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“Temerosas transações”: ensaios sobre o golpe recente no Brasil
“Temerosas transações”:
ensaios sobre
o golpe recente no Brasil
1ª edição
2017
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Lorena Madruga Monteiro, Luciana Santana (organizadoras)
CONSELHO EDITORIAL
COMITÊ EDITORIAL
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“Temerosas transações”: ensaios sobre o golpe recente no Brasil
Todos os direitos são reservados. Nenhuma parte deste livro poderá ser reproduzida por
qualquer meio impresso, eletrônico ou que venha a ser criado, sem o prévio e expresso con-
sentimento da Editora. A utilização de citações do texto deverá obedeceras regras editadas
pela ABNT. As ideias, conceitos e/ou comentários expressos na presente obra são criação e
elaboração exclusiva do(s) autor(es), não cabendo nenhuma responsabilidade à Editora.
Texto eletrônico.
Modo de acesso: World Wide Web.
CDD: 320.0981
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Lorena Madruga Monteiro, Luciana Santana (organizadoras)
AGRADECIMENTOS
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“Temerosas transações”: ensaios sobre o golpe recente no Brasil
LISTA DE SIGLAS
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Lorena Madruga Monteiro, Luciana Santana (organizadoras)
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“Temerosas transações”: ensaios sobre o golpe recente no Brasil
SUMÁRIO
PREFÁCIO 10
Ana Prestes
1. APRESENTAÇÃO 18
Lorena Monteiro
Luciana Santana
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Lorena Madruga Monteiro, Luciana Santana (organizadoras)
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“Temerosas transações”: ensaios sobre o golpe recente no Brasil
PREFÁCIO
Qualquer um que escreva em tempos de golpe deve sentir aquela sensa-
ção de que lhe escapa algo, de que o turbilhão perturba a nitidez das imagens do
presente, mas de que ainda assim é preciso escrever. Não foi diferente quando
me pediram para prefaciar esta coletânea de ensaios sobre um tempo de tene-
brosas transações, de inescapável subtração das bases da democracia brasileira,
tão duramente conquistada. Os últimos anos têm sido de intensa instabilidade
e imprevisibilidade política, circunstâncias sob as quais é um desafio propor
análises. O cenário torna ainda mais instigante decifrar a quadra histórica na
qual se encontra o Brasil.
O livro surge em um contexto de restauração conservadora na América
Latina. Se até bem pouco tempo, nós, os povos abaixo do Rio Bravo, éramos
uma referência mundial pela instalação e avanço de um ciclo virtuoso, a partir
de governos comprometidos com uma agenda de combate à desigualdade, hoje
somos fonte de preocupação pela escalada de uma agenda autoritária e neoliberal
que reverte avanços e impõe o retrocesso. Em pouco mais de uma década,
milhões foram retirados da pobreza, democracias foram fortalecidas, processos de
integração como Mercosul, Unasul e Celac foram criados ou aprofundados, um
histórico processo de paz foi selado na Colômbia. Não seria plausível pensar que
tais movimentos passariam incólumes a uma reação conservadora.
Em 2014 o Presidente do Equador Rafael Correa denunciou no 1º. ELAP
(Encontro Latino-americano Progressista) que estava em marcha um processo de
“restauração conservadora” na região. O novo ciclo inaugurado na América Latina
no início do milênio com a eleição de governos progressistas ante às mazelas do
neoliberalismo passava a enfrentar sérias dificuldades para sua manutenção. Os se-
tores conservadores, reacionários e de direita, nacionais e internacionais, da região
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Lorena Madruga Monteiro, Luciana Santana (organizadoras)
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“Temerosas transações”: ensaios sobre o golpe recente no Brasil
a derrubada do governo via uma farsa judicial legitimada pela ação parlamentar.
Trata-se de uma modernização do modus operandi estadunidense para forçar sua
hegemonia na região. Ficaram para trás os velhos golpes de Estado militarizados e
de métodos brutais. A premissa é recuperar a desgastada hegemonia do Consenso
de Washington na região.
No Brasil, podemos dizer que o ponto de viragem do ciclo progressista ficou
evidente em 2013. Um conjunto expressivo de manifestações levou milhares de
pessoas às ruas das principais cidades do país. Elas inauguraram uma série de pro-
testos a princípio difusos e de amplo espectro de demandas que aos poucos foram
afunilando para uma narrativa contestatória à legitimidade dos sequentes governos
encabeçados pelo PT. Em 2014 tais protestos foram relacionados à realização dos
grandes eventos esportivos, em especial a Copa do Mundo de Futebol. Em 2015
iniciaram os protestos para o impeachment. Estes últimos serviriam como pano
de fundo popularesco de uma manobra fraudulenta, operada por setores do parla-
mento, do judiciário e da grande imprensa para destituir uma presidente eleita pelo
voto popular.
Segundo a professora Céli Pinto, no artigo A trajetória discursiva das mani-
festações de rua no Brasil (2013-201), publicado na Revista Lua Nova de número
100, do Movimento Passe Livre aos Black Blocs, incluindo uma miríade de atores e
segmentos da sociedade, as fragmentarias e volumosas manifestações de junho de
2013 inauguraram uma trajetória de evolução do discurso tendencialmente de di-
reita que desembocou no movimento pró impeachment de 2015. A grande maioria
de pessoas mobilizadas em 2013, segundo Pinto, não pertencia a nenhum grupo
organizado, mas eram sim indivíduos capturados pelo discurso anticorrupção que
associava a imagem de decrepitude da política e dos políticos às insuficiências dos
serviços públicos de transporte, saúde, educação e segurança.
O mais concreto indicador de que 2013 foi um ponto de viragem é a evo-
lução negativa da popularidade da Presidenta Dilma que caiu de 65% de ótimo
e bom em março para 30% em junho. Daí até o final de 2014 a popularidade da
presidente não recobrou os patamares anteriores a junho de 2013, chegando a no
máximo 40% de aprovação, segundo dados do Data Folha. O mais instigante é ob-
servar que as manifestações não se deram ante um governo de baixa popularidade,
mas sim a baixa popularidade foi consequência das manifestações. A aprovação
pessoal da presidente havia chegado a 79% em março do mesmo ano, superior a
Lula (58%) e FHC (70%) no mesmo período de governo. Apenas 17% da popula-
ção desaprovava o jeito Dilma de governar, segundo pesquisa da CNI. O índice de
confiança na presidente também havia subido de 73% em dezembro de 2012 para
75% em março do ano seguinte. Nesta época, o desemprego estava em 5,5% e o
salário mínimo havia subido 9% em janeiro. Renato da Fonseca, gerente executivo
desta pesquisa da CNI chegou a dizer na época: “Há uma avaliação positiva no
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também foram presos neste período. Daí em diante a agenda do país foi transferida
para as mãos dos coordenadores da operação que passaram a alimentar a mídia com
vazamentos seletivos e dar ritmo à marcha do golpe.
A associação entre Lava Jato e mídia teve grande impacto na consolidação
da narrativa golpista. Coube à mídia ocultar as denúncias de Barusco, por exemplo,
que remontavam a 1997, período do governo FHC, e fazer o recorte e amplificação
da suposta máquina petista de corrupção na estatal. Esse timing tão sincronizado
com a imprensa também foi notório na agenda de mobilizações populares que
irromperam no país em março de 2015. Prisões, delações, inferências ilustradas
por infográficos durante longos minutos de audiência nacional foram capazes de
provocar os primeiros panelaços contra Dilma em 8 de março de 2015. No domingo
15 foram grandes as marchas dos defensores do impeachment com direito a
convocação prévia e cobertura em tempo real pela Rede Globo. Vestidas de verde e
amarelo, famílias inteiras, em geral brancas e de classe média deram a pincelada de
legitimidade popular que o golpe precisava.
A ação deletéria da grande imprensa já estava presente no período anterior.
Segundo o escritor Fernando Morais, “a mídia que hoje está aí atuando, que defen-
de o que eles chamam de reformas, é a mesma que levou Getúlio ao suicídio em
1954, que não queria deixar Juscelino assumir a Presidência, que apoiou dois golpes
de Estado contra Juscelino, que agiu contra Jango”. Como no suicídio de Getúlio,
na desestabilização de JK e no golpe contra Jango, a imprensa, com destaque para a
Rede Globo, estava decidida a fazer valer, a qualquer custo, seus interesses políticos
e econômicos. Ao longo dos últimos anos os grandes grupos da mídia nacional
atuaram de forma deliberada, através de espaços de concessão pública, inclusive,
para difundir valores e minar as bases de sustentação dos governos liderados pelo
PT e seus aliados. Chegaram a conseguir romantizar manifestações em que se de-
fendia intervenção militar e outros absurdos inconstitucionais e antidemocráticos.
Machismo e misoginia também deram o tom a todo o processo golpista con-
tra a presidente Dilma. “O recado que estão dando nesse processo é também para
todas as mulheres. Com o seu impedimento eles nos dizem: mulher não pode”,
disse a Senadora Regina Souza no plenário do Senado no dia da votação do impea-
chment em agosto de 2016. Em um amplo ataque de desumanização, a presidente
chegou a ser “acusada” por revista semanal de grande circulação de estar descon-
trolada emocionalmente e “completamente fora de si” sem condições, portanto,
de conduzir o país. O conjunto de violências e depreciações machistas sofridas
pela presidente ao longo de sua carreira foi instrumentalizado para a reversão da
imagem de uma competente condutora do país. O discurso sexista resvalou para
a materialidade e chegou a ser investigado pelo Ministério Público e repudiado
pela ONU, como no caso do adesivo para carros, colados na entrada do tanque de
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Lorena Madruga Monteiro, Luciana Santana (organizadoras)
Ana Prestes
Doutora em Ciência Política (UFMG)
Brasília, novembro de 2017.
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APRESENTAÇÃO
A música Vai Passar, de Chico Buarque, que se referia aos tempos árduos da
ditadura Civil-Militar no Brasil foi a inspiração para a organização desta coletânea. Os
tempos atuais, no nosso entender, dialogam, dadas as proporções, com o contexto que
Buarque denunciava. Após o impeachment sem crime da presidente Dilma Rousseff,
do Partido dos Trabalhadores (PT), legitimamente eleita, os barões famintos, o bloco
dos napoleões retintos e os pigmeus do boulevard se sentiram à vontade para imple-
mentar uma série de medidas que podem levar o povo brasileiro de volta à servidão,
retrocedendo, assim, a uma página infeliz da nossa história, a escravidão. Quem carre-
ga o estandarte e lidera esse sanatório geral que virou o Brasil após o processo de im-
peachment é Michel Temer, do PMDB, que era vice-presidente na chapa de Rousseff,
que tem por costume costurar tenebrosas transações na calada da noite. Exatamente
esse personagem, Temer, e seu costume noturno com a música de Chico Buarque que
possibilitaram criar o trocadilho do título da coletânea: Temerosas Transações.
Esta coletânea Temerosas Transações: Ensaios sobre o golpe recente no Brasil
teve como intuito reunir reflexões de autores, pesquisadores, que têm se mani-
festado constantemente sobre esse contexto em suas redes sociais, blogs, pági-
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Lorena Madruga Monteiro, Luciana Santana (organizadoras)
nas pessoais, etc. A ideia é que suas valiosas análises não se percam na nuvem
da rede, mas fiquem materializadas nesse e-book para que, no futuro, contribua
para contar essa história como contraponto à narrativa construída pelos meios
de comunicação brasileiros. Não foi possível explorar todos aspectos da realidade
política recente do Brasil, mas os ensaios presentes nessa coletânea traduzem e
analisam questões importantes.
O primeiro ensaio, intitulado O golpe de Estado de 2016 e a Ditadura Civil
vigente no Brasil, de Guilherme Simões Reis, descreve analiticamente e conceitual-
mente como o Brasil passou de um regime democrático para uma ditadura civil.
O segundo ensaio, A política e as regras do jogo de uma democracia que escapa ao
Brasil atual, de Igor Suzano Machado, dialoga com as interpretações clássicas de
pensadores brasileiros e com a filosofia política contemporânea para demonstrar
a (im) possibilidade da efetivação de uma comunidade política verdadeiramente
democrática no Brasil que possa responder as exigências políticas complexas do
momento atual vivenciado no país.
O terceiro ensaio, Impasses da Democracia Brasileira: Presidencialismo de
coalizão, impeachment e crise institucional, de João Paulo Viana, Marcio Cunha
Carlomagno e Valter Rodrigues de Carvalho, analisa a dinâmica interna da relação
executivo-legislativo no presidencialismo de coalizão e o papel de certas institui-
ções, como o judiciário, por exemplo, para explicar os fundamentos da crise polí-
tica brasileira que culminou no impeachment de Dilma Rousseff. O quarto ensaio,
intitulado, Há um processo de desdemocratizaçao no Brasil? Notas sobre a PEC 241,
de autoria de Lorena Madruga Monteiro, Laura Napomuceno e Laura Lobo, dis-
cute, a partir da PEC 241, se o Brasil está passando por um momento de desdemo-
cratização e instaurando uma nova constitucionalidade, distinta da Democrática
instaurada com a Constituição de 1988.
O quinto ensaio, o Brasil vive seu novo transe, de Emerson do Nascimento e
Luciana Santana, discute, com alusão ao filme de Glauber Rocha Terra em Transe,
a situação política das esquerdas, que mais uma vez estão em transe perante a situa-
ção de ruptura institucional em curso. O sexto ensaio, Golpe, mídia e movimentos
sociais: Aprendendo a lutar com as armas do “outro”, analisa o campo midiático no
Brasil, e as possibilidades de reverter o jogo em curso. O sétimo ensaio, Da cultura
como política aos perigos para as políticas culturais: Uma revisão do MINC (2003-
2016) e comentários sobre o futuro das políticas culturais, de Leonardo Marchi, des-
creve as transformações positivas que o MINC proporcionou para a área cultural
no Brasil e os recentes ataques a cultura e os possíveis retrocessos em curso nas
políticas culturais a partir do impeachment de Dilma Rousseff.
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O GOLPE DE ESTADO DE 2016 E A
DITADURA CIVIL VIGENTE NO BRASIL1
1 Sobre a temática trabalhada no presente capítulo, ver: Reis (2015, 2016a, 2016b, 2017). .
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dos partidos que defenderam o golpe, inclusive pelo relator do processo de ad-
missibilidade do impeachment no Senado, Antonio Anastasia (PSDB), quando este
governou Minas Gerais.
Tratou-se, portanto, de golpe de Estado parlamentar, semelhante ao ocorri-
do contra Fernando Lugo no Paraguai em 2012. Ambos se deram por meio de meio
de falsos impeachments, ou golpeachments2: nos dois casos, o presidente foi retirado
sem que tivesse cometido qualquer crime. Foram golpes com feição institucional,
flexibilizando os critérios do processo de impeachment, o qual é constitucional,
para que governantes sem crime de responsabilidade pudessem ser retirados, o que
é inconstitucional, mas foi realizado com a cumplicidade do Judiciário. No Para-
guai, em que a esquerda era diminuta, o golpe contra Lugo, da Frente Guasú, foi
um processo extremamente rápido, de 48 horas, que analisei à época em detalhes
em outro artigo (Reis, 2012).
No Brasil, a capacidade de mobilização popular da esquerda para impedir
o golpe se mostrou decepcionante, mas, ainda assim, o Partido dos Trabalhadores
e seus aliados tinham demasiada capilaridade para que fossem ignorados em um
processo de impeachment relâmpago como o realizado no “laboratório” paraguaio.
Assim, com a conivência do Supremo Tribunal Federal, que se absteve de defender
a Constituição ao não declarar o golpeachment inconstitucional, Dilma Rousseff
foi afastada e, depois, impedida em processo que durou nove meses. O argumento
fajuto do STF para isso foi justamente o de que o rito do impeachment foi cumprido
à risca e que, para não interferir na separação de Poderes, não julgaria o mérito, isto
é, se houve crime de responsabilidade da presidenta. Para além da estranheza de
tal declaração sobre separação de Poderes, dada a crescente atuação do STF como
legislador, é preciso dizer que um guardião da Constituição que se prende ao rito
e não avalia o mérito é tão efetivo quanto um cérbero, o cachorro de três cabeças
guardião do Hades, desprovido de dentes.
O termo “golpe” tem sido corriqueiramente tratado como palavra de ordem,
não efetivamente como golpe de Estado. O resultado disso é não se ter a dimensão da
gravidade da situação, o que por sua vez é obstáculo ao enfrentamento dela e à com-
preensão de seus desdobramentos. O ditador é chamado por termos mais suaves, por
eufemismos como “presidente golpista” e “ilegítimo”. Recusa-se a chamar a coisa pelo
nome – “ditadura civil” – dizendo-se que há um “golpe em curso”, e o que deveria ser
entendido como o esperado avanço programático e também repressivo de um gover-
no ditatorial ultraconservador é alardeado como “um golpe atrás do outro”.
2 Até onde tenho conhecimento, o primeiro a utilizar a feliz expressão “golpeachment” para se referir a
golpes de Estado travestidos de impeachment – também conhecidos como “golpes parlamentares”, “golpes
institucionais”, “golpes brancos”, “golpes frios”, “golpes de novo tipo” ou “golpes paraguaios” – foi o cien-
tista político e jornalista Cristian Klein, em artigo para a edição de 31 de março de 2016 do jornal Valor
Econômico intitulado “O ‘golpeachment’”.
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“Temerosas transações”: ensaios sobre o golpe recente no Brasil
(2006). Ele deu lugar à conspiração do Legislativo contra o Executivo, com o multi
-indiciado líder da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha (PMDB), aproveitan-
do a centralização decisória na Casa, observada por Figueiredo e Limongi (1999),
assim como o apoio majoritário do seu próprio partido – o maior, ao qual pertence
também o desleal vice-presidente –, para paralisar o governo popularmente eleito
e, a partir daí, derrubá-lo.
O golpe de Estado de 2016 no Brasil não foi um evento isolado e se deu num
contexto regional de pressão por ruptura democrática. Diante de forte poderio eco-
nômico e apoio estrangeiro para a oposição neoliberal, bem como sob cobertura
midiática permanente de forte viés conservador e antigovernista, vários presiden-
tes de esquerda eleitos neste século na América Latina enfrentaram ofensivas dis-
ruptivas antidemocráticas de direita. Houve tentativas de golpes de Estado, boicote
a eleição (nos pleitos legislativos na Venezuela em 2005), não reconhecimento de
derrota eleitoral (Henrique Capriles contra Nicolás Maduro na Venezuela em 2013,
Aécio Neves contra Dilma Rousseff no Brasil em 2014, Guillermo Lasso contra
Lenín Moreno no Equador em 2017) etc. Os seguidos fracassos nas urnas desnuda-
ram os setores reacionários de quaisquer pudores democráticos. Derrotas eleitorais
por margens estreitas passaram a ser contestadas, com acusações infundadas de
fraude e tentativas de impugnação. A era dos golpes de Estado de direita, após o
intento frustrado contra Hugo Chávez na Venezuela em 2002 e o bem-sucedido
golpe militar supostamente apoiado pelos Estados Unidos contra Jean-Bertrand
Aristide no Haiti em 2004, voltou a partir da derrubada de Mel Zelaya em 2009 em
Honduras3. Fracassou ainda uma tentativa de golpe policial contra Rafael Correa
no Equador em 2010.
A deposição de Zelaya em Honduras inaugurou a nova onda de golpes no
continente americano. Na ocasião, o presidente havia decidido convocar um refe-
rendo, meramente consultivo, mas não previsto legalmente, para verificar o grau
de apoio da população (e por extensão sua capacidade de pressão) a sua intenção
de convocação de uma Constituinte. A Corte Suprema de Justiça ordenou que o
Exército o derrubasse e o enviasse ao exílio, e assim foi feito, com ele conduzido
à noite, de sua casa, ainda vestido com pijama, para um avião rumo à Costa Rica,
sem direito sequer a defesa.
Pode-se dizer que, depois do hondurenho, houve golpes de Estado mais dis-
3 A despeito de ter se enquadrado na onda rosa, Zelaya não foi eleito com plataforma progressista, tendo
realizado inusitado policy switch após assumir. Sobre isso, ver Cunha Filho. et al. (2013).
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4 Reviravolta posterior, no entanto, bagunçou o esquema: uma semana após o próprio Temer defender a
aprovação imediata do projeto de reajuste no Congresso, ele mesmo o vetou em função da repercussão
negativa que gerou para sua ilegítima administração.
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5 Tal flexibilidade, por sua vez, é enviesada, pois, quando os réus são de classe social baixa, o positivismo
estrito é bastante comum.
6 Os dois grupos de pesquisa sobre mídia e política podem ser acessados nos sites www.manchetometro.
com.br e doxa.iesp.uerj.br/.
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7 Apesar de formalmente Temer ter se tornado presidente interino quando Dilma Rousseff foi afastada do
cargo após o Senado aceitar a abertura do processo de impeachment, e só ter sido efetivado na Presidência
da República após a conclusão do golpeachment, ele se comportou como presidente de facto desde que as-
sumiu ilegitimamente a função. Promoveu de imediato radical mudança ministerial, com cortes e fusões
de pastas e nomeações polêmicas, com boa parte do gabinete composta por suspeitos investigados e com
viés claro de projeto político radicalmente neoliberal e também ultraconservador quanto aos costumes e
aos direitos civis.
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8 Que não se entenda a menção a tais denúncias como apoio ao recurso das delações premiadas para as
investigações. Claramente, tal recurso se converteu em premiação a criminosos – tanto por abono de pena
como por isenção de devolução de dinheiro público desviado (recompensa em dinheiro para delatores de
parte do dinheiro recuperado) –, por um lado, e, por outro, em instrumento de manipulação midiática –
prejudicial às próprias investigações – e de descuido com a necessidade fundamental de se obter provas
concretas para se condenar alguém. Ademais, como a atuação judicial tem se dado de forma partidarizada
e contornando direitos fundamentais, o recurso da delação premiada tem sido incentivo para que pessoas
condenadas a longas penas e submetidas a tortura psicológica – a proliferação de pressões preventivas, por
exemplo, anuladas assim que o acordo de delação premiada é assinado – declarem o que o investigador
quiser ouvir.
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9 Sobre as irregularidades daquelas privatizações e danos ao patrimônio público, ver: Biondi (2014).
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ou seja, o líder da bancada ruralista –, a qual emitiu nota afirmando que “o Projeto
de Lei 6442/2016 nunca levantou a hipótese de diminuir o salário em troca de casa
e comida”, conforme havia sido noticiado pelo jornal Valor Econômico (Congresso
em Foco, 2017). Cabral (2017), que discute outros retrocessos do projeto de lei,
observa que, a despeito dessa declaração, o texto dá sim margem à interpretação de
que seja legalizado o trabalho análogo à escravidão, pelo qual “a contraprestação
pelos serviços prestados seja a simples moradia ou esta somada à alimentação”, es-
pecialmente pelo fato de que passa a prevalecer o negociado obre o legislado.
A política anti-indígena, pró-latifúndios e contra a agricultura familiar e or-
gânica vai além da retirada de direitos trabalhistas no meio rural. O Ministério
do Desenvolvimento Agrário (MDA) e o Ministério do Desenvolvimento Social e
Combate à Fome (MDS) foram fundidos e esvaziados na reforma ministerial em-
preendida quando Temer ainda era formalmente presidente interino, com Osmar
Terra (PMDB) como ministro. O programa Bolsa Família, chamado “coleira po-
lítica” por Terra, permaneceu no novo Ministério do Desenvolvimento Social e
Agrário (MDSA). O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra)
e as secretarias de agricultura familiar, no entanto, passam para a Casa Civil, cujo
nono ministro, o já mencionado Eliseu Padilha, disse que só conversaria com o
MST se Michel Temer pedisse expressamente, pois não se pode “passar a mão na
cabeça deles como o PT sempre fez”. Já para o Ministério da Agricultura, Pecuária
e Abastecimento o escolhido foi o bilionário megafazendeiro de soja Blairo Maggi
(hoje no PP, mas no PR até maio de 2016). O programa de Assistência Técnica e
Extensão Rural, o Mais Gestão, para preparar associações e cooperativas de agri-
cultura familiar para a participação nos mercados, foi paralisado.
Outra reforma ambicionada como prioritária pelo governo ditatorial e sua
base parlamentar antipopular é a reforma da previdência, que enfrenta maior resis-
tência popular, por ser menos abstrata e mais concretamente palpável para o cida-
dão médio. Na prática, ela inviabiliza que praticamente toda a população consiga
se aposentar algum dia com remuneração integral, aumentando a idade mínima e
exigindo 40 anos de contribuição, o que vai de encontro ao mencionado recuo do
trabalho formal esperado pela implementação da reforma trabalhista.
A Emenda Constitucional nº 95, aprovada em dezembro de 2016, que esta-
belece um teto anual de gastos públicos, é, combinada com as metas de superávit
primário, responsável por drástica redução do orçamento voltado para políticas
sociais, em favor do rentismo. A educação e a saúde pública vão sendo sucatea-
das, com dramática perda de recursos, e as nomeações de Temer deixam clara a
intenção de favorecer o esvaziamento do Estado nessas áreas e o favorecimento da
iniciativa privada, às custas de deixar a população mais pobre desatendida.
O Ministério da Educação foi brindado com a nomeação de Mendonça Filho
(DEM) como ministro. Quando governador de Pernambuco, em 2005, ele fortale-
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“Temerosas transações”: ensaios sobre o golpe recente no Brasil
O futuro é uma incógnita. A esquerda tentará usar a tragédia atual para au-
mentar a polarização entre progressistas democráticos e golpistas de direita, esva-
ziando o centro-geleia e possibilitando a disputa por hegemonia a médio prazo – é
o que defendo em outro texto (REIS, 2017) – ou, como parece, vai seguir natura-
lizando a situação e buscando pactuações para manter o sistema político o mais
intacto possível, temerosa das ofensivas judiciais e militares? A população perma-
necerá passiva ou eclodirão revoltas violentas? Políticos golpistas manterão o po-
der ou o Judiciário o tomará para si. O regime autoritário preservará a aparência
institucional sob comando civil ou militares intervirão e darão um golpe de velho
tipo? A violação de direitos e garantias vai se manter no nível atual ou poderá se
intensificar, por exemplo, com a disseminação de graves atentados contra os direi-
tos humanos? Todas essas são possibilidades de desencadeamentos das interações
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10 O próprio Dahl é pouco rigoroso quanto a isso, considerando a existência minimamente competitiva de
dois partidos quaisquer como suficiente.
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Ou seja, as eleições no Brasil, até prova contrária, não podem ser considera-
das decisivas. Com o golpe de Estado de 2016, comprometeu-se o que Álvarez. et
al. (1996) chamam “irreversibilidade ex post”, característica central para a demo-
cracia juntamente com a incerteza ex ante – deve ser possível a vitória da oposição
– e a repetibilidade, isto é, as eleições se sucederem no tempo, não sendo um evento
isolado. Tira-se daí, portanto, uma regra para que se possa classificar regimes como
democracias: uma vez ocorrendo ruptura, essa avaliação só pode ser realizada a
posteriori, retrospectivamente (ÁLVAREZ. et al., 1996). É preciso que se tenha uma
sequência de eleições limpas, prolongando-se no tempo, com chances reais para
que a oposição as dispute, sem novos golpes. O mais cedo possível para se certificar
de que a democracia teria voltado em 2018 no Brasil seria, portanto, apenas em
janeiro de 2023, e isso somente na eventualidade de o mesmo grupo político da
presidenta Dilma Rousseff sair vitorioso nas urnas e esse presidente eleito passar a
faixa para seu sucessor ou iniciar seu segundo mandato.
O problema, no entanto, é muito maior do que uma questão de tipologia
acadêmica, do que um exercício de taxonomia. Há no continente, e também fora
dele, uma tendência a que o sistema representativo tenha cada vez menor impacto
sobre as políticas implementadas, com a dominação do Estado pelo capital, com a
delegação de áreas relevantes das políticas públicas para instituições não majoritá-
rias fora do controle de representantes eleitos, com o comprometimento das dife-
renças entre as candidaturas por meio da atuação midiática e dos financiamentos
privados de campanha e, por fim, com os golpes de Estado institucionalizados. O
desafio de construção de uma narrativa que não naturalize o fim de qualquer cará-
ter democrático para a representação é fundamental para que a luta pelos direitos e
interesses da cidadania continue sendo possível, de um jeito ou de outro.
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REFERÊNCIAS
35
“Temerosas transações”: ensaios sobre o golpe recente no Brasil
SILVA, Fabricio Pereira da. Fin de la marea rosa y neogolpismo en América Latina.
Manuscrito, 2017.
______. O Pós-golpe: O que Temer? Revista Escuta, 2016a. Disponível em: <ht-
tps://revistaescuta.wordpress.com/2016/06/14/escuta-especial-conjuntura-o-pos-
golpe-o-que-temer/>. Acesso em: 10 ago. 2017
______. Algum passo à frente, mil passos atrás, e o que não fazer? Em Debate, n.
1, v. 9, 2017a. p. 11-22.
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Lorena Madruga Monteiro, Luciana Santana (organizadoras)
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A POLÍTICA E AS REGRAS DO JOGO
DE UMA DEMOCRACIA QUE ESCAPA
AO BRASIL ATUAL
A atual conjuntura política brasileira nos convida a reflexões acerca das ca-
racterísticas da democracia e do país. A julgar por alguns dos clássicos da inter-
pretação do Brasil, o brasileiro não seria muito disposto a obedecer regras, que
lhe aparecem mais como obstáculos na concretização de seus interesses do que
como meios para a concretização desses interesses sob padrões de razoabilidade.
A democracia por sua vez, exige justamente o contrário: entender que existem re-
gras acima dos interesses pessoais, responsáveis por fazer da concretização desses
interesses algo que, nem por isso, anula a legitimidade dos interesses concorrentes.
Tendo isso em vista, adentro no contexto atual por intermédio de interpretações
clássicas de pensadores brasileiros acerca das dificuldades de concretização do
ideal democrático no país, para então me socorrer da filosofia política contem-
porânea enquanto guia capaz de, no sentido contrário, orientar nossas ações em
direção à efetivação de uma comunidade política verdadeiramente democrática.
Posteriormente, discuto os problemas daí advindos para a realização de escolhas
políticas complexas, exigidas pelo contexto brasileiro atual.
Já disseram algures que o brasileiro não gosta de esportes: gosta de ganhar.
Gostava da Fórmula 1 quando Ayrton Senna era campeão. Sem brasileiros cam-
peões, perdera o interesse. Gostou do tênis no auge de Gustavo Kuerten. Depois
disso, não quis mais saber. No que tange aos esportes, há, inclusive, outra frase cujo
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sucesso no Brasil é mais uma prova de que talvez, por aqui, não faça tanto senti-
do o lema de que o importante é competir. Pois, volta e meia, emerge na boca de
torcedores na comemoração de vitórias de merecimento duvidoso os assustadores
dizeres do “roubado é mais gostoso”. Indo além do campo esportivo, há autores que
tentam imaginar se faria sentido em mais algum lugar do mundo a ideia muito co-
mum no país de que, em alguns casos, pode-se dizer que “a lei não pegou”. Roberto
DaMatta é um dos autores que chama atenção para os casos em que a lei é ignorada
sem maiores perturbações das relações sociais, tendo em vista que ela não é “gente
como nós” e sua desmoralização não incomoda tanto. (DAMATTA, 1984, p. 81).
Podemos remontar também a Sérgio Buarque de Holanda e sua diferencia-
ção entre o trabalhador e o aventureiro e a importância que este último – muito
mais do que o primeiro – teve na colonização brasileira. Tal colonização guardaria,
assim, como traço fundamental, a ideia de que vale a pena arriscar grandes perdas
tendo em vista grandes ganhos, mas não valeria a pena a vida dedicada ao trabalho
metódico e diário. Prevalece o ideal do homem que quer “colher os frutos sem ter
de plantar a árvore”, ou do português que, segundo um crítico, tinha mais facilida-
de para se arriscar numa caravela até o Brasil atrás de ouro, do que para tomar um
cavalo de Lisboa ao Porto para negócios mais comezinhos. (HOLANDA, 2012, p.
44-46). O objetivo final torna-se a referência única e os riscos que podem existir em
se buscar tal objetivo pelo caminho mais curto compensam mais do que o trabalho
de se chegar a ele por um procedimento mais garantido, porém lento. As regras e os
procedimentos que se interponham entre a pessoa e seu objetivo, sempre que pos-
sível, devem ser evitados. O lucro sem trabalho. A vitória sem treino. O desprezo
pela regra e pelo procedimento. Ou seja, muito amor ao resultado, acompanhado
de consequente desprezo por tudo que o atrasa, incluindo regras e procedimentos
que deveriam valer para todos.
O mesmo Sérgio Buarque chegara a afirmar que a democracia, entre nós,
teria sido “sempre um mal-entendido” (HOLANDA, 2012, p. 160). Afinal, a de-
mocracia demanda obediência a regras e procedimentos de cunho impessoal,
ou seja, que não poderiam ser “dribladas” em prol de benefícios pessoais, como
poderiam ser dribladas defesas taticamente treinadas que insistissem em se pôr
no caminho entre o brasileiro e o gol. Como desenvolver certo afeto por regras e
procedimentos que, por vezes, levam exatamente ao oposto do que a gente quer?
Como amar um sistema político que pode vir a favorecer nossos inimigos? Sain-
do das ciências sociais para a música, lembro-me da memorável “Geni”, do filho
de Sérgio Buarque, Chico Buarque. Maltratada por “ir com qualquer um”, servira
para livrar o povo dos arbítrios militares. Mas, passado isso, lembrando-se que
ela “vai com qualquer um”, ela, “bendita” que já pôde nos salvar, volta a ser a
“maldita” a ser cuspida. Como continuar respeitando uma democracia que nem
sempre irá com os nossos favoritos? E que tal se a lei puder ser aplicada apenas
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aos nossos desafetos? Não custa lembrar outra citação famosa no país: “para os
amigos tudo, para os inimigos a lei […]”
Não entrarei no mérito de o quanto essa descrição do Brasil não seria válida
também para outros países.11 Mas, ainda que não represente nenhuma jabuticaba
genuinamente nacional, a descrição não deixa de ecoar no contexto presente, em
que a política, ao menos em seus agentes mais exaltados ou com maior poderio de
ação, prefere desprezar a distinção entre o jogo e suas regras. Quem ousa falar de
regras a serem seguidas, é acusado de não fazer mais do que jogar do lado do ad-
versário. O problema é que, desprezada a diferença entre se discutir o resultado do
jogo e as regras que legitimam a construção de tal resultado, a ideia de adversário
perde o sentido. O adversário só existe numa relação triádica, em que, para além
dos dois lados adversários, existe um terceiro lado, responsável pela mediação do
combate. Esse é o lado das regras. Sem esse terceiro lado, não há porque haver res-
peito pelo outro e, consequentemente, deixa de existir o adversário para emergir o
inimigo, isto é, aquele opositor com relação ao qual não compartilho um futuro em
comum. O inimigo é a figura do opositor num estado de guerra, e que, portanto,
pode ser eliminado. O adversário é aquele que eu enfrento tendo a expectativa de
compartilhar o mesmo futuro com ele, seja sobre o mesmo território político, seja
ao longo de um mesmo campeonato. Ele eu não elimino, pois não é necessariamen-
te um inimigo. Pelo contrário, pode ser mesmo um amigo, como atestam diversos
jogadores de futebol, adversários dentro de campo e amigos fora dele.
Como numa disputa esportiva, que inclui inclusive lutas em seu sentido lite-
ral, a política também envolve o combate. Mas esse combate não precisa ser entre
inimigos. Ainda que a política, tal como afirma Foucault invertendo a frase célebre
de Clausewitz, seja a guerra continuada por outros meios, os outros meios não fa-
zem dela meramente outra guerra. Trata-se de uma ritualização capaz de transfor-
mar uma disputa antagônica em uma disputa agônica, para usar uma terminologia
cara à filósofa política Chantal Mouffe. Diz ela que, enquanto o antagonismo cons-
titui uma relação nós/eles na qual as partes são inimigas que não compartilham
nenhuma base comum, o agonismo estabeleceria uma relação nós/eles na qual as
partes em conflito, mesmo admitindo não existir solução racional para sua disputa,
reconheceriam a legitimidade de seus oponentes. Isso significaria, continua ela,
que, mesmo em conflito, essas partes da relação agonística se perceberiam como
pertencentes à mesma associação política e ao mesmo espaço simbólico comum
dentro do qual tem lugar o seu embate. Nesse contexto, ganharia destaque a figura
do adversário em detrimento da figura do inimigo. O modelo adversarial se apre-
sentaria assim, segundo ela, como constitutivo da democracia porque permitiria
11 Assim como em leituras críticas dessa tradição do pensamento social e político nacional, em que tem
destaque, por exemplo, a obra de Jessé Souza.
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ções políticas: a justiça. Logo, se o que está em jogo são nossas instituições políticas,
ainda que por meio de pessoas que com elas não se confundem, mas que a elas
representam, o debate não pode ser pautado por meras referências a interesses par-
ticularistas, como justificativas com base na minha família, ou na minha religião,
ou na aniquilação e exclusão do partido ou da opinião do outro. Tampouco pode
ser pautado por regras fora de contexto, com o tolo argumento de se basear no que
está previsto em lei, mesmo que essa lei seja a Constituição.
Ou seja, no debate sobre nossas instituições políticas fundamentais, faz-se
necessário o apelo a argumentos que recorreram não ao que nos diferencia em
relação a preferências políticas, mas ao que nos iguala nos procedimentos de ex-
pressão dessas preferências, como eleições justas, e princípios de uma comunidade
pluralista e respeitosa aos direitos daqueles que divergem de nós, como o princípio
da liberdade de expressão, da presunção de inocência e do devido processo legal.
Enquanto tais procedimentos e direitos puderem ser ignorados apenas para a sa-
tisfação de nossas preferências particulares, o ideal democrático estará distante da
nossa vivência política, ainda que esteja supostamente expresso em textos legais,
opiniões jornalísticas, decisões políticas e mesmo sentenças judiciais.
O desprezo por esse ideal liberal-democrático nos leva a um problema sé-
rio no que tange à discussão dos futuros possíveis para o país. Claro que há e
deve haver discordância razoável acerca do melhor direcionamento das nossas
políticas públicas. Porém, a discordância genuína, que não descamba para um
diálogo de surdos, nunca é absoluta, mas sim uma divergência que se apoia em
algum ponto em comum que permite que se concorde, ao menos, a respeito do
que se discorda. Sem respeito a regras básicas do jogo e uma noção de justiça a
ser concretizada pela ação política, perdemos esse ponto em comum e, conse-
quentemente, a possibilidade de um diálogo frutífero sobre como lidar com a
discordância razoável. Não se discute mais as melhores táticas para vencer o jogo,
mas, durante o jogo, discute-se a própria regra, em benefício próprio. Analise-
mos alguns exemplos concretos do problema.
Em julho de 2016, o editorial de um jornal de grande circulação no país de-
clarou que, aproveitando a oportunidade dada pela crise fiscal, chegara a hora de
se corrigir uma grande injustiça, acabando de vez com o ensino superior gratuito.
Segundo tal editorial, não seria justo que a totalidade das pessoas arcassem com
os custos de manutenção das universidades públicas, sendo que, em muitos casos,
alunos dessas universidades teriam condições de financiar seus estudos por conta
própria, tal como no ensino superior privado. Segundo o editorial, isso seria mais
justo do que fazer com que o erário público sustentado por impostos de diferentes
pessoas, inclusive de gente mais pobre que esse aluno, arcasse com tais custos, o
que, na visão do editorial, seria uma redistribuição às avessas, tirando dos pobres
para dar aos ricos, isto é, usando o dinheiro de pobres pagadores de impostos para
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REFERÊNCIAS
BRASIL. STF. ADI 3999 DF. Rel. Ministro Joaquim Barbosa. Julgado em
12/11/2008. DJ de 17/04/2009, p. 99. Disponível em: < http://www.stf.jus.br/por-
tal/inteiroTeor/pesquisarInteiroTeor.asp#resultado>. Acesso em: 15 ago. 2017.
COLLUCCI, Claudia. Tamanho do SUS precisa ser revisto, diz novo ministro da
Saúde. Jornal Folha de São Paulo, São Paulo, maio. 2016. Disponível em: <http://
www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2016/05/1771901-tamanho-do-sus-precisa-ser
-revisto-diz-novo-ministro-da-saude.shtml>. Acesso em: 15 ago. 2017.
CRISE força o fim do injusto ensino superior gratuito. O globo, Rio de Janeiro,
jul. 2016. Disponível em: <https://oglobo.globo.com/opiniao/crise-forca-fim-do
-injusto-ensino-superior-gratuito-19768461#ixzz4zki1kPij> . Acesso em: 15 ago.
2017.
DAMATTA, Roberto. O que faz do brasil, Brasil?. Rio de Janeiro: Rocco, 1984.
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26. ed. São Paulo: Companhia
das Letras, 2012.
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IMPASSES DA DEMOCRACIA BRASILEIRA:
PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO,
IMPEACHMENT E CRISE INSTITUCIONAL
Introdução
O Brasil conheceu ao longo da sua vida republicana pelo menos seis ex-
periências distintas de sistemas político-partidários20. O arranjo institucional
denominado “presidencialismo de coalizão”, nascido em 1985 com a redemo-
cratização, e formalizado com a promulgação da Constituição Federal de 1988,
encontra-se atualmente diante de uma das maiores crises de nossa história. Não
obstante ser observado por muitos estudiosos como a mais longeva e virtuosa
experiência democrática brasileira (REIS, 2007; BRAGA; RIBEIRO; AMARAL,
2016), desde sua fundação vem suscitando críticas que se prolongaram durante
20 Conforme Meneguello (1998), a descontinuidade dos partidos e sistemas partidários é uma dos aspectos
fundamentais no estudo dos partidos no período Republicano brasileiro. Nesse sentido, a partir de 1889,
seis sistemas partidários se sucederam até 1985. O período oligárquico da República Velha, de 1889 a 1930.
Um sistema pluripartidário iniciado com a Revolução de 1930. De 1945 a 1965, após o fim do Estado Novo,
o sistema pluripartidário da experiência democrática que dura até o golpe de 1964. De 1965 a 1979, um
sistema bipartidário organizado pelo regime militar. De 1979 a 1985, ainda sob a ditadura militar, o multi-
partidarismo controlado. E o sistema multipartidário, iniciado com a redemocratização por intermédio da
Emenda Constitucional nº 25.
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21 Ver, por exemplo: Lamounier e Meneguello (1986); Maiwaring (1991); Lamounier (1992); Góes (1992);
Ames (2001).
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24 Conforme o Datafolha, dos 46% de eleitores que se identificavam com um partido político, 23% tinha
preferência pelo PT, seguido pelo PMDB com 6%, e o PSDB também com 6%.
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estes necessitam entrar em uma concertação para que governos possam funcionar
adequadamente. Crises políticas acontecem quando esta cooperação não é alcançada.
Por que, então, o consenso falha? Como argumenta o próprio Amorim Neto,
para que o modelo funcione “a prática de governos de ampla coalizão, cerne do
modelo consensual de democracia e uma das marcas distintivas do atual regime
político brasileiro é, sem dúvida, fundamental para que os presidentes governem
efetivamente.” (AMORIM NETO, 2009, p. 125). O que, então, pode levar a que exe-
cutivo e legislativo não cooperem?
Diversas explicações têm sido ofertadas nos anos recentes. Sem prejuízo a
demais fatores, dois elementos especificamente sobre a relação executivo-legisla-
tivo são importantes para entender a crise do segundo governo Dilma Rousseff: a
fragmentação partidária e a mudança do comportamento reativo do legislativo –
ritmo este ditado por seu presidente naquele momento, Eduardo Cunha.
Primeiro, a composição de coalizões de governo é afetada diretamente pelo
número de atores com os quais se precisa negociar, isto é, pelo número de partidos
no parlamento. O Brasil atingiu, em 2014, o maior número de partidos efetivos no
legislativo do mundo. O gráfico a seguir ilustra a evolução desta fragmentação.
Outro aspecto que pode nos ajudar a compreender a crise política por qual
passou Dilma Rousseff foi a mudança no equilíbrio de forças ocorrida nas relações
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25 1991 é o primeiro ano cujos dados estão disponíveis em formato digital. Para 2017, os
dados estão atualizados somente até o dia 30 de setembro. Sobre isso. Ver: Câmara dos
Deputados (2017, http://www2.camara.leg.br).
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NELL, 1998).
Porém, como temos observado ao longo da Operação Lava-jato, no rastro
do reforço das instituições de controle, como Judiciário e Ministério Público, fica
a devastação da esfera política e sua representação. O populismo, ora condenado
na esfera política, grassa na esfera judicial. Um exemplo, dentre tantos, é o fato das
mídias mensurarem a popularidade do juiz Sérgio Moro ao lado de personalidades
políticas, como o ex-presidente Lula. Embora se revele um contrassenso – o tempo
e espaço da justiça não são os mesmos da política –, essas sondagens são a perfei-
ta expressão do juiz político, que necessita sentir a temperatura do público para
orquestrar de forma estratégica suas ações no campo da justiça. Uma prova mais
que contundente de que a opinião pública, em última análise, julga e condena (ou
condena e julga?).
Em quinto lugar, é sabido que a ascensão da justiça na cena política, para
além da reconfiguração dos sistemas políticos democráticos, se deve à sua transfor-
mação em arena das paixões e combates políticos, antes restrito ao campo político
(GARAPON, 1995; THOMPSON, 2002). Nos fatos e notícias diárias que povoam
as mídias, há uma lógica sacrificial, em que uma parte da classe política, fortemente
identificada com os governos do PT – não apenas ela, mas naquela reside toda a
“diabolização”, a quem se atribui à origem da corrupção no Brasil –, foi pega como
bode expiatório, exposta diariamente nas diversas mídias impressas e televisivas
como exemplo de expiação da luta de juízes heroicos contra políticos vilões e mal-
feitores. Um exemplo, não o único, de luta maniqueísta são as fotos de capas de
jornais e revistas, onde o juiz Sergio Moro aparece em um Ringue em posição de
luta com o ex-presidente Lula. São imagens que nem de longe simbolizam o que se
espera de um juiz, que não deve, pelo ritual dos processos judiciais, mostrar-se um
inimigo do réu – situação que até pode ser tolerável para o Ministério Público, que
tem a função de acusar.
Segundo Garapon (1995), de forma ambígua, ao mesmo tempo em que o in-
teresse pela justiça é o reforço de um contrapoder, é também interesse pela vingan-
ça. É uma forma emotiva de fazer política que se concilia com uma opinião pública
que representa os laços sociais por meio de código binário “agressor/vitima”. É uma
visão simples “[...] daquilo que um discurso político tecnocrático acaba por obscu-
recer. Essa abordagem emocional e maniqueísta da política dá, sem dúvida, origem
ao populismo” (GARAPON, 1995, p. 102). O recurso ao direito penal sustenta-se
pela força da simplicidade e lógica binária que possibilita. A solução penal gera,
mediatamente, a identificação com a vítima e a diabolização do outro.
Como notou Thompson (2002, p. 139), o escândalo político, marca das de-
mocracias liberais, é retroalimentado por meio da divulgação diária de escândalos
de corrupção. Embora possíveis em regimes não democráticos, é nas democracias
liberais que os escândalos floresceram, graças à lógica competitiva desses regimes
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surgem, como diria Garapon (1995), como os novos campeões da moralidade pú-
blica e criminalizadores da atividade política.
Entretanto, há potenciais riscos na escalada judicializante e devastação da dig-
nidade da atividade política. Assistimos diariamente ao espetáculo judicial nas TVs,
rádios, jornais impressos, sites e redes sociais e pouco nos perguntamos se o Judiciá-
rio tem a solução para os dilemas do país. Na verdade, o Judiciário, não obstante o
papel essencial que tem para democracia – é o regime que se distingue de outros pelo
controle da legalidade dos atos do poder soberano –, é um órgão burocrático do Esta-
do que atua sob observância de regras e procedimentos – ao menos normativamente.
Por mais elástico que tenha se tornado o direito no Welfare State contemporâneo
(CAPELLETTI, 1999), não permite aos juízes e promotores encontrarem a destreza,
legitimidade e consenso próprios da ação política. Em outros termos, seu papel ja-
mais poderá incluir o campo político por excelência. Se perdurar o espetáculo judi-
cial, por mais nobre que sejam seus objetivos, o País continuará acéfalo de lideranças
políticas, com grande prejuízo para o futuro político, social e econômico.
Conclusão
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são incidental, realizada por juízes inferiores –, cujo controle é concreto e válido
para o caso específico. Assim, a agenda de reformas do controle constitucional, du-
rante os anos 1990 e parte dos 2000, girou em torno desse aspecto que potencializa
o consensualismo, ao arremessar o sistema de justiça na arena política (ARANTES,
1997; CARVALHO, 2016). Tal agenda visou, o que foi consagrado com a reforma
de 2004 (PEC 45), fortalecer a via concentrada de controle no STF em detrimento
da via difusa nos juízes inferiores, amenizando a judicialização que, em tese, é mais
propensa nas instâncias inferiores do Judiciário.
Mas nos parece, também, que a atual cooperação entre Executivo e Legis-
lativo no governo Temer se deve a uma reação aos excessos do sistema de justiça.
Não obstante o governo do PMDB ter retomado um padrão anterior de relação
cooperativa entre o Executivo e Legislativo, o Judiciário, embora recentralizado
com o intuito de “despolitizá-lo”, nunca foi tão ativo. O STF, devido à excessiva
politização, tem se mostrado um tribunal ad doc em suas decisões, mesmo depois
de reforma que instituiu a Sumula Vinculante, principal instrumento de contenção
da politização pela via difuso-incidental (ARANTES, 1997; CARVALHO, 2016) e
da Repercussão Geral, que abortou boa parte dos processos de percorrer todas as
instâncias do Judiciário até desaguar no STF, gerando lentidão na justiça e desvir-
tuando o papel de Corte Constitucional do STF.
O atual governo, embora tenha retomado o padrão de preponderância do
Executivo em suas relações com o Legislativo, marca do presidencialismo de coa-
lizão na Nova República, em que aquele faz valer suas preferências, não arrefeçou
à crise política. O país vive hoje uma crise de liderança do regime democrático.
A crise de liderança é o componente mais duradouro e levou ao processo de es-
garçamento da atividade política, aliada à crise moral e ética. Em um quadro de
confiança solapada e deslegitimação dos partidos e líderes políticos, os membros
do judiciário surgem, no mais claro populismo judicial, como concorrentes a dis-
putarem legitimidade com os políticos.
Porém, os riscos dessa escalada judicializante são reais. Como dito ante-
riormente, não obstante o papel essencial que o Judiciário tem para democra-
cia, ele é um órgão burocrático do Estado cuja atuação se dá mediante obser-
vância de regras e procedimentos legais – ao menos em tese. Por mais elástico
que tenha se transformado o direito contemporâneo, não é possível a atores
do sistema de justiça recompor a destreza, legitimidade e consenso, que só a
política pode fazer. Perdurando o espetáculo judicial, que o atual governo não
conseguiu deter – em parte porque conta com lideranças que estão no centro
dos maiores escândalos de corrupção das últimas décadas –, o país continuará
acéfalo de lideranças políticas, prolongando, indefinidamente, a crise política,
com sérios riscos de ruptura institucional.
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Lorena Madruga Monteiro, Luciana Santana (organizadoras)
REFERÊNCIAS
ARANTES, R. B. Judiciário & Política no Brasil. São Paulo: Educ; Fapesp, 1997.
65
“Temerosas transações”: ensaios sobre o golpe recente no Brasil
GÓES, Walder de. Em busca de um novo sistema político. In: VELLOSO, João
Paulo dos Reis. O Brasil e as reformas políticas. Rio de Janeiro: José Olímpio Edi-
tores, 1992. p. inicial-final capítulo.
66
Lorena Madruga Monteiro, Luciana Santana (organizadoras)
OLIVEIRA, Vanessa Elias de. Judiciário e Privatizações no Brasil: Existe uma Ju-
dicialização da Política?. DADOS – Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, v.
48, n. 3, 2005. pp. 559 a 587.
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HÁ UM PROCESSO DE
DESDEMOCRATIZAÇÃO NO BRASIL?
NOTAS SOBRE A PEC 241
Nos últimos anos, o Brasil vive uma crise política e institucional. Para alguns
analistas políticos o ápice desta crise foi o impeachment da presidenta Dilma Rou-
sseff, para outros, foi o início. Após o impeachment, a dinâmica política do Parla-
mento brasileiro concentrou-se nas votações em caráter de urgência de Projetos de
Emenda à Constituição, popularizadas pela sigla PECs. Essas foram previstas na
Constituição de 1988 e são um instrumento de mudança constitucional que evita
o custo político e institucional da instauração de uma Assembleia Constituinte. A
iniciativa de uma PEC cabe ao presidente da república, 1/3 dos Deputados e Se-
nadores, ou então por, pelo menos, mais da metade das Assembleias estaduais. O
processo de aprovação passa pela Comissão de Justiça e Cidadania e por dois tur-
nos nas casas legislativas. Entretanto, embora sejam projetos que modificam, caso
aprovados, a Constituição, não podem modificar as cláusulas pétreas da mesma.
Entre essas cláusulas estão: O modelo federativo de Estado, a separação dos pode-
res e os direitos e garantias individuais.
Esse instrumento de emenda constitucional tem sido o recurso utilizado fre-
quentemente após o impeachment de Dilma Rousseff. Anteriormente, em outras
legislaturas, outros governos, também fora utilizado, mas seus conteúdos não ti-
veram impactos diretos a toda sociedade brasileira, como, por exemplo, a PEC do
teto de gastos de número 241 na Câmara dos Deputados, e número 55 no Senado,
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aprovadas em 2016. Diante desse fenômeno, este ensaio descreve a dinâmica exe-
cutiva-legislativa, o conteúdo e o debate político jurídico da PEC 241/55 com o ob-
jetivo de discutir se o Brasil está passando por um momento de desdemocratização
e instaurando uma nova constitucionalidade, distinta da Democrática instaurada
com a Constituição de 1988.
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proibir aumento real da despesa pública por vinte anos, sem crescimen-
to zero da taxa de natalidade, equivale a suprimir uma geração, atrofiar
os serviços públicos, denegar acesso à nutrição, ao saneamento, à segu-
rança, à justiça, à cultura e outros bens da vida. É uma decisão genocida,
tão cruel quanto desvincular os benefícios previdenciários do reajuste
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Segundo Pillatti não apenas o reajuste inflacionário não será o suficiente para
abarcar todas as demandas sociais tornando os aparatos públicos ainda mais obsole-
tos e incapazes de suprir as necessidades do povo, que em situações de crise econômi-
ca, dependem ainda mais dos serviços públicos. Ressalta-se que com o congelamento
dos gastos a arrecadação não parará de acontecer e o dinheiro, que antes seria des-
tinada para os gastos essenciais a população, deverá ser alocado em outros setores.
Este é mais um ponto em que a emenda viola a carta magna de 1988, tendo em vista
que a constituição estabelece uma ordem de prioridades para a destinação de verba,
sendo os direitos fundamentais seu primeiro ponto de parada.
Ronaldo Jorge Araújo Vieira Junior, consultor legislativo do Senado Federal
na área de direito constitucional, administrativo, eleitoral e partidário, posicionou-
se em nota técnica contrária a PEC, quando afirma que “Eliminar, como pretende a
PEC nº 55, de 2016, a possibilidade de o Chefe do Poder Executivo – legitimamente
eleito pelo povo, por intermédio do voto direto, secreto, universal e periódico –
definir o limite de despesas de seu Governo significa retirar-lhe uma de suas prin-
cipais prerrogativas de orientação, direção e gestão” (MURAKAWA; LIMA, 2016,
http://www.valor.com.br).
Para Ronaldo, a emenda significa atar as mãos e impedir o chefe do poder
executivo de fixar suas diretrizes e definir suas estratégias durante o exercício de seu
mandato, impedindo-o de exercer com plenitude o mandato que lhe foi conferido a
partir da soberania popular, prevista no parágrafo único do art. 1º da Constituição
Federal/88. O consultor expõe também o artigo 60, parágrafo 4º da Carta Magna, que
explana que não se pode ser “objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a
abolir” a “forma federativa do Estado”, o “voto direto, secreto”, “universal e periódico”,
a “separação dos poderes” e os “direitos e garantias individuais”, apontando que existe
uma violação dessas quatro “cláusulas pétreas” inserida na PEC nº 55/2016, agora já
vigendo como Emenda Constitucional 95. Ressaltando-se, portanto, que qualquer
tentativa de violação às cláusulas pétreas, mesmo que não sejam feitas de forma dire-
ta, devem ser prontamente apontadas como inconstitucionais.
Luiz Felipe Miguel, Doutor em Ciência Política, e professor da UNB, é um
dos cientistas políticos brasileiros mais influentes na análise da conjuntura atual.
Segundo Miguel (2016), a PEC 241/55 é a tentativa de engessar as políticas do Es-
tado brasileiro por vinte anos, isto é, por cinco mandatos presidenciais- feita por
um presidente que não conquistou nenhum mandato. Portanto, considera que esta
PEC que muda profundamente o texto constitucional carece de legitimidade, uma
vez que, foi proposta por um presidente sem o aval popular, assim como não foi
fruto de amplo debate com a sociedade e o Congresso.
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Lorena Madruga Monteiro, Luciana Santana (organizadoras)
Miguel destaca também que a aprovação da PEC nas duas casas legislativas
revela a falência da representação política no Brasil, uma vez que as preferências
dos eleitores não foram consideradas, mas sim, dos setores econômicos. Portanto,
segundo Miguel (2016) “[...] é uma emenda à constituição, pelo qual um governo
carente de legitimidade quer definir as políticas púbicas por 20 anos. A votação
foi feita às pressas, sem qualquer tipo de debate- nem mesmo no Congresso- e sob
uma densa camada de desinformação”.
As posições de Miguel acerca dessa matéria refletem a posição da maioria dos
cientistas políticos brasileiros refletida na Moção de repúdio à PEC 241/55, promo-
vida pela Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais,
em que considera “que qualquer país que ambicione o desenvolvimento soberano
e autossustentável deve priorizar os investimentos em ciência e tecnologia e educa-
ção- e não o rentismo e o ajuste fiscal em detrimento de políticas sociais.26”
Verifica-se que na PEC 241/55 o debate muitas vezes não foi exaurido e dis-
cutido o suficiente, tendo assim, muitas vezes, a argumentação jurídica e política
sendo suprida por uma justificativa de interesses partidários que se esconde por
trás da proposta de emenda. Neste caso específico, constatou-se que os parlamen-
tares a favor da PEC não se importaram com o apelo popular, tanto que a pesquisa
feita no portal e-cidadania, no site do Senado, demonstrou que a população era
contrária a PEC, além de manifestações ocorridas em desfavor da mesma.
Portanto, é preciso salutar a importância que o debate acerca dessas propostas de
emendas representa e como os parlamentares precisam escutar tanto especialistas das
áreas que serão afetadas quanto à população em si, visto que eles são representantes do
povo. Ademais, é preciso preservar os direitos sociais já conquistados nos últimos anos
de aprofundamento da democracia no Brasil, ao menos em tese, de forma a procurar
outras soluções para a melhoria econômica do país sem que, necessariamente, precise
restringir os gastos nas áreas da saúde, educação e dos programas sociais.
Considerações finais
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“Temerosas transações”: ensaios sobre o golpe recente no Brasil
Mesmo que ainda seja incipiente pensar o caso brasileiro nos quadrantes
sugeridos por Charles Tilly, uma vez que isso demandaria uma profunda análise
histórica da formação política e social brasileira, é possível pensar num enfraque-
cimento profundo das capacidades democráticas brasileiras em curso após o golpe
institucional que destituiu Dilma Rousseff do governo brasileiro.
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Lorena Madruga Monteiro, Luciana Santana (organizadoras)
REFERÊNCIAS
JURISTAS comentam PEC 241 e apontam os graves retrocessos que ela represen-
ta. Justificando Carta Capital, São Paulo, out. 2016. Disponível em: <http://justi-
ficando.cartacapital.com.br/2016/10/10/juristas-comentam-pec-241-e-apontam
-os-graves-retrocessos-que-ela-representa/>. Acesso em: 18 abr. 2017.
MURAKAWA, F.; LIMA, V. Consultor do Senado diz que PEC do gasto é in-
constitucional. Valor, nov. 2016. Disponível em: <http://www.valor.com.br/po-
litica/4768267/consultor-do-senado-diz-que-pec-do-gasto-e-inconstitucional>.
Acesso em: 15 ago. 2017.
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“Temerosas transações”: ensaios sobre o golpe recente no Brasil
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6
O BRASIL VIVE SEU NOVO TRANSE
Emerson do Nascimento
Luciana Santana
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“Temerosas transações”: ensaios sobre o golpe recente no Brasil
reagimos? Do título à sua edição e montagem, o longa é uma resposta a esta ques-
tão – assistimos a tudo meio que embrenhados numa espécie de transe profundo,
paralisados, hipnotizados. Glauber carrega nas tintas para mostrar que chegamos
à modernidade, porém, ainda imersos no arcaico, no atraso. Nossa modernização
fora seletiva e, não por acaso, nossa esfera pública seria restritiva e incipiente, nosso
modo de fazer política ainda é fustigar o opositor, o que seria, na fala de um soció-
logo do nosso tempo, a nossa maior singularidade (SOUZA, 2000).
27 Em outra cena memorável do filme, Glauber carrega nas alegorias quando, durante o comício do can-
didato populista Vieira à presidência da república de Eldorado, o povo, caracterizado como despreparado,
despolitizado e incapaz de exercer seu papel político é calado, acusado de extremista, sufocado e morto pela
turba dos presentes enquanto um partidário de Viera pronuncia um discurso inócuo contra as esquerdas ao
som estridente de muito samba e pandeiro.
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Lorena Madruga Monteiro, Luciana Santana (organizadoras)
em favor da sua liberdade pela criação de uma poesia mais política e engajada. Dis-
tante da capital, na província de Alecrim, Paulo conhece a militante Sara e resolve
dedicar-se à campanha eleitoral de Vieira, em função da sua agenda reformista.
Uma vez eleito, os acordos estabelecidos com a elite latifundiária obrigam Vieira
a quebrar suas promessas de campanha e reprimir os camponeses com as forças
policiais. Desiludido, Paulo retorna a capital e submerge numa grave crise existen-
cial. Convidado por Sara a promover oposição à Diaz, Paulo resolve produzir um
filme para expor as falcatruas e traições de Diaz. Atacado agora por Diaz, Paulo
se filia à promissora campanha eleitoral de Viera para presidência de Eldorado. O
povo participa de forma eufórica da campanha de Vieira, que passa a assustar a ala
conservadora, que decide, preventivamente, executar um golpe de estado. Nestes
momentos finais, vemos Paulo entregando uma arma a Vieira, que se ressente de
resistir. Paulo agora se frustra pela segunda vez. Nas cenas finais, enquanto Paulo
morre com o fuzil erguido, Diaz é coroado com toda pompa e circunstância.
28 Distante de qualquer didatismo, o filme celebra o caos como metáfora do contexto político e social brasi-
leiro após a intervenção militar de 1964. No cartaz do filme acima a tradução em arte das questões postas ao
público: a explosão de ideias e a desordem vertida na bricolagem de imagens que compõem o segundo pla-
no do cartaz e, no primeiro plano, ao centro, sob o fundo vermelho, na primeira metade, a imagem do jor-
nalista e poeta Paulo Martins, agora feiro guerrilheiro de arma ao punho. Na segunda metade, logo abaixo,
a imagem sensual de Sílvia, a representação antagônica de Martins – a personagem apática, fria e sem falas.
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“Temerosas transações”: ensaios sobre o golpe recente no Brasil
29 Paulo Autran em cena antológica do cinema nacional – o coroamento do personagem Porfírio Díaz, o
político conservador e golpista de Terra em Transe: “Aprenderão! Aprenderão! Dominarei essa terra! Bota-
rei estas histéricas tradições em ordem pela força, pelo amor da força! Pela harmonia universal dos infernos,
chegaremos à civilização”.
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“Temerosas transações”: ensaios sobre o golpe recente no Brasil
30 O termo “democracia” em Dahl significa um sistema político que tem como uma de suas características
a qualidade de ser prestativo aos seus cidadãos e são três as oportunidades plenas que os cidadãos devem
ter para que um governo possa ser então, responsivo a eles: a) a oportunidade de formular preferências; b)
a oportunidade de expressar suas preferências a seus cidadãos e ao governo por meio da ação individual e
coletiva e c) a oportunidade de ter suas preferências igualmente consideradas na conduta do governo, ou
seja, consideradas sem discrimina o decorrente do conteúdo ou da fonte da preferência.
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Lorena Madruga Monteiro, Luciana Santana (organizadoras)
Mas para entendermos o novo golpe de Estado perpetrado pela direita brasi-
leira não basta citarmos que estes sempre foram pouco afeitos à institucionalidade.
É preciso também realizar uma espécie de reflexão sobre nosso autoengano. Com
algum atraso o PT percebeu que as eleições não resolvem os conflitos políticos,
bem como, entenderam que quem ganha as eleições, necessariamente, não ganha o
apoio político necessário para executar seu programa de governo.
Na sua trajetória errante, as esquerdas brasileiras sempre apoiaram seu pro-
jeto de transformação social em algum moinho de vento que, logo depois, se des-
fez frente à crueza do realismo político – se entre 1948 a 1964 vislumbramos essa
espécie de sonho de autonomia popular que logo se desfez com o cerceamento das
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Passados cinquenta anos do filme de Glauber, há algo nele que ainda o faz
atual e problematizador da ordem política brasileira – o duelo shakespeariano e
aflitivo das esquerdas entre o idealismo social e o ceticismo rigoroso. Esse dualis-
mo reflete-se na personagem de Paulo, o poeta cansado das palavras, mas também
atravessa o filme do começo ao fim na sucessão de cenas de profundo lirismo ar-
31 Declaração pública de Michel Temer em maio de 2017 a respeito da sua incriminação, mediante divul-
gação do áudio da delação premiada de Joesly Batista, dono de uma das principais e maiores empresas do
agronegócio no Brasil: “Aviso que não renunciarei. Não vou renunciar porque não tenho nada a esconder
[...] A investigação do STF será o território onde surgirão todas as explicações e no Supremo demonstrarei
minha inocência. Não renunciarei. Repito: não renunciarei [...] Exijo investigação plena e rápida, tão rápidas
quanto as investigações clandestinas”.
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Lorena Madruga Monteiro, Luciana Santana (organizadoras)
erro repetido das esquerdas, ontem e hoje, foi entender que os excluídos no Brasil
são apenas pobres economicamente e que bastaria redistribuir a renda para trans-
formar essa realidade. Mais, acreditaram, sub-repticiamente, que poderiam contar
com uma “boa burguesia” nesse projeto. Foram enganadas ontem e hoje. Comete-
ram o mesmo erro – creditaram à elite financeira desse país a esperança na mudan-
ça social e acreditaram que era possível recriar uma sociedade igualitária sem uma
reflexão mais profunda sobre o Estado, sobre a sociedade e, principalmente, sem
um pacto social genuinamente democrático.
Os ganhos materiais das classes populares não foram suficientes para im-
plantar uma noção crítica de cidadania entre aqueles que foram e se entenderam
desde sempre como excluídos e supérfluos. O golpe empreendido contra a presi-
denta Dilma foi também um golpe contra um projeto de sociedade em curso, foi
acima de tudo, uma intervenção “preventiva”, uma tentativa mal-acabada e torpe
de matar no berço a revolução cognitiva que possibilita a um país de origem es-
cravocrata, compreender que o filho do servente de pedreiro pode ser engenheiro,
que uma empregada doméstica possui direitos ou que frequentar aeroportos não é
uma exclusividade das classes enriquecidas às custas da especulação financeira ou
da classe média, mas um direito de todos. Talvez por isso, tal como em Terra em
transe, a população, mais uma vez, recepcione o novo golpe atônita, embasbacada,
perplexa e pior [no caso dos populares que apoiaram o impedimento da presiden-
ta], convencida de que as classes dirigentes desse país, que o Congresso mais venal
da história da nossa república, que a nossa mídia golpista ou que nossa casta jurí-
dica sectarista perseguem com destemor a corrupção e refundarão a moralidade
pública entre nós.
Em 1964 o golpe de realismo veio da caserna. Passados cinquenta e um anos,
quem diria, o golpe, que reluta mais uma vez em se assumir golpe, viria pela via legis-
lativa e pelas mãos daquela que deveria ser a guardiã da ordem constitucional: a casta
jurídica. Todavia, algo não mudou – o golpe foi, mais uma vez, uma resposta à ameaça
dos privilégios das classes dirigentes desse país. A explicitação dos conflitos de classes,
a partir das transformações advindas da ascensão social dos setores populares, amea-
çou o apartheid social sobre o qual se apoia a elite escravista brasileira que, para fazer
o trabalho “sujo” conclamou, através de um discurso cuidadosamente orquestrado
pela mídia, a classe média à ação e o resultado todos nós já acompanhamos.
A corrupção virou o vilão político, mas de nada se fala em reforma política,
posto que se entende que a corrupção é produto da má índole de alguns sujeitos
que precisam ser exorcizados, defenestrados ou banidos da vida pública brasileira.
O argumento é simplista e tão ordinário quanto a revolta extremista dos populares
que defendem a morte do ladrão de galinha, mas não possuem qualquer juízo de
valor sobre os sujeitos que promovem assaltos especulativos aos fundos de inves-
timentos públicos que impedem sua própria aposentadoria ou dos seus familiares.
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REFERÊNCIAS
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GOLPE, MÍDIA E MOVIMENTOS SOCIAIS:
APRENDENDO A LUTAR COM AS ARMAS
DO “OUTRO”.
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O que se pode concluir do cruzamento desses dados é que existe uma pre-
sença na rede sensivelmente maior do extrato social referente à classe média bus-
cando informação, enquanto as classes populares teriam uma tendência a utilizar a
rede ou para entretenimento ou como veículo de comunicação entre pessoas de seu
círculo social, logo, com menos disposição a acessar assuntos relacionados à polí-
tica, ideologia, questões sociais, história, economia, ecologia, entre outros. Outro
dado relevante diz respeito ao uso de e-mail que é muito mais significativo entre as
classes A e B. Esse fato pode indicar uma maior disposição, entre indivíduos dessas
classes, em desenvolver uma comunicação própria através da escrita. Haveria então
uma coincidência entre os números relativos à formação intelectual do usuário e o
tipo de uso e conteúdo acessado. Esse cruzamento de dados pode indicar além do
perfil socioeconômico, uma maior ou menor disposição do usuário em se informar
para debater, escrever, comentar e se posicionar sobre assuntos políticos de forma
mais assertiva na rede social.
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Lorena Madruga Monteiro, Luciana Santana (organizadoras)
virtual. Uma vez realizada essa ação de exclusão, torna-se a postar o comentário ou
a replicar a informação, já livre da impertinente presença do contradito. Segundo
as regras subjetivas, majoritariamente adotadas entre os usuários desse tipo de co-
municação e plataforma, considerada neutra e democrática, por essa mesma maio-
ria, é sugerido evitar textos longos ou complexos. Reforçando o descompromisso
histórico, dados, fontes e referências indicadas são, via de regra, ignoradas ou de-
sacreditadas, mesmo quando se tratam de organizações de relevância indiscutível
como ONU, UNESCO, IBGE, PNUD, etc. Um texto de maior volume, profundida-
de e fôlego, estaria mais apropriado para um formato de livro ou artigo e, segundo
critério geral, seria inadequado para as mídias sociais. Por vezes se avisa, quase
como quem comete um delito, que a seguir o usuário vai se deparar com um texto
extenso. Geralmente, esse tipo de aviso é seguido de um pedido de desculpas. A
fragmentação do discurso é estimulada pela própria fragmentação da plataforma: é
possível ler uma notícia/propaganda de uma ONG atuando em combate à fome ou
em favor de refugiados, logo depois se deparar com um animal de estimação fazen-
do gracinhas, seguido de uma propaganda sobre um novo remédio ou tratamen-
to para emagrecer, seguido por uma notícia sobre uma celebridade internacional,
seguido por um vídeo de um cantor popular, seguido por uma curiosidade sobre
o modo de vida dos monges tibetanos, seguido por um comentário contra o MST,
seguido por um ataque direto ao movimento feminista, seguido por uma piada de
fundo racista, machista ou preconceituosa no trato de religiões de matriz africana,
ou contra o pobre, ou contra o índio, etc. Essas postagens são acompanhadas por
comentários favoráveis ou contrários que, por sua vez, manifestam-se através de
mensagens curtas, símbolos emotivos, frases de senso-comum, palavras de baixo
calão, ameaças, etc.
O que se questiona aqui é o efeito de instância democrática, efeito de ágo-
ra, manifestando-se em uma estrutura disforme, rizomática, plataforma ou campo
reflexivo capaz de amalgamar hipertextos em que, aparentemente, uma expressão
de anarquia ou jogo randômico se impõe ante toda vã tentativa de controle. Essas
características, a princípio, inspirariam um sentido pleno de liberdade e isonomia,
como é alardeado pelos idólatras/ideólogos das novas tecnologias de comunicação.
Por outro lado, há outros fatores a considerar. O que se pretende aqui, não trata de
uma demonização das mídias sociais, mesmo porque, boicotá-las nesse momento
de total aderência ao modelo poderia soar no mínimo inócuo. Trata-se, então, de
interpretar esse modelo de comunicação a partir daquilo mesmo que ele se propõe
em termos estéticos, políticos e técnicos, a saber, certa predisposição para produzir
para si e para seus usuários um efeito/sensação/sentido de ubiquidade que se dobra
sobre tudo o que se manifesta aí.
Segundo essa interpretação, a promessa de ubiquidade e onipotência daqui-
lo que se expressa na rede seria o que seduz e convence o usuário a aderir a esse
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“Temerosas transações”: ensaios sobre o golpe recente no Brasil
32 O conceito/categoria de território aqui aplicado toma por base os seguintes textos: Deleuze e Guattari,
1995; Deleuze e Guattari, 1997.
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Frente essa colocação, cabe questionar o quanto lutar com as armas, ferra-
mentas e tecnologias do outro pode ou não produzir o resultado esperado. Um
contraexemplo da colocação acima se encontra nos bastidores da produção do fo-
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“Temerosas transações”: ensaios sobre o golpe recente no Brasil
Eugene Sue, por causa de seus folhetins que abordam o modo de vida popular
tão de perto, acabará no exílio, acusado de inspirar e incentivar o levante de 1848.
“No ambiente que precedeu 1848, porém, tais propostas foram lidas pela classe po-
pular como um convite à mudança e uma justificativa para o levantamento” (MAR-
TIN-BARBERO, 2003, p. 191). Propõe-se ainda que o desinteresse ou dificuldade de
transpor ou romper fronteiras entre a realidade e a literatura de folhetim expressa o
quanto a cultura popular, mesmo entre a classe intelectual é delegada a um segundo
plano, muitas vezes romantizado ou folclorizado, isto é despido de toda potência re-
volucionária. “Essa ausência de leitura na análise do folhetim exprime, à direita e à
esquerda, a não valorização do leitor popular” (MARTIN-BARBERO, 2003, p.191).
Retornando a contemporaneidade das redes sociais, esse contraexemplo leva
a questionar o efeito de anestesiamento das forças oriundas das classes populares
em sua adesão ao modelo de comunicação formatado pela bitola das redes sociais.
Como já colocado, lugar que privilegia a produção do discurso político-ideológico
de interesse e autoria da classe média. O grande paradoxo promovido pelas redes
sociais diz respeito à desconstrução de uma hipótese que serviu por um tempo
à crítica de base frankfurtiana-marxista sobre os meios de comunicação de mas-
sa. Essa crítica apontava a forma como, passo a passo, o debate político foi sendo
substituído pela verdade científica, ou por um modelo que propunha a “dissolução
tecnocrática do político” (MARTIN-BARBERO, 2003, p. 294).
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33 Vide a estreita relação da mídia empresarial com o golpe de 1964, no Brasil ou o apoio da mídia interna-
cional à tão alardeada primavera árabe que em efeito de dominó foi destituindo do poder central aiatolás e
mulás em países do Magreb ao Oriente Médio.
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34 Fala do ex-presidente Lula em entrevista à Rádio Brasil Atual. Programa Hora do Rango. (RBA, 2017,
www.redebrasilatual.com.br).
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Sobre essa questão a Folha de São Paulo35 em seu caderno Ilustríssima publi-
cou reportagem de Fábio Victor “como funciona a fábrica de títulos sensacionalis-
tas e inverdades que se disseminam nas redes sociais”. A reportagem mostra como
estes sites se estruturam, como são divulgados, e, o que é mais preocupante, que são
sustentados por publicidade atraída pelo grande número de visualizações alcança-
do. Seria importante também que a FSP e os outros veículos da mídia empresarial
impressa fizessem uma autocrítica porque, ao longo do processo do Mensalão do
PT, do impedimento da Presidenta Dilma Roussef e das acusações contra o ex-pre-
sidente Lula, ela própria utilizou suas páginas para distorcer informações.
Um caso de manipulação clara foi a publicação no jornal O Estado de São
Paulo sobre doação de empreiteiras ao Instituto Lula e ao Instituto FHC. A mesma
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do STF vem implementando é uma espécie de Direito Seletivo que é muito grave e
para o qual atos semelhantes conduzem a decisões diferentes e, mesmo, conflitan-
tes. Como característica básica deste direito encontramos as delações “premiadas”,
as convicções e a “desnecessidade” de provas.
Este direito começou a ser elaborado no julgamento do Mensalão do PT, já
na escolha do próprio objeto do julgamento porque o Mensalão do PSDB, mais
antigo e, à época, prestes a prescrever, foi posto de lado. Neste julgamento, por
exemplo, uma ilustre ministra do STF alegou que, na falta de provas contundentes,
iria condenar o réu, no caso o José Dirceu, porque a literatura assim o permitia.
A literatura teria permitido várias condenações em outros processos, mas não foi
utilizada com tamanha liberdade nestes casos.
À esposa do ex-governador do Estado do Rio de Janeiro foi permitido cum-
prir sua prisão preventiva em casa porque, segundo a decisão do juiz, o casal tem
filhos menores que precisavam da mãe para cuidar deles. Nas prisões femininas
brasileiras existem dezenas de milhares de mulheres na mesma situação que nun-
ca puderam gozar deste direito. Por que a uma ré este direito é assegurado e para
milhares de outras não? Por que a mídia empresarial e os blogs de centro e direita
não deram a esta questão a devida cobertura? E, principalmente, por que a opinião
pública comportou-se de uma maneira crítica à liberação da ex-primeira dama,
mas calou-se no que concerne ao direito das milhares de outras mulheres presas
que poderiam gozar deste mesmo direito?
As gravações ilegais de conversas telefônicas entre o ex-presidente Luís Iná-
cio Lula da Silva e a Presidenta em exercício Dilma Rousseff foram liberadas pelo
juiz Sérgio Moro para a divulgação manipuladora e tumultuária na mídia empresa-
rial, fato condenado por vários juristas, mas prontamente defendido pelo Ministro
Gilmar Mendes no Supremo Tribunal Federal. Contudo, este mesmo ministro con-
denou veementemente as gravações telefônicas nas quais os apoiadores ou mem-
bros do governo golpista apareciam envolvidos em negociatas. Por que a mídia em-
presarial, os blogs de centro e direita optaram por explorar à exaustão as gravações
ilegais entre o ex-presidente e a Presidenta e deram muito menos importância às
outras gravações?
A atuação da mídia e da opinião pública na atual conjuntura política do
Brasil revela um problema estrutural de raízes profundas que é uma crise ética
que afeta todas as camadas da população brasileira que expõe suas veias abertas
hodiernamente devido ao fenômeno das mídias sociais. Antes destas, era possí-
vel identificar um discurso conservador e reacionário nos grandes veículos da
mídia corporativa que, mais do que uma causa, é uma consequência do conser-
vadorismo da sociedade brasileira. Os proprietários destas mídias não são extra-
terrestres malvados que saltam de uma nave espacial e vêm assolar os cidadãos
brasileiros com seu conservadorismo antiético. Na verdade, são frutos do mesmo
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“Temerosas transações”: ensaios sobre o golpe recente no Brasil
caldo de cultura que origina as manifestações racistas que grassam nas mídias so-
ciais, cujas algumas outras manifestações são o alastramento assustador de seitas
pentecostais Brasil afora e a eleição de representantes que formam no Congres-
so Nacional a bancada da Bala/Boi/Bíblia. Este fenômeno não é recente, basta
lembrarmo-nos da célebre frase “aos amigos tudo, aos inimigos, a lei”, atribuída
a diferentes políticos conservadores brasileiros, atualizada e ressignificada pela
atuação dos responsáveis pela operação Lava Jato, bem como por ministros do
STF e congressistas brasileiros.
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REFERÊNCIAS
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FOUCAULT, Michel. Para uma vida não fascista. São Paulo: Ed. Autêntica, 2015.
109
“Temerosas transações”: ensaios sobre o golpe recente no Brasil
______. Lula recebeu quase R$4 milhões da Odebrecht, diz PF. OESP, edição de
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trissima/2017/02/1859808- como-funciona-a-engrenagem- das-noticias-falsas-no
-brasil>. Acesso em: 3 set. 2017.
110
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8
DA CULTURA COMO POLÍTICA AOS
PERIGOS PARA AS POLÍTICAS CULTURAIS:
UMA REVISÃO DO MINC (2003-2016)
E COMENTÁRIOS SOBRE O FUTURO
DAS POLÍTICAS CULTURAIS
Leonardo De Marchi
Introdução
111
“Temerosas transações”: ensaios sobre o golpe recente no Brasil
essa foi uma das áreas que mais avançou durante os governos encabeçados pelo
Partido dos Trabalhadores (PT), graças ao esforço de indivíduos e grupos civis or-
ganizados que tiveram espaço e possibilidade para repensar e refazer a relação en-
tre Estado e cultura no país. Após décadas de ausências, autoritarismos e instabili-
dades das políticas culturais, a partir da administração de Gilberto Gil (2003-2008)
à frente do Ministério da Cultura do Brasil (MinC), buscou-se repensar o papel do
Estado na área da cultura a partir da redefinição do próprio conceito de “cultura”.
Ao adotar uma conceituação antropológica do termo, pôde-se alinhar o tratamento
dado pelo Estado à cultura aos direitos culturais.
Isso significa dizer que a cultura passou a ser entendida não como folclore
(conforme professa certa abordagem populista à cultura), como belas-artes (confor-
me a perspectiva liberal), como lugar de difusão de uma ideologia de Estado (como
foi tratada durante os regimes políticos autoritários), ou ainda, como mero entrete-
nimento que deve ser repassado à iniciativa privada, mesmo que utilizando verbas
públicas (como defende a abordagem neoliberal), mas, sim, como a capacidade de
invenção coletiva de símbolos, valores, ideias e comportamentos de modo a afirmar
que todos os indivíduos e grupos sociais são sujeitos culturais (CHAUÍ, 1995). Nesse
sentido, o termo passou a ser entendido como sendo composto em três dimensões
complementares: (a) como expressão simbólica, (b) direito à cidadania e (c) campo
potencial para o desenvolvimento econômico sustentável (MINC, 2010; 2012).
Isso significa dizer que, pela primeira na história da vida política do Bra-
sil, a “cultura” passou a ser alinhada aos direitos fundamentais do Homem, como
“direito cultural”. Dessa forma, o MinC pôde propor outras formas de fazer polí-
tica que, sob o rótulo de “cultural”, fizeram avançar o reconhecimento nas esferas
cultural e política do país de diferentes grupos minoritários ou subalternos. Em
outros termos, tais grupos, os quais nunca foram considerados pelas elites como
dignos de cidadania, tiveram certo apoio para apresentarem seus modos de vida
como direitos a serem respeitados, protegidos e ampliados. Daí que o MinC tenha
se mobilizado para apoiar diversas manifestações das nações indígenas, de afrodes-
cendentes, da comunidade LGBT, entre outras.
Independente de limitações e equívocos que tenham sido cometidos ao lon-
go dessas administrações do MinC, não resta dúvida de que, entre os anos de 2003
e 2016, todas as gestões reforçaram o compromisso do ministério com os valores
democráticos pluralistas e a parte neodesenvolvimentista dos governos encabeça-
dos pelo (mas não restritos ao) PT36. Acima de tudo, buscou-se revolucionar não
36 O que significa dizer, criticamente, que nem todo os agentes que compunham a coalisão comungavam
de tal projeto neodesenvolvimentista, como ficaria explícito na articulação e aplicação do golpe de 2016.
Sobre a definição de neodesenvolvimentismo e de política cultura neodesenvolvimentista de cultura. Sobre
o tema, ver: Marchi (2014).
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“Temerosas transações”: ensaios sobre o golpe recente no Brasil
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Essa cláusula deixa patente que os direitos culturais pouco têm a ver, portan-
to, com as práticas artísticas em si; eles se relacionam com o direito de indivíduos
e grupos sociais de requisitarem sua condição de soberania e cidadania através da
afirmação de suas próprias visões de mundo, costumes, conhecimentos, línguas
maternas e/ou expressões artísticas. Isso porque o próprio conceito de “cultura” é
movido: da associação à ideia liberal de artes (belas-artes, artes liberais), passa-se
para o conceito da antropologia cultural. Nesse sentido, a UNESCO redefiniria o
conceito de “cultura” a partir de sua “Conferência mundial sobre políticas cultu-
rais”, realizada na Cidade do México, em 1982:
em seu sentido mais amplo, a cultura pode ser agora entendida como
o complexo integral de distintos traços espirituais, materiais, intelec-
tuais e emocionais que caracterizam uma sociedade ou grupo social.
Ela inclui não apenas as artes e as letras, mas também modos de vida, os
direitos fundamentais do ser humano, sistemas de valores, tradições e
crenças. (UNESCO, 1982, p. 1, apud LIMA, 2014, p. 28).
37 Cultural rights are an integral part of human rights, which are universal, indivisible and interdependent.
The flourishing of creative diversity requires the full implementation of cultural rights as defined in Article
27 of the Universal Declaration of Human Rights and in Articles 13 and 15 of the International Covenant
on Economic, Social and Cultural Rights. All persons have therefore the right to express themselves and to
create and disseminate their work in the language of their choice, and particularly in their mother tongue;
all persons are entitled to quality education and training that fully respect their cultural identity; and all per-
sons have the right to participate in the cultural life of their choice and conduct their own cultural practices,
subject to respect for human rights and fundamental freedoms.
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“Temerosas transações”: ensaios sobre o golpe recente no Brasil
38 Para Norberto Bobbio (2000), há diferentes tipos de democracias, uma vez que esse termo se remete,
fundamentalmente, a uma técnica de decisão coletiva sobre temas de interesse geral. Assim, os pontos
nevrálgicos e mais disputados do debate sobre democracia são (1) quem pode decidir tais questões, (2)
como estabelecer certa igualdade entre os que tomam as decisões e (3) de que forma se devem tomar
decisões. Portanto, uma democracia pode ser absolutamente restrita a pequenos grupos de pessoas que
são consideradas como iguais entre si a fim de decidirem, excluindo todos os que não seriam por eles
considerados iguais. Daí que a democracia da Grécia antiga, dos Estados Unidos dos chamados Pais
Fundadores ou do Brasil da Velha República fossem extremamente restritivas em relação a quem podia
votar ou não. Por isso, o tipo de democracia que Bobbio defende é a que facilita o desenvolvimento de
diferentes instâncias de decisão coletiva ao longo de toda a sociedade civil (associação de moradores, de
pais e professores, subprefeituras etc.), expandido o direito de decidir sobre temas de interesse geral. Isso
é o que o autor entende por democracia pluralista.
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Lorena Madruga Monteiro, Luciana Santana (organizadoras)
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“Temerosas transações”: ensaios sobre o golpe recente no Brasil
e o que entendo por cultura vai muito além do âmbito restrito e restriti-
vo das concepções acadêmicas ou dos ritos e da liturgia de uma suposta
“classe artística e intelectual”. (GIL, 2003, p. 10).
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Lorena Madruga Monteiro, Luciana Santana (organizadoras)
Não cabe ao Estado fazer cultura, mas, sim, criar condições de acesso
universal aos bens simbólicos. Não cabe ao Estado fazer cultura, mas,
sim, proporcionar condições necessárias para a criação e a produção de
bens culturais. Não cabe ao Estado fazer cultura, mas, sim, promover o
desenvolvimento cultural geral da sociedade. (GIL, 2003, p. 11).
Mas, ao mesmo tempo, o Estado não deve deixar de agir. Não deve optar
pela omissão. Não deve atirar fora de seus ombros a responsabilidade
pela formulação e execução de políticas públicas, apostando todas as
suas fichas em mecanismos fiscais e assim entregando a política cultural
aos ventos e aos deuses do mercado. (GIL, 2003, p. 11).
Na verdade, não era a primeira vez que essa concepção antropológica de “cultu-
ra” (particularmente próxima à antropologia cultural) foi adotada por um governo lide-
rado pelo PT. Marilena Chauí (1995) relata esse mesmo movimento na gestão do PT na
Secretaria de Cultura do município de São Paulo, entre 1989 e 1992. Naquela oportu-
nidade, lembra a filósofa, passou-se a definir “cultura” como a “capacidade de invenção
coletiva de símbolos, valores, ideias e comportamentos de modo a afirmar que todos os
indivíduos e grupos são seres culturais e sujeitos culturais” (CHAUÍ, 1995, p. 81).
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“Temerosas transações”: ensaios sobre o golpe recente no Brasil
Nesse outro sentido de cultura, o MinC pôde começar a alinhar “política cul-
tural” aos “direitos culturais”, isso é, pôde-se entender as políticas culturais como
meios de alcançar a inclusão social e garantir o direito à cidade para diferentes
grupos sociais. Com efeito, nos documentos do ministério, passou-se a considerar
a “cultura” como sendo formada por três dimensões complementares: (a) expressão
simbólica, (b) direito à cidadania e (c) campo potencial para o desenvolvimento
econômico sustentável. No próprio discurso de posse, Gil faria questão de sinalizar
a guinada política ao enfatizar que “[...] o acesso à cultura é um direito básico de
cidadania, assim como o direito à educação, à saúde, à vida num ambiente saudá-
vel” (GIL, 2003, p. 11). Significa dizer que a cultura deveria figurar como recurso
fundamental de um novo desenvolvimento, ambientalmente sustentável, economi-
camente sustentado e socialmente inclusivo (SACHS, 2005).
Tal conceituação do termo foi decisiva a ampliação das competências do
MinC. Se a política cultural deve se respaldar nos direitos culturais, torna-se pos-
sível ao ministério apoiar manifestações culturais de diversos grupos sociais mi-
noritários ou subalternos (como as de movimentos afro-brasileiros, indígenas e da
comunidade LGBT), além de agir em favor da ampliação do acesso à comunicação
digital e propor políticas para fomentar a economia da cultura. Nesse sentido, os
chamados “Pontos de cultura39” foram o feito mais emblemático da gestão de Gil-
berto Gil, na medida em que materializavam suas concepções de fazer cultura de
baixo para cima.
Com efeito, as gestões de Gil e de João Luiz Silva “Juca” Ferreira (2008-2011,
então filiado ao Partido Verde), seu principal assessor, deixaram patente o esforço
para tornar o ministério o agente articulador de implementação de políticas cul-
turais de Estado; não mais de governo. Para tanto, o ministério buscou abrir um
diálogo direto com agentes produtores de cultura a fim de ouvir suas opiniões e
demandas, além de aprovar leis que, acima de tudo, estabelecessem compromissos
que iriam além de suas gestões ou mesmo dos governos futuros, caso do Programa
Cultura Viva e, ambiciosamente, do Plano Nacional de Cultura.
Na medida em que a legitimidade do MinC se consolidava, as administra-
ções de Gil e, sobretudo, Juca Ferreira avançaram em relação a temas sensíveis den-
tro do campo da cultura, como o tema dos direitos autorais e a reforma da Lei
Rouanet. Bastante ativo na discussão sobre direitos autorais na era digital, Gilberto
Gil filiou-se ao grupo de reformistas que reivindica uma mudança profunda na
39 Parte relevante do Programa Cultura Viva, que tinha como diretrizes possibilitar que a própria população
produzisse cultura, os Pontos de Cultura foram projetos socioculturais financiados pelo MinC e imple-
mentados por entidades governamentais ou não governamentais. Por meio de edital público, o Ministério
seleciona instituições que já produzem atividades culturais. Ao assinar um convênio entre o governo, essas
instituições passariam a receber, durante três anos consecutivos, o valor de 60 mil reais/ano, num total de
180 mil reais, tendo de prestar constas anualmente.
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Lorena Madruga Monteiro, Luciana Santana (organizadoras)
40 Nos bastidores da política, à época, comentava-se que Marta Suplicy se apresentou ao PT como a can-
didata para a Prefeitura de São Paulo nas eleições municipais de 2012. Ao que parece, essa possibilidade foi
rechaçada, porém, por grandes líderes do partido (especificamente, Luís Inácio “Lula” da Silva) que pret-
eriram Marta por Fernando Haddad (PT), que se tornaria, de fato, Prefeito de São Paulo naquelas eleições.
Não há como se confirmar tal especulação. O fato é que, a partir de então, Marta Suplicy abandonaria o PT,
migrando para o PMDB, e se tornaria uma das articulistas mais proeminentes do impeachment de Dilma
Rousseff (PT) e do governo de Michel Temer (PMDB).
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“Temerosas transações”: ensaios sobre o golpe recente no Brasil
Suplicy cederia seu lugar para uma segunda gestão de Juca Ferreira (2015-2016).
Esse foi um gesto (talvez já desesperado) de Rousseff na tentativa de recobrar o
apoio de parte significativa da comunidade artística, fortemente desapontada com
as duas administrações anteriores que representaram retrocessos nos logros obti-
dos pelas gestões Gil-Juca. Apesar de tentar retomar o ímpeto reformista de sua
gestão anterior, Juca Ferreira não teve recurso, ambiente nem tempo suficientes
para retomar tais projetos.
41 Quando ainda se discutia a possibilidade ou não de impedimento da, então, presidenta Dilma Rousseff,
lideranças notáveis do PMDB apresentaram uma proposta de políticas públicas que tinham por objetivo,
em última instância, diminuir a participação do Estado brasileiro na economia nacional diretamente e, mais
importante, afrouxar sua mediação das relações entre capital e trabalho. Assim que assume a presidência,
Michel Temer coloca a proposta como sua prioridade em termos de política de governo, destacando-se as
chamadas reformada da previdência social e a reforma trabalhista. Sobre a proposta “Uma Ponte para o
Futuro”, o documento encontra-se disponível em: <http://pmdb.org.br/wp-content/uploads/2015/10/RE-
LEASE-TEMER_A4-28.10.15-Online.pdf>. Acesso em: 02 jun. 2017.
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42 Entre maio de 2016, enquanto Temer ainda era Presidente Interino, e julho de 2017, foram ministros da
cultura, respectivamente: Marcelo Calero, Roberto Freire, João Batista de Andrade, André Amaral Filho e
Sérgio Sá Leitão.
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pela Prefeitura a uma série de manifestações culturais, desde a Parada LGBT à festa
de Carnaval da cidade. Independentemente da efetivação ou não desses cortes, a
mera disposição de retirar o apoio do Estado às expressões culturais de minorias
explicita o ataque à concepção ampliada de cultura, revelando a gravidade do mo-
mento político para a cultura. Ao que parece, esta volta a ser vista como supérflua
ou, ainda pior, como lócus de certa posição política “à esquerda” que deve ser com-
batida e até mesmo eliminada.
Considerações finais
43 Norberto Bobbio (2000) faz uma distinção entre democratização do Estado, que seria a mera possibi-
lidade de votar em políticos numa democracia representativa tradicional, e democratização da sociedade,
o que significaria o desenvolvimento de outras instâncias de decisão de temas públicos, organizados pela
sociedade civil, e que daria forma ao que o autor classifica de democracia pluralista.
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REFERÊNCIAS
BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia. 11. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2000.
CALABRE, Lia. Políticas culturais no Brasil: dos anos 1930 ao século XXI. Rio de
Janeiro: FGV editora, 2009.
GIL, Gilberto. Discursos do Ministro da Cultura Gilberto Gil. Brasília: MinC, 2003.
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Lorena Madruga Monteiro, Luciana Santana (organizadoras)
SOBRE OS AUTORES
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LAURA LOBO
Graduanda em Direito no Centro Universitário Tiradentes (UNIT/AL). Bol-
sista PROVIC no projeto de pesquisa “A CONSTITUCIONALIDADE DA AGENDA
LEGISLATIVA PÓS IMPEACHMENT DE DILMA ROUSSEFF: ANÁLISE DAS
PECs EM CARÁTER DE URGÊNCIA NA CÂMARA DOS DEPUTADOS” coor-
denado pela Dra. Lorena Madruga Monteiro. Participante do Grupo Democracia e
Justiça do Observatório de Democracia e Interdisciplinaridade do Centro Univer-
sitário Tiradentes. Email: lauralobo2312@gmail.com
LAURA NAPOMUCENO
Graduanda em Direito no Centro Universitário Tiradentes (UNIT/AL). Bol-
sista PROVIC no projeto de pesquisa “A CONSTITUCIONALIDADE DA AGENDA
LEGISLATIVA PÓS IMPEACHMENT DE DILMA ROUSSEFF: ANÁLISE DAS
PECs EM CARÁTER DE URGÊNCIA NA CÂMARA DOS DEPUTADOS” coor-
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Lorena Madruga Monteiro, Luciana Santana (organizadoras)
LEONARDO DE MARCHI
Doutor em Comunicação e Cultura pela UFRJ. Professor Visitante na Facul-
dade de Comunicação Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (FCS
-UERJ) e Colaborador Permanente do Programa de Pós-Graduação em Comuni-
cação da UERJ (PPGCOM-UERJ). E-mail: leonardodemarchi@gmail.com
LUCIANA SANTANA
Professora adjunta de Ciência política no Instituto de Ciências Sociais da
Universidade Federal de Alagoas. Graduada em História, é Mestre e Doutora em
Ciência Política pelo DCP/UFMG, com instância sanduíche na Universidade de
Salamanca. É coordenadora do curso de Ciências Sociais na modalidade a distan-
cia e do Comitê de Ética e Pesquisa, ambos na UFAL. Líder do grupo de pesquisa
“Instituições, comportamento político e democracia”. E-mail: lucianacfsantana@
yahoo.com.br
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“Temerosas transações”: ensaios sobre o golpe recente no Brasil
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Lorena Madruga Monteiro, Luciana Santana (organizadoras)
A presente coletânea Temerosas Transações: Ensaios sobre
o golpe recente no Brasil, organizada por Lorena Madruga
Monteiro e Luciana Santana, teve como intuito reunir refle-
xões de autores, pesquisadores, que têm se manifestado
constantemente sobre o momento de ruptura institucio-
nal, social e política que o Brasil vive após o impeachment
da presidenta Dilma Rousseff. O objetivo é que os en-
saios presentes na coletânea fiquem materializados nesse
e-book para que, no futuro, contribuam para contar essa
história como contraponto à narrativa construída pelos
meios de comunicação brasileiros. Todos os ensaios têm
em comum a percepção de que a Democracia, que estava
em flanco processo de expansão no Brasil, foi golpeada
por interesses distintos da maioria do povo brasileiro. Os
ensaios contemplados na coletânea refletem sobre esse
contexto de ruptura institucional e política em curso no
Brasil através da análise das relações executivo-legislati-
vo, da atuação do judiciário, da dinâmica do golpe, das
possibilidades da esquerda, dos retrocessos no campo da
cultura, da democracia e dos direitos sociais.
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