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DITADURA S/A

Investigação revela graves violações de direitos por empresas cúmplices da ditadura

Por Sérgio Barbo

Como em vários aspectos de seu passado recente, o Brasil tardou a enfrentar questões
referentes à responsabilidade de empresas por violações de direitos humanos durante a
ditadura civil-militar. Essa defasagem histórica tende, porém, a ser agora atenuada.

Em situação inédita, a partir de denúncias de perseguições a trabalhadores relatadas na


Comissão Nacional da Verdade e de ação proposta pelo IIEP Memória Operária, o Ministério
Público abriu um inquérito sobre as violações cometidas pela Volkwagen do Brasil em
cumplicidade com o governo militar, que resultou na assinatura pela empresa do Termo de
Ajustamento de Conduta, em 2020.

Parte da verba indenizatória prevista pelo TAC financiou o projeto A Responsabilidade de


Empresas por Violações de Direitos Durante a Ditadura. Coordenadas pelo Centro de
Antropologia e Arqueologia Forense da Universidade Federal de São Paulo (CAAF/Unifesp), dez
equipes de pesquisa investigaram, por cerca de dois anos, delitos praticados por dez empresas:
Aracruz, Cobrasma, Companhia Siderúrgica Nacional, Cia Docas de Santos, FIAT, Folha de S.
Paulo, Itaipu, Josapar, Paranapanema e Petrobras.

Anunciados no início de junho, os resultados revelam violações de direitos trabalhistas; danos


à saúde em decorrência de trabalhos insalubres; repressão (impedimento de organização de
funcionários e direito à greve), vigilância de trabalhadores e produção de “listas sujas” para
impedi-los de encontrar novos empregos; prisões ilegais e ocultações de paradeiro às famílias;
tortura; violência sexual; morte de trabalhadores; discriminação racial e/ou de gênero.

Entre os crimes contra povos indígenas, quilombolas e/ou camponeses, os dados exibem
esbulho de terras; danos às propriedades e instalações; destruição das lavouras ou produção;
trabalho escravo e/ou infantil; tortura; violência sexual; mortes e desaparecimentos; violações
contra práticas religiosas e culturais; além de indícios de danos ao meio ambiente, como
mudança no caráter das águas, poluição e contaminação dos rios, do solo e do ar,
desmatamento e risco de desertificação.

A cooperação com o estado ditatorial foi lucrativa para as corporações. O Grupo Aracruz
Celulose expandiu seus negócios com incentivos e benefícios do governo – como uma lei
florestal rascunhada pelo Ministro das Minas e Energia Dias Leite, um futuro sócio do
empreendimento – atingindo assim terras indígenas e quilombolas no Espírito Santo. Indígenas
teriam sido deslocados forçadamente pela FUNAI dos territórios em que a empresa atuaria,
para serem confinados na Fazenda Guarani (ao menos 30 Guarani e 11 Tupinikim). Houve
redução e extinção de aldeias e comunidades, além de contaminação de habitantes e do meio
ambiente por venenos. Foram também identificados indícios de perseguições e de violações
de direitos de trabalhadores, e o uso de trabalho análogo à escravidão.

Por sua vez, a Companhia Brasileira de Material Ferroviário - Cobrasma teve conexões
estreitas com a ditadura. Membros da família Vidigal, principal acionista da companhia,
participaram do IPES (Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais) e organizações que apoiaram
financeiramente o golpe de Estado e a Operação Bandeirante, enquanto a empresa construiu
carros blindados para servir à repressão. Funcionários e diretores foram colaboradores ativos
da ditadura, feito o legista do IML Harry Shibata, notório por falsificar laudos de óbitos de
presos políticos torturados. Presidente da Cobrasma, Gastão Mesquita Filho também presidiu
o Banco Mercantil, responsável pelo pagamento de agentes da repressão. A atuação
colaborativa incluía a confecção de listas sujas, o envio de informações sobre lideranças
sindicais e/ou grevistas à repressão, a remessa ao DOPS de lista de candidatos a empregos
para apuro de informações, e a contribuição para a caracterização da greve de Osasco de 1968
como atividade subversiva, abrindo espaço para a prisão massiva e tortura de trabalhadores.

A Companhia Siderúrgica Nacional - CSN, então empresa estatal sediada em Volta Redonda,
Rio de Janeiro, cidade que passou a ter identidade industrial e em 1973 foi declarada “área de
segurança nacional”, cresceu significativamente no período. Teve um papel ativo na repressão
política na região: trabalhadores que se opuseram ao golpe foram desligados da empresa, e
dezenas foram presos nos meses subsequentes, enquanto os sindicatos sofreram intervenção,
com invasão de suas sedes e apreensão de documentos. Ao longo do tempo, a instalação de
um sistema de vigilância de trabalhadores colaborou com muitas prisões, de pessoas depois
submetidas a torturas. Na greve de 1988, a repressão violenta pelos militares que invadiram a
CSN incluiu a morte de três operários. A pesquisa identificou a prática de racismo institucional
na empresa, com a exposição de trabalhadores negros a condições de trabalhos mais
exaustivas e prejudiciais à saúde, e intoxicação por benzeno dos operários de fornos e
coqueria.

No caso Companhia Docas de Santos - CDS, o proprietário foi um dos fundadores do IPES e
participou de elaborações de estratégias desse para suporte ao golpe militar, sendo a CDS uma
de suas financiadoras. O crescimento econômico vivido pela empresa com benesses advindas
do Estado não refletiu em aumento no número de funcionários. Esses ficaram submetidos a
jornadas de trabalho extenuante, exposição a acidentes de trabalho e congelamento de
salários apesar da inflação, além de demissões em massa de funcionários com atuação política.
A CDS manteve um aparato de vigilância e repressão através de seu Departamento de
Vigilância Interna - DVI, com atuação de caráter policial e troca de informações com os órgãos
de repressão, para além dos limites da fábrica. A prática de repressão incluía prisões,
violências e humilhações. O impacto na vida dos trabalhadores resultou em mortes súbitas
(devido ao excesso de esforço no trabalho), suicídios, alcoolismo, depressão e transtornos de
ansiedade.

A implantação da Fiat no Brasil a partir de 1970, em Betim, Minas Gerais, aconteceu com o
oferecimento de favorecimentos econômicos e fiscais por parte do governo. Em contrapartida,
a empresa estruturou um sistema complexo de vigilância sobre seus funcionários, cujas
informações eram repassadas aos órgãos de repressão. O processo contou com a utilização de
agentes policiais em ações repressivas, seja na fábrica ou nos locais de moradia. Há relatos
sobre a existência de um espaço, chamado “sala de corpo de bombeiros”, em que
trabalhadores eram constrangidos a falar, mediante ameaças e agressões. O operário Guido
Leão Santos morreu atropelado quando fugia de repressão policial a mando da empresa.
A Folha de São Paulo se expandiu durante a ditadura tornando-se um grande conglomerado
do setor jornalístico. Sob a administração de Octávio Frias e Carlos Caldeira (fundadores da
rodoviária de São Paulo), a partir de 1962, o grupo adquiriu empresas em dificuldades
econômicas ou que eram perseguidas pelo governo militar, como o jornal Última Hora, a TV
Excelsior e a Fundação Cásper Libero. Frias foi sócio do IPES, enquanto Caldeira tornou-se
prefeito “biônico” de Santos, em 1979. A empresa manteve agentes da repressão, militares e
policiais entre seus funcionários e adotou uma posição favorável ao governo, com sustentação
editorial do regime, autocensura e controle interno das informações a serem divulgadas,
legitimando perante a opinião pública violações graves de direitos humanos pela ditadura – a
ponto de a Folha da Tarde ser considerada o jornal “oficial” do regime. O grupo Folha
colaborou diretamente com os aparatos repressivos, tendo cedido seus veículos para ações da
Operação Bandeirante, que levaram a prisões, torturas e assassinatos. A pesquisa identificou
perseguição a jornalistas, com demissão de alguns, mas por “abandono de emprego” após
serem presos, e desligamento ou realocação de funções em razão de sua atividade política.

A usina hidrelétrica Itaipu Binacional foi criada durante a ditadura militar. Sua construção, a
partir de 1975, promoveu extensas jornadas de trabalho e atuação em condições perigosas,
como a suspensão de trabalhadores em alturas elevadas sem equipamento adequado de
segurança, e acidentes de trabalho, alguns resultando em mortes. Para a realização das obras,
foram estabelecidas vilas habitacionais para a moradia dos trabalhadores, nas quais havia
intenso controle e vigilância. A usina demandou a construção de uma grande represa com
impactos ambientais e sociais, inclusive o deslocamento de aproximadamente 40 mil pessoas,
com soluções especialmente prejudiciais aos grupos mais vulneráveis, e impactos graves sobre
a população indígena Ava-Guarani.

Empresa de agronegócio sediada no Rio Grande do Sul, com filiais em diversas regiões do país,
a Josapar (conhecida pela marca Tio João) adquiriu terras nos estados do Mato Grosso, Goiás e
Pará e desfrutou de benefícios do Estado. Associada ao Banco Denasa de Investimentos, a
empresa promoveu um grave e violento conflito sobre as posses de terras no Pará. O consórcio
constituiu uma “guarda de segurança” composta por pistoleiros que passou a realizar
ameaças, invasão de casas, destruição de plantações, perseguição, tortura, estupro e
assassinato de lideranças. Especialmente entre 1981 e 1984, essa milícia privada contou com o
apoio de agentes do Estado, como policiais militares e agentes do DOPS. Muitas famílias se
viram forçadas a deixar a região. A tática antiguerrilha envolvia sobrevoo de helicópteros sobre
a população, que era alvo de rajadas de metralhadora.

Com atuação em construção civil, engenharia, petroquímica, mineração e metalurgia, a


Paranapanema se tornou um dos principais agrupamentos econômicos do período, sendo
acionista da Aracruz. A empresa manteve acionistas e aliados em cargos de Estado e também
militares entre seus funcionários. Empreiteira da construção da Transamazônica, praticou
esbulhos de terras indígenas, o uso de trabalho indígena em condições análogas à escravidão,
degradação do meio ambiente e graves impactos sobre os modos de vida, além da
disseminação do consumo de álcool e de doenças e a uma desestruturação étnico-cultural,
especialmente dos povos Kagwahiva. Já na construção da BR-174, que ligava Manaus à Boa
Vista, os indígenas do povo Waimiri-Atroari que resistiram à obra foram reprimidos com
violência pelas Forças Armadas – há indícios de que napalm foi jogado sobre a população. A
partir de 1977, a Parapanema passou a operar mina naquele território, participando da fraude
cartográfica em prejuízo dos indígenas.

A Petrobras experimentou um grande crescimento durante a ditadura. A estatal manteve


militares no comando e em outros cargos, instauração de inquéritos contra trabalhadores,
participação em “comunidades de informações” envolvendo o empresariado e a ditadura, e
disponibilização da infraestrutura da empresa para uso pelas Forças Armadas. Um grande
número de trabalhadores foi preso e algumas prisões se deram nas dependências da empresa.
Com frequência, as prisões não eram comunicadas às famílias e as pessoas presas eram
submetidas à tortura. Além de trabalhadores, advogados que representavam empregados e
ex-empregados eram igualmente perseguidos. A equipe identificou a ocorrência de “listas
sujas”, subnotificação de acidentes de trabalho e violação à liberdade sindical, e indicou ter a
empresa responsabilidade por acidentes que geraram graves danos ambientais e atingiram
populações em situação de vulnerabilidade, especialmente povos indígenas da Amazônia.

As dez empresas têm um procurador destacado para cada caso, com alguns inquéritos já
abertos. Custeadas por recursos provenientes por outro TAC celebrado pelo MPF, novas
investigações foram iniciadas, no começo de 2023, contra três empresas, Belgo Mineira,
Embraer e Mannesmann.

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