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ENTREVISTA (/ENTREVISTA/)

‘Militares se acham gestores


públicos melhores que os civis’
Conrado Corsalette 29 de jan de 2023 (atualizado 29/01/2023 às
23h50)

Leia entrevista da jornalista Natalia Viana para o podcast


Politiquês na minissérie ‘Uma crise chamada Brasil’, em que ela
fala sobre a intensificação da presença das Forças Armadas na
política

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FOTO: EXÉRCITO BRASILEIRO/22.12.2014


TEMAS

POLÍTICA
(/TEMA/POLÍTICA)

! MILITAR DO EXÉRCITO
FOTOGRAFA OPERAÇÃO MILITAR
NO RIO DE JANEIRO

A jornalista Natalia Viana,


cofundadora da Agência
Pública e autora do livro
“Dano colateral: a
intervenção dos militares na
segurança pública”, foi
entrevistada pelo podcast
Politiquês em julho de 2022
para a minissérie “Uma
crise chamada Brasil”, que
traça um panorama dos
anos que marcaram a
quebra do pacto social da
Nova República.

Ela aparece no nono


episódio, “Política armada
(/podcast/2022/09/21/Polí
tica-armada-os-militares-
no-poder-e-a-ameaça-
golpista) ”, sobre o
protagonismo dos militares
no poder e a ameaça
golpista.

O Nexo traz agora a


transcrição da conversa que
teve com Viana. Ao longo de
dezembro de 2022 e janeiro
de 2023, as entrevistas
realizadas para a minissérie
serão publicadas por
escrito, a fim de que possam
ser fonte de consulta dos
leitores do jornal.

O que levou seguidos


governos a utilizarem
as Forças Armadas na
segurança pública, por
meio de operações de
garantia da lei e da
ordem? E por que isso
foi ficando cada vez
mais intenso?

NATALIA VIANA Na época da


Assembleia Constituinte, o
então ministro do Exército
Leônidas Pires liderou um
movimento para pressionar
pela inclusão da garantia
dos poderes constitucionais
como missão das Forças
Armadas. Na Constituição,
isso traduziu uma
transformação na ideia de
segurança interna que vinha
sendo usada na ditadura.

Na primeira metade da
década de 1990, os
primeiros governos depois
da Constituição usaram os
militares em momentos de
caos e violência,
principalmente no Rio de
Janeiro. Mas ainda se
buscava entender o que
seria a garantia da lei da
ordem, que é o que hoje
chamamos de GLO.

Em 1994, houve a Operação


Rio, que foi importante.
Essa operação foi, na
verdade, um convênio entre
a União e o estado do Rio de
Janeiro que deu ao
Comando Militar do Leste o
poder de ocupar várias
favelas durante os últimos
meses daquele ano, e depois
novamente em 1995. Além
disso, os militares sempre
atuaram em operações de
segurança em visitas de
dignitários estrangeiros,
como de papas e em eventos
como a Rio-92, a Copa do
Mundo [de futebol
masculino] e a Olimpíada
[do Rio].

O governo Fernando
Henrique [Cardoso] criou o
Ministério da Defesa, que é
o que define o controle civil
das Forças Armadas, e a
tradição, até o governo
[Michel] Temer, era que
esse cargo fosse exercido
por um civil. O governo
[Luiz Inácio] Lula seguiu na
busca de tentar determinar
como seria a atuação das
Forças Armadas, por meio
do ex-ministro da Defesa
Nelson Jobim,
normatizando as GLOs.

Eles começaram a usar o


Exército em operações de
segurança no Rio de
Janeiro, como já tinha sido
feito antes, mas de forma
muito atrelada às UPPs
[Unidades de Polícia
Pacificadora em
comunidades] e aos
megaeventos que
aconteceriam dali um
tempo. Houve primeiro a
operação de ocupação do
[Complexo do] Alemão,
depois [do Complexo] da
Maré e outras várias
operações em que o
Exército fazia uma primeira
ocupação de territórios para
que depois se implantassem
as UPPs, numa política de
pacificação tendo em vista a
Copa de 2014 e a Olimpíada
de 2016.

Isso foi uma política do


governo Lula. Houve uma
disputa dentro do governo
antes disso, se a segurança
desses megaeventos deveria
ficar com uma força de
segurança nacional, uma
força civil, ou com o
Exército. As Forças
Armadas ganharam a
parada.

Por que os governos civis


passaram a usar mais e
mais o Exército? Há
diversas versões. Na época,
acredito que foi por
conveniência política e
orçamentária. A primeira
ocupação, do Alemão,
aconteceu quando o estado
do Rio de Janeiro estava
querendo sanear e
transformar sua polícia,
inclusive recrutar novos
policiais para fazerem parte
das UPPs. E, nessa
transição, queriam uma
força externa para ocupar e
fazer o policiamento
ostensivo das favelas. Foi
um pedido do governador
Sérgio Cabral, que o
governo Lula aceitou. Aí se
abriram as portas para que
isso se repetisse, crescendo
no governo Dilma
[Rousseff] e mais ainda no
governo Temer.

Quais os impactos de
usar as Forças
Armadas como forças
policiais? Por que
esses impactos
ocorrem?
NATALIA VIANA No meu livro
“Dano colateral”,
argumento que houve três
impactos do aumento do
uso das GLOs e do Exército
como polícia. O primeiro
foram as mortes e as
violações de direitos
humanos. Eu contabilizei 35
mortes diretas pelo Exército
em GLOs até 2019, mas elas
são só a ponta de um
iceberg. Porque, além das
mortes, tem centenas de
denúncias de violações de
direitos humanos, algumas
gravíssimas como tortura
dentro da Vila Militar, com
evidências materiais, com
exame de corpo de delito.
Três procedimentos foram
abertos na Justiça Militar,
sem conclusão. É um custo
de vidas humanas e de
violações de direitos
humanos.
Depois, tem uma segunda
camada que é o fato de os
militares se tornarem cada
vez mais similares à polícia,
por conta da falta absoluta
de punição a essas violações
que descrevi. Na primeira
operação, sob Nelson
Jobim, tinha uma certa
supervisão da Justiça
Comum, e depois eles
conseguiram modificar a
legislação para jogar todos
os abusos para a Justiça
Militar, onde ninguém é
punido. Houve uma única
punição, que é o caso do
músico Evaldo Rosa, que foi
fuzilado [dentro do próprio
carro]. Mas houve recurso e
os autores do crime
continuam soltos. Então os
militares de baixa e alta
patente vão ficando cada
vez mais abusados. E isso é
a essência do que é a
palavra corrupção. Como
não há punição, as Forças
Armadas vão se
corrompendo.

O terceiro impacto é a volta


dos militares ao poder. Eles
ganharam proeminência e
poder de barganha com
esses governos que pediram
para eles atuarem como
polícia, e foram ampliando
a sua atuação para outras
áreas da vida pública. Eles
passaram a aparecer muito
mais, a atuar no debate
público antes mesmo de eles
se empenharem na eleição
do [ex-presidente Jair]
Bolsonaro. Isso trouxe uma
geração de generais que se
sentem aptos a palpitar na
política brasileira e disputá-
la.

Essas violações dos


direitos humanos
cometidas pelos
militares têm alguma
particularidade?

NATALIA VIANA Os militares


são treinados para a guerra,
para atuar contra um
inimigo. Quando se fala de
segurança pública, se
deveria ter uma perspectiva
de proteção do cidadão,
inclusive do criminoso. É
uma perspectiva de
resguardá-lo, fazer o
necessário para que se
cumpra a lei, e não de
extermínio, que é o que
acontece numa guerra. E
nosso Exército não é
treinado para fazer
segurança pública, por mais
que haja treinamentos para
GLOs e um centro específico
para isso em Campinas [no
interior de São Paulo].
Quem deve fazer segurança
pública são as polícias.
Além disso, os militares,
também por serem uma
organização hierárquica,
não têm uma compreensão
profunda, em geral, do que
é uma relação democrática.
Portanto, sua atuação no
debate público acaba sendo
norteada por uma visão
muitas vezes autoritária do
Brasil.

Por exemplo, quando era


ministro da Saúde, o
general [da reserva e
deputado federal eleito pelo
Rio Eduardo] Pazuello
dizia: “o presidente manda e
eu obedeço”. Isso é uma
lógica militar, não de um
governo civil. Porque não
importa o que deseja o
presidente, mas sim qual é a
política mais adequada à
situação. O governo
Bolsonaro também é
autoritário porque parte da
perspectiva de que os
ministros que vão contra as
crenças ou a vontade do
presidente são demitidos.
Isso é pouquíssimo
democrático e tem raiz na
profunda identificação que
o Bolsonaro tem com a
caserna, com as forças
militares.

A presença das Forças


Armadas no comando
da missão das Nações
Unidas no Haiti afetou
de alguma forma a
atuação dos militares
aqui no Brasil? Como?
NATALIA VIANA A atuação do
Brasil no Haiti foi
fundamental para a
transformação das nossas
Forças Armadas. Passaram
pelo Haiti 35 mil militares
brasileiros, foram 12 anos
de chefia do comando da
Minustah [a missão da
ONU] e todos os generais
com quem conversei
disseram que a experiência
formou uma geração assim
como a Segunda Guerra
Mundial havia formado
uma geração anterior. Entre
essas duas gerações, houve
uma geração forjada pela
ditadura.

O Haiti era parte operação


de combate, parte operação
urbana. No fundo, os
militares brasileiros foram
levados para lá para
pacificar as favelas que
estavam em revolta por
conta do sequestro do
presidente eleito [em 2004
Jean-Baptiste] Aristide por
forças americanas. Houve
um golpe de Estado ali e as
forças belicosas fiéis ao
Aristide se revoltaram, além
de se instalar um caos
urbano enorme.
O Haiti acabou sendo um
grande laboratório para o
que viria a ser a doutrina de
garantia da lei e da ordem
usada aqui no Brasil a partir
do governo Lula. É uma
relação muito direta, não só
da maneira de se ocupar o
terreno mas também de
gerir a população e
combater o que eles
chamam de Apop, agente
perturbador da ordem, o
que em qualquer operação
de guerra é o agente
inimigo. O comandante da
primeira operação [da UPP]
do Alemão contou com uma
tropa que passou pelo Haiti.

Como avalia a decisão


do Supremo de barrar
a revisão da Lei da
Anistia em 2010? O
que isso representou
para a população civil
e para os militares?
NATALIA VIANA Naquela
época, havia uma percepção
na sociedade e no Judiciário
de que a questão com as
Forças Armadas estava
resolvida, que elas eram
tementes à legislação e
tinham superado a época de
se envolver em política ou
tentar desestabilizar a
democracia. Por isso, é
difícil avaliar com o olhar de
hoje. Houve um pacto, que
não foi perfeito, assinado
por várias frentes políticas.
Na Argentina, esse pacto foi
revertido, mas no Brasil foi
assim que foi resolvido. Não
acho que não revisar tenha
sido necessariamente um
grande erro.

É óbvio que a nossa


sociedade não resolveu o
legado da ditadura e que
isso terá que ser enfrentado.
Não deveria haver nenhuma
força progressista ou
democrática que não
perceba isso à luz de tudo
que aconteceu durante o
governo Bolsonaro. Via
Supremo ou não, vai
precisar haver uma
readequação do papel das
Forças Armadas na nossa
sociedade, que é
hiperexacerbado para além
da área que lhe diz respeito,
que é a defesa do território.

Como a criação da
Comissão Nacional da
Verdade mexeu na
relação entre militares
e os governos petistas?
NATALIA VIANA A Comissão
Nacional da Verdade foi um
ponto crucial para o
esgarçamento das relações
entre as Forças Armadas e o
governo Dilma. Na lei que
criou a comissão, havia a
perspectiva de que se
apurasse também os crimes
cometidos pelas guerrilhas
de esquerda, mas o primeiro
ato dos membros eleitos foi
deixar claro que eles se
debruçariam apenas sobre
crimes de Estado.

Uma decisão absolutamente


justificável, uma vez que os
crimes das guerrilhas foram
punidos, inclusive fora da
lei. Mas punidos também
por uma série de recursos
que davam uma capa de
legalidade a procedimentos
bárbaros. Muitos foram
presos, exilados. Além
disso, há muita diferença
entre o que é um crime
cometido pelo Estado e o
que é um crime cometido
por um grupo alheio ao
Estado. Mas era essa
correlação que os generais
esperavam e, num ato de
insubordinação inaceitável,
eles não colaboraram com a
Comissão Nacional da
Verdade.

Nessa época apareceu a


figura do general [Sergio]
Etchegoyen, que escreveu
uma carta com a sua família
repudiando, com termos
fortes, o relatório final,
porque envolveu o seu pai.
Esse foi também um ato de
insubordinação que não foi
punido. Foi, na verdade,
recompensado, porque
Etchegoyen foi uma figura
fundamental no momento
seguinte ao impeachment
da Dilma, da transição para
o governo Temer. Ele
garantiu o apoio das Forças
Armadas, do então
comandante do Exército,
general [Eduardo] Villas
Bôas.

Não há como negar que a


Comissão Nacional da
Verdade foi um momento
em que as figuras mais
influentes das Forças
Armadas romperam com o
governo Dilma. Não há
como negar também que
isso foi insubordinação e
deveria ter sido punido
como tal. Então já havia um
problema anterior de falta
de lealdade das Forças
Armadas com o o governo
eleito e, portanto, com a
democracia.

Na sua avaliação, por


que políticos civis
passaram a ampliar
cada vez mais a
presença militar no
governo, antes mesmo
da chegada de
Bolsonaro ao poder?
NATALIA VIANA Cada um
teve seu motivo. Nos
governos petistas, havia
uma visão, desenhada pelo
Nelson Jobim, de que era
necessário dar um uso para
as Forças Armadas na
democracia. E de que
haveria situações nas quais
elas teriam que atuar dentro
do território, em especial
em situações de caos e
violência nas quais as
polícias não conseguem
mais responder.

Essa é uma visão que


acredito ser de todos os ex-
presidentes. Havia uma
vontade de normatizar o uso
das Forças Armadas. O
problema foi quando o Lula
quis preparar o país para os
megaeventos. Para
organizar algumas capitais,
principalmente o Rio de
Janeiro, para receber com
segurança delegações
estrangeiras.

As Forças Armadas foram


fundamentais para
implementar as UPPs, e
houve essa vontade política
de organizar o emprego das
Forças Armadas para
megaeventos,
normatizando-o por meio
de operações de garantia da
lei e da ordem. Além disso,
tinha a vontade de usar o
nosso Exército em missões
de paz no exterior, tentando
promover o Brasil como um
grande país pacifista e
negociador, um pouco à
tradição do Itamaraty.

Isso deu errado por dois


motivos. Primeiro, porque o
uso do Exército aumentou
de uma maneira tal que
ficou a percepção de que
seria impossível realizar
grandes eventos sem a
participação dos militares.
Depois, porque a cúpula das
Forças Armadas ganhou
muito poder de barganha
política depois da incursão
no Haiti, e ela criou uma
doutrina de garantia da lei e
da ordem para aplicar no
Brasil.

O governo Dilma é mais ou


menos uma sequência disso.
A Comissão da Verdade foi
implantada por que se
achou que estava
equacionado o papel das
Forças Armadas na
democracia, que nós
estávamos suficientemente
maduros. E não era
verdade. Os militares a
tomaram como um
revanchismo e renasceu a
retórica da Guerra Fria, tão
anacrônica quanto essencial
para a retórica bolsonarista.

Depois, o governo Temer


precisou dos militares para
respaldo político. No dia em
que ele toma posse, ele
recria o GSI [Gabinete de
Segurança Institucional] e
nomeia como secretário o
Etchegoyen, amigo do
comandante do Exército
[Villas Bôas]. É um
momento muito simbólico.
O Etchegoyen é um
ministro forte durante o
governo Temer, e garante o
respaldo institucional das
Forças Armadas num
momento de profunda
instabilidade, pós-
manifestações de 2013, no
auge da [Operação] Lava
Jato, inclusive com
articulação da PGR
[Procuradoria-Geral da
República] para demonstrar
corrupção do presidente. E
com isso conseguiu se criar
uma estabilidade.

Com Bolsonaro, já é um
governo de militares. Não
um governo militar nem um
governo civil, mas um
governo de militares. Uma
parte significativa de
generais são próximos do
governo, e aqueles que não
apoiam foram sendo
ostracizados. O Bolsonaro
foi muito inteligente em
manobrar isso. Há uma
proximidade muito grande
entre os generais que
ocupam o Ministério da
Defesa e o Exército, num
uso político para
amedrontar não só as forças
opositoras, mas também o
Judiciário, apoiando
discursos golpistas contra as
eleições.

A intervenção na
segurança pública do
Rio de Janeiro em
2018 foi o ápice do
protagonismo militar
em missões de GLO?
Como os militares
saíram daquela
intervenção, em
termos políticos e no
que se refere à
imagem diante da
opinião pública?
NATALIA VIANA Foi o auge
da GLOs, porque foi
praticamente um ano em
que toda a segurança
pública do estado do Rio de
Janeiro ficou na mão de um
militar, o general [Walter]
Braga Netto, que sai como
candidato a vice-presidente
para a reeleição de
Bolsonaro [em 2022]. O uso
do Braga Netto no governo
Bolsonaro tem o mesmo
significado político do [ex-
juiz da Lava Jato Sergio]
Moro como ministro [da
Justiça]. São dois servidores
públicos com proeminência
em momentos-chave da
nossa sociedade sendo
usados na política e
apostando depois em
carreiras políticas. É um
desvirtuamento tanto da
Lava Jato quanto da
intervenção.

Nas palavras do
Etchegoyen, a intervenção
no Rio de Janeiro foi “um
banho de loja”, um choque
de gestão numa situação
caótica da segurança
pública. Houve um
investimento enorme e os
militares reorganizaram a
força de segurança do
estado. Foram mais de 200
incursões em favelas. Os
militares controlaram um
pedaço do Rio.

Foi um passo para o que


viria depois. Entregou-se
um pedaço do estado civil
para militares gerirem na
democracia, e eles se
congratularam, viram-se
como muito mais capazes
do que os civis para gerir a
coisa pública. No governo
Bolsonaro, eles voltam ao
comando da Petrobras, dos
Correios, do Ministério da
Saúde, do Ministério da
Infraestrutura. Eles têm a
visão de que são mais
eficientes, de que são
ilibados, de que não são
corruptos. É uma visão que
fundamenta o ethos
bolsonarista e é uma uma
visão autoritária.

Foi o ápice também porque


logo depois o Bolsonaro é
eleito. Ele tomou posse em
2019, e a intervenção foi em
2018. No seu governo, os
militares foram menos
empregados na segurança
pública, porque eles
queriam ter o mesmo poder
de fogo que tinham no
Haiti. Lá, por estarem numa
força de pacificação, eles
podiam matar. No Brasil
eles não podem, porque
estão sob a Constituição
Brasileira. Por isso, esses
vários esforços do governo
Bolsonaro de ampliar os
excludentes de ilicitude
para militares. É uma
resposta a uma demanda
que eles sempre tiveram, de
não responder penalmente
se matarem alguém.

Bolsonaro sempre teve


o baixo escalão militar
e policial como base.
Quando exatamente o
político passou a
ampliar sua influência
para escalões
superiores?
NATALIA VIANA Foi
justamente na época da
Comissão Nacional da
Verdade, da qual o
Bolsonaro foi o principal
opositor na Câmara dos
Deputados. Foi um
momento em que ele voltou
a ser aceito nas bases
militares para fazer
proselitismo aos soldados.

Na sua avaliação, as
Forças Armadas, como
instituição, abriram as
portas para Bolsonaro
nos anos que
precederam as
eleições de 2018?
NATALIA VIANA Sim. voltou a
se permitir que Bolsonaro
fizesse proselitismo,
pregação e pedisse votos
dentro do Exército. Além
disso, os colegas do
Bolsonaro chegaram às
graduações superiores.
Quem foi colega dele na
Aman [Academia Militar
das Agulhas Negras] chegou
nessa época a general. É o
caso do general [Luiz]
Eduardo Ramos [ex-
ministro de Bolsonaro], que
passou a fazer parte do Alto
Comando do Exército e a
convencer os demais de que
não havia nada demais em
deixar o Bolsonaro fazer
política nos quartéis.

Além disso, houve um


favorecimento claro do
comandante do Exército,
que era o Eduardo Villas
Bôas. Ele recebeu todos os
candidatos à Presidência em
2018, inclusive o
[Fernando] Haddad [do
PT]. Mas ele recebeu o
Bolsonaro três vezes. Assim
que Bolsonaro é eleito,
Villas Bôas se reforma e vai
trabalhar no GSI. Recebe
um cargo no governo, assim
como Moro e Braga Netto.
São pessoas recompensadas
por alguma coisa que
fizeram. Em um evento, o
Bolsonaro chega a
agradecer o Villas Bôas por
tudo que ele fez.

No fim de 2018, quando o


Bolsonaro já tinha sido
eleito, o Villas Bôas dá para
ele o diploma de formatura
na Aman, que ele não tinha
porque tinha pedido o
desligamento de lá em meio
a um procedimento de
investigação por ele ter
planejado atentados
terroristas em uma base do
Exército. O Villas Bôas
simbolicamente dá para ele
o que ele sempre quis, a
formatura. O vídeo do ato
foi deletado do YouTube, e
nele o Bolsonaro está muito
emocionado e diz que vai
devolver o Brasil para o
lugar de nunca deveria ter
saído vinte e tantos anos
antes.
Como avalia as
investidas do comando
do Exército durante o
julgamento no
Supremo que abriu
caminho para a prisão
de Lula em 2018,
quando o ex-
presidente liderava as
pesquisas de intenção
de voto na corrida ao
Planalto?
NATALIA VIANA Na época, o
Villas Bôas assumiu aquela
mensagem pública como se
fosse só sua. Mas depois, no
seu livro de memórias,
deixou claro que tinha sido
uma decisão de todo o
Comando do Exército, que
consultou a todos. Não foi
uma movimentação solo.
Disseram que era para
apaziguar as tropas, mas é
óbvio que foi uma ameaça
ao Judiciário. Vejo isso
como o marco inicial das
ameaças das Forças
Armadas à Justiça.
Começou em 2018 e não
acabou.

Foi um momento
absolutamente fora das
quatro linhas da
Constituição, como eles
adoram falar. O próprio
Villas Bôas reconhece no
livro dele que ele acha que
saiu barato. Quer dizer, foi
um momento em que o
Exército se afirmou como
força política, e o primeiro
passo para eles se
engajarem no governo do
Bolsonaro. Um momento
muito triste e um marco da
derrocada da nossa
democracia.

Mas acho importante


lembrar do acordão, da fala
[do ex-senador] Romero
Jucá [grampeado, ele
defendeu o impeachment de
Dilma dizendo ser
necessário um “grande
acordo nacional”]. Nessa
fala, ele dizia que estava
consultando as lideranças
militares, que garantiam
que não haveria distúrbios e
diziam estar monitorando o
MST [Movimento dos
Trabalhadores Sem-Terra].

O impeachment da Dilma é
de 2016, bem antes desse
tuíte [do Villas Bôas].
Também nessa época,
houve pelo menos dois
jantares em que estiveram
Temer, Etchegoyen e o
Villas Bôas. É algo que é
descrito pelo próprio Temer
no seu livro de memórias.
Os militares participaram
ativamente de um acordão
pelo impeachment. O tuíte
de 2018 escancara
publicamente o papel que o
Exército quis assumir.
Na sua avaliação, por
que Dias Toffoli, então
presidente do
Supremo, levou
militares para dentro
da estrutura do
tribunal em 2018?
NATALIA VIANA O Dias
Toffoli tinha uma percepção
de que os militares estavam
tendo um papel de
estabilização depois do
impeachment da Dilma. Ele
deixou isso muito claro, mas
apostou erroneamente que
poderia se fazer uma aliança
positiva. Ele acredita nisso,
que as Forças Armadas têm
um papel crucial na
estabilização da nossa
democracia. Mas não sei se
ele faria a mesma coisa
hoje.

Antes da posse de
Bolsonaro, os
militares eram vistos
como uma espécie de
freio a eventuais
arroubos extremistas
de Bolsonaro. Esse
papel chegou a ser
exercido em algum
momento?
NATALIA VIANA Segundo a
apuração do repórter
Vasconcelo Quadros
[colaborador da Agência
Pública], houve um
momento, no começo da
pandemia, que os militares
tentaram manter o [ex-
ministro da Saúde Luiz
Henrique] Mandetta no
cargo. Os generais
acreditam na ciência, eles
têm uma educação
sofisticada. Há uma cena
que nos foi descrita segundo
a qual os militares
chegaram a emparedar o
Bolsonaro nesse sentido,
mas ele conseguiu reverter
essa situação com uma
campanha de
desinformação e de
assassinato de reputação do
Mandetta via redes sociais,
criando uma demanda
social que não existia.

Outro momento foi descrito


pela repórter Monica
Gugliano numa reportagem
da Piauí, segundo a qual o
Bolsonaro teria decidido
intervir no Supremo
Tribunal Federal e três
generais [da reserva e então
ministros], [Luiz Eduardo]
Ramos, [Augusto] Heleno e
Fernando Azevedo o
dissuadiram, agindo como
moderadores.

Mas esse não é o papel dos


militares, porque é o
Supremo que exerce papel
moderador, de obedecer e
interpretar a Constituição.
Os militares têm que estar
fora da política. Houve uma
autoilusão deles e da
imprensa, que repetiu isso
ad nauseam.

O que acabou acontecendo é


que os militares mais
moderados foram todos
ostracizados, retirados do
governo, e ficaram aqueles
mais alinhados ao
Bolsonaro, criando
justificativas para apoiar
um governo que ataca a
democracia e a legislação. A
principal delas é de que o
Supremo exacerba os seus
poderes.

Com Bolsonaro no
governo, as Forças
Armadas voltaram a
exaltar oficialmente o
golpe de 1964,
associando aquela
ruptura a um
movimento
“democrático”. Como
isso é possível?
NATALIA VIANA A principal
lição dos últimos dez anos é
que tudo é possível. Cria-se
narrativas para justificar
tudo e basta você ter uma
massa de pessoas que
acreditam e apoiam sua
versão para que isso seja
verdade. É o caso da
justificativa de que o golpe
de 64 foi dado para acabar
com a corrupção que
vicejava, na visão dos
militares, no governo João
Goulart e frear um pretenso
avanço comunista no país.
De que foi algo democrático,
que duraria inicialmente
pouco tempo mas acabou
durando 21 anos para
defender o Brasil e a
sociedade.

Depois de todos os
absurdos, torturas,
execuções, enfim, depois
que ficou muito mais claro
que foi uma ditadura, um
golpe em que um grupo
sobrepujou outro, essa
justificativa foi superada
historicamente.

A retórica do Bolsonaro
confunde muito, de
propósito, diferentes
argumentos em prol da
democracia. Por exemplo,
atacar as urnas eletrônicas,
um sistema ilibado, sob o
argumento de preservar a
integridade do voto, de
preservar a democracia.

Com a eleição de
Bolsonaro, os
militares da ativa e da
reserva passaram a
ocupar cada vez mais
postos na máquina
pública. A que se deve
o fato de Bolsonaro ter
apostado tanto nas
Forças Armadas, pelo
menos inicialmente,
para gerir o país?
NATALIA VIANA Na origem
do ethos bolsonarista, há o
pensamento de um homem
educado dentro do Exército,
durante a ditadura militar,
segundo o qual os militares
são gestores eficientes. E,
principalmente, que não são
corruptos. Essa ideia dos
militares como bons
gestores cresce durante a
democracia e o primeiro
passo para ela se
corporificar é justamente a
intervenção no Rio de
Janeiro.

O que ficou claro no


governo Bolsonaro é que os
militares não são nem um
pouquinho melhores para
gerir a coisa pública do que
qualquer civil. Na verdade,
são piores, porque há uma
falta de compreensão do
que são processos
democráticos, do que é gerir
um governo e todas as
tensões e negociações
necessárias para isso. É uma
percepção distorcida da
coisa pública, que não
funciona numa democracia.

Isso causou desastres


absolutos, como a vergonha
mundial de ser o único país
que teve um programa
oficial para produzir e
distribuir cloroquina [para
combater a pandemia de
covid-19]. Isso é muito pior
do que omissão ou
ineficiência. E aconteceu
num ministério gerido por
um general.

Mas não foi só isso. Tem


uma quantidade enorme de
militares da ativa ocupando
dois, três cargos de maneira
ilegal, ganhando salários
acima do teto, fazendo
lobby, casos de nepotismo.
Isso é corrupção.

Além disso, tem uma visão


predominante do
bolsonarismo de que a
política é uma prática
corrupta. No início, o
Bolsonaro tinha a percepção
de que ia conseguir
governar só com as Forças
Armadas, evangélicos e o
núcleo duro do
bolsonarismo, incluindo aí
sua família. Por isso os
militares ganharam muito
espaço no governo. Mas não
é assim que se governa um
país, porque você precisa de
trânsito no Congresso. Aí
que houve o grande acordo
com o centrão, que depois
passou a ocupar vários
cargos, inclusive em
ministérios antes ocupados
pelas Forças Armadas.

Qual o saldo da gestão


de militares em
postos-chave da
administração federal
durante o governo
Bolsonaro? O que (e
quem) destacaria
nesse aspecto?
NATALIA VIANA O saldo é
negativo em vários aspectos,
mas em especial as relações
civil-militares se
esgarçaram a ponto de um
ministro do Supremo [Luís
Roberto Barroso] dizer que
os militares estavam sendo
usados para atacar as urnas
e isso ser verdade.

Mas eu destacaria a gestão


do Ministério da Saúde. A
ida do Pazuello para o
Ministério da Saúde tem a
ver com uma visão do
Exército, presente em
documentos internos de
estratégia, segundo a qual
pandemias são ocasiões que
podem significar risco à
defesa nacional e seriam da
alçada das Forças Armadas.
Só que a gestão brasileira da
pandemia, feita por um
general, foi desastrosa.
Morreu mais gente no Brasil
do que na Índia, que é um
país que tem 1,2 bilhão de
pessoas.

E o desastre só não foi


maior por causa da ação
eficiente dos governadores,
numa briga com um
governo federal que apostou
em não fazer isolamento,
em distribuir remédios que
não funcionavam, que
demorou para comprar
vacinas e depois fez uma má
gestão logística da
vacinação. Não vai ser
possível lembrar do governo
Bolsonaro sem lembrar
dessa desastrosa e
criminosa gestão da
pandemia de covid. E isso é
corresponsabilidade das
Forças Armadas.

Bolsonaro passou boa


parte do ano de 2020
atacando o Supremo e
usando as Forças
Armadas como aliadas
nessas investidas. Na
sua avaliação, por que
a cúpula militar
manteve-se nessa
posição?
NATALIA VIANA Há uma
visão que permeia todos os
generais da cúpula militar,
de que o Supremo se
exacerbou ao se imiscuir na
política demasiadamente. É
uma visão partilhada por
boa parte da esquerda. Por
exemplo, o Supremo
interferiu na época da Lava
Jato, na nomeação de um
ministro da Dilma [que
convidou Lula para chefiar a
Casa Civil em 2016]. O
Supremo também mudou
um entendimento [sobre
prisão em segunda
instância] para manter o
Lula preso. Mas a percepção
de generais de que as Forças
Armadas teriam que
moderar um conflito entre
Executivo e Judiciário é
absolutamente equivocada,
antiquada, autoritária e
antidemocrática.

Os generais que não


concordam com as ameaças
bolsonarista foram
ostracizados, e os que
ficaram colocaram seu
nome ao lado de um homem
que ataca constantemente o
Supremo e é golpista. Estão
dentro da aventura
bolsonarista. Não significa
que as Forças Armadas vão
ajudar Bolsonaro a dar um
golpe, mas significa que há
uma fratura grande o
suficiente na cúpula militar
que pode viabilizar uma
manobra bolsonarista em
um momento de grande
confusão.

Como foi possível


Bolsonaro operar a
entrada do centrão no
governo a partir de
2020, cedendo ao
núcleo mais fisiológico
do Congresso, com a
anuência dos
militares?
NATALIA VIANA Tem a ver
com uma visão um pouco
mais pragmática, em
determinado momento
tinha dezenas de pedidos de
impeachment empilhados
contra o Bolsonaro.

Claro que com isso cai por


terra a visão de que no
governo Bolsonaro não teria
corrupção, que é uma visão
que hoje em dia já está
ultrapassada no
bolsonarismo. O que segura
o bolsonarismo atualmente
é o militarismo, a misoginia
e o anticomunismo.

Qual é a dimensão
atual do engajamento
militar ao
bolsonarismo? Em que
medida a base e a
cúpula estão com o
presidente?
NATALIA VIANA São
perguntas infelizmente
impossíveis de responder,
porque os militares não
falam muito. Grupos
organizados de militares da
base estão descontentes,
com sindicatos apontando
que Bolsonaro traiu a base
para se aliar aos generais. É
uma turma que vê uma
grande diferença de
tratamento das altas
patentes para as baixas
patentes. Quem se
beneficiou com a reforma
da Previdência foram os
militares da alta patente,
muito mais. Os militares de
baixa patente e
principalmente os
temporários são
maltratados no Brasil.

No entanto, há um
alinhamento de todo o
extrato militar com valores
de direita, como
militarismo, patriotismo,
família, propriedade. As
Forças Armadas são
homofóbicas e misóginas,
não tem nenhuma
possibilidade de uma
mulher ser general em um
futuro próximo.

Embora as Forças Armadas


tenham se profissionalizado
em relação a 1964, elas
ainda têm um pensamento
antiquado. E o pior de tudo
é que não há supervisão
civil, então não sabemos o
que está sendo ensinado
dentro das academias
militares.

A lealdade dos militares,


principalmente daqueles
que saíram do governo, é
muito mais com as Forças
Armadas do que com o
Bolsonaro. A identificação e
o voto não significam apoio
irrestrito ao Bolsonaro.
No começo de 2021, a
cúpula militar caiu,
com a demissão dos
chefes das três Forças.
Alguns analistas viram
ali uma tentativa das
Forças Armadas de
criar um certo
distanciamento do
discurso golpista do
governo. Outros
destacaram que o
movimento apenas
consolidava ainda
mais a influência
bolsonarista entre os
militares da ativa.
Como você analisa
aquele momento? O
que de fato ocorreu
ali?
NATALIA VIANA Foi um ato
histórico de renúncia
coletiva de militares que
decidiram que não queriam
entrar nessa estratégia de
colar as Forças Armadas à
retórica golpista de
Bolsonaro. Mas isso
também demonstrou que
Bolsonaro consegue jogar
todo mundo que não
concorda com ele no
ostracismo. Bolsonaro e a
sua máquina de ódio, sua
máquina de desfazer
reputações, conseguem,
primeiro, cooptar toda a
direita e, depois, desidratar
figuras que em dado
momento foram relevantes
no bolsonarismo.
É aí que Bolsonaro é
perigoso, assim como o [ex-
presidente Donald] Trump
nos Estados Unidos, que
conseguiu transformar todo
o Partido Republicano
apenas em Trump.
Bolsonaro está conseguindo
fazer isso aqui no Brasil
com a direita. Esse é o risco
do bolsonarismo.

Em agosto de 2021, a
Câmara avaliou a
criação do voto
impresso. Ao mesmo
tempo, as Forças
Armadas desfilavam
do lado de fora. Qual o
simbolismo daquele
momento? Por que as
Forças Armadas
aceitaram desfilar ali?

NATALIA VIANA O
simbolismo desse momento
é extremamente forte, assim
como em todos os atos em
que Bolsonaro busca colar
sua imagem à do Exército.
Ele trabalha por
manipulação de discursos e
da realidade através de
narrativas e simbolismos.
As Forças Armadas estavam
com comandantes novos,
para quem não era uma
opção não acatar as ordens
de Bolsonaro. E acabou não
sendo sequer uma
demonstração de força, mas
de decadência moral e
fraqueza real das nossas
Forças Armadas, com
aqueles tanques soltando
fumaça.

O que o Bolsonaro faz é usar


as Forças Armadas para
criar medo e ansiedade. Isso
é perigoso não apenas pela
retórica, mas porque
normaliza certas situações
que não são normais.

O dia 7 de setembro de
2021 foi cercado de
temores de um
eventual golpe, algo
que não ocorreu. Na
sua avaliação, havia ali
algum risco real de
ruptura institucional?
Como avalia o papel
das Forças Armadas
naquele momento?
NATALIA VIANA Discordo da
visão de que havia um
temor de algo que não se
realizou. Houve ações
seríssimas, com
caminhoneiros bloqueando
estradas pelo Brasil. Houve
um grupo que acampou e
tentou invadir o Supremo.
Isso é bastante sério e essas
pessoas não foram punidas.

As manifestações foram
também bastante grandes.
O Bolsonaro fez um teste e
voltou atrás com o auxílio
da turma do deixa disso,
Temer e seus aliados. Mas
foi um grande ensaio. Foi
uma demonstração maciça
de intento de ruptura
institucional real que não
foi punida.

Como avalia a decisão


do Tribunal Superior
Eleitoral de chamar as
Forças Armadas para
participar do processo
eleitoral de 2022?
Alguns ministros
dizem nos bastidores
que a decisão foi um
erro, porque se voltou
contra o próprio TSE.
Você concorda ou
discorda?
NATALIA VIANA Foi um
grande erro. Talvez apenas
comparável ao erro de
manter o Lula na cadeia e
proibi-lo de dar entrevistas
nas eleições de 2018, uma
mudança de entendimento
temporária no Supremo que
serviu só para tirar o Lula
das eleições.

Foi um erro também por


princípio, que tem a ver
com aquela visão de que as
Forças Armadas estabilizam
ou garantem os poderes
constitucionais. Não é o
papel delas, elas obedecem
aos poderes constitucionais.
Não se pode chamar as
Forças Armadas para dar
palpite em áreas que não
lhes dizem respeito.
Como avalia a atitude
das Forças Armadas
no debate público com
o TSE a respeito da
segurança das urnas
eletrônicas? E como
avalia a reação pública
dos ministros do
tribunal aos
questionamentos dos
militares?
NATALIA VIANA Vexaminosa,
ainda mais depois que
Bolsonaro falou claramente
que as Forças Armadas
estão obedecendo às suas
ordens. Ou seja, você
convida uma instituição de
Estado para participar de
um debate sobre o processo
eleitoral e ela age como um
braço de um governo. E elas
fazem questionamentos
repetidos, sugerem medidas
que não aceitas porque não
tinham que ser, isso vai
sendo repercutido e
amplificado pelas redes
bolsonaristas e aumenta
profundamente a
insegurança em relação às
eleições.

É um papel de
desestabilização da nossa
democracia vindo de dentro
das Forças Armadas. É uma
situação absurda que
deveria ser punida. O
ministro da Defesa e os
generais que se meteram
nisso têm que ser
penalizados.

É engraçado porque, na
doutrina das Forças
Armadas, sempre se falou
de inimigo interno. Hoje em
dia elas que são o inimigo
interno da democracia.

Em 2022,
organizações ligadas a
generais da reserva
lançaram o
documento “Projeto
de Nação”, em que
vislumbram cenários e
propõem políticas
públicas a serem
implementadas no
país ao longo dos
próximos 13 anos. O
texto emula ideias
geopolíticas do
escritor Olavo de
Carvalho, reproduz
teses
antiambientalistas do
bolsonarismo, reforça
críticas presidenciais à
atuação do Judiciário
e propõe planos
economicamente
liberais como cobrar
mensalidade nas
universidades públicas
e por atendimento no
SUS. Em que medida
esse texto representa o
pensamento das
Forças Armadas
brasileiras?
NATALIA VIANA Esse é
projeto de um grupo
político próximo ao Villas
Bôas que teve uma atuação
política muito grande no
começo do bolsonarismo. É
o mesmo grupo que fez a
articulação pró-
impeachment de Dilma e a
transição para o governo
Temer. São generais
influentes, mas não acho
que o documento
representa o pensamento
das Forças Armadas
brasileiras como um todo.

Na sua avaliação, o
que levou essa geração
de generais a buscar
um protagonismo
político tão grande
após o período de
submersão pós-
ditadura?
NATALIA VIANA As Forças
Armadas brasileiras
receberam um grande afago
da imprensa na democracia.
Quando lançamos a Agência
Pública em 2011, havia
pouquíssimas investigações
sobre crimes da ditadura.
Por isso, essa foi uma das
nossas prioridades nos
primeiros anos. Além disso,
os nossos governos,
incluindo Lula e Dilma,
deram proeminência
política a alguns generais.
Tem também o fato de
vivermos um período de
instabilidade política que
começou em 2013. Os
militares, com sua
autoconcepção de
fundadores da nação e
tutores da nossa
institucionalidade, sentiram
que eram os mais
preparados para superar
esse momento. E eles têm a
convicção que o Brasil é um
país conservador, e que os
militares foram chamados
para responder aos anseios
da nação.

E, claro, tem a vaidade. A


filósofa Mary
Wollstonecraft fala que a
vaidade é parte
fundamental das Forças
Armadas, principalmente
em tempo de paz, quando
elas não têm
obrigatoriamente um uso
adequado ou necessário.
Um pouco da vontade de
voltar à política é parte da
vaidade também dos
generais.

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ENTREVISTA
(/ENTREVISTA/)
‘Comportamento
de
Bolsonaro
desgastou
Forças
Armadas’
(/entrevista/2023/01/28/
‘Comportamento-
de-
Bolsonaro-
desgastou-
Forças-
Armadas’)

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(https://thetrustproject.org/) MAIS

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