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A FOLHA FALHA COM A VERDADE HISTÓRICA

A redemocratização brasileira foi marcada pelo repúdio à ditadura, mas sem punir os
envolvidos. No caso da comunicação social, parte da atual mídia hegemônica foi também sócia
econômica, política e ideológica dos governos militares (1964-1985). Um dos casos mais
emblemáticos de subserviente conivência com a ditadura foi aquele protagonizado pela
empresa Folha da Manhã, à qual pertence a Folha de S. Paulo, cuja propriedade centrada na
família Frias de Oliveira se mantém até os dias atuais.

Como mostrou Beatriz Kushnir (Cães de Guarda, Boitempo, 2004), no início dos anos 1960, um
dos jornais da Folha, o vespertino Folha da Tarde, era conhecido por ter uma redação
composta por jornalistas de orientação política e ideológica à esquerda. Após o golpe de 1964,
aqueles profissionais foram demitidos por motivos políticos até meados de 1969, quando
Octávio Frias e Carlos Caldeira, então proprietários, indicaram para o comando do vespertino
Antonio Aggio Junior (Editor Chefe), Horley Antonio Destro (Secretario Geral) e Carlos Dias
Torres (Chefe de Reportagem), jornalistas com passagens por outros jornais da grande
imprensa, mas, o mais importante, figuras estreitamente ligadas aos militares e aos órgãos
repressivos. Havia uma pressão do governo sobre a empresa jornalística, então a entrega do
comando do periódico para Aggio e Destro significava uma maneira de alinhar-se aos militares.
O Editor Chefe e o Secretário Geral exibiam armas pessoais na redação do jornal e
acumulavam cargo público ligado à Segurança Social, credencial sine qua non para que
jornalistas pudessem gozar de trânsito livre junto aos agentes da repressão.

Conhecido como o “Diário Oficial da Oban 1”, a Folha da Tarde recebia boletins e notas oficiais
sobre todos os fatos que deveriam ser divulgados, inclusive as capturas e eventuais homicídios
efetuados pela polícia política. O informe se tornava uma verdadeira matéria jornalística. Ao
leitor, ficava a impressão que havia um jornalista da empresa cobrindo o fato. Como apontou
Boris Casoy, por uma questão de sobrevivência econômica, a empresa de Frias decidiu não
enfrentar o regime político e praticou autocensura em suas redações. Anunciava como fuga ou
morte em combate o que na verdade eram assassinatos políticos cometidos pela ditadura,
“legalizando” as mortes sob tortura. A simpatia com os agentes da repressão era tão
significativa que, por ocasião da morte de Sergio Paranhos Fleury, a Folha da Tarde enviou
uma coroa de flores ao cemitério e lamentou oficialmente a morte do delegado que, hoje
sabemos, esteve envolvido em grupos de extermínio, torturas, assassinatos e tráfico de
drogas.

Mais recentemente, na Folha, o editorial “Uma escolha Infeliz” 2, publicado após uma
enxurrada de críticas sobre o editorial, “Jair Rousseff”, foi uma resposta às afirmações feitas no
seio da opinião pública, mas também por Jânio de Freitas 3, sobre a colaboração do Grupo
Folhas com a ditadura a partir do empréstimo de carros da empresa aos agentes da repressão.
O atual chefe de redação, Sérgio Dávila, disse que tais afirmações são injustas, uma vez que
“não foram encontrados registros que comprovem essa utilização (...). SE [grifos meus] a
cessão de veículos ocorreu, foi de forma episódica e sem conhecimento nem autorização de
1
Operação Bandeirantes (Oban), criada para reprimir as ações dos grupos de esquerda na capital
paulista. Acabou sendo precursora do modelo repressivo que mais tarde ficou conhecido como Doi-
Codi, responsável por perseguições políticas, torturas, prisões ilegais, assassinatos e desparecimentos de
opositores da ditadura.
2
https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2020/08/uma-escolha-infeliz.shtml
3
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/janiodefreitas/2020/08/a-folha-no-erramos-editorial-jair-
rousseff-trouxe-de-volta-o-tratamento-de-ditabranda.shtml
sua direção”. É claro que não foi encontrado nenhum registro. Seria surpreendente se
encontrassem. Essas coisas não se fazem por escrito. Ademais, o simples fato da empresa ter
entregue um de seus jornais, a Folha da Tarde, e mantido em suas redações policiais e
jornalistas ligados aos agentes da repressão, já qualifica o vínculo e a cumplicidade da Folha
com os atos de violações dos direitos humanos, perseguições políticas, desaparecimentos e
assassinatos que assombraram a República entre as décadas de 1960 e 1980, e hoje retornam
à cena pública como um passado que nunca passa.

O editorial se voltou contra Jânio de Freitas para não ter de fazer a autocrítica diante do que a
história já mostrou e é óbvio: a Folha apoiou o golpe de 1964, deu suporte político à ditadura e
ofereceu narrativa jornalística para legitimar as versões oficiais divulgadas pelos governos
militares a fim de esconder os métodos políticos cruéis praticados pelo Estado. Não obstante,
já no século XXI, o mesmo Grupo Folhas apoiou e estimulou o golpe contra a presidente Dilma
Rousseff, em 2016, deu ampla divulgação aos trabalhos da operação Lava Jato que prenderam
o presidente Lula e pavimentaram o caminho para que hoje tenhamos um sujeito grotesco,
repulsivo, racista e apoiador da tortura como presidente da República. Observem que
Bolsonaro não é um perfil ideológico diferente daquele que, nos idos de 1970, mereceu o
apoio da Folha. Então, o que mudou? A resposta é: nada. A empresa dos Frias segue atuando
com o mesmo oportunismo político de sempre baseado em interesses econômicos bem
definidos.

Devido à ligação da família Frias com o mercado financeiro, a Folha defende o atual modelo
econômico neoliberal que inviabiliza os investimentos do Estado através da manutenção do
“Teto de Gastos”4 e mantém os privilégios do “deus” mercado. Se nos anos 1970 o que
garantia a manutenção econômica era estar em sintonia com o regime militar, na Era das
redes sociais as informações não podem ser controladas por uma narrativa oficial. Fazer
oposição ao autoritarismo estimulado pelo atual governo, portanto, é vantajoso e rende mais.
Porém, como Bolsonaro mantém o seu compromisso com o “Teto de Gastos”, não há benefício
econômico em seu afastamento. Por isso o jornal se mantém na “oposição”, mas contra o
impeachment a despeito de todos os crimes de responsabilidade já cometidos pelo atual
presidente da República. Lá como cá, o que vale é a supremacia da ordem: vender jornal e
influenciar os acontecimentos políticos de acordo com os interesses particulares de seus
proprietários, a família Frias de Oliveira, corresponsáveis pelas violações da ditadura e pela
atual situação de barbárie que assola o país.

4
https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2020/09/defender-o-teto.shtml

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