantes e Pierston, Pierston, agora um “jovem” de
que se julga um devoto delas, sessenta anos, rejeitado, princi-
acredita que sua falha em apreen- palmente, pela diferença de ida-
der a bem-amada é uma espécie des. Na parte final, a reflexão
de vingança dessas divindades sobre o tempo assume um papel
para com o escultor, incapaz de importante no romance que pas-
representá-las em toda sua gran- sa a centrar nas ruminações de
diosidade. Pierston sobre o passado e sobre
Mas a partir da segunda par- a sua condição atual: sejam elas
te do romance, dividido em três o conflito entre a idade que sente
partes ironicamente intituladas de ter e a que realmente tem ou a
“A young man of twenty”, “A consciência sobre as escolhas er-
young man of forty” e “A young radas tomadas no passado.
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Em meio ao caráter reminis- chard Crashaw, Thomas Wyatt e


cente e subjetivo do romance, Shakespeare que Hardy apresen-
não deixamos de perceber nele ta, respectivamente, no início do
muitas das características pelas romance e em cada uma das três
quais Hardy é conhecido, como partes também são apresentadas
os detalhes descritivos da ilha de em inglês, com a tradução em
Slingers, cuja paisagem perene nota de rodapé. Assim como no
contrasta com as aparentes trans- original, também em português
formações sofridas por Pierston, são mantidas as expressões em
e da vida da alta-sociedade de francês e latim (i.e. “trouvaille”,
Londres, além do uso do dia- p. 88, e “apologia pro vita mea”,
leto, de frase longas separadas p. 56) com as respectivas tradu-
por vírgula ou ponto-e-vírgula, ções e/ou explicações no rodapé.
de palavras de raiz latina pouco A tradução dos diálogos re-
frequentes na língua inglesa e de produziu a oralidade quando esta
diversas alusões e referências a ocorria no texto original e, acima
outras obras e autores. de tudo, optou pela utilização de
A tradução de Bueno e Car- um português não padrão quan-
doso notadamente se presta a do, no original, encontramos fa-
tentar transpor para o português las com traços dialetais. É o caso
estas marcas do estilo de Hardy mostrado abaixo, em que dois
e, em conformidade com esta nativos de Slingers conversam
proposta, a tradução não apaga sobre as personagens principais,
as marcas culturais do texto ori- Jocelyn e Avice :
ginal, optando por usar também ‘Who was that young kimberlin?
em português algumas palavras He don’t seem one o’ we.’
dialetais empregadas por Hardy
‘Oh, he is, though, every inch o’
como “kimberlin” (2003, p. 35), en. He’s Mr. Jocelyn Pierston, the
nome dado aos estrangeiros à ilha stwone-merchant’s only son up at
de Slingers, ou “lerret” (2003, East Quarriers. He’s to be married
p. 44), um tipo de barco local, to a stylish young body; her mo-
solidamente construído para en- ther, a widow woman, carries on
the same business as well as she
frentar o mar bravo da costa de
can; but their trade is not a twen-
Portland. tieth part of Pierston’s. He’s worth
Pelo mesmo caminho, as ci- thousands and thousands, they say,
tações de poemas de Shelley, Ri- though ‘a do live on in the same
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wold way up in the same wold hou- O tempo tá virando. (2003, p. 38-
se. This son is doen great things in 39, grifo meu)
London as a’ image-carver; and I
can mind when, as a boy, ‘a first Esse diálogo é bastante re-
took to carving soldiers out o’ bits presentativo do tipo de situações
o’ stwone from the soft-bed of his que os tradutores tiveram que
father’s quarries; and then ‘a made lidar, como a não concordância
a set o’ stwonen chess-men, and verbal e pronominal (“He don’t
so ‘a got on. He’s quite the gent
in London, they tell me; and the
seem one o’ we”), expressões
wonder is that ‘a cared to come coloquiais (“every inch o’ en”,
back here and pick up little Avice “stylish young body”), oralida-
Caro--nice maid as she is notwi- de (“hallo”) e marcas fonéticas
thstanding. . . . Hallo! There’s to (“stwone” e “wold” para “sto-
be a change in the weather soon.’ ne” e “old”) que aqui ocorrem
(2000, p. 16, grifo meu)3 em maior concentração. Como
— Quem é aquele moço kimberlin? podemos observar, os tradutores
Não parece que é dos nosso. usaram alguns desvios da norma
— Ah!, pode crê, é sim. Cada padrão do português para repre-
pedacinho. É o senhor Jocelyn sentar o dialeto rural de Wessex,
Pierston, filho único do vendedor quais sejam, a não concordância
de preda lá de cima. Tá pra casar verbal e nominal (“dos nosso” e
com um pedaço de mulher. A mãe
“eles vive”) e outros solecismos
dela, uma viúva, trabalha no mes-
mo ramo, mas seu negócio é vinte como “veia”, “preda”, “cum”
vezes menor do que o do Pierston. e “esculpidor”. A oralidade é
Ele vale milhares e milhares, di- marcada pelas expressões “pode
zem, mas eles vive do mesmo jeito crê”, “cada pedacinho”, “pedaço
de sempre, na mesma casa veia. de mulher” e “fazendo bonito”.
Esse menino tá fazendo bonito em
Conquanto bem sucedidos na
Londres como esculpidor; e eu
lembro bem que quando ele era tradução dos aspectos dialetais e
criança já fazia soldados cum uns de oralidade dos diálogos, vale
pedaço de preda que sobrava da observar que os tradutores op-
pedreira do pai dele; e ele fez um taram por não traduzir o topôni-
jogo intero de xadrez com preda. mo “East Quarriers” ou mesmo
Me falaram que ele é importan-
reproduzi-lo em inglês, deixando
te lá em Londres; o que espanta
é que ele se interessou em voltar apenas “lá de cima”. “East Quar-
pra cá pra casar com a Avice Caro riers” se refere a uma região es-
– boa moça que ela é, mas... Ó! pecífica da ilha da Slingers, re-
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presentada no mapa ao final do tas que apontam e muitas vezes


livro e foi utilizada em outra ins- explicam as referências ao leitor
tância na tradução (Cf. 2003, p. brasileiro. Como exemplo, po-
257). Não chega a ser uma falha demos citar a nota 24 (p. 106)
e nem compromete a tradução, referente a um verso de Lycidas
mas a supressão de “East Quar- de John Milton ou as notas 28
riers” no texto traduzido acaba (p. 125) e 31 (p. 128) que cha-
tornando-o mais fluente em meio mam a atenção para as alcunhas
aos recursos não padrão utiliza- de Afrodite, “Tecedora de En-
dos e, também, um pouco menos ganos” e “Desejo do Mundo”,
“estrangeiro”. respectivamente.
Já quanto ao uso de palavras A característica do estilo de
de origem latina, sempre que Hardy de usar períodos longos,
possível, os tradutores se va- separados por ponto-e-vírgula,
leram da palavra com a mesma foi a única questão de tradução
raiz etimológica em português, diretamente abordada pelos tra-
como foi o caso de “munificên- dutores no ensaio introdutório.
cia” (p. 43)/ “munificence” (p. De acordo com Luís Bueno e
19) e “propinquidade” (p. 124)/ Patrícia Cardoso: “Os períodos
“propinquity” ( p. 71). Tal como longos, cumulativos, que esta
em inglês, estas palavras não são tradução se esforçou por repro-
de uso comum em português e duzir, especialmente nas descri-
passam para o texto traduzido a ções sempre breves que o roman-
preocupação que Hardy tinha de ce traz, contrastam com a leveza
empregar um vocabulário erudito dos diálogos e fazem o leitor par-
e latinizado. ticipar ativamente do ambiente
Esta era uma das razões por composto por múltiplas forças”
que muitos críticos consideravam (2003, p. 13). No entanto, ape-
o estilo de Hardy “pedante” e nas nos dois primeiros capítulos
“pomposo” (Cf. Salter, 1973). já temos exemplos que vão de en-
Outra razão diz respeito ao uso contro ao afirmado acima.
bastante frequente de referências Na primeira ocasião, temos
à literatura, à história da arte e a uma frase de média extensão em
mitos de diversas tradições. Nes- que o ponto-e-vírgula (antes de
te quesito, a tradução de Bueno but), sinal de pontuação bastan-
e Cardoso apresenta diversas no- te usado por Hardy, é substituí-
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do por um ponto final (antes de dizer a verdade, sua afeição por ela
mas), aparentemente sem nenhu- era mais de amigo do que de na-
morado. Ele de modo algum estava
ma justifica que comprometesse
certo de que a idealização migra-
o texto traduzido: tória e indefinível que chamava de
At his leaving he repeated that if seu Amor, que, desde sua infância,
Avice regarded him otherwise than voara de forma humana para forma
as she used to do he would never humana um número indefinido de
forgive her; but though they parted vezes, estava prestes a encontrar
good friends her regret at the inci- morada no corpo de Avice Caro.
dent was visible in her face. (2000, (2003, p. 28, grifo meu)4
p. 8-9) Pierston retreated as quickly as he
Ao deixá-las, repetiu que jamais could. He grieved at the incident
perdoaria Avice se ela passasse a se which had brought such pain to
lembrar dele de modo diferente do this innocent soul; and yet it was
de costume. Mas, ainda que se des- beginning to be a source of vague
pedissem como bons amigos, o arre- pleasure to him. He returned to
pendimento acerca do incidente era the house, and when his father had
visível no rosto dela. (2003, p. 26) come back and welcomed him, and
they had shared a meal together,
Em seguida, no último pará- Jocelyn again went out, full of an
grafo do primeiro capítulo, cuja earnest desire to soothe his young
última frase é bastante longa, 109 neighbour’s sorrow in a way she lit-
palavras no original, a tradução tle expected; though, to tell the tru-
th, his affection for her was rather
recorreu a várias interrupções
that of a friend than of a lover, and
com pontos finais, onde o origi- he felt by no means sure that the
nal apresentava ponto-e-vírgula: migratory, elusive idealization he
Pierston retirou-se tão rapidamente called his Love who, ever since his
quanto pôde. Ele lamentava que o boyhood, had flitted from human
incidente houvesse trazido tamanho shell to human shell an indefinite
sofrimento àquela alma inocente. number of times, was going to take
E, no entanto, aquilo começava a up her abode in the body of Avice
ser uma fonte de vago prazer para Caro. (2000, p. 10, grifo meu)
ele. Retornou à casa, e, depois que Poderíamos citar outros exem-
seu pai voltou e lhe deu as boas-
vindas, e eles jantaram juntos, Jo-
plos significativos, seja na pági-
celyn saiu novamente, cheio de um na 33 ou 252, em que a tradução
desejo sincero de aliviar a tristeza adaptou a pontuação do original.
de sua jovem vizinha, de um modo O principal problema deste tipo
inesperado para ela. Porém, para de adaptação é que quando Har-
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dy opta por usar ponto-e-vírgula exata de dezenas de milhares de


em seu texto, e não o ponto fi- outras pessoas, em cujas circuns-
tâncias não havia nada de especial,
nal, enfatiza que as orações,
distinto ou pitoresco; ensiná-la a
gramaticalmente independentes, esquecer todas as experiências de
possuem um sentido bastante co- seus ancestrais; abafar as cantigas
nectado entre si. Quando os tra- locais com partituras de canções
dutores optam por usar o ponto adquiridas na elegante loja de mú-
final no texto traduzido, esta co- sica de Budmouth, e o vocabulário
local, com uma língua-madrasta,
nexão entre os sentidos das frases
que não pertencia a lugar algum.
se dilui. Além disso, o ritmo da Ela morava em uma casa que teria
prosa passa a ficar mais marcado feito a alegria de um artista, mas
e pausado, enquanto que com o aprendeu a desenhar casas de campo
uso do ponto-e-vírgula, a ideia dos arredores de Londres a partir de
de “acumulação”, mencionada gravuras impressas. (2003, p. 35)
pelos próprios tradutores, fica He observed that every aim of
mais evidente. those who had brought her up had
Embora os tradutores anun- been to get her away mentally as
ciem que a tradução “se esfor- far as possible from her natural
and individual life as an inhabitant
çou por reproduzir” os períodos of a peculiar island: to make her
longos, ao compararmos ambos an exact copy of tens of thousands
os textos, encontramos diversos of other people, in whose circums-
exemplos na tradução de separa- tances there was nothing special,
ção das frases por ponto final em distinctive, or picturesque; to teach
vez do uso do ponto-e-vírgula. her to forget all the experiences of
her ancestors; to drown the local
O que não quer dizer que não ballads by songs purchased at the
há casos de períodos longos na Budmouth fashionable music-sel-
tradução. O trecho abaixo, que lers’, and the local vocabulary by a
descreve a educação da primeira governess-tongue of no country at
Avice Caro, é um bom exemplo all. She lived in a house that would
de uma tradução bem-sucedida have been the fortune of an artist,
and learnt to draw London subur-
não só quanto à pontuação: ban villas from printed copies.
Observou que o objetivo daqueles (2000, p. 14)
que a haviam educado tinha sido
afastá-la mentalmente, tanto quan- Nesse parágrafo, vemos que
to possível, de sua vida natural e os tradutores foram inspirados ao
individual como habitante de uma usar “abafar” para “to drown”,
ilha peculiar: fazer dela uma cópia “elegante” para “fashionable” e
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“língua-madrasta” para “gover- been subordinated to the said aim.


ness-tongue”, além de, na última (Hardy, p. 4)
frase, evitarem a tradução literal Quanto à história em si, pode valer
de “and” por “e”, usando a con- a pena lembrar que, diferentemen-
junção “mas”. A única ressalva te de todas ou quase todas aquelas
seria a tradução de “peculiar is- cujo interesse é de natureza ideal
ou subjetiva, e francamente imagi-
land” transposta literalmente por nativa, nesta a verossimilhança no
“ilha peculiar”, em que o adjeti- encadeamento dos fatos foi subor-
vo “peculiar” no texto em inglês dinada ao interesse referido. (Bue-
se adéqua mais à acepção de “di- no & Cardoso, p. 20)
fferent from the usual or normal; Quanto ao romance em si, que
special, particular; odd, curious; fique dito entre parêntesis, difere
eccentric, queer”5, isto é, “estra- de todos, ou pelo menos da maior
nho”, “curioso”, “excêntrico” parte do mesmo autor, no qual sua
do que a acepção, compartilhada finalidade é de espírito idealista ou
subjetivo, e absolutamente fantás-
por ambas as línguas, de “que é tico, razão pela qual se sacrificou
atributo particular de uma pessoa à referida finalidade a verossimi-
ou coisa; especial, próprio”6. lhança na ilação dos episódios.
Outra observação a ser feita é (Xavier Placer, p. 16)
que o próprio fraseado do escritor Quanto à história em si, pode valer
chegou a confundir os tradutores a pena observar que, ao diferir de
em alguns momentos. O mais todos os outros romances do au-
problemático, na minha opinião, tor ou da maioria deles, uma vez
ocorre logo no “Prefácio do Au- que o interesse almejado é de uma
natureza ideal ou subjetiva, e fran-
tor”. Reproduzo abaixo o parágra- camente fantasiosa, a verossimi-
fo em inglês, seguido da tradução lhança na sequência de eventos foi
de Bueno e Cardoso, de Placer e subordinada à finalidade referida.
por último uma versão de minha (minha tradução)
autoria para simples comparação:
Este prefácio ao romance foi
As for the story itself, it may be escrito em 1912 por ocasião da
worth while to remark that, diffe- primeira publicação de sua obra
ring from all or most others of the
completa conhecida como “Wes-
series in that the interest aimed at
is of an ideal or subjective nature, sex Edition”. Desta maneira,
and frankly imaginative, verisimi- a expressão “all or most others
litude in the sequence of events has of the series” faz referência aos
outros romances de Hardy, um
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fato que passou despercebido por alguns tropeços. Esta resenha de


Bueno e Cardoso que adaptaram tradução procurou traçar um es-
o trecho para “todas ou quase boço da prática tradutória, tendo
todas aquelas”. Em seguida, os por base a tradução do romance
tradutores também falharam ao A bem-amada. Porém, antes de
observar a regência do verbo ser um rol de erros e acertos da
“to differ”: “differing from... tradução, buscou-se tanto apre-
in...”, levando ao segundo erro sentar um ponto de partida para a
de interpretação neste parágrafo reflexão sobre a prática tradutó-
(“cujo interesse”) e que acaba ria quanto ser um registro de pos-
por comprometer todo o sentido síveis soluções e problemas que
da afirmação de Hardy, que aqui os tradutores literários enfrentam
justifica a falta de verossimilhan- constantemente.
ça da história, um dos postulados Carolina Paganine
da estética realista. UFSC
A tradução de Placer, como
em geral toda a sua tradução do
Notas
romance, produz diversas trans-
formações no texto traduzido,
1. In: http://antoniomiranda.
afastando-o bastante do estilo de
com.br/poesia_brasis/rio_de_ja-
Hardy (i. e. “que fique dito entre neiro/xavier%20_placer.html.
parêntesis”, “ilação”), porém o Acessado em 24/09/2009.
sentido, neste caso, permanece 2. Apropriação que Hardy usa
equivalente ao do original. para se referir à bem-amada, reti-
À diferença da tradução de rada do poema The revolt of Islam
Placer, que resume orações, ele- de P.B. Shelley.
va o registro dos diálogos e su- 3. Hardy, Thomas. The Well-
jeita o estilo do autor inglês ao Beloved: a sketch of temperament
estilo e escolhas idiossincráticas with The Pursuit of the Well-Be-
do próprio tradutor, a tradução loved. London: Wordsworth Edi-
de Bueno e Cardoso tem o mérito tions, 2000.
de ter acertado na escolha de um 4. Em ambas as citações, as
projeto de tradução que privilegia palavras em itálico antecedem a
a recriação de diversos traços do pontuação que difere entre o texto
estilo de Hardy, ainda que haja traduzido e o texto original
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5. Merriam Webster’s 11th


Collegiate Dictionary.
6. Dicionário Aurélio Século
XXI.

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