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1. Os Antecedentes
Quando Bolsonaro foi eleito, em 2018, a direita vislumbrava vinte anos no poder, a exemplo
do que aconteceu durante a ditadura militar. Sendo mais exato, o plano estava traçado para
um pouco menos de vinte anos: os militares tinham traçado um plano até 2035. Esse plano
(https://igvb.org/projeto-de-nacao/) envolvia três think tanks (o Instituto Villas Boas, o
Instituto Sagres e o Instituto Federalista) e estava em operação ao menos desde 2010,
através da inserção progressiva dos militares na política. A decisão a respeito do tema veio
junto com a eleição presidencial de Dilma Rousseff. Não apenas pelo fato de que Dilma
participou da luta armada contra a ditadura, mas principalmente porque Dilma trazia
consigo a promessa de ampliar o escopo da Comissão da Verdade. O medo de punição fez os
militares declararem internamente a urgência em se reinserirem na política. Especialmente
aqueles formados na década de 70, que estavam no topo da cadeia de comando no
momento: Villas Boas veio da turma de 1973 da Academia Militar das Agulhas Negras
(AMAN). Carlos Alberto dos Santos Cruz e Sérgio Etchegoyen foram formados em 1974.
Hamilton Mourão, da turma de 1975. Fernando Azevedo e Silva, da turma de 1976. Outros
nomes conhecidos, como Walter Souza Braga Netto, Luiz Eduardo Ramos, Edson Leal Pujol
e Mauro Cezar Cid, foram formados pela Aman entre 1977 e 1979. Augusto Heleno Ribeiro
Pereira, formado pela AMAN em 1969, tinha sido assessor de Sylvio Frota, e, por conta dessa
proximidade com os figurões da linha dura, era uma espécie de eminência parda, uma
referência para os generais formados nos anos posteriores. Heleno dava sugestões e
ajudava a elaborar estratégias entre seus pares.
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Para isso, duas estratégias paralelas estavam em andamento: a primeira delas era a do
enfraquecimento do PT. Um governo petista enfraquecido não teria legitimidade para punir
os militares. O golpismo dos militares brasileiros não vem de 2023. Vem desde 2015
(https://m.folha.uol.com.br/poder/2015/10/1700280-defesa-vai-exonerar-comandante-militar-
que-criticou-o-governo.shtml) ao menos, se contarmos apenas as aparições públicas. Se
incluirmos o planejamento, vem desde 2010 ao menos.
Bolsonaro era um oficial sem muito destaque. Formado no ápice da ditadura, alinhado com
as ideias de Sylvio Frota e da linha dura, vou seus sonhos de poder se esvaírem logo no ano
de sua formação, quando Sylvio Frota foi defenestrado
(https://www.jornalopcao.com.br/colunas-e-blogs/imprensa/general-sylvio-frota-tentou-
derrubar-o-presidente-ernesto-geisel-pra-barrar-a-abertura-355969/)do Exército por Ernesto
Geisel. A partir daí, atuou como pára-quedista e passou a ser uma voz interna pelos direitos
dos oficiais em um momento de desmantelamento do regime e retomada da vida civil.
Respondeu processo disciplinar e saiu do Exército em 1988
(https://valor.globo.com/google/amp/politica/noticia/2022/09/02/por-que-bolsonaro-foi-preso-
e-por-que-ele-saiu-do-exercito.ghtml), depois da Revista Veja publicar em 1987 ameaças de
bombas contra quartéis e outras instalações por parte do próprio Bolsonaro.
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Ao criticar Dilma e defender a ditadura, Mourão, então um general da ativa, abriu espaço
para normalizar o show de horrores que veríamos no plenário da Câmara em 17 de abril de
2016. Dentre todas as declarações de voto pelo impeachment de Dilma Rousseff, a mais
abjeta, sem nenhuma dúvida, foi a de Jair Bolsonaro: o voto foi dedicado a Carlos Alberto
Brilhante Ustra, general que torturou Dilma Rousseff. Isso, para além de um gesto
desprezível, era um aceno aos militares. Brilhante Ustra, assim como Augusto Heleno, era
do grupo de Sylvio Frota. A característica do grupo de Sylvio Frota era o de que a abertura
“lenta, gradual e segura” planejada por Ernesto Geisel era uma ameaça e faria o comunismo
se instalar no Brasil. Esse grupo era tão radicalizado que considerava o General Golbery do
Couto e Silva, chefe do SNI entre 1974 e 1981, um “esquerdista infiltrado”. Villas Boas,
Heleno, Mourão, todos esses caras foram formados por livros como o Orvil, livro cujo
conteúdo foi revelado brilhantemente pelo jornalista Lucas Figueiredo em 2007.
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A primeira dessas forças, para além dos militares, é a dos evangélicos. E Bolsonaro foi um
visionário ao compreender a instrumentalização dos evangélicos como força política por
seus pastores. Desde 2010, ao menos, havia um ressentimento acumulado entre líderes
evangélicos em relação ao PT. Nesse ano, José Serra, percebendo que seria incapaz de lidar
com a alta popularidade de Lula, contratou um marqueteiro estadunidense de ascendência
indiana, Ravi Singh (não é o empresário britânico), para gerenciar sua campanha digital.
Sua empresa, a Election Mall, tinha um método infalível e seria capaz de “transformar as
eleições”, e ele tinha como principal cartão de visitas a vitória maiúscula de Juan Manuel
Santos sobre Antanas Mockus na Colômbia, ocorrida pouco antes.
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No fim o método era uma forma bastante rudimentar de estabelecer uma rede de fake
news: Ravi Singh trabalhava o pânico moral inventando mentiras sobre o adversário de
forma “anônima”, através de e-mails anônimos enviados a listas de e-mails compradas. Foi
assim que ele impediu a subida de Antanas Mockus na Colômbia e foi assim que ele tentou
desgastar Dilma Rousseff no Brasil com mentiras estilo “Michel Temer é satanista” e “o PT
vai trazer iniquidade para o Brasil”.
No Brasil, isso acabou tendo bastante efeito. Serra não ganhou a eleição, mas muitos
evangélicos começaram a ter restrições morais ao PT, que foram base do antipetismo moral
que conhecemos hoje: coisas como “o PT é a favor do casamento gay”, “o PT é a favor do
aborto” e “o PT é contra a família” já eram faladas naquela época. E reverberavam, porque
esse discurso “dava match” com o discurso moralista de muitos pastores Brasil afora.
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Inclusive, cabe ressaltar que a primeira vez em que o discurso moral evangélico viralizou
em uma campanha presidencial foi em 2010, com o Pastor Batista Paschoal Piragine Jr
(https://periodicos.ufjf.br/index.php/numen/article/view/22042/17880). Mas foram os
neopentecostais (especialmente a Igreja Universal do Reino de Deus) que abriram o
caminho para tornar a participação política dos pastores algo desejável, ainda na década de
90, como mostra o sociólogo Ricardo Mariano em seu fundamental livro sobre as igrejas
Neopentecostais (MARIANO, 2014)
Essa conciliação entre moralismo e atuação política tornou-se uma arma poderosíssima na
mão de alguns pastores: uma pesquisa de 2016 do Datafolha
(http://media.folha.uol.com.br/datafolha/2016/12/28/da39a3ee5e6b4b0d3255bfef95601890afd80709.pdf)
mostrou que 66% dos evangélicos não pentecostais e 52% dos evangélicos pentecostais
concordavam com a afirmação de que os valores religiosos devem ter influência nas
decisões políticas do país. A mesma pesquisa sinalizou que 44% dos evangélicos concordava
com líderes religiosos se candidatando a cargos políticos. Havia ali uma avenida aberta
para a exploração política da moralidade.
Foi esse caminho que Bolsonaro trilhou. E foi uma trilha muito bem planejada, que
construiu junto aos evangélicos a imagem de Bolsonaro como um “homem de Deus”,
embora ele nunca tenha se declarado evangélico de fato. Em 2013, Bolsonaro celebrou seu
casamento religioso com Michelle Bolsonaro sob a bêncão de Silas Malafaia
(http://circuitomt.com.br/editorias/variedades/27746-silas-malafaia-celebra-casamento-do-
deputado-bolsonaro-na-mansao-rosa.html), ainda que ambos já fossem casados de fato
desde 2007. Em 2016, Bolsonaro foi batizado no Rio Jordão pelo Pastor Everaldo
(https://extra.globo.com/noticias/brasil/enquanto-votacao-do-impeachment-acontecia-
bolsonaro-era-batizado-em-israel-19287802.html) exatamente no dia em que Dilma Rousseff
sofria impeachment no Senado. Esses passos foram essenciais para que Bolsonaro tivesse
solidificada junto aos evangélicos a imagem de um homem de família, que respeita os
valores cristãos. Um homem moralmente aceitável, em contraposição ao governo do PT,
acusado de imoral pela bancada evangélica, especialmente por conta das políticas em
relação às mulheres e aos LGBTQ+.
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Depois desses eventos, o caminho para que evangélicos e militares se juntassem em 2018
ficou muito mais suave. Inclusive há uma questão cultural envolvida que faz com que
evangélicos e militares tenham muito mais afinidade do que parecem a princípio: grupos
pentecostais e neopentecostais vivem em um estado constante de “batalha espiritual”,
invocando, para isso, passagens do Antigo Testamento de caráter fortemente bélico, e
também referências como a “armadura de Deus”, que Paulo uso como elemento figurativo
em sua carta aos Efésios. O militar é aquele que batalha contra o inimigo. O evangélico que
vive sob uma teologia de batalha espiritual é aquele que batalha contra o inimigo
(espiritual). Quando esses dois mundos se encontram, as convergências são muitas.
Para além dos militares e dos evangélicos, a desmoralização do PT passou por um enorme
esforço de mídia, amparado por uma parte do judiciário que alargou enormemente os
limites processuais (para ser bem generoso) com o objetivo de derrubar Dilma e inviabilizar
Lula politicamente. Sem entrar em detalhes processuais, já explorados à exaustão,
especialmente após a Vaza Jato, é possível dizer que, em diversas situações, esse processo de
desmoralização do PT junto ao Judiciário foi fortemente tutelado pelos militares, como no
célebre caso do tweet do General Villas Boas quando o STF estava julgando, em abril de
2018, o recurso que poderia impedir a prisão imediata do então ex-presidente Lula.
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Outra prova de que o Judiciário estava, em grande medida, sendo tutelado pelos militares,
foi o fato do Ministro do STF José Antonio Dias Toffoli, então na presidência do órgão, ter
nomeado como seu assessor (https://br.noticias.yahoo.com/toffoli-apresenta-general-aos-
ministros-230100291.html?
guccounter=1&guce_referrer=aHR0cHM6Ly93d3cuZ29vZ2xlLmNvbS8&guce_referrer_sig=AQAAAMNeQzeUttYvOlJ4S55kOammEy2bCfCJu9uUH
jWKUDjoiE_6JrjDgLlIe) Fernando Azevedo e Silva (sim, o general da turma de 1976 da
AMAN). Nem o argumento de que era para “manter boas relações com o bolsonarismo”
fazia sentido, uma vez que a nomeação foi anterior à eleição. Para além disso, o próprio
General Eduardo Villas Boas, em entrevista à Folha após a eleição de Bolsonaro, disse que
cogitou “intervir” (https://www.conjur.com.br/2018-nov-11/villas-boas-calculou-intervir-stf-
hc-lula) caso o STF desse o habeas corpus pedido por Lula logo antes dele ser preso, em
abril de 2018.
A relação dos militares com o Judiciário se resumia nessa citação: parte do Judiciário
colaborava, a outra parte era tutelada. Quando Lula disse em 2016 que “o STF se acovardou”
ao não impedir o impeachment de Dilma, a coisa depois se revelou um pouco mais grave: a
covardia do STF esteve em não recusar a tutela que os militares impuseram entre o início
do processo de impeachment da Presidenta Dilma Rousseff e a eleição de Bolsonaro.
Quando a cúpula do Judiciário finalmente retomou sua independência, no contexto da não
adesão às pautas negacionistas de Bolsonaro na pandemia, passou a ser visto como inimigo.
Tanto pelo Bolsonaro quanto pelos próprios militares.
Outros grupos políticos também se alinharam ao projeto bolsonarista aos poucos: a (grande)
parte do agronegócio que aos poucos pressionava Dilma pela desregulamentação das regras
ambientais se sentiu atraído pela perspectiva de uma completa desregulamentação que o
bolsonarismo propunha. Outra prioridade dos formandos da AMAN discípulos do Sylvio
Frota era o lema “integrar para não entregar”, fruto de mais uma paranóia: a de que se a
Amazônia não fosse cortada por todos os lados, países viriam e invadiriam o Brasil via
Amazônia. Trabalhos acadêmicos mostram como isso era uma prioridade enquanto a linha
dura estava no poder (DE SOUZA, 2020)
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Junto com isso, atraiu bastante esse tipo de ruralista (bem como garimpeiros ilegais) o fato
de que Bolsonaro prometeu – e, infelizmente, cumpriu – “nenhum centímetro a mais para
terras indígenas”. Isso já era verbalizado no início de 2018
(https://deolhonosruralistas.com.br/2018/02/08/nem-um-centimetro-mais-para-terras-
indigenas-diz-bolsonaro/), quando Bolsonaro era líder nas pesquisas sem Lula, mas não o
favorito para ganhar a eleição.
Por último, chagou a Faria Lima. Bolsonaro foi ridicularizado em 2017, ao não saber
responder coisas elementares sobre economia. À partir daí, achou um fiador para a área:
Paulo Guedes, apresentado com pompa (https://veja.abril.com.br/politica/bolsonaro-
anuncia-paulo-guedes-como-ministro-da-fazenda/) quase um ano antes da eleição. No início,
o mercado não se animou, mas aos poucos Bolsonaro passou a ser uma opção, dada a
repulsa da Faria Lima ao PT e o fato de que a campanha de Geraldo Alckmin, então no
PSDB, não decolou.
Obviamente, outros grupos também tem parte nesse caldo de cultura bolsonarista.
Conservadores católicos, por exemplo, acabaram alinhados com evangélicos bolsonaristas.
Grupos sertanejos se comportaram sob a tônica do agronegócio. Gamers conservadores e
Incels acabaram fazendo parte do “serviço sujo” e atuando como trolls nas redes sociais. O
reacionarismo passou a ser de fato um fenômeno cultural sob Bolsonaro. O tempo
mostraria que esse fenômeno seria extremamente tóxico, como ficou provado nas cenas
dantescas que vimos em torno da Praça dos Três Poderes em 08 de janeiro de 2023.
2. O Diagnóstico
Lula passou por uma das histórias políticas mais inacreditáveis vividas por uma pessoa
pública. Se a história de Lula terminasse em 2010, ele já seria um dos maiores políticos da
História do Brasil. Mas os últimos 13 anos levaram Lula a um patamar completamente
novo. Um patamar nunca antes atingido por qualquer político brasileiro.
Entre 2011 e 2012, Lula tratou um câncer extremamente agressivo na laringe, com alto
índice de mortalidade. Em 2012, elegeu Haddad como prefeito de São Paulo. Em 2013, viu a
popularidade do PT se esfarelar em meio às manifestações de junho. Em 2014, viu o amigo
Eduardo Campos morrer em um acidente aéreo durante a campanha presidencial, e Dilma
ser reeleita em uma carnificina eleitoral (da qual o PT fez parte). Em 2015, viu a Lava Jato
avançar, a pressão pelo impeachment de Dilma aumentar, e em 2016 foi vítima de uma
condução coercitiva e de um grampo vazado pelo Sérgio Moro. Tentou assumiu um
Ministério para salvar Dilma e foi impedido. Em 2017, perdeu Marisa Letícia, sua
companheira por décadas, e foi condenado por Moro. Em 2018, foi preso em uma das
condenações. Viu o STF se acovardar, negando o habeas corpus após intimidação do
General Villas Boas. Também se viu impedido de disputar a eleição e Bolsonaro eleito como
Presidente da República.
Em 2019, Lula viu seu algoz Sérgio Moro assumir o cargo de Ministro da Justiça no governo
Bolsonaro. Perdeu seu irmão Vavá estando preso, e foi impedido pelo Ministro Dias Toffoli,
aquele que tinha um general como assessor, de ir ao velório. Também perdeu seu neto
Arthur, e ao menos pôde ir ao velório, fortemente escoltado. Viu da sala onde estava preso
na Polícia Federal de Curitiba a Vaza Jato mostrar como Sérgio Moro e a equipe de
procuradores da Lava Jato em Curitiba, comandada por Deltan Dallagnol, combinavam
sentenças e ações midiáticas com o objetivo de condenar ele, Lula, injustamente. Teve
oferta de ir para São Paulo, também teve oferta de ser solto e de ficar com tornozeleira
eletrônica. Foi solto quando o STF mudou a interpretação sobre prisão após julgamento em
segunda instância. Nesse meio tempo, leu um monte de livros e iniciou um novo
relacionamento, com Janja.
Em 2020, Lula viu uma pandemia atingir o mundo, e o governo Bolsonaro agir de forma
negacionista, dizendo em rede nacional que se tratava de uma “gripezinha”. Viu Sérgio
Moro pedir demissão e um general assumir o Ministério da Saúde. Viu novas lideranças de
esquerda, como Boulos, crescerem nas eleições municipais, mas também viu pouquíssimas
vitórias fora do Nordeste. O PT perdeu muita força nas administrações municipais.
Em 2021, Lula recuperou seus direitos políticos. As condenações dadas por Sérgio Moro
foram anuladas. Primeiro porque Sérgio Moro não era o juiz certo para julgar as ações.
Depois, para tirar qualquer dúvida, porque Sérgio Moro foi considerado suspeito. Lula
passou a liderar todas as pesquisas presidenciais, especialmente após a CPI da COVID
mostrar para todo o país a gestão catastrófica e criminosa de Bolsonaro em relação à
pandemia, que incluiu negligência na compra de vacinas, corrupção na compra de vacinas
e opção deliberada por contaminar a população. Também procurou Geraldo Alckmin seu
antigo adversário de PSDB, para sondar sobre a possibilidade de uma chapa conjunta entre
Lula e Alckmin, que soaria como uma insanidade para qualquer cidadão comum.
Em 2022, Lula se casou com Janja, que conquistou uma nova grande amiga: Lu Alckmin,
com quem tinha ótimas conversas enquanto Lula e Alckmin faziam suas programações de
campanha. Sim, Lula e Alckmin de fato formaram uma chapa presidencial. Uma chapa
capaz de vencer a eleição mais suja que esse país já viu. Bolsonaro cometeu toda sorte de
crimes possível para ganhar a eleição, com o apoio de figuras como Arthur Lira, na
Presidência da Câmara, e Augusto Aras, que bloqueava todas as investigações na PGR.
Bolsonaro gastou bilhões com o orçamento secreto para comprar votos pelo país todo, e
gastou mais bilhões com um monte de medidas eleitoreiras, como o aumento conveniente
do Auxílio Brasil na véspera da eleição e o oferecimento até de crédito consignado desse
Auxílio. Bolsonaro também cometeu crimes eleitorais de toda espécie: além de espalhar
fake news, a exemplo de 2018, com apoio institucional de redes de TV como a Jovem Pan,
Bolsonaro incentivou idosos a votarem usando o voto como prova de vida do INSS, e
dizendo que “só o voto no 22 serviria”. Bolsonaro achacou beneficiários de programas
sociais a votar nele. Bolsonaro promoveu bloqueios com a PRF no dia da eleição. Bloqueios
que fizeram, por exemplo, Lula ter menos votos no Amapá no segundo turno do que teve no
primeiro.
E ainda assim Lula ganhou a eleição. A vitória de Lula foi um milagre da democracia.
Já em janeiro de 2023, Lula teve uma cerimônia de posse histórica, feita pelos brasileiros e
para o brasileiros. Na ausência de Bolsonaro, viu a faixa presidencial ser entregue por uma
catadora, categoria que ele faz questão de visitar todos os anos. Uma semana depois, viu os
prédios dos três poderes destruídos pelo terror bolsonarista. Reuniu todos os governadores
para um repúdio coletivo à barbárie e para uma promessa e um compromisso de
reconstrução do país.
Entender as emoções por trás da História do Lula é uma insanidade. Ele teria todos os
motivos para se vingar, para se render à violência, para sentir ódio. Mas ele insiste em
sentar, conversar, em reunir forças antagônicas na mesma mesa, como um autêntico
sindicalista. A história de Lula como sindicalista faz com que ele tenha enorme apreço às
mesas de negociação. E essa lógica torna Lula um obstinado pelo acordo, e também um
obstinado por aquela que é a pauta de sua vida: a de que todos os brasileiros precisam fazer
três refeições ao dia.
Mas essa sequência toda é só para entender como Lula conseguiu conciliar forças tão
antagônicas. Lula enxergou antes de todo mundo a necessidade de mudar os termos da
discussão. Em uma disputa entre projetos políticos, Lula fatalmente perderia do Bolsonaro,
que sabe usar muito bem o antipetismo para seu benefício. Lula mudou os termos para uma
discussão entre democracia e autoritarismo. Em 2021, eu já antecipei que essa era a
intenção de Lula (https://nadanovonofront.com/2021/12/16/a-chapa-entre-lula-e-alckmin-
mostra-a-estrategia-de-ambos-para-2022/) ao se aproximar de Alckmin:
Em uma primeira análise, uma aliança do tipo provocaria rejeição mútua, fazendo os
conservadores que sempre votaram em Alckmin torcerem o nariz com a mesma
intensidade que a esquerda lulista.
Mas a conta não é tão simples. Lula também passou por maus bocados em eleições
anteriores, incluindo uma prisão arbitrária, e a derrota da Haddad para Bolsonaro em
2018 deixou lições para o partido. A primeira delas: colocar a disputa nos termos
esquerda x direita sempre vai ser perigoso. Porque foi essa a disputa em 2018, e quem
impôs isso não foi Haddad: foi Bolsonaro. A principal acusação que ele trouxe contra o
petismo foi a de um esquerdismo criminoso, corrupto, e naquela época eles tinham na
prisão do Lula um dos principais argumentos para justificar essa linha estratégica. Hoje,
as acusações contra Lula foram desqualificadas (e foram sim, pessoal, não adianta
argumentar contra, não foi só aquela coisa “os processos não deveriam estar em
Curitiba”, Sérgio Moro foi oficialmente declarado um juiz suspeito, parcial, algo de
extrema gravidade, que poderia levar à expulsão do juiz dos quadros do Judiciário se ele
já não tivesse saído para se tornar Ministro do Bolsonaro) e Lula sabe que isso tem que
estar bem claro na cabeça do eleitor no ano de 2022.
É aí que entra a segunda parte da estratégia: é preciso qualificar Bolsonaro e Moro como
líderes autoritários. E, para isso, é necessário consolidar na cabeça do eleitor que todo o
processo envolvendo a prisão e o impedimento da candidatura de Lula em 2018 foi
perseguição política. E que esse processo foi conduzido de maneira autoritária por
Sérgio Moro, de forma a beneficiar Jair Bolsonaro. Prova disso foi a ideia de requentar a
delação do ex-Ministro da Fazenda Antonio Pallocci falando uma semana para a eleição.
É essa a narrativa que a candidatura Lula vai usar para resistir aos ataques que
fatalmente virão: Bolsonaro e Moro são representantes do autoritarismo e precisam
ser eliminados da cena política.
Aí é que entra o nome de Geraldo Alckmin. O ex governador de São Paulo como vice
esvazia o discurso de Bolsonaro (e de Moro, em certa medida) de que estamos diante de
uma disputa entre esquerda e direita. Alckmin é um expoente de centro direita com
histórico consistente inclusive entre grupos conservadores religiosos. Além disso, é um
mestre da pequena política, não se furtando a participar de reuniões infindáveis de
articulação regadas a café e conversa. Foi assim que ele conseguiu força para governar
São Paulo por quinze anos mesmo sem nunca ter sido um grande “entregador de
projetos”. Alckmin segue sendo extremamente influente com os prefeitos do interior
paulista, e consegue agregar muita gente em torno de si, com seu jeito pacato de ser,
típico de um cidadão do interior de São Paulo.
Tendo Alckmin como vice, Lula consegue argumentar que sua candidatura está
aglutinando todos os setores do campo democrático, da direita à esquerda.
Lula usou o mote da defesa da democracia a eleição inteira. O fato de que Lula se colocou
como representante da democracia empurrando Bolsonaro (e Moro, que voltou a apoiar
Bolsonaro no segundo turno de 2022) para o papel de líder autoritário precisa ficar muito
gravado quando pensamos no que aconteceu na Praça dos Três Poderes dia 08 de janeiro.
Quando os bolsonaristas destruíram o STF, o Palácio do Planalto e o prédio do Congresso, é
como se eles estivessem confirmando que Lula tinha razão: a briga era entre a democracia e
o autoritarismo. E nessa briga cada voto foi essencial. Cada apoio improvável, cada
postagem nas redes sociais, cada conversa entre amigos.
A diferença de 2 milhões de votos foi, antes de tudo, alarmante. Heróica, mas alarmante. E
hoje a eleição parece muito mais heróica, quando vemos o tipo de destruição que os
bolsonaristas são capazes de promover.
Dentre todos os apoios, porém, um se destaca: Marina Silva, que tinha sofrido muitos
ataques em 2014, voltou a ter proximidade com Lula. A história com final feliz e a retomada
de uma amizade interrompida pela política, no entanto, são os aspectos menos importantes
dessa aproximação. Faltava um mês para o primeiro turno, e as reclamações de que o único
projeto do Lula era “derrubar o Bolsonaro” eram cada vez mais recorrentes. Lula, de fato,
não tinha um projeto além de repetir o que ele já tinha feito entre 2003 e 2010, o que não
era nenhuma garantia de sucesso, uma vez que o contexto mudou muito desde então.
Toda essa história é para mostrar que Lula construiu, desde que saiu da prisão, o contra-
projeto bolsonarista. Os militares construiram um projeto autoritário (nenhum projeto de
manter o poder “até 2035” sem ressalvas ou possibilidades em contrário pode ser
considerado democrático) para se livrarem de punições, baseado no revisionismo da
ditadura e na desmoralização do PT. Para isso, agregaram o moralismo de setores
majoritários do público evangélico, o discurso hipócrita de combate à corrupção de parte do
Judiciário, a disposição em destruir a floresta do agronegócio e a lógica de espoliamento do
Estado pelo capital especulativo. É esse projeto que está sendo combatido.
E como está sendo combatido? Através de um projeto democrático (raramente Lula fala
para além dos quatro anos de seu mandato), baseado na inclusão sem julgamento de todos
os setores da sociedade em contraposição ao moralismo. Também em um aliança inusitada
com o Judiciário, mas também previsível, porque a defesa da democracia pressupõe
necessariamente o fortalecimento das instituições. Com a chegada de Marina, também
chegou o projeto de desenvolvimento que vai combater e superar o projeto do agronegócio
bolsonarista, preservando a floresta através da transição para modelos econômicos
sustentáveis, com foco no reflorestamento, na economia verde e na transição energética. E,
finalmente, com Haddad na Fazenda, o modelo de espoliamento do estado pelo capital
especulativo é trocado pelo modelo de promoção do desenvolvimento com redistribuição de
renda.
Você, leitor atento, deve ter percebido que faltou alguma coisa. Sim, faltou o contraprojeto
para impedir os generais bolsonaristas de saírem ilesos depois de todo o mal que fizeram ao
país. Ainda que o grito “SEM ANISTIA” ecoasse desde a vitória de Lula, o fato é que não
existia clima político para a punição exemplar que os generais bolsonaristas merecem.
3. O Plano Bolsonarista
Ao contrário do que a cobertura da imprensa diz, o que aconteceu em Brasília está muito
distante do que aconteceu no Capitólio há dois anos atrás. Falar isso é estratégia de
marketing da extrema direita. Porque os arquitetos do crime não se importam com isso,
mas os radicalizados se importam. Então, “repetir o Capitólio”, antes de tudo, acaba sendo
uma marca fantasia do movimento com o intuito de atrair mais pessoas dispostas a fazer
qualquer barbaridade em nome do Bolsonaro.
O movimento de extrema direita no Brasil tem muitas coisas originais. A própria ideia de
intervenção militar não tem paralelo em nenhum outro lugar do mundo com os termos que
são utilizados no Brasil. A maneira como a extrema direita brasileira usa o tema da
intervenção militar é uma arma retórica poderosa, uma vez que, ao mesmo tempo, leva a
responsabilidade da ação para um agente abstrato (o que pode fazer com que o movimento
perdure indefinidamente – ou até os militares agirem) e evoca a ação de um agente
histórico relacionado ao autoritarismo no Brasil. Para completar, atende perfeitamente aos
anseios dos generais discípulos do Sylvio Frota formados pela AMAN nos anos 70.
Outra inovação é a tentativa de obter respaldo jurídico para essa intervenção militar
através de argumentos como o do “Artigo 142”, desenvolvido pelo jurista Ives Gandra
Martins – que condenou os ataques do dia 08. Segundo Ives Gandra, o Artigo 142 da
Constituição estabelece os militares como uma espécie de “Poder Moderador” quando há
confronto entre os três poderes. É um argumento sem nenhum respaldo técnico, refutado
várias vezes por tribunais como o STF, mas serve para embasar o discurso de quem espera
ansiosamente por uma intervenção militar.
Nesse cenário, o desmentido não adianta muito, uma vez que essas narrativas são
espalhadas continuamente. Coisas como “Artigo 142”, por exemplo, são espalhadas por anos
a fio, insistentemente, mesmo com inúmeros desmentidos. Isso é estratégia: cria-se uma
narrativa que faz parte de uma visão de mundo conspiratória maior, e essa narrativa é
insistentemente espalhada até que as pessoas se convençam dela. Por isso, o trabalho de
desmentir é tão difícil: o desmentido precisa ser contínuo, e deve se concentrar não só nos
fatos, mas nas narrativas como um todo e na visão de mundo que alimenta essas narrativas.
Esse talvez seja o grande problema das agências de fact checking: os desmentidos das
agências partem do micro para o macro. São desmentidos pontuais, sobre fatos isolados.
Para grande parte das pessoas, a questão do viés vem antes da verificação de veracidade.
Isso quer dizer que os mecanismos de verificação não funcionam como deveriam quando as
notícias vão de encontro ao que as pessoas já acreditam, quando elas “confirmam o viés” da
pessoa. Por isso tanto investimento em narrativas e em alimentar visões de mundo. O
objetivo, desde o início, é o de que as pessoas se tornem mais permeáveis a essas mentiras
que são plantadas. Quando a agência de fact checking desmente uma notícia, a narrativa já
foi plantada há muito tempo. A verdade deixa de ser relevante para o bolsonarista: na lente
deles, os fatos se ajustam às narrativas, e não o contrário.
Quando as pessoas chegam nesse nível de radicalização, é fácil plantar qualquer narrativa.
O processo gradual de radicalização torna as pessoas mais suscetíveis a soluções violentas.
E foi isso que a cúpula do bolsonarismo fez em relação às manifestações de 08 de janeiro:
fomentou a violência nos militantes radicalizados.
A plano bolsonarista era simples e não era alvo de muito segredo: haveria uma grande
mobilização em Brasília no dia 08 de janeiro. A PM do Distrito Federal, sob comando de
Anderson Torres, ex Ministro da Justiça de Bolsonaro e extremamente próximo ao ex-
Presidente, faria corpo mole e permitiria a entrada dos bolsonaristas na Praça dos Três
Poderes. O Batalhão da Guarda Presidencial aproveitaria a ausência momentânea do
Presidente Lula, em Araraquara, e ignoraria a entrada dos manifestantes no Palácio do
Planalto. Eles inutilizariam os equipamentos do Palácio e armariam suas barracas lá, bem
como no STF e no Congresso.
Aqui cabe um aparte: o uso do termo “relativamente original” não é casual. A ideia de uma
greve de caminhoneiros como precipitadora de um golpe de estado tem um precedente
importante: o Chile, em 1973 (https://exame.com/mundo/no-chile-greve-de-caminhoes-
durou-26-dias-e-derrubou-o-governo-2/amp/). Em agosto de 1973, os caminhoneiros fizeram
uma greve de 26 dias e tiveram papel decisivo na derrubada do governo de Salvador
Allende, que abriu caminho para os quase 17 anos de governo do ditador Pinochet. Se no
“varejo” a referência de greve é o movimento de 2018, entre os planejadores o ideal da
greve remete ao Chile de 1973. Todas as vezes que Bolsonaro insufla uma greve de
caminhoneiros junto aos transportadores, ele está dizendo com todas as letras que quer
derrubar as instituições democráticas e instalar um governo repressor nos moldes do
governo de Pinochet. A grande diferença, aqui, é que 1) Não existe suporte dos EUA, como
existia no Chile e em todas as ditaduras sul-americanas que ocorreram no contexto da
Guerra Fria; e 2) Não existe apoio local suficiente, como existia na época da ditadura.
A realidade é que a extrema direita brasileira se inspira muito mais na ditadura militar e
em seu aparato repressivo do que propriamente no modelo dos EUA. Da extrema-direita
trumpista, o bolsonarismo importa a metodologia para criar narrativas nas redes sociais e
para espalhar notícias falsas em escala industrial. O resto do aparato para a criação de uma
extrema direita forte está no Brasil há décadas e consiste na criação contínua de factoides
com o objetivo de legitimar atrocidades cometidas por forças de Estado, exatamente como
se fazia durante a ditadura militar.
Mas, voltando ao plano dos bolsonaristas, com a tomada do Palácio e o fechamento das
estradas as consequências seriam “óbvias”: com estradas fechadas, o país sofrendo de
desabastecimento e os prédios dos três poderes tomados pelos bolsonaristas, os militares
seriam invocados para devolver o poder ao “Presidente Bolsonaro”. Então, Bolsonaro
voltaria triunfalmente dos EUA, seria conduzido pelos militares de volta ao Palácio de
Planalto e voltaria ao poder, agora com poderes absolutos.
Isso significa que, além do Estado, Bolsonaro e Trump querem destruir elementos basilares
da civilização, como a educação, a ciência, os sistemas de saúde, e, em última medida, as
próprias instituições onde se exerce o poder. Isso tudo ajuda a explicar por que os
manifestantes buscaram a destruição física do Palácio do Planalto, do STF, das obras de arte
que estavam no local. Eles queriam ver destruída uma noção de modernidade que é a
marca maior desses lugares onde o poder é exercido de maneira racional. Querem de volta
um tradicionalismo tirânico, em que o líder é tratado como um representante divino na
Terra. Querem voltar ao período pré Maquiavel.
É relativamente fácil afirmar que, com as evidências que já surgiram, que Anderson Torres
agiu em conluio com Ibaneis Rocha, governador afastado do Distrito Federal, e também com
o ex-presidente Jair Bolsonaro. É só fazer uma análise cronológica simples:
08 de janeiro pela manhã: os planos em relação aos Bolsonaristas que estavam em Brasília
mudam repentinamente (https://noticias.r7.com/brasilia/dino-aponta-mudanca-de-ultima-
hora-nos-planos-do-df-e-diz-que-ibaneis-foi-iludido-e-enganado-08012023). Eles passam a
ter acesso à Esplanada dos Ministérios, o que possibilitou a invasão à Praça dos Três
Poderes
08 de janeiro à tarde: eles destroem os prédios dos três poderes. O Batalhão da Guarda
Presidencial, sob responsabilidade do exército, que deveria ser a última linha de proteção
contra a invasão do Palácio do Planalto, não moveu um dedo. Parecia tudo planejado para
que a invasão ocorresse sem sobressaltos.
Essa sequência não pode ser casual. Ibaneis nomeou Anderson Torres com a intenção dele
desmontar as forças de segurança para que elas não tivessem condição de reagir à turba
bolsonarista. A turba bolsonarista invadiu os prédios e destruiu tudo. A reunião de
Anderson Torres com Bolsonaro no dia 07 torna a participação do ex-presidente inequívoca.
E o fato de que o Batalhão da Guarda Presidencial não impediu a invasão do Palácio do
Planalto mostra que o Exército também participou desse movimento golpista.
Se ainda faltam evidências, há mais uma, contundente: Maria Aparecida Villas Boas, esposa
do General Villas Boas, visitou o acampamento golpista várias vezes e é uma das
organizadoras das manifestações (https://www.redebrasilatual.com.br/politica/mulher-do-
general-villas-boas-deve-prestar-contas-sobre-atos-de-vandalismo-afirma-especialista/),
incluindo a do último dia 08. Os discípulos do Sylvio Frota nunca fizeram a menor questão
de esconder suas intenções golpistas. E, para completar, o próprio Bolsonaro compartilhou
em suas redes um vídeo sem nenhum embasamento na realidade sugerindo que “a eleição
foi roubada (https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2023/01/11/bolsonaro-
compartilha-video-com-fake-news-questionando-o-sistema-eleitoral.htm)”.
Para a sorte do Brasil, o levante golpista não vingou, ao menos por enquanto. Porque os
bolsonaristas não vão desistir. Há um componente psicológico importante aí: cada escalada
no golpismo e na ânsia por destruir as instituições é uma motivação a mais para os
bolsonaristas continuarem lutando. Para eles, Bolsonaro é o herói que vai impedir o
comunismo, da mesma forma que Sylvio Frota era em 1977. Então, recuar não é uma opção,
e por isso mesmo os militantes bolsonaristas precisam ser parados pela Justiça.
O levante golpista não vingou por vários motivos. O principal deles, sem dúvida nenhuma,
foi a rápida reação do governo Lula. Mas algo importante ocorreu ainda antes que Lula
fizesse qualquer anúncio: a reação da imprensa.
Antes mesmo que o governo Lula fizesse qualquer anúncio, a imprensa estava usando
imagens feitas pelos próprios bolsonaristas para denunciar o que estava acontecendo. O
Palácio do Planalto, o STF e o Congresso Nacional são locais de atuação cotidiana da
imprensa. Em todos os dias, sem exceção, os profissionais de imprensa (e qualquer outra
pessoa) só entram nesses locais passando por um esquema de segurança, com profissionais
qualificados para lidar com qualquer contingência. Ver esses locais sendo destruídos era
estarrecedor para todos.
Aliás, para quase todos. A Jovem Pan, que cresceu com o bolsonarismo, teve até
correspondente entre os manifestantes. O golpismo da emissora era tão escancarado que,
enquanto as cenas de destruição se espalhavam, comentaristas como Rodrigo Constantino e
Paulo Figueiredo (esse último, neto do ditador Figueiredo, que por ironia era um dos caras
mais odiados pela turma do Sylvio Frota) comemoravam, de forma pouco disfarçada. O
resultado foi tão lamentável que o presidente da Jovem Pan, Tutinha, renunciou ao
comando da emissora. (https://www.uol.com.br/splash/noticias/2023/01/09/tutinha.amp.htm)
Constantino e Figueiredo, além da comentarista Zoe Martínez, também foram afastados
(https://www.em.com.br/app/noticia/politica/2023/01/10/interna_politica,1443416/amp.html).
Do outro lado, temos os grupos de imprensa que tentam manter alguma credibilidade se
equilibrando entre o bolsonarismo e o antibolsonarismo. Grupos que por muitas vezes são
criticados por darem espaço para discursos bolsonaristas em seus editoriais ou nos artigos
de opinião. Esses acenos nunca são suficientes. Um governo de caráter autoritário e
extremista como o de Bolsonaro só aceita o kit completo: ou você apoia o governo
diuturnamente, evitando qualquer crítica, ou você é inimigo. E esses órgãos de imprensa,
mesmo tendo um enorme passivo histórico e com um comprometimento de longo prazo
com as elites nacionais, passaram a ser vistos como inimigos por Bolsonaro.
A relação de Bolsonaro com a imprensa tem a mesma natureza da relação entre os militares
o a cúpula do Judiciário até o início do governo Bolsonaro. A palavra correta para definir
essa relação é tutela. Os órgãos que Bolsonaro conseguia tutelar eram privilegiados. Os
órgãos não tutelados eram intimidados, ameaçados e agredidos. Durante o governo
Bolsonaro, foram inúmeros os jornalistas atacados, e esse padrão não mudou no 08 de
janeiro: só na invasão do Palácio, quatorze jornalistas foram atingidos
(https://g1.globo.com/df/distrito-federal/noticia/2023/01/09/terrorismo-em-brasilia-pelo-
menos-12-jornalistas-foram-agredidos-durante-atos-de-vandalismo-diz-sindicato.ghtml)
pelos bolsonaristas.
O fato é que a imprensa segue com um papel importante para noticiar o que está
acontecendo ao grande público. E a imprensa tomou decisões acertadas na cobertura. A
Rede Globo percebeu rapidamente a importância do que estava acontecendo e interrompeu
sua programação. Os órgãos de imprensa em geral utilizaram os termos corretos para a
referência aos bolsonaristas invasores: terroristas, golpistas, vândalos. A cobertura
mostrando a destruição do patrimônio público teve um efeito importante sobre a opinião
pública, bem como a viralização dos prédios destruídos em postagens nas redes sociais.
No calor do momento, as pessoas evocam ações rápidas pelas redes sociais. Mas a verdade é
que uma ação bem pensada em geral tem resultados melhores do que ações rápidas e
atabalhoadas, especialmente em situações extremas como a de 08 de janeiro. E as ações do
governo Lula foram extremamente bem pensadas, ainda mais se considerarmos que
estamos diante de um governo que tinha literalmente uma semana, após um processo de
transição em que houve sabotagem sistemática por parte do governo anterior.
Hoje parece pouco relevante perto do nível de destruição imposto pelos bolsonaristas, mas
o fato é que na primeira semana do ano o governo Lula já teve que lidar com coisas que
seriam absurdas em qualquer transição de governo civilizada, como a necessidade de
contratar chaveiros para abrir as salas do Palácio do Planalto, que os comissionados do
governo Bolsonaro deixaram trancadas de forma proposital. Cobrar um sistema
estruturado de defesa em um contexto de sabotagem é totalmente irreal. Por mais que a
Abin tivesse alertado sobre os ataques, não havia nada que o Ministério da Justiça pudesse
fazer em um prazo tão exíguo, considerando que a responsabilidade pela segurança no
Distrito Federal é da Polícia Militar local.
Nada disso, porém, seria possível sem a ação assertiva do Judiciário. E essa ação merece um
capítulo à parte.
5. O Judiciário
Quando os bolsonaristas atacaram os prédios dos três poderes, uma coisa ficou evidente: o
prédio mais atacado foi o do Supremo Tribunal Federal. Não foi uma mera casualidade: na
estrutura de pensamento bolsonarista, o STF se tornou o principal inimigo do governo nos
últimos quatro anos. Ao insistir em se manter como contrapeso institucional ao
bolsonarismo, limitando o escopo das ações tresloucadas do então presidente Bolsonaro
com base na Constituição, o STF se consolidou como adversário mortal do projeto
autoritário de extrema direita, que, como os militares previam, iria ao menos até 2035.
Para além disso, o STF tomou decisões que o bolsonarismo considera absolutamente
imperdoáveis. As principais delas foram as relativas ao Presidente Lula: sua soltura, em
novembro de 2019, e a retomada de seus direitos políticos, em março de 2021. À partir daí, o
bolsonarismo passou a atacar o STF sistematicamente, chamando-o de “tribunal político”,
com a anuência do próprio Bolsonaro.
Desde então, a relação entre Bolsonaro e Alexandre de Moraes nunca voltou a ser amistosa.
Chegou a haver uma trégua, negociada pelo ex-presidente Michel Temer, mas na maior
parte do tempo Bolsonaro insuflou sua turba de seguidores fanáticos contra o Ministro do
STF. O que não se mostrou uma estratégia muito inteligente, uma vez que Alexandre de
Moraes ia presidir o TSE durante o processo eleitoral de 2022.
Alexandre de Moraes é um personagem muito sui generis da política brasileira. Aos 23 anos
de idade, passou para o concurso de promotor. Tornou-se um dos maiores especialistas do
país em Direito Constitucional: concluiu um doutorado, deu aulas e escreveu livros sobre o
tema. Aos 34 anos, largou a carreira de promotor para ser Secretário de Justiça no primeiro
governo Alckmin em São Paulo. Depois, foi trabalhar como Secretário de Transportes e se
tornou o homem forte de Gilberto Kassab na prefeitura de São Paulo. Entre 2011 e 2014,
criou um escritório de advocacia, deu aulas e atuou defendendo clientes importantes. Foi
Secretário de Segurança Pública em São Paulo entre 2015 e 2016, novamente sob o comando
de Alckmin. Após resolver um caso de vazamento de fotos e conversas íntimas
(https://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/hacker-condenado-por-chantagear-primeira-dama-
disse-ter-audio-que-jogaria-nome-de-temer-na-lama.ghtml) envolvendo a esposa do então
vice-presidente Michel Temer, foi agraciado com o Ministério da Justiça. Oito meses depois,
com a trágica morte de Teori Zavascki em um acidente de avião no litoral do Rio de Janeiro,
foi indicado por Michel Temer para uma vaga no STF.
Às vezes a diferença entre a salvação e a ruína da democracia é muito mais sutil do que
parece. Bolsonaro e os militares assumiram o poder com um projeto de arruinar
definitivamente a democracia brasileira, acabando com o pacto nacional firmado na
Constituição de 1988. Não conseguiram fazer isso por vários motivos, mas um deles
certamente foi a presença de Alexandre de Moraes como Presidente do TSE. De maneira
quase temerária, Alexandre de Moraes não teve medo de enfrentar a máquina de
desinformação bolsonarista durante o processo eleitoral. Em agosto, foi atrás dos
empresários bolsonaristas que estavam financiando manifestações antidemocráticas. Em
setembro e outubro, não se furtou a tirar tempo de TV e rádio da coligação de Bolsonaro em
punição às mentiras que ele contava. Não se furtou a punir empresas de forte viés
bolsonarista, como Jovem Pan e Brasil Paralelo, bem como perfis bolsonaristas de grande
alcance da rede bolsonarista.
Nenhum outro ministro teria tido tanta firmeza no combate às estratégias bolsonaristas de
manipulação da eleição. E é até irônico pensar que os bolsonaristas acham que Alexandre
de Moraes fraudou a eleição justamente pelo fato de que as decisões do Alexandre de
Moraes foram na direção de impedir que os bolsonaristas fraudassem a eleição. E essas
decisões continuaram após o processo eleitoral: quando a campanha de Bolsonaro
questionou as inserções de rádio, Alexandre de Moraes pediu comprovação imediata. Ela
não veio e o processo morreu. Quando o PL questionou as urnas, tomou uma multa de R$ 22
milhões por tentar deliberadamente tumultuar o processo político. É inegável o papel do
Alexandre de Moraes em impedir a cooptação do processo eleitoral por Jair Bolsonaro. E aí
está o motivo de tanto ódio: no dia 08 de janeiro, até a porta do gabinete do Ministro foi
arrancada.
(https://g1.globo.com/politica/noticia/2023/01/09/moraes-decide-afastar-o-governador-
ibaneis-rocha-do-distrito-federal.ghtml) Ibaneis Rocha por 90 dias, em um movimento que
provavelmente resultará no impeachment do governador. Na mesma decisão, determinou
que os estados desmontassem todos os acampamentos bolsonaristas em 24 horas, sob pena
de responsabilização dos governadores e secretários de segurança pública locais.
Existe um lado muito positivo em ser um agente do Judiciário que já atuou no Poder
Executivo: você sabe exatamente o que afeta mais as pessoas, quais são os reais impactos de
suas decisões judiciais. Alexandre de Moraes tem esse diferencial: suas decisões tem o
mérito de sempre oferecerem efeitos práticos robustos, o que desestimula as pessoas
afetadas na continuidade de seus delitos. É muito raro que agentes do Judiciário tenham
essa sensibilidade, mas faz muita diferença: a experiência de Alexandre de Moraes,
especialmente na área de Segurança Pública, torna suas decisões mais eficientes, eficazes e
efetivas. E tudo isso sem esforço adicional nenhum. Uma decisão judicial, no fim das contas,
acaba sendo reflexo da visão de mundo de quem toma a decisão judicial.
6. As Soluções
O avanço bolsonarista e seu caráter golpista não são um tema simples. Questões complexas
não contam com soluções simples, e é por isso que, para lidar com um problema novo e
enorme, as soluções também precisam ser complexas e inovadoras. A vitória eleitoral de
Lula era uma condição necessária para a manutenção da democracia no Brasil, mas está
longe de ser uma condição suficiente. Para a manutenção e o fortalecimento da democracia,
é necessário criar meios de combater a desinformação, de trabalhar com os grupos
atingidos por essa desinformação e de revelar para a sociedade brasileira a verdade acerca
do governo Bolsonaro. Mas não é possível realizar esse tipo de trabalho sem uma estrutura
institucional adequada e sem objetivos bem definidos.
A ideia de uma rede de notícias falsas não é a propagação de notícias falsas específicas, é a
criação de um fluxo constante de notícias falsas que sirvam às narrativas convenientes à
extrema direita.
Nesse contexto, combater as mentiras criadas por esses grupos é muito mais difícil, uma vez
que o fact checking e outras ferramentas de promoção da verdade (inclusive utilizadas pela
campanha do Presidente Lula) são insuficientes para lidar com esse fluxo contínuo de
promoção de narrativas falsas. Por muito tempo, o combate às mentiras da extrema direita
foi inglório justamente por conta disso: enquanto a esquerda (e em muitos casos a imprensa
tradicional) desmentiam fatos isolados, a extrema direita continuava propagando
narrativas em que esses “fatos isolados” estavam inseridos, inserindo essas mentiras em
contextos maiores. Para conter verdadeiramente essa rede de notícias falsas que cria
contextos e visões de mundo, é necessária uma abordagem multidimensional:
É uma ótima notícia que, para essa missão, o nome escolhido tenha sido o de João Brant
(https://culturaedemocracia.com.br/joao-brant/), não só pela capacidade de pesquisar sobre
o tema, mas também pela compreensão abrangente do que são as redes de notícias falsas
em escala internacional. E hoje o bolsonarismo é uma rede internacional, ligada aos
movimentos de extrema direita mais proeminentes que existem mundo afora. É no mínimo
inocente achar que essa rede vai se desfazer sem uma ação institucional efetiva e contínua.
Criar estruturas de combate às fake news é criar cordões sanitários de isolamento e de
proteção da democracia.
Nos últimos anos, Jair Bolsonaro e sua ideologia extremista foram fortemente
normalizados. Não haverá democracia consolidada no Brasil se não houver um esforço
institucional coletivo (Executivo + Legislativo + MP + Judiciário + Imprensa) para expor e
punir os crimes do bolsonarismo, mostrando o quão horrendas foram as ações do
bolsonarismo. Isso já era necessário em qualquer contexto. Após os ataques de 08 de
janeiro, se tornou algo urgente.
Com o trabalho já realizado por iniciativas como a CPI da COVID, há um bom ponto de
partida para exposição, apuração, coleta de provas e punição por esses crimes.
Especialmente após o governo Lula assumir em janeiro, derrubando os incontáveis sigilos
de cem anos que Bolsonaro decretou. Esse trabalho inclusive tem participação essencial da
sociedade civil, que formou uma rede de colaboradores indispensável para os Senadores
por ocasião da CPI.
Esse tipo de colaboração deve se estender a outros focos de crimes sensíveis para a
sociedade civil do governo Bolsonaro para além da gestão da pandemia, como a corrupção
no Ministério da Educação, o desmantelamento das políticas de combate ao desmatamento
na Amazônia e nos demais biomas do país e os inúmeros casos de corrupção ligados ao
orçamento secreto, bem como o aparelhamento de instituições como a Polícia Rodoviária
Federal para cumprimento de propósitos eleitorais e golpistas por parte de Bolsonaro.
Além da institucionalização dessas investigações, através da criação de uma rede de
colaboração com o MP, é preciso promover o desaparelhamento de órgãos como a Policia
Federal e a Polícia Rodoviária Federal, bem como reverter ações notoriamente ilegais do
governo Bolsonaro. Existe toda uma gama de ações que precisa ser investigada. Deixar
essas ações caírem no esquecimento é pedir para que o fascismo volte mais forte em alguns
anos.
O modelo a ser adotado é o argentino, que garantiu a punição dos agentes da ditadura. No
entanto, é preciso um instrumento de investigação mais ágil que uma Comissão da Verdade,
para não permitir a reação de militares, como ocorreu quando o Brasil instalou sua
Comissão da Verdade para apurar os crimes da ditadura militar. A abertura imediata dos
arquivos do governo Bolsonaro por questões de interesse nacional e a parceria com a
imprensa para exposição desses documentos são partes essenciais do processo.
O objetivo dessa comissão deve ser a reconciliação e a promoção da democracia. Para isso,
deve ser criado um fluxo ágil de informações, se possível com parcerias para a divulgação
por parte da imprensa de maneira contínua. É preciso um esforço contínuo pelos próximos
anos para o brasileiro saber a verdade sobre o bolsonarismo.
– Um grupo de trabalho que subsidie as instituições a respeito dos crimes cometidos pelos
braços internacionais do bolsonarismo, bem como das relações do bolsonarismo com
ideologias notoriamente criminosas, especialmente o nazismo.
– Uma área de educação e registro histórico, para que os conteúdos apurados possam se
tornar conteúdos oficiais, aplicados nas políticas educacionais brasileiras.
O principal motivo para que os crimes do governo Bolsonaro sejam punidos é a justiça com
as vítimas: só de COVID, foram 700 mil. Os demais crimes tiveram consequências nefastas
em diversas áreas da sociedade. O Brasil ainda sofrerá com os resultados do governo
Bolsonaro por muitos anos. É um direito de todos os brasileiros saber quais são esses
resultados de fato.
Não existe chance do bolsonarismo ser combatido sem uma estrutura do tipo. Porque, ainda
que Bolsonaro não tenha mais o governo federal, continua tendo muitos deputados e o
apoio de vários governadores e prefeitos. Partindo do pressuposto de que o bolsonarismo é
a maior ameaça à democracia brasileira desde a Constituição de 1988, o esforço
institucional de investigação, exposição e punição dos crimes do bolsonarismo se torna um
imperativo moral, mas também um imperativo prático para qualquer defensor da
democracia.
Nada disso, porém, terá efeitos de longo prazo se os grupos aderentes ao bolsonarismo
golpista não forem efetivamente neutralizados. E essa é a palavra correta. Ninguém quer
perseguir grupos específicos, mas neutralizar levantes anti-democráticos é hoje uma
questão existencial para o Brasil. Não é só a democracia que está em jogo: é a própria
viabilidade do Brasil enquanto país.
6.2.1. Os Militares
É preciso começar pelo mais difícil. Os militares foram os organizadores de toda a ascensão
da extrema direita no Brasil, e fizeram isso pelos motivos mais pueris possíveis: impedir a
apuração e a punição pelos crimes cometidos no contexto da ditadura militar. Como lidar
com esse pessoal, que historicamente é tão poderoso e não tem nenhum pudor em defender
interesses próprios?
Antes de mais nada, é preciso ser realista. Soluções como a da Costa Rica, que acabou com
suas Forças Armadas em 1948 (e terceirizou a defesa do país para os EUA), não são
aplicáveis no Brasil, que é o 5º maior país do mundo em área territorial. Existe muita
utilidade para as Forças Armadas no Brasil: proteção de fronteiras, proteção das florestas e
recursos naturais, proteção das águas territoriais, tecnologias industriais, dentre outras
coisas. O Brasil é um país imenso e precisa de algum nível de proteção à soberania.
É aqui que começam os problemas. É muito recorrente na história das Forças Armadas
brasileiras confundir proteção à soberania com exercício de poder. Pior ainda: confundir
proteção à soberania com ataque deliberado aos brasileiros. A ideia de proteção à soberania
no Brasil foi ideologizada com frequência, e em muitas vezes terminou confundida com
combate ao comunismo. Isso gerou dois golpes militares e um sem número de presos
políticos.
Por que ninguém enfrenta isso? Porque há a percepção de que o militar é intocável. Esse foi
o preço que o país pagou em 1985 para que os militares fizessem a “bondade” de devolver o
país aos civis. Não houve ruptura, apenas um movimento de “não mexam com a gente”,
como se os militares fossem um aluno valentão da escola.
A questão é que hoje estamos diante do único momento histórico em muitas décadas em
que o país pode convidar os militares a prestar contas de sua história. Os militares já
estavam expostos e a colaboração de setores do Exército no 08 de janeiro torna o
questionamento aos militares um imperativo. Então, ficam as sugestões para que os
militares deixem de ser “intocáveis”:
Restrição ao golpismo por militares da reserva. Militar só deixa de ser militar se dá baixa
da função e vai viver sua vida civil, em alguma outra função, sem qualquer
remuneração vinculada ao seu exercício militar. Se militares da reserva ou pensionistas
fizerem manifestações públicas antidemocráticas ou participarem de manifestações
antidemocrática, terão suas aposentadorias ou pensões suspensas em definitivo, sem
prejuízo das sanções criminais.
Restrição ao uso do Clube Militar como mecanismo de agitação política. Os Clubes
Militares envolvidos em atividades golpistas serão sumariamente fechados.
Aplicação com maior rigor da lei que impede a manifestação política de militares da
ativa, incluindo policiais militares. Proibição de uso da atividade policial como
marketing da violência (proibição em definitivo do YouTuber policial)
Restrição de horário aos programas policialescos, que mostram perseguições policiais,
das 22 às 06 horas. Restrições de idade para vídeos do tipo nas redes sociais.
Proibição do uso de títulos militares em campanhas políticas
Criminalização da defesa da ditadura militar e revisão de todos os arquivos da ditadura,
com julgamentos e condenações mesmo para oficiais já falecidos, que incidirão na
cessação de pagamento de pensões para descendentes.
Apuração de todos os crimes militares cometidos como agentes de qualquer governo,
incluindo o governo Bolsonaro.
Juízes civis nomeados para Tribunais Militares com as mesmas regras de nomeação dos
tribunais superiores.
Investigação de crimes militares a cargo do Ministério Público Federal (MPF)
Reforma militar: o alistamento deixa de ser obrigatório aos 18 anos e passam a serem
aceitas mulheres em todas as unidades militares. Elas atuarão em conjunto com os
homens ao invés de formarem unidades separadas.
Facilitação da transição entre a vida militar e a vida civil.
Reforma da Previdência dos Militares.
Reforma salarial, diminuindo a diferença salarial entre a base e o topo da hierarquia
militar.
Existem muitas outras regras possíveis, algumas já em discussão no Congresso, mas o fato é
que essa é uma oportunidade única. O golpismo dos militares deve ser questionado com
ações práticas, e não com medidas populistas. Mais do que falar “sem anistia”, é preciso
tomar ações práticas para que os militares sirvam o Brasil ao invés de tornar o Brasil refém,
como fizeram nos últimos anos.
6.2.2 Os Evangélicos
Os evangélicos são outro grupo que não pode ser tratado com desprezo. Evangélico, hoje, é
uma identidade de fé, e a posição política dos líderes não fará as pessoas saírem da igreja. A
igreja é um lugar de acolhimento, em que as pessoas se chamam umas às outras como
“irmãos”. Nesse ambiente, a política normalmente é algo secundário. O grande problema é
que Bolsonaro sequestrou os signos cristãos para si, e isso fez com que a política se tornasse
mais preponderante que a própria fé em muitas comunidades. Tal como o Anticristo,
Bolsonaro se disfarçou e emulou costumes cristãos para ser aceito como um “escolhido de
Deus”.
Bolsonaro se vendeu como diversos personagens bíblicos: em alguns momentos, ele era o
“profeta que anuncia a verdade” (e por isso a fixação com João 8:32); em outros momentos,
ele era o “rei de Israel (https://nadanovonofront.com/2021/09/06/o-ultimo-rei-de-israel/)“;
quando Bolsonaro tomou a facada, muitos pastores tiveram a ousadia de comparar
Bolsonaro com a figura do próprio Cristo, utilizando a passagem bíblica de Isaías 53:5 de
que “ele foi trespassado pelas nossas iniquidades”. O nível de vinculação entre Bolsonaro e
a igreja evangélica é inacreditável. Nesse nível de vinculação, o surpreendente não é
Bolsonaro ter quase 70% dos votos de evangélicos, e sim ele não ter os outros 30%.
Dentre esses 30% de evangélicos que votou no Lula, existem muitos pastores, líderes e
celebridades que, ao se manifestarem, foram perseguidos em suas comunidades,
ameaçados, perderam cargos e perderam seguidores em redes sociais. Ainda assim, agiram
com firmeza. Esses nomes acabam sufocados entre o público evangélico em geral. Muitos
evangélicos votam em Bolsonaro não porque são fascistas (alguns são, especialmente
lideranças que estão indo para a frente dos quartéis – ou apoiando isso), mas porque seus
líderes fizeram uma larga campanha pró Bolsonaro. E não existiram contrapontos visíveis
dentro da igreja, não existiu uma discussão de ideias. O que ocorreu em muitas igrejas foi a
imposição de um pensamento único, sem qualquer possibilidade de contestação. E, ainda
assim, 3 em cada dez evangélicos votou contra Bolsonaro.
Além disso, é preciso acabar com ilusões: hoje os evangélicos são cerca de 30% do eleitorado
brasileiro, e nada indica que esse índice irá diminuir. Muito pelo contrário: em 1991, o
Censo mostrava menos de 10% dos brasileiros eram evangélicos. Em 2020, o Datafolha
(https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/01/13/50percent-dos-brasileiros-sao-catolicos-
31percent-evangelicos-e-10percent-nao-tem-religiao-diz-datafolha.ghtml) apurou que 31%
dos brasileiros já professavam a fé. E a tendência é que essa alta se acentue, uma vez que o
perfil demográfico do evangélico brasileiro é muito mais jovem do que o perfil do católico, o
que quer dizer que mais famílias da próxima geração provavelmente serão evangélicas. A
tendência, de acordo com as projeções demográficas, é que tenhamos mais evangélicos do
que católicos no Brasil em 2032.
Esse cenário pede uma ação urgente. É preciso criar canais de convivência com o público
evangélico, ouvir o que esse público tem a dizer e criar políticas públicas com base nas
demandas desse povo, que se identifica como evangélico, mas também traz consigo outras
características: a maioria é mulher (58%) e a maioria é negra (59%)
Olhando por esse aspecto, é essencial trabalhar em relação aos evangélicos dentro de suas
próprias demandas. A principal delas hoje, muito por causa do bolsonarismo, é a demanda
por “liberdade”. O medo de que as igrejas sejam fechadas é real, e a grande maioria não
consegue pensar além disso, só quer continuar tendo um espaço para o exercício da sua fé.
Criação de redes de ajuda mútua horizontalizadas dentro das igrejas, com pessoas
focadas no atendimento das necessidades básicas das pessoas ao redor.
Criação de uma Comissão Inter-religiosa nacional
Implantação de Uma Política Nacional Para a Promoção da Liberdade Religiosa e de
Cultos
Protagonismo de lideranças progressistas entre os evangélicos, hoje invisibilizadas em
suas igrejas por conta do status quo conservador imposto pelo bolsonarismo.
Punir pastores de líderes de grandes igrejas envolvidos em crimes como lavagem de
dinheiro, tráfico de drogas, tráfico de armas e mineração ilegal. Pastores bilionários são
uma excrescência e não podem existir.
Canais de interlocução entre o governo e os religiosos em geral
Criação de sistemas participativos que diminuam o isolamento das igrejas, que é um dos
grandes mecanismos de radicalização evangélica.
Programas de educação e prevenção às notícias falsas voltados especificamente aos
evangélicos.
Criação de mecanismos progressivos de cobrança de impostos em igrejas: as grandes
igrejas, que faturam mais, pagam mais impostos que as pequenas, que fazem mais
diferença no âmbito local.
Punição a pastores e líderes que espalham notícias falsas e participam de atos
antidemocráticos.
Outras medidas também são possíveis. Mas o importante, para além de tudo, é retomar o
contato sistemático com as igrejas. Não de forma artificial, como os líderes ligados à
bancada evangélica querem, mas de forma orgânica.
Assim como acontece nas empresas, é muito melhor e mais eficiente conversar com as
pequenas igrejas, ao invés de falar com as grandes redes. Grandes igrejas são
extremamente hierarquizadas. Pequenas igrejas são ótimas formas de enxergar as nuances
da sociedade em escala local. Qualquer estratégia de atuação junto aos evangélicos está
fadada ao fracasso se não tiver seu foco nas pequenas igrejas. Até porque os líderes das
grandes igrejas já provaram várias vezes que não são confiáveis.
Falar de judiciário, agronegócio e da Faria Lima separadamente soa estranho, uma vez que
esses grupos tem algo em comum: são elites econômicas. Em um momento de desigualdade
extrema, a atitude em relação a essas elites deve ser muito simples e já está, em parte,
prevista pelo governo Lula.
Para além disto, esses grupos são mais volúveis que os militares e que os evangélicos. Se a
economia está bem, eles vão apoiar o governo, não importa o que aconteça. São grupos que
tem muito a perder com o caos social e que, em um país estabilizado, nunca vão apoiar uma
ação como a ocorrida em 08 de janeiro.
Reforma tributária com foco no aumento da tributação dos mais ricos, com foco na
renda, no patrimônio, nos lucros e nos dividendos.
Reinvestimento do orçamento governamental em políticas que sejam redistributivas:
além do Bolsa Família de R$ 600, um exemplo clássico é o reinvestimento de incentivos
que iriam para o agronegócio para pequenos e médios produtores rurais, de preferência
de agricultura orgânica ou agroecológicos.
Democratização dos mecanismos de ingresso no Judiciário.
Incentivo à inovação e aos pequenos empreendedores intensivos em conhecimento.
Fiscalização intensa em relação ao desmatamento, com política ativa de reflorestamento
e de restabelecimento da cobertura vegetal.
Realização de parcerias entre governo e empresas em temas como ESG (Environmental,
Social & Governance), como forma de aprofundamento do projeto de país.
Apuração sobre participação em redes de divulgação de fake news e no financiamento
de atos antidemocráticos, com a devida punição.
7. Conclusão
Mas chamar Bolsonaro de fascista não dá uma dimensão exata do que ele é. Não porque ele
não possa ser enquadrado como tal, mas porque fascismo é uma definição insuficiente para
definir Bolsonaro. Ele é a soma de características de diversos líderes autoritários ao redor
do mundo. É uma extrema direita vira lata, que concilia as características autoritárias do
nazi-fascismo europeu com o conceito latino americano de “República das Bananas”. Em
algum sentido, isso torna Bolsonaro ainda mais extremista que alguns líderes fascistas:
enquanto os líderes fascistas respeitam e negociam com institucionalidades construídas
historicamente, Bolsonaro não reconhece essas institucionalidades. Para ele, o Brasil é uma
República das Bananas e nenhuma institucionalidade deve ser respeitada. Tudo deve ser
destruído. Esse foi o recado que os seguidores do Bolsonaro deram, da forma mais extrema,
no dia 08 de janeiro.
No entanto, de alguma forma, o Brasil segue de pé. Nossas instituições não aguentaram o
tranco porque são fortes ou consolidadas, mas por um conjunto de contingências muito
improváveis. Ao mesmo tempo nós tivemos:
Em uma análise mais ampla, o único momento na História do Brasil em que todos esses
fatores estiveram presentes foi em 2022. Mais do que isso: o mundo vai estudar por muitos
anos como o Brasil conteve o fascismo. Porque a conciliação que Lula está promovendo é de
fato uma lição para o mundo: todas as forças políticas que tem o mínimo de
comprometimento com a democracia decidiram se engajar junto com Lula.
Todo esse cenário, porém, segue muito fluido. A ameaça fascista segue real, e a democracia
está sendo salva pelo engajamento individual de algumas pessoas. O Brasil não tem
instituições fortes e quem diz que o Brasil tem instituições fortes está mentindo. Instituições
não podem ser mistificadas, precisam ser construídas com competência técnico-
administrativa, vontade política e engajamento da sociedade.
O tempo tem mostrado que a frase “a eleição brasileira vai salvar o mundo” se aplica muito
além do tema das mudanças climáticas. O bolsonarismo, mais do que um receptáculo dos
ideais de extrema direita praticados por governos como o de Trump, era (e ainda é) um
modelo para os governos de extrema direita mundo afora. Bolsonaro significa o governo de
destruição total que as forças de extrema direita desejaram por tanto tempo. Um governo
niilista, sem responsabilidade com nada, um grupo de pessoas cuja única missão é destruir
tudo. E os atos de 08 de janeiro foram a prova cabal disso.
O fato de que o Brasil está vencendo essa força destruidora extremamente poderosa é a
maior prova de que sim, a eleição de 30 de outubro decidiu o futuro da humanidade. É
como se o Brasil tivesse sido capaz de parar um impulso assassino prestes a se espalhar pelo
mundo. E não importa o que aconteça à partir de agora, é preciso frisar: esse já é um feito
histórico.
Temos uma última chance enquanto país de construir uma democracia forte e de mostrar
ao mundo como se constrói uma democracia forte. O nosso futuro e as próximas gerações
não nos dão o direito de desperdiçar essa chance.
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