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Lorena Madruga Monteiro, Luciana Santana (organizadoras)

Lorena Madruga Monteiro


Luciana Santana
(organizadoras)

“TEMEROSAS
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1
“Temerosas transações”: ensaios sobre o golpe recente no Brasil

Lorena Madruga Monteiro


Luciana Santana
(organizadoras)

“Temerosas transações”:
ensaios sobre
o golpe recente no Brasil

1ª edição

Santa Cruz do Sul

2017

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Lorena Madruga Monteiro, Luciana Santana (organizadoras)

CONSELHO EDITORIAL

Prof. Dr. Alexandre Morais da Rosa – Direito – UFSC e UNIVALI/Brasil


Prof. Dr. Alvaro Sanchez Bravo – Direito – Universidad de Sevilla/Espanha
Prof. Dr. Argemiro Luís Brum –Economia – UNIJUI/Brasil
Prof. Dr. Carlos M. Carcova – Direito – UBA/Argentina
Profª. Drª. Caroline Müller Bitencourt – Direito – UNISC/Brasil
Prof. Dr. Demétrio de Azeredo Soster – Ciências da Comunicação – UNISC/Brasil
Prof. Dr. Eduardo Devés – Direito e Filosofia – USACH/Chile
Prof. Dr. Eligio Resta – Direito – Roma Tre/Itália
Profª. Drª. Gabriela Maia Rebouças – Direito – UNIT/SE/Brasil
Prof. Dr. Gilmar Antonio Bedin – Direito – UNIJUI/Brasil
Prof. Dr. Giuseppe Ricotta – Sociologia – SAPIENZA Università di Roma/Itália
Prof. Dr. Humberto Dalla Bernardina de Pinho – Direito – UERJ/UNESA/Brasil
Prof. Dr. Ingo Wolfgang Sarlet – Direito – PUCRS/Brasil
Prof. Dr. Janriê Rodrigues Reck – Direito – UNISC/Brasil
Prof. Dr. João Pedro Schmidt – Ciência Política – UNISC/Brasil
Prof. Dr. Jose Luis Bolzan de Morais – Direito – UNISINOS/Brasil
Profª. Drª. Kathrin Lerrer Rosenfield – Filosofia, Literatura e Artes – UFRGS/Brasil
Profª. Drª. Katia Ballacchino – Antropologia Cultural – Università del Molise/Itália
Profª. Drª. Lilia Maia de Morais Sales – Direito – UNIFOR/Brasil
Prof. Dr. Luís Manuel Teles de Menezes Leitão – Direito – Universidade de Lisboa/Portugal
Prof. Dr. Luiz Rodrigues Wambier – Direito – UNIPAR/Brasil
Profª. Drª. Nuria Belloso Martín – Direito – Universidade de Burgos/Espanha
Prof. Dr. Sidney César Silva Guerra – Direito – UFRJ/Brasil
Profª. Drª. Silvia Virginia Coutinho Areosa – Psicologia Social – UNISC/Brasil
Prof. Dr. Ulises Cano-Castillo – Energia e Materiais Avançados – IIE/México
Profª. Drª Verônica Teixeira Marques de Souza – Ciências Sociais – UNIT/Brasil
Profª. Drª. Virgínia Appleyard – Biomedicina – University of Dundee/ Escócia

COMITÊ EDITORIAL

Profª. Drª. Fabiana Marion Spengler – Direito – UNISC/Brasil


Prof. Me. Theobaldo Spengler Neto – Direito – UNISC/Brasil

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“Temerosas transações”: ensaios sobre o golpe recente no Brasil

Essere nel Mondo


Rua Borges de Medeiros, 76
Cep: 96810-034 - Santa Cruz do Sul
Fones: (51) 3711.3958 e 9994. 7269
www.esserenelmondo.com.br
www.facebook.com/esserenelmondo

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sentimento da Editora. A utilização de citações do texto deverá obedeceras regras editadas
pela ABNT. As ideias, conceitos e/ou comentários expressos na presente obra são criação e
elaboração exclusiva do(s) autor(es), não cabendo nenhuma responsabilidade à Editora.

T279 “Temerosas transações”: ensaios sobre o golpe recente no Brasil


[recurso eletrônico] / Lorena Madruga Monteiro, Luciana
Santana, Org. - Santa
Cruz do Sul: Essere nel Mondo, 2017.
133 p.

Texto eletrônico.
Modo de acesso: World Wide Web.

1. Golpes de Estado - Brasil. 2. Democracia - Brasil. 3. Ciência


política - Brasil. I. Monteiro, Lorena Madruga. II. Santana, Luciana.

CDD: 320.0981

Prefixo Editorial: 5479


Número ISBN: 978-85-5479-004-2

Bibliotecária responsável: Fabiana Lorenzon Prates - CRB 10/1406


Bibliotecária responsável: Fabiana Lorenzon Prates - CRB 10/1406
Catalogação: Fabiana Lorenzon Prates - CRB 10/1406
Catalogação: Fabiana Lorenzon Prates
Correção ortográfica: pelos autores
Revisão gramatical: Rodrigo Bartz
Diagramação: Daiana Stockey Carpes
Diagramação: Daiana Stockey Carpes

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Lorena Madruga Monteiro, Luciana Santana (organizadoras)

AGRADECIMENTOS

Agradecemos todos os autores que acreditaram na proposta e contribuíram com


ensaios que clarificaram e qualificaram o debate proposto.
Ao Programa de Pós-Graduação em Sociedade, Tecnologias e Políticas
Públicas do Centro Universitário Tiradentes (UNIT/AL) pelo incentivo
à publicação desta obra.

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“Temerosas transações”: ensaios sobre o golpe recente no Brasil

LISTA DE SIGLAS

ADINs - Ação direta de inconstitucionalidade


AEPP - Associação dos Especialistas em Políticas Públicas
AI-5 - Ato Institucional N. 5
ARENA - Aliança Renovadora Nacional
CLT - Consolidação das leis do Trabalho
CPI - Comissão Parlamentar de Inquérito
DEM - Partido Democratas
DOXA - Laboratório de estudos eleitorais, de comunicação política e opinião
pública
FHC - Fernando Henrique Cardoso
FUNAI - Fundação Nacional do Índio
GG - Greve Geral
IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
INCRA - Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária
LGBT - Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgéneros
MDA - Ministério do Desenvolvimento Agrário
MDS - Ministério do Desenvolvimento Social e Combate a Fome
MDSA - Ministério do Desenvolvimento Social e Agrário
MinC - Ministério da Cultura
MST - Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra
NHS - Serviço Nacional de Saúde
ONG - Organização não-governamental
ONU - Organizações das Nações Unidas
PDT - Partido Democrático Trabalhista
PEC - Projeto de Emenda constitucional
PFL - Partido da Frente Liberal

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Lorena Madruga Monteiro, Luciana Santana (organizadoras)

PIG - Partido da Imprensa Golpista


PL -Projeto de Lei
PMDB - Partido do Movimento Democrático Brasileiro
PNUD - Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento
PP - Partido Progressista
PPI - Programa de Parceiros de Investimentos
PR - Partido da República
PRB - Partido Republicano Brasileiro
PRN - Partido da Reconstrução Nacional
PR -Partido da República
PSB - Partido Socialista Brasileiro
PSD - Partido Social Democrático
PSDB - Partido da Social Democracia Brasileira
PT - Partido dos Trabalhadores
PTB - Partido Trabalhista Brasileiro
SD - Partido Solidariedade
SEC - Secretaria da Cultura
STF - Supremo Tribuna Federal
SUS - Sistema Único de Saúde
UNCTAB - Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento
UNESCO - Organizações das Nações Unidas para Educação, a ciência e a cultura
USP -Universidade de São Paulo

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“Temerosas transações”: ensaios sobre o golpe recente no Brasil

SUMÁRIO

PREFÁCIO 10
Ana Prestes

1. APRESENTAÇÃO 18
Lorena Monteiro
Luciana Santana

2. O GOLPE DE ESTADO DE 2016 E A DITADURA CIVIL 20


VIGENTE NO BRASIL
Guilherme Simões Reis

3. A POLÍTICA E AS REGRAS DO JOGO DE UMA 37


DEMOCRACIA QUE ESCAPA AO BRASIL ATUAL
Igor Suzano Machado

4. IMPASSES DA DEMOCRACIA BRASILEIRA: 48


PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO, IMPEACHMENT E CRISE
INSTITUCIONAL
João Paulo S. L. Viana
Marcio Cunha Carlomagno
Valter Rodrigues de Carvalho

5. HÁ UM PROCESSO DE DESDEMOCRATIZAÇÃO NO BRASIL: 69


NOTAS SOBRE A PEC 241
Lorena Madruga Monteiro
Laura Napomuceno
Laura Lobo

6. O BRASIL VIVE SEU NOVO TRANSE 79


Emerson do Nascimento
Luciana Santana

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7. GOLPE, MÍDIA E MOVIMENTOS SOCIAIS: 92


APRENDENDO A LUTAR COM AS ARMAS DO “OUTRO”
Walcler de Lima Mendes Junior
Pedro Simonard
Josbeth Correia Macário

8. DA CULTURA COMO POLÍTICA AOS PERIGOS PARA 111


AS POLÍTICAS CULTURAIS: UMA REVISÃO DO MINC
(2003-2016) E COMENTÁRIOS SOBRE O FUTURO DAS
POLÍTICAS CULTURAIS
Leonardo De Marchi

SOBRE OS AUTORES 129

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“Temerosas transações”: ensaios sobre o golpe recente no Brasil

PREFÁCIO

 
Qualquer um que escreva em tempos de golpe deve sentir aquela sensa-
ção de que lhe escapa algo, de que o turbilhão perturba a nitidez das imagens do
presente, mas de que ainda assim é preciso escrever. Não foi diferente quando
me pediram para prefaciar esta coletânea de ensaios sobre um tempo de tene-
brosas transações, de inescapável subtração das bases da democracia brasileira,
tão duramente conquistada. Os últimos anos têm sido de intensa instabilidade
e imprevisibilidade política, circunstâncias sob as quais é um desafio propor
análises. O cenário torna ainda mais instigante decifrar a quadra histórica na
qual se encontra o Brasil.
O livro surge em um contexto de restauração conservadora na América
Latina. Se até bem pouco tempo, nós, os povos abaixo do Rio Bravo, éramos
uma referência mundial pela instalação e avanço de um ciclo virtuoso, a partir
de governos comprometidos com uma agenda de combate à desigualdade, hoje
somos fonte de preocupação pela escalada de uma agenda autoritária e neoliberal
que reverte avanços e impõe o retrocesso. Em pouco mais de uma década,
milhões foram retirados da pobreza, democracias foram fortalecidas, processos de
integração como Mercosul, Unasul e Celac foram criados ou aprofundados, um
histórico processo de paz foi selado na Colômbia. Não seria plausível pensar que
tais movimentos passariam incólumes a uma reação conservadora.
Em 2014 o Presidente do Equador Rafael Correa denunciou no 1º. ELAP
(Encontro Latino-americano Progressista) que estava em marcha um processo de
“restauração conservadora” na região. O novo ciclo inaugurado na América Latina
no início do milênio com a eleição de governos progressistas ante às mazelas do
neoliberalismo passava a enfrentar sérias dificuldades para sua manutenção. Os se-
tores conservadores, reacionários e de direita, nacionais e internacionais, da região

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Lorena Madruga Monteiro, Luciana Santana (organizadoras)

se rearticularam de modo a fazer sérias ameaças à nova correlação de forças que


havia se estabelecido.
A eleição do Presidente Mauricio Macri na Argentina, em novembro de
2015, simboliza de forma ilustrativa o ponto de inflexão na política latino-ameri-
cana. A restauração conservadora já vinha sendo gestada e a atual situação política
em que se encontram a Argentina, o Brasil, Venezuela e outros países da região
configura demonstração de um momento de recuos das políticas econômicas e so-
ciais avançadas que vinham sendo implementadas.
Uma das formas de desestabilização da política interna dos países latino-a-
mericanos veio via ação externa de instrumentalização da sociedade civil. A ad-
vogada norte-americana Eva Golinger, por exemplo, ao estudar sobre o golpe de
Estado contra Hugo Chávez em 2002, descobriu que mais de US$ 20 milhões fo-
ram remetidos pela NED (National Endowment for Democracy) e o Usaid (Uni-
ted States Agency for International Development) a grupos de oposição e à mídia
privada venezuelana. O próprio New York Times revelou, dias após o golpe, que o
orçamento da NED destinado à Venezuela havia quadriplicado alguns meses antes
da tentativa de golpe, por ordem do Congresso norte-americano. Associado a isso,
grandes corporações midiáticas trabalhavam a fabricação da opinião pública, ten-
tando criar a percepção do caos e do descontrole e a urgência de uma intervenção.
Na sequência do golpe na Venezuela, houve ainda outras rupturas institucio-
nais mais ou menos exitosas na região, no Haiti em 2004, na tentativa de golpe na
Bolívia em 2008, golpe em Honduras em 2009, tentativa de golpe no Equador em
2010 e golpe parlamentar no Paraguai em 2012. Durante este período, houve várias
movimentações de setores externos no sentido de desestabilizar o avanço dos se-
tores progressistas na região, o que incluiu o aumento do financiamento a partidos
políticos e ONGs. Hoje, Bolívia, El Salvador, Equador e Uruguai seguem na mira
de uma ofensiva que não se exime de possibilidade de desferir “golpes blandos”, ou
seja, golpes de novo tipo que buscam desestabilizar governos progressistas através
da massificação de informações não comprovadas, operações judiciais midiáticas,
guerra econômica e guerra psicológica.
Através da ofensiva dos “golpes blandos” tornou-se plasticamente mais viável
realizar golpes contra governos eleitos pelo voto popular. Para executar um golpe
suave e de novo tipo primeiro se reveste uma minoria em maioria com a amplifica-
ção de sua visibilidade e demandas pontuais. Em seguida, demandas antipopulares
são fragmentadas e travestidas para que não fiquem tão explícitos os desconfortos
da elite com o aumento do número de negros nas universidades, o estabelecimento
de direitos para domésticas ou aeroportos transbordando de gente, para citar al-
guns. As controvérsias políticas são acirradas ao limite do enfrentamento, do des-
gaste e do linchamento da maioria que está governando. Enchem-se as ruas de gen-
te indignada com o fim dos privilégios até que as condições estejam propícias para

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“Temerosas transações”: ensaios sobre o golpe recente no Brasil

a derrubada do governo via uma farsa judicial legitimada pela ação parlamentar.
Trata-se de uma modernização do modus operandi estadunidense para forçar sua
hegemonia na região. Ficaram para trás os velhos golpes de Estado militarizados e
de métodos brutais. A premissa é recuperar a desgastada hegemonia do Consenso
de Washington na região. 
No Brasil, podemos dizer que o ponto de viragem do ciclo progressista ficou
evidente em 2013. Um conjunto expressivo de manifestações levou milhares de
pessoas às ruas das principais cidades do país. Elas inauguraram uma série de pro-
testos a princípio difusos e de amplo espectro de demandas que aos poucos foram
afunilando para uma narrativa contestatória à legitimidade dos sequentes governos
encabeçados pelo PT. Em 2014 tais protestos foram relacionados à realização dos
grandes eventos esportivos, em especial a Copa do Mundo de Futebol. Em 2015
iniciaram os protestos para o impeachment. Estes últimos serviriam como pano
de fundo popularesco de uma manobra fraudulenta, operada por setores do parla-
mento, do judiciário e da grande imprensa para destituir uma presidente eleita pelo
voto popular.
Segundo a professora Céli Pinto, no artigo A trajetória discursiva das mani-
festações de rua no Brasil (2013-201), publicado na Revista Lua Nova de número
100, do Movimento Passe Livre aos Black Blocs, incluindo uma miríade de atores e
segmentos da sociedade, as fragmentarias e volumosas manifestações de junho de
2013 inauguraram uma trajetória de evolução do discurso tendencialmente de di-
reita que desembocou no movimento pró impeachment de 2015. A grande maioria
de pessoas mobilizadas em 2013, segundo Pinto, não pertencia a nenhum grupo
organizado, mas eram sim indivíduos capturados pelo discurso anticorrupção que
associava a imagem de decrepitude da política e dos políticos às insuficiências dos
serviços públicos de transporte, saúde, educação e segurança.
O mais concreto indicador de que 2013 foi um ponto de viragem é a evo-
lução negativa da popularidade da Presidenta Dilma que caiu de 65% de ótimo
e bom em março para 30% em junho. Daí até o final de 2014 a popularidade da
presidente não recobrou os patamares anteriores a junho de 2013, chegando a no
máximo 40% de aprovação, segundo dados do Data Folha. O mais instigante é ob-
servar que as manifestações não se deram ante um governo de baixa popularidade,
mas sim a baixa popularidade foi consequência das manifestações. A aprovação
pessoal da presidente havia chegado a 79% em março do mesmo ano, superior a
Lula (58%) e FHC (70%) no mesmo período de governo. Apenas 17% da popula-
ção desaprovava o jeito Dilma de governar, segundo pesquisa da CNI. O índice de
confiança na presidente também havia subido de 73% em dezembro de 2012 para
75% em março do ano seguinte. Nesta época, o desemprego estava em 5,5% e o
salário mínimo havia subido 9% em janeiro. Renato da Fonseca, gerente executivo
desta pesquisa da CNI chegou a dizer na época: “Há uma avaliação positiva no

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Lorena Madruga Monteiro, Luciana Santana (organizadoras)

julgamento pessoal da presidente. Ela vem conseguindo construir essa figura de


competência, de segurança nas decisões e de ser boa administradora. É a percepção
que a agente chegou a captar”. Imagem esta que foi brutalmente destruída conforme
se observou nos meses que seguiram até o golpe de 2016.
Ocorre que a permanência de governos progressistas na região tornou-se
algo intolerável e o Brasil estava no epicentro deste cenário. Foi preciso reorganizar
as velhas oligarquias para fazer retornar a agenda ultraliberal de achatamento dos
salários, desregulamentação da exploração de riquezas minerais, corte de despesas
públicas, melhoria das condições para os negócios privados, privatização de esta-
tais, repasse de fundos públicos para setores empresariais. Até aqui, governos que
conseguiram reestruturar a dinâmica do Estado, regulamentar o setor de comuni-
cação e estabelecer relação direta com a população, como, por exemplo, Venezuela,
Bolívia e Equador, acumularam melhores condições para resistir à ofensiva dos
golpes suaves.  No Brasil, a restauração conservadora avança a galope como de-
monstram os ensaios desta coletânea.
Até o início do segundo governo Dilma, observou-se no Brasil uma relativa
estabilidade da hegemonia política estabelecida com a derrota de Fernando Hen-
rique Cardoso e da agenda neoliberal em 2002. Por trás da campanha midiática
contra a corrupção, que figurou como a fachada principal, encontra-se o verda-
deiro objetivo da movimentação: tirar a esquerda do centro do poder político a
qualquer custo, literalmente. O que se viu ao longo do ano do golpe de 2016 foi a
captura de um poder e a suspensão da democracia para a subsequente instauração
de uma nova ordem política, econômico-social, autoritária, de cunho neoliberal
e neocolonial, estabelecendo a ruptura com o último pacto de unidade nacional
consubstanciado pela Constituição Federal de 1988.
Em seus pouco mais de 500 anos de história, o Brasil já viveu várias situações
semelhantes. O golpe da destituição presidencial levada a cabo por um engenhoso
processo de manipulação midiática e das entranhas dos poderes parlamentar e ju-
diciário recoloca na cena política elementos de um passado do qual não há muito
para se regozijar. O embate entre os setores progressistas, apoiados pelo voto po-
pular das eleições de 2014, e os setores retrógrados, viabilizados via impeachment
da chefe de Estado, nos remete aos confrontos passados entre soberania e colonia-
lismo; desenvolvimentismo e (ultra)liberalismo; democracia e Estado de Exceção;
progresso social e barbárie.
Se observarmos a história da construção do Estado e da sociedade brasilei-
ra, perceberemos longos períodos autoritários permeados por pequenas fases de
democracia. Séculos de colônia precederam uma independência negociada. Um
longo regime monárquico de base econômica agroexportadora e escravocrata pre-
cedeu a proclamação de uma república que nasceu por vias autoritárias. A primeira
república já nasceu velha e foi forjada na permanente negociação entre o poder

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“Temerosas transações”: ensaios sobre o golpe recente no Brasil

executivo central e o coronelismo através da “política dos governadores” de Cam-


pos Sales. A revolução liberal de 30 caminhou para o regime do Estado Novo de
Getúlio. A queda deste fez ascender os militares, desta vez eleitos, e a cassação de
partidos e mandatos populares, como dos comunistas em 47. O mandato popular
conquistado por Vargas nos anos 50 foi amputado por uma pressão que o levou ao
suicídio. Na sequência, uma escalada golpista espreitou os dez anos de exercício
da democracia e lhe deu cabo com o golpe de 64. Por 21 anos foi submergida a de-
mocracia para ressurgir capenga em meadas dos anos 80 e ser repactuada a duras
penas em 88 com a constituição federal.
Séculos de hegemonia das elites dominantes, interrompidos por curtos pe-
ríodos democráticos, levaram o país a ser recordista de desigualdade, com uma
economia subdesenvolvida e subordinada, com dezenas de milhões de pessoas na
miséria e excluídas da economia e da política. Olhando assim, nos damos conta
ainda mais do significado do pacto democrático de 88 que abriu passagem para
o maior período democrático de nossa história. Pela primeira vez em 500 anos o
brasileiro pode sentir certa perenidade e estabilidade de um regime democrático.
Durante este período houve sete eleições presidenciais, quatro presidentes foram
eleitos, além da liberdade de imprensa, abertura para o livre exercício sindical e de
associação, organização e funcionamento dos movimentos sociais, aprofundamen-
to dos mecanismos de democracia participativa.
Durante mais de uma década de governos democráticos e populares, que
marcam o fim desse ciclo virtuoso, os avanços sociais foram sem precedentes. Há
fartos indicadores que demonstram a diminuição da desigualdade social e regional,
maior acesso a serviços públicos de saúde e educação, proteção social e inclusão no
mercado de trabalho, apoio via microcrédito aos pequenos agricultores e empre-
sários, ampliação da infraestrutura e acesso à moradia popular. O Brasil nesse pe-
ríodo passou a ser referência internacional em direitos humanos e combate à fome.
A descoberta do Pré-Sal foi o fato concreto a balizar a consolidação da soberania
nacional. Vários outros avanços poderiam ser aqui citados.
O golpe veio para reverter uma ordem e rapidamente instalar outra, políti-
ca, econômica e social. Sua agenda há tempos já estava articulada com os interes-
ses do grande capital financeiro, latifundiário e das grandes empresas interessadas
na ampliação da exploração dos trabalhadores. O golpe veio para interromper a
trajetória de um país de grande porte que caminhava para um projeto não su-
bordinado, aos EUA especialmente, e com perspectiva de alcançar soberania
energética hídrica, petrolífera, eólica, fotovoltaica e nuclear. A desfaçatez dos que
vieram com sede reconquistar o mando do Estado chega ao ponto de escancarar
interesses escusos como o da restrição à fiscalização sobre o trabalho escravo,
conforme visto recentemente em uma franca venda de votos parlamentares em

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Lorena Madruga Monteiro, Luciana Santana (organizadoras)

troca da liberação da exploração do trabalho humano, de modo compatível ape-


nas com o período da escravidão.
Além de subverter a agenda e promover a desestabilização interna ao tirar o
Brasil dos trilhos de um ciclo virtuoso de mudanças progressistas, em consonância
com as que estavam em desenvolvimento no continente, o golpe promoveu um
realinhamento geopolítico sugando forças de projetos como o BRICS, por exemplo.
A oligarquia financeira dominante que financiou o golpe cobrou um retorno
ao circuito de hegemonia estadunidense. Desde os abalos da crise econômica e
financeira de 2008 o foco dos países centrais do capitalismo tem sido o de resgatar
as grandes corporações financeiras, com grande impacto sobre as contas públicas
nacionais e abandono da população, como ficou evidente no caso grego. Até
aqui, o governo Temer vem cumprindo bem esse papel ao combinar desmonte
constitucional com interrupção de avanços sociais, promoção de ajuste fiscal,
precarização do trabalho, manutenção do desemprego e aumento da desigualdade
social. Tudo isso incrivelmente realizado dentro de um caldo de instabilidade
política, desarranjo institucional, crescente interferência do poder judiciário e
de grande incerteza sobre o futuro político e econômico do país. O país observa
atônito e incrédulo a capacidade de realização do mais impopular presidente que a
república já teve desde a redemocratização.
Vários dos textos contidos neste livro abordam de forma acurada qual
o caminho trilhado para que o país chegasse a esta estação tenebrosa de sua
história. Além do momento de inflexão identificado com as jornadas de junho, a
contraofensiva reacionária e a traição palaciana de Temer, outro fator que surge
com força leva o nome de Operação Lava Jato. Seus métodos horrorizam o Estado
de Direito e consistem basicamente na manipulação de “delações premiadas”, obti-
das, em geral, por meio de longas prisões “provisórias”, para que o juiz curitibano
Sérgio Moro justifique sua missão messiânica de limpeza do país. O perseguido
eleito pela operação é o ex-presidente Lula com direito à incitação ao linchamento
público e a construção da tese de que as convicções estariam acima das provas. A
emergência de um Direito autoritário, próprio das tiranias, justificado pela neces-
sidade de um Estado perfeitamente eficiente no combate ao crime é também uma
marca do Brasil em tempos de golpe.
A operação Lava Jato começou em 2009 com uma investigação sobre crimes
de lavagem de recursos relacionados um ex-deputado federal, José Janene, em
Londrina, no Paraná. Porém, somente no ano eleitoral de 2014 é que foi deflagrada
sua primeira fase ostensiva. Em março de 2014 a operação prendeu Paulo Roberto
Costa, ex-diretor da Petrobrás. Em agosto deste mesmo ano, Costa assinou um acordo
de colaboração com o Ministério Público Federal para obter benefícios em troca do
fornecimento de informações. Em janeiro de 2015 foi preso outro diretor, desta feita
da área internacional, Nestor Cerveró. Vários empresários do setor da construção civil

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“Temerosas transações”: ensaios sobre o golpe recente no Brasil

também foram presos neste período. Daí em diante a agenda do país foi transferida
para as mãos dos coordenadores da operação que passaram a alimentar a mídia com
vazamentos seletivos e dar ritmo à marcha do golpe.
A associação entre Lava Jato e mídia teve grande impacto na consolidação
da narrativa golpista. Coube à mídia ocultar as denúncias de Barusco, por exemplo,
que remontavam a 1997, período do governo FHC, e fazer o recorte e amplificação
da suposta máquina petista de corrupção na estatal. Esse timing tão sincronizado
com a imprensa também foi notório na agenda de mobilizações populares que
irromperam no país em março de 2015. Prisões, delações, inferências ilustradas
por infográficos durante longos minutos de audiência nacional foram capazes de
provocar os primeiros panelaços contra Dilma em 8 de março de 2015. No domingo
15 foram grandes as marchas dos defensores do impeachment com direito a
convocação prévia e cobertura em tempo real pela Rede Globo. Vestidas de verde e
amarelo, famílias inteiras, em geral brancas e de classe média deram a pincelada de
legitimidade popular que o golpe precisava.
A ação deletéria da grande imprensa já estava presente no período anterior.
Segundo o escritor Fernando Morais, “a mídia que hoje está aí atuando, que defen-
de o que eles chamam de reformas, é a mesma que levou Getúlio ao suicídio em
1954, que não queria deixar Juscelino assumir a Presidência, que apoiou dois golpes
de Estado contra Juscelino, que agiu contra Jango”. Como no suicídio de Getúlio,
na desestabilização de JK e no golpe contra Jango, a imprensa, com destaque para a
Rede Globo, estava decidida a fazer valer, a qualquer custo, seus interesses políticos
e econômicos. Ao longo dos últimos anos os grandes grupos da mídia nacional
atuaram de forma deliberada, através de espaços de concessão pública, inclusive,
para difundir valores e minar as bases de sustentação dos governos liderados pelo
PT e seus aliados. Chegaram a conseguir romantizar manifestações em que se de-
fendia intervenção militar e outros absurdos inconstitucionais e antidemocráticos.
Machismo e misoginia também deram o tom a todo o processo golpista con-
tra a presidente Dilma. “O recado que estão dando nesse processo é também para
todas as mulheres. Com o seu impedimento eles nos dizem: mulher não pode”,
disse a Senadora Regina Souza no plenário do Senado no dia da votação do impea-
chment em agosto de 2016. Em um amplo ataque de desumanização, a presidente
chegou a ser “acusada” por revista semanal de grande circulação de estar descon-
trolada emocionalmente e “completamente fora de si” sem condições, portanto,
de conduzir o país. O conjunto de violências e depreciações machistas sofridas
pela presidente ao longo de sua carreira foi instrumentalizado para a reversão da
imagem de uma competente condutora do país. O discurso sexista resvalou para
a materialidade e chegou a ser investigado pelo Ministério Público e repudiado
pela ONU, como no caso do adesivo para carros, colados na entrada do tanque de

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Lorena Madruga Monteiro, Luciana Santana (organizadoras)

combustível e que trazia a imagem da presidente com as pernas abertas. Segundo


os adeptos, o objetivo era protestar contra os altos preços dos combustíveis. Hoje
os preços se elevam a cada semana e não se ouve panelas ou se veem adesivos ofen-
sivos a Temer.
            Não há dúvida de que o golpe foi contra o povo e a nação. Fica, portanto,
latente o paradoxo: como conseguirão as forças golpistas manter uma agenda
antipopular e ao mesmo tempo enfrentar uma eleição de voto popular em 2018?
O golpe não foi ainda de todo concretizado. Manter um regime autoritário e de
agenda regressiva demandará outras medidas, quiçá de cunho militar e repressivas,
de cerceamento da informação e dos meios de associação. A manipulação midiática
também tem seus limites e a fronteira é a realidade cotidiana enfrentada por uma
população empobrecida, desatendida e sem esperança. O objetivo estratégico de
vedar a via eleitoral-institucional para a volta do campo político democrático e po-
pular ao poder é o único que está claro até o momento. Não se pode descartar que
lancem mão de manobras ilegítimas para novos golpes, como a instauração do par-
lamentarismo, já tentado no passado contra Jango ou outras formas de impedir que
o campo democrático avance institucionalmente. Retornar à trilha democrática e
soberana de um país que tem um longo processo de desenvolvimento nacional pela
frente não será tarefa fácil e entender como se deu o golpe faz parte do caminho.

Ana Prestes
Doutora em Ciência Política (UFMG)
Brasília, novembro de 2017.

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“Temerosas transações”: ensaios sobre o golpe recente no Brasil
1
APRESENTAÇÃO

“[...] Página infeliz da nossa história


Passagem desbotada na memória
Das nossas novas gerações
Dormia
A nossa pátria mãe tão distraída
Sem perceber que era subtraída
Em tenebrosas transações [...]”
(buarque, Chico. Vai Passar)

A música Vai Passar, de Chico Buarque, que se referia aos tempos árduos da
ditadura Civil-Militar no Brasil foi a inspiração para a organização desta coletânea. Os
tempos atuais, no nosso entender, dialogam, dadas as proporções, com o contexto que
Buarque denunciava. Após o impeachment sem crime da presidente Dilma Rousseff,
do Partido dos Trabalhadores (PT), legitimamente eleita, os barões famintos, o bloco
dos napoleões retintos e os pigmeus do boulevard se sentiram à vontade para imple-
mentar uma série de medidas que podem levar o povo brasileiro de volta à servidão,
retrocedendo, assim, a uma página infeliz da nossa história, a escravidão. Quem carre-
ga o estandarte e lidera esse sanatório geral que virou o Brasil após o processo de im-
peachment é Michel Temer, do PMDB, que era vice-presidente na chapa de Rousseff,
que tem por costume costurar tenebrosas transações na calada da noite. Exatamente
esse personagem, Temer, e seu costume noturno com a música de Chico Buarque que
possibilitaram criar o trocadilho do título da coletânea: Temerosas Transações.
Esta coletânea Temerosas Transações: Ensaios sobre o golpe recente no Brasil
teve como intuito reunir reflexões de autores, pesquisadores, que têm se mani-
festado constantemente sobre esse contexto em suas redes sociais, blogs, pági-

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Lorena Madruga Monteiro, Luciana Santana (organizadoras)

nas pessoais, etc. A ideia é que suas valiosas análises não se percam na nuvem
da rede, mas fiquem materializadas nesse e-book para que, no futuro, contribua
para contar essa história como contraponto à narrativa construída pelos meios
de comunicação brasileiros. Não foi possível explorar todos aspectos da realidade
política recente do Brasil, mas os ensaios presentes nessa coletânea traduzem e
analisam questões importantes.
O primeiro ensaio, intitulado O golpe de Estado de 2016 e a Ditadura Civil
vigente no Brasil, de Guilherme Simões Reis, descreve analiticamente e conceitual-
mente como o Brasil passou de um regime democrático para uma ditadura civil.
O segundo ensaio, A política e as regras do jogo de uma democracia que escapa ao
Brasil atual, de Igor Suzano Machado, dialoga com as interpretações clássicas de
pensadores brasileiros e com a filosofia política contemporânea para demonstrar
a (im) possibilidade da efetivação de uma comunidade política verdadeiramente
democrática no Brasil que possa responder as exigências políticas complexas do
momento atual vivenciado no país.
O terceiro ensaio, Impasses da Democracia Brasileira: Presidencialismo de
coalizão, impeachment e crise institucional, de João Paulo Viana, Marcio Cunha
Carlomagno e Valter Rodrigues de Carvalho, analisa a dinâmica interna da relação
executivo-legislativo no presidencialismo de coalizão e o papel de certas institui-
ções, como o judiciário, por exemplo, para explicar os fundamentos da crise polí-
tica brasileira que culminou no impeachment de Dilma Rousseff. O quarto ensaio,
intitulado, Há um processo de desdemocratizaçao no Brasil? Notas sobre a PEC 241,
de autoria de Lorena Madruga Monteiro, Laura Napomuceno e Laura Lobo, dis-
cute, a partir da PEC 241, se o Brasil está passando por um momento de desdemo-
cratização e instaurando uma nova constitucionalidade, distinta da Democrática
instaurada com a Constituição de 1988.
O quinto ensaio, o Brasil vive seu novo transe, de Emerson do Nascimento e
Luciana Santana, discute, com alusão ao filme de Glauber Rocha Terra em Transe,
a situação política das esquerdas, que mais uma vez estão em transe perante a situa-
ção de ruptura institucional em curso. O sexto ensaio, Golpe, mídia e movimentos
sociais: Aprendendo a lutar com as armas do “outro”, analisa o campo midiático no
Brasil, e as possibilidades de reverter o jogo em curso. O sétimo ensaio, Da cultura
como política aos perigos para as políticas culturais: Uma revisão do MINC (2003-
2016) e comentários sobre o futuro das políticas culturais, de Leonardo Marchi, des-
creve as transformações positivas que o MINC proporcionou para a área cultural
no Brasil e os recentes ataques a cultura e os possíveis retrocessos em curso nas
políticas culturais a partir do impeachment de Dilma Rousseff.

Lorena Madruga Monteiro & Luciana Santana (Org.)

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“Temerosas transações”: ensaios sobre o golpe recente no Brasil
2
O GOLPE DE ESTADO DE 2016 E A
DITADURA CIVIL VIGENTE NO BRASIL1

Guilherme Simões Reis

“Governo golpista” é um eufemismo de uso generalizado que dá a dimensão


de como situação política brasileira atual não está sendo encarada com a gravida-
de que merece, nem mesmo por aqueles mais organizados e situados na oposição
e na esquerda. O Brasil não é mais uma democracia e, a despeito do desconforto
generalizado em usar o termo, é, sim, uma ditadura civil. A classificação do pseu-
doimpeachment como golpe não é questão de opinião. O presidencialismo se ca-
racteriza pela eleição popular do chefe de governo e pelo fato de o presidente e os
parlamentares terem mandatos pré-fixados, ou seja, não poderem ser retirados do
cargo para o qual foram eleitos antes do fim do mandato a menos que cometam
alguma infração grave à Constituição.
O impeachment é um recurso de uso extraordinário e de modo algum equi-
vale ao voto de desconfiança do parlamentarismo, em que o governo, escolhido
pelo parlamento, pode ser derrubado sem cometer crime, bastando a vontade da
maioria parlamentar. O motivo apontado – “pedaladas fiscais” – foi apenas uma
desculpa para tirar Dilma Rousseff (PT); elas nunca foram consideradas crime de
responsabilidade, tendo sido praticadas pelos dois presidentes anteriores, pelo pró-
prio vice-presidente Michel Temer (PMDB) nos períodos em que substituiu Dilma
Rousseff em sua ausência, e pela maioria dos governadores estaduais, vários deles

1 Sobre a temática trabalhada no presente capítulo, ver: Reis (2015, 2016a, 2016b, 2017). .

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Lorena Madruga Monteiro, Luciana Santana (organizadoras)

dos partidos que defenderam o golpe, inclusive pelo relator do processo de ad-
missibilidade do impeachment no Senado, Antonio Anastasia (PSDB), quando este
governou Minas Gerais.
Tratou-se, portanto, de golpe de Estado parlamentar, semelhante ao ocorri-
do contra Fernando Lugo no Paraguai em 2012. Ambos se deram por meio de meio
de falsos impeachments, ou golpeachments2: nos dois casos, o presidente foi retirado
sem que tivesse cometido qualquer crime. Foram golpes com feição institucional,
flexibilizando os critérios do processo de  impeachment, o qual é constitucional,
para que governantes sem crime de responsabilidade pudessem ser retirados, o que
é inconstitucional, mas foi realizado com a cumplicidade do Judiciário. No Para-
guai, em que a esquerda era diminuta, o golpe contra Lugo, da Frente Guasú, foi
um processo extremamente rápido, de 48 horas, que analisei à época em detalhes
em outro artigo (Reis, 2012).
No Brasil, a capacidade de mobilização popular da esquerda para impedir
o golpe se mostrou decepcionante, mas, ainda assim, o Partido dos Trabalhadores
e seus aliados tinham demasiada capilaridade para que fossem ignorados em um
processo de impeachment relâmpago como o realizado no “laboratório” paraguaio.
Assim, com a conivência do Supremo Tribunal Federal, que se absteve de defender
a Constituição ao não declarar o  golpeachment  inconstitucional, Dilma Rousseff
foi afastada e, depois, impedida em processo que durou nove meses. O argumento
fajuto do STF para isso foi justamente o de que o rito do impeachment foi cumprido
à risca e que, para não interferir na separação de Poderes, não julgaria o mérito, isto
é, se houve crime de responsabilidade da presidenta. Para além da estranheza de
tal declaração sobre separação de Poderes, dada a crescente atuação do STF como
legislador, é preciso dizer que um guardião da Constituição que se prende ao rito
e não avalia o mérito é tão efetivo quanto um cérbero, o cachorro de três cabeças
guardião do Hades, desprovido de dentes.
O termo “golpe” tem sido corriqueiramente tratado como palavra de ordem,
não efetivamente como golpe de Estado. O resultado disso é não se ter a dimensão da
gravidade da situação, o que por sua vez é obstáculo ao enfrentamento dela e à com-
preensão de seus desdobramentos. O ditador é chamado por termos mais suaves, por
eufemismos como “presidente golpista” e “ilegítimo”. Recusa-se a chamar a coisa pelo
nome – “ditadura civil” – dizendo-se que há um “golpe em curso”, e o que deveria ser
entendido como o esperado avanço programático e também repressivo de um gover-
no ditatorial ultraconservador é alardeado como “um golpe atrás do outro”.

2 Até onde tenho conhecimento, o primeiro a utilizar a feliz expressão “golpeachment” para se referir a
golpes de Estado travestidos de impeachment – também conhecidos como “golpes parlamentares”, “golpes
institucionais”, “golpes brancos”, “golpes frios”, “golpes de novo tipo” ou “golpes paraguaios” – foi o cien-
tista político e jornalista Cristian Klein, em artigo para a edição de 31 de março de 2016 do jornal Valor
Econômico intitulado “O ‘golpeachment’”.

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“Temerosas transações”: ensaios sobre o golpe recente no Brasil

O golpe esteve realmente em curso enquanto houve a tentativa de não re-


conhecer o resultado das urnas na eleição presidencial de 2014, a conspiração de
bastidores para tirar Dilma Rousseff, a aceitação da abertura do processo de impea-
chment sem efetivo crime de responsabilidade, o massacre policial nas manifesta-
ções contra o golpe. Quando Dilma Rousseff foi afastada para que Michel Temer
assumisse, após o Senado aceitar a abertura do processo de impeachment da presi-
denta, em 12 de maio de 2016, o golpe estava concluído; antes mesmo, portanto, do
desfecho do golpeachment. O que veio depois é ditadura, a qual avança e se agrava.
Na constituição da Roma antiga, o termo “ditadura” se referia à delegação
de poderes ilimitados por um período determinado para um único homem, com
vistas a enfrentar alguma situação de crise, devendo a institucionalidade voltar à
normalidade tão logo o problema fosse resolvido. O termo sofreu mudança de sig-
nificado, passando, na década seguinte à Primeira Guerra Mundial, a ter seu uso
generalizado como sinônimo de absolutismo ou autocracia (Seligman, 1931, p.
133-134). Talvez a maior parte das ditaduras contemporâneas, mesmo com sentido
diferente do original, busque ainda se legitimar por um discurso de necessidade
para enfrentar alguma crise, e não raro sugere ser um “remédio” temporário. Às ve-
zes o que seria breve se arrasta por 21 anos, como a ditadura militar inaugurada em
1964 no Brasil (quem sabe a enganação tenha algo a ver com o golpe ter ocorrido
no dia 1º de abril?).
Há ditaduras mais repressivas e menos repressivas – tanto que se cometeu
o ultraje de se referir à ditadura militar brasileira como “ditabranda” por, mesmo
torturando e matando, ter sido menos brutal que os genocidas regimes militares
chileno e argentino, por exemplo. O não entendimento disso é justamente a razão
para que muitos discordem de que estejamos numa ditadura, pelo fato de hoje a
repressão ainda não ser tão forte: resume-se à perseguição política a um ou outro
intelectual, político ou ativista não amparados pelos direitos e garantias de um de-
vido processo legal, somada à repressão policial nas manifestações de oposição.
Ora, faz sentido imaginar que ela não é maior porque o grau de ameaça repre-
sentado pela resistência popular não é significativo hoje. Essa confusão conceitual
ignora também que ditaduras frequentemente não são igualmente repressivas ao
longo de sua existência: o regime militar brasileiro inaugurado em abril de 1964 só
atingiria seu clímax repressivo com o Ato Institucional nº 5, de dezembro de 1968,
arrefecendo com a emenda constitucional nº 11 de outubro de 1978 (que deu fim
ao AI-5), e depois novamente com a Lei da Anistia de agosto de 1979. Ou seja, nada
assegura que a repressão não venha a aumentar na atual ditadura brasileira, mesmo
sendo ela, ao menos por enquanto, civil e não militar.
Outra questão embaralha o caso brasileiro contemporâneo: quem manda
nesta ditadura? Há ditaduras mais personalistas e outras menos, há ditaduras de
junta e ditaduras unipessoais, há ditaduras com enorme autoridade do governante

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Lorena Madruga Monteiro, Luciana Santana (organizadoras)

e outras em que se conspira seguidamente, com frequentes trocas no comando – o


caso argentino, com quatro diferentes juntas militares (mas com um dos membros
da junta, pertencendo ao Exército, sendo o respectivo presidente de facto) se subs-
tituindo em seus seis anos de duração (1976-1983) é um caso paradigmático no
continente.
A aparente fraqueza de Michel Temer – a despeito de, com sua afinidade
programática com a reacionária legislatura, ele ter enorme taxa de sucesso em seus
projetos – é argumento recorrente para não classificá-lo como ditador. Paralela-
mente, trata-se de uma ditadura em que a autoridade do Executivo como poder
máximo pode ser posta em dúvida em função da crescente judicialização da po-
lítica, com o Judiciário ampliando suas prerrogativas, sem poder ser controlado
efetivamente por outros poderes ou ser submetido à accountability, e contornando
os próprios princípios jurídicos fundamentais: respeito a direitos e garantias, ino-
cência até prova em contrário, ausência de pauta política etc.
Além disso, aumenta a sensação de risco de militarização da ditadura, em
função de recentes declarações por parte do generalato da ativa. Em palestra para
um encontro de maçons realizado em 15 de setembro de 2017, o secretário de eco-
nomia e finanças do Exército, general Antônio Hamilton Martins Mourão, afirmou
que pode haver uma “intervenção militar” caso o Judiciário “não solucione o pro-
blema político”, isto é, “não retire da vida pública os elementos envolvidos em todos
atos ilícitos [casos de corrupção]”, e que seus “companheiros do Alto-Comando do
Exército” entendem que essa “imposição não será fácil” e que ainda não é o mo-
mento para ela, mas que poderá ocorrer “após aproximações sucessivas”, tendo o
Exército “planejamentos muito bem-feitos” para isso. Dias depois, o comandante
do Exército, o general Eduardo Villas Bôas, afirmou em programa de televisão que
não haverá punição formal a Mourão e que ele não fala pelo alto escalão, mas que
as Forças Armadas têm de fato autorização para intervir a qualquer momento para
defender as “instituições” e os “poderes constituídos”, e que isso “pode ocorrer tam-
bém a iminência de um caos”.
Existe considerável consenso na literatura especializada, com sólido respal-
do empírico, de que o sistema político brasileiro, a partir da Constituição de 1988,
gradualmente se institucionalizou, dando fim a uma crônica instabilidade que tor-
nava o país infamemente célebre (Figueiredo e Limongi, 1999; Santos, 2003; Paler-
mo, 2000). É espantoso, portanto, como tal avanço, lento, pôde ser rapidamente re-
vertido. A desinstitucionalização é surpreendentemente acelerada: em dois ou três
anos, recuamos 20, ou 40, ou 60. Tínhamos até há pouco um arranjo fortemente
ancorado em partidos disciplinados em que a Presidência da República, eleita de-
mocraticamente pela população, coordenava as negociações com os líderes parti-
dários trocando políticas e fatias do governo por apoio parlamentar, de modo mui-
to semelhante às mais consolidadas democracias europeias, como notou Limongi

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“Temerosas transações”: ensaios sobre o golpe recente no Brasil

(2006). Ele deu lugar à conspiração do Legislativo contra o Executivo, com o multi
-indiciado líder da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha (PMDB), aproveitan-
do a centralização decisória na Casa, observada por Figueiredo e Limongi (1999),
assim como o apoio majoritário do seu próprio partido – o maior, ao qual pertence
também o desleal vice-presidente –, para paralisar o governo popularmente eleito
e, a partir daí, derrubá-lo.

As motivações para o golpe de Estado

O golpe de Estado de 2016 no Brasil não foi um evento isolado e se deu num
contexto regional de pressão por ruptura democrática. Diante de forte poderio eco-
nômico e apoio estrangeiro para a oposição neoliberal, bem como sob cobertura
midiática permanente de forte viés conservador e antigovernista, vários presiden-
tes de esquerda eleitos neste século na América Latina enfrentaram ofensivas dis-
ruptivas antidemocráticas de direita. Houve tentativas de golpes de Estado, boicote
a eleição (nos pleitos legislativos na Venezuela em 2005), não reconhecimento de
derrota eleitoral (Henrique Capriles contra Nicolás Maduro na Venezuela em 2013,
Aécio Neves contra Dilma Rousseff no Brasil em 2014, Guillermo Lasso contra
Lenín Moreno no Equador em 2017) etc. Os seguidos fracassos nas urnas desnuda-
ram os setores reacionários de quaisquer pudores democráticos. Derrotas eleitorais
por margens estreitas passaram a ser contestadas, com acusações infundadas de
fraude e tentativas de impugnação. A era dos golpes de Estado de direita, após o
intento frustrado contra Hugo Chávez na Venezuela em 2002 e o bem-sucedido
golpe militar supostamente apoiado pelos Estados Unidos contra Jean-Bertrand
Aristide no Haiti em 2004, voltou a partir da derrubada de Mel Zelaya em 2009 em
Honduras3. Fracassou ainda uma tentativa de golpe policial contra Rafael Correa
no Equador em 2010.
A deposição de Zelaya em Honduras inaugurou a nova onda de golpes no
continente americano. Na ocasião, o presidente havia decidido convocar um refe-
rendo, meramente consultivo, mas não previsto legalmente, para verificar o grau
de apoio da população (e por extensão sua capacidade de pressão) a sua intenção
de convocação de uma Constituinte. A Corte Suprema de Justiça ordenou que o
Exército o derrubasse e o enviasse ao exílio, e assim foi feito, com ele conduzido
à noite, de sua casa, ainda vestido com pijama, para um avião rumo à Costa Rica,
sem direito sequer a defesa.
Pode-se dizer que, depois do hondurenho, houve golpes de Estado mais dis-

3 A despeito de ter se enquadrado na onda rosa, Zelaya não foi eleito com plataforma progressista, tendo
realizado inusitado policy switch após assumir. Sobre isso, ver Cunha Filho. et al. (2013).

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Lorena Madruga Monteiro, Luciana Santana (organizadoras)

cretos, sem Exército, com ar de institucionalidade, referendados pelo Judiciário. Tal


discrição permitiu que a extrapolação dos limites legais fosse passível de não ser
admitida pelos mais relativistas ou parciais. Conforme nota Pereira da Silva (2017,
p. 9), golpes de Estado de aparência legal, que se processam por meio das institui-
ções vigentes, “mais sutis no uso concentrado da força”, dificultam a condenação
da comunidade internacional e, desse modo, facilitam o reconhecimento dos go-
vernos emergentes por parte de Estados “estrangeiros que esperaram ou apoiaram
essas mudanças de regime”. Em linha próxima, de acordo com Coelho (2016, p. 12):

teria ocorrido um aprendizado por parte das forças conservadoras acer-


ca do alto custo da realização de um golpe militar clássico nos moldes
concretizados no passado, já que no atual momento tanto a população
como a opinião pública internacional não percebem com bons olhos o
retorno do autoritarismo, exercendo forte pressão para que esse tipo de
estratégia não seja mais utilizado.

No golpe institucionalizado, a cumplicidade do Judiciário tem papel funda-


mental; tal como no Paraguai, é preciso que esse próprio Poder rasgue a Consti-
tuição, drible as leis e faça contorcionismos jurisprudenciais para atuar de forma
partidarizada. Caberia ao Supremo Tribunal Federal anular o processo, dada a sua
inconstitucionalidade. A mencionada apatia do STF, que, com a desculpa de não
querer interferir na relação entre os outros dois Poderes, não cumpriu sua atribui-
ção de apontar a inconstitucionalidade de um impeachment sem crime, parece se
dar por algo mais do que “acovardamento”, tal como acusara o ex-presidente Lula.
O empenho do então presidente da Câmara dos Deputados Eduardo Cunha
para aprovar o pedido de urgência do projeto que reajustava o salário dos servido-
res do Poder Judiciário (depois de Dilma Rousseff ter vetado o reajuste por con-
trariar o interesse público), a reunião do presidente do STF Ricardo Lewandowski
com deputados aliados de Cunha para tratar do tema, o vazamento de conversa
de Sérgio Machado (ex-presidente da Transpetro, subsidiária da Petrobras) com o
líder parlamentar Romero Jucá (a gravação do diálogo foi fornecida como parte de
delação premiada) em que este dizia haver um amplo acordo incluindo o Supremo
para derrubar Dilma Rousseff e dar fim às investigações de corrupção e a efetiva
aprovação de um aumento de R$ 5 mil para o elevado salário dos ministros do STF4
sugerem outra história: neste caso, um pouco diferente do bíblico, Pôncio Pilatos
pode ter deixado que o crucificado fosse o nazareno, em vez de Barrabás, em troca
de receber 30 moedas de Judas Iscariotes.

4 Reviravolta posterior, no entanto, bagunçou o esquema: uma semana após o próprio Temer defender a
aprovação imediata do projeto de reajuste no Congresso, ele mesmo o vetou em função da repercussão
negativa que gerou para sua ilegítima administração.

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“Temerosas transações”: ensaios sobre o golpe recente no Brasil

O processo de judicialização da política, por si só, já traz um problema de


accountability, visto que os membros do Judiciário, não democraticamente esco-
lhidos, não estão sujeitos ao controle da população. A dificuldade de acompanhar
sua atuação se soma à impossibilidade de puni-los se esta for insatisfatória, dada a
intransponível barreira do corporativismo. A judicialização foi marcada por parti-
darização, seletividade e flexibilização interpretativa5 dos próprios procedimentos
jurídicos. Exemplos do mencionado fenômeno são os vazamentos seletivos para a
mídia de informações confidenciais das investigações, a condução coercitiva ilegal
de um ex-presidente com um aparato policial digno da prisão de chefe narcotrafi-
cante (mas provas de vínculo de outros políticos com o narcotráfico, por sua vez,
parecem ser ignoradas), o recurso vulgarizado da marginal teoria do domínio do
fato que viola direitos jurídicos fundamentais como o princípio de que todos são
inocentes até que se prove o contrário, e a atuação midiática e explicitamente oposi-
cionista de figuras dos altos escalões do Judiciário e ministros do Supremo Tribunal
Federal, além do próprio aval para o golpeachment.
A grande mídia é justamente outro ator absolutamente central do golpe. Ga-
nhou até o apelido de “PIG”, “partido da imprensa golpista”, que perdeu força pela
vulgarização do seu uso, mas de forma alguma é descabido, como fica evidente nos
resultados das pesquisas do Manchetômetro – e, para os períodos eleitorais, tam-
bém nas pesquisas do DOXA.6 Sua atuação é tanto partidarizada como golpista, tal
como ocorreu na Venezuela na brevíssima e fracassada derrubada do então presi-
dente Hugo Chávez em 2002. Os grandes grupos da hiperconcentrada e conserva-
dora mídia nacional atuam de forma deliberada, inclusive utilizando-se de espaços
que são concessão pública, para, além de pregar seus valores mercadocêntricos,
patriarcais, heteronormativos, de manutenção do status quo socioeconômico e ra-
cial, enfraquecer determinado grupo político – o que permaneceu na Presidência
por três mandatos e meio até sofrer o golpe – e blindar outro – o que foi derrota-
do por ele em quatro eleições majoritárias nacionais seguidas –, para inflar e ro-
mantizar manifestações com claros contornos autoritários e preconceituosos, para
criar pânico na população e para consolidar o senso comum de que um partido
específico é uma organização criminosa e o ator mais corrupto que já existiu, por
mais que todas as evidências empíricas (dados sobre o número de cassações e de
políticos impedidos pela “lei da ficha limpa”, sobre o suposto valor dos “desvios” de
dinheiro público etc.) apontem o contrário. Em cenário de grave crise econômica
internacional com impactos profundos na economia doméstica, tradicionalmente

5 Tal flexibilidade, por sua vez, é enviesada, pois, quando os réus são de classe social baixa, o positivismo
estrito é bastante comum.
6 Os dois grupos de pesquisa sobre mídia e política podem ser acessados nos sites www.manchetometro.
com.br e doxa.iesp.uerj.br/.

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Lorena Madruga Monteiro, Luciana Santana (organizadoras)

um bom preditivo do grau de aprovação de governos e dos resultados de eleições, é


explosivo o papel de um agente antidemocrático com posição tão vantajosa como a
mídia, cada vez mais distante dos princípios do bom jornalismo. Legitimou o golpe
de 2016 como havia legitimado o de 1964.
A já mencionada série de gravações de conversas de figuras centrais no en-
tão governo “interino”7 de Temer e no Congresso vazadas por Sérgio Machado, em
delação premiada, indicam que a proteção de corruptos teria sido uma das razões
centrais para o golpe. O teor de tais conversas evidencia o desejo de interrupção
das investigações de corrupção na Operação Lava-Jato e a concepção de que ape-
nas tirando Dilma Rousseff do cargo isso seria possível. Entre os interlocutores
destacam-se o senador e ex-presidente José Sarney, o presidente do Senado Renan
Calheiros e, provavelmente na peça mais comprometedora, o mencionado Romero
Jucá, um dos expoentes do golpe e escolhido para ser ministro do Planejamento – o
escândalo o levou a perder o cargo, mas pouco depois se tornou líder do governo
no Senado (todos os três são do mesmo partido de Temer, o PMDB).
A Controladoria Geral da União, responsável por realizar o controle interno
e auditoria pública para prevenir e combater a corrupção, foi extinta por Temer,
sendo absorvida pelo novo Ministério da Transparência, Fiscalização e Controle.
Para a pasta nomeou inicialmente Fabiano Silveira, que veio a ser o segundo mi-
nistro escolhido por Temer a ser exonerado (depois de Jucá), também por aparecer
em gravação de conversa de Sérgio Machado – criticando a operação Lava Jato, em
diálogo com a participação de Renan Calheiros.
Entretanto, dois outros exemplos evidenciam a ideia de “transparência” em
vigor na ditadura Temer: o novo ministro dos Transportes, Maurício Quintella
(PR), foi condenado por desvio de dinheiro da merenda escolar em Alagoas; já o
ministro dos Esportes, Leonardo Picciani (PMDB), nomeou para secretário nacio-
nal do Futebol e Defesa dos Direitos do Torcedor Gustavo Perrella (SD), filho do
senador Zezé Perrella (no PMDB, mas com passagens por PDT e PTB em 2016),
ex-presidente do Cruzeiro Esporte Clube e dono de um helicóptero onde a Polícia
Federal apreendeu 450 quilos de cocaína. O próprio Temer, aliás, é “ficha-suja” e
está inelegível por oito anos por ter realizado doações irregulares para a campanha
de candidatos peemedebistas a deputado federal. A Secretaria-Geral da Presidência
foi recriada para que Moreira Franco (PMDB) tivesse o status de ministro e, com

7 Apesar de formalmente Temer ter se tornado presidente interino quando Dilma Rousseff foi afastada do
cargo após o Senado aceitar a abertura do processo de impeachment, e só ter sido efetivado na Presidência
da República após a conclusão do golpeachment, ele se comportou como presidente de facto desde que as-
sumiu ilegitimamente a função. Promoveu de imediato radical mudança ministerial, com cortes e fusões
de pastas e nomeações polêmicas, com boa parte do gabinete composta por suspeitos investigados e com
viés claro de projeto político radicalmente neoliberal e também ultraconservador quanto aos costumes e
aos direitos civis.

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“Temerosas transações”: ensaios sobre o golpe recente no Brasil

isso, foro privilegiado, livrando-se de julgamento em primeira instância relativo


às denúncias, em delações dos executivos da Odebrecht8, feitas a ele, assim como
outro homem forte do governo, Eliseu Padilha (PMDB), ministro da Casa Civil, de
cobrar propinas para financiar campanhas do PMDB.
Entretanto, não se trata simplesmente de uma questão de honestidade ou
corrupção. O golpe é também profundamente programático e classista. O projeto
do ditador civil Michel Temer é radical tanto no recuo das conquistas da última
década e meia quanto na restrição a direitos há muito assegurados, além disso, no
desmonte do patrimônio público e ataque à soberania nacional. Uma característica
dos regimes autoritários é justamente o fato de não se submeterem nem ao crivo
da população, visto que não precisam de votos, nem aos rigores da lei e do respeito
aos direitos, posto que sua própria ascensão violou ambos. Temer pretende avançar
no ultraneoliberalismo tanto quanto apenas governos autoritários são capazes, de
modo que, comparativamente, as gestões neoliberais dos dois fernandos – o Collor
de Mello e o Henrique Cardoso – quase pareçam progressistas. Não por acaso o
maior experimento neoliberal já feito tenha sido, possivelmente, o Chile sob a car-
nificina de Augusto Pinochet, e a própria Margaret Thatcher não tenha sido capaz
de completar seu programa no Reino Unido, não conseguindo desmantelar o Ser-
viço Nacional de Saúde (NHS).

A agenda da ditadura civil

Colocado pelo governo Dilma Rousseff como seu articulador político


em meados de 2015, o vice-presidente Michel Temer esteve em posição privi-
legiada para articular a conspiração que resultou no golpe de Estado de 12 de
maio de 2016. A motivação era o deliberado intuito de mudar a agenda políti-
ca. No lançamento do programa “Ponte para o Futuro”, pela Fundação Ulysses
Guimarães, do PMDB, em outubro de 2015 já estava declarada sua plataforma
fortemente conservadora.
Os sinais de que não se tratava de mera pressão programática sobre o PT,

8 Que não se entenda a menção a tais denúncias como apoio ao recurso das delações premiadas para as
investigações. Claramente, tal recurso se converteu em premiação a criminosos – tanto por abono de pena
como por isenção de devolução de dinheiro público desviado (recompensa em dinheiro para delatores de
parte do dinheiro recuperado) –, por um lado, e, por outro, em instrumento de manipulação midiática –
prejudicial às próprias investigações – e de descuido com a necessidade fundamental de se obter provas
concretas para se condenar alguém. Ademais, como a atuação judicial tem se dado de forma partidarizada
e contornando direitos fundamentais, o recurso da delação premiada tem sido incentivo para que pessoas
condenadas a longas penas e submetidas a tortura psicológica – a proliferação de pressões preventivas, por
exemplo, anuladas assim que o acordo de delação premiada é assinado – declarem o que o investigador
quiser ouvir.

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Lorena Madruga Monteiro, Luciana Santana (organizadoras)

parceiro da coalizão governamental, e sim de traição vêm de longe, com o vaza-


mento (obviamente intencional) da carta de Michel Temer para Dilma Rousseff
criticando que não era ouvido, sendo tratado como mero “vice decorativo”, e jo-
gando contra ela o PMDB, partido que segundo ele a presidenta tentaria dividir
e no qual ela não confiaria (o que os eventos seguintes de covardia provariam ser
postura sensata). No sinistro programa televisivo do PMDB de fevereiro de 2016,
lideranças partidárias, com destaque para o então vice-presidente da República,
pregavam, à frente de um fundo negro, a necessidade de um governo que unisse o
país, contrariamente ao de Dilma Rousseff, que era duramente criticado e implici-
tamente acusado de dividi-lo. Chegavam a usar o termo “Plano Temer” para o país
sair da crise, como se ele fosse efetivamente um candidato à Presidência.
O golpe de Estado institucional, portanto, visou a mudar os rumos do país,
após quatro derrotas eleitorais seguidas do projeto conservador. Não por acaso o
PMDB, partido cujo nome (Movimento Democrático Brasileiro) soa mais sarcás-
tico do que nunca, chamou como principal parceiro no governo ditatorial justa-
mente o PSDB, derrotado no segundo turno em todos os últimos quatro pleitos,
duas vezes com José Serra, um dos primeiros nomes escolhidos para o ministério
ilegítimo. A nomeação de Serra para ministro das Relações Exteriores evidenciou
a intenção Michel Temer, ex-informante dos EUA (como a Wikileaks revelou), de
mudar a política externa, retomando a antiga subserviência. Como senador, foi
Serra, com claro objetivo de favorecer as petrolíferas estrangeiras, quem elaborou
projeto de revisão da lei do Pré-Sal, a qual assegurava no mínimo 30% de partici-
pação da estatal na exploração de todos os campos de petróleo da área. A atuação
em Brasília de Liliana Ayale, a mesma embaixadora estadunidense que servia no
Paraguai meses antes de Fernando Lugo sofrer o golpe, reforça a interpretação de
que a destituição irregular de Dilma serve a interesses da potência hemisférica.
Depois, Serra seria substituído na chancelaria por Aloysio Nunes, também senador
do PSDB paulista, que havia viajado aos Estados Unidos no dia seguinte à votação
na Câmara dos Deputados favorável à admissibilidade da abertura do processo de
impeachment, em abril de 2016.
Para a presidência da estatal de combustíveis, Temer nomeou Pedro Paren-
te, que foi ministro da Casa Civil e Planejamento do governo Fernando Henri-
que Cardoso (PSDB) durante o apagão energético e que causou graves prejuízos à
empresa ao usá-la para custear investimentos privados em usinas termoelétricas,
assegurando o lucro dos empresários. Em sua posse na presidência da Petrobras,
Parente defendeu a revisão da lei do Pré-Sal, o que justamente prejudica a empresa
que, como presidente, supostamente ele deveria defender. O projeto foi aprovado
em outubro de 2017.
Como parte do eufemisticamente batizado Programa de Parcerias de Inves-
timento (PPI), o governo civil autoritário pretende avançar com um pacote de pri-

29
“Temerosas transações”: ensaios sobre o golpe recente no Brasil

vatizações equivalente ao da profunda desestatização empreendida na Era Fernan-


do Henrique Cardoso9. Entre as empresas a serem privatizadas, inclusive vendidas
a multinacionais privadas e a estatais estrangeiras, estão a Eletrobras e a Casa da
Moeda, além de vários aeroportos e campos de óleo e gás, em claro dano à sobera-
nia nacional. Em participação no programa Roda Viva, da TV Cultura, o ministro
de Minas e Energia, Fernando Coelho Filho (PSB), afirmou que a privatização da
Petrobras provavelmente também ocorreria, mas que o governo não poderia levar
adiante todas as suas agendas ao mesmo tempo. Desmentiu parcialmente sua afir-
mação logo no dia seguinte, declarando que estão tratando da privatização da Ele-
trobras, mas não da Petrobras, todavia seu ato falho explicitou a missão da ditadura
civil brasileira.
Desde o início Temer deixou claro que sua prioridade era a economia, en-
tendida em termos neoliberais. O diagnóstico era o da necessidade de realizar nova
reforma previdenciária – aumentando ainda mais a idade de aposentadoria – e
reforma trabalhista – esta já aprovada em julho de 2017 – e adotar políticas de aus-
teridade, isto é, agradar ao mercado financeiro, reduzir o poder de compra dos tra-
balhadores e aposentados e cortar gastos sociais. Nomeou para a pasta da Fazenda
o ex-presidente do Banco Central Henrique Meirelles e para a presidência do BC o
economista-chefe do Itaú, Ilan Goldfajn. Os objetivos são aumentar o ajuste fiscal,
desvalorizar as pensões e o salário mínimo, flexibilizar o trabalho, privatizar o que
ainda é público. Várias figuras do primeiro escalão do governo ditatorial, desde
quando este ainda era oficialmente interino, manifestaram que os direitos não po-
diam ser tomados em absoluto, podendo ser revistos.
Os primeiros deles talvez tenham sido os dos trabalhadores. A aprovação da
reforma trabalhista praticamente destruiu a CLT ao fazer prevalecer o negociado
sobre o legislado, aumentando a vulnerabilidade dos trabalhadores, a facilidade
de demissão e de contratações temporárias, a flexibilidade de manejo das horas de
atividade laboral, a precarização das condições de trabalho. A reforma tem o po-
tencial de praticamente extinguir o trabalho formal.
O avanço sobre o campo pode vir a ser ainda mais brutal, não apenas com
redução da fiscalização do trabalho escravo, mas com sua própria legalização. O
projeto de lei PL 6442/2016, do deputado Nilson Leitão (PSDB), define “emprega-
do rural” como quem presta serviços não eventuais a empregador rural “mediante
salário ou remuneração de qualquer espécie”. Nilson Leitão foi relator da CPI da
Funai e presidente da comissão especial que aprovou a PEC 215, que transferiu do
Executivo para o Legislativo o poder de decidir sobre o reconhecimento das terras
indígenas e quilombolas. É o presidente da Frente Parlamentar da Agropecuária –

9 Sobre as irregularidades daquelas privatizações e danos ao patrimônio público, ver: Biondi (2014).

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Lorena Madruga Monteiro, Luciana Santana (organizadoras)

ou seja, o líder da bancada ruralista –, a qual emitiu nota afirmando que “o Projeto
de Lei 6442/2016 nunca levantou a hipótese de diminuir o salário em troca de casa
e comida”, conforme havia sido noticiado pelo jornal Valor Econômico (Congresso
em Foco, 2017). Cabral (2017), que discute outros retrocessos do projeto de lei,
observa que, a despeito dessa declaração, o texto dá sim margem à interpretação de
que seja legalizado o trabalho análogo à escravidão, pelo qual “a contraprestação
pelos serviços prestados seja a simples moradia ou esta somada à alimentação”, es-
pecialmente pelo fato de que passa a prevalecer o negociado obre o legislado.
A política anti-indígena, pró-latifúndios e contra a agricultura familiar e or-
gânica vai além da retirada de direitos trabalhistas no meio rural. O Ministério
do Desenvolvimento Agrário (MDA) e o Ministério do Desenvolvimento Social e
Combate à Fome (MDS) foram fundidos e esvaziados na reforma ministerial em-
preendida quando Temer ainda era formalmente presidente interino, com Osmar
Terra (PMDB) como ministro. O programa Bolsa Família, chamado “coleira po-
lítica” por Terra, permaneceu no novo Ministério do Desenvolvimento Social e
Agrário (MDSA). O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra)
e as secretarias de agricultura familiar, no entanto, passam para a Casa Civil, cujo
nono ministro, o já mencionado Eliseu Padilha, disse que só conversaria com o
MST se Michel Temer pedisse expressamente, pois não se pode “passar a mão na
cabeça deles como o PT sempre fez”. Já para o Ministério da Agricultura, Pecuária
e Abastecimento o escolhido foi o bilionário megafazendeiro de soja Blairo Maggi
(hoje no PP, mas no PR até maio de 2016). O programa de Assistência Técnica e
Extensão Rural, o Mais Gestão, para preparar associações e cooperativas de agri-
cultura familiar para a participação nos mercados, foi paralisado.
Outra reforma ambicionada como prioritária pelo governo ditatorial e sua
base parlamentar antipopular é a reforma da previdência, que enfrenta maior resis-
tência popular, por ser menos abstrata e mais concretamente palpável para o cida-
dão médio. Na prática, ela inviabiliza que praticamente toda a população consiga
se aposentar algum dia com remuneração integral, aumentando a idade mínima e
exigindo 40 anos de contribuição, o que vai de encontro ao mencionado recuo do
trabalho formal esperado pela implementação da reforma trabalhista.
A Emenda Constitucional nº 95, aprovada em dezembro de 2016, que esta-
belece um teto anual de gastos públicos, é, combinada com as metas de superávit
primário, responsável por drástica redução do orçamento voltado para políticas
sociais, em favor do rentismo. A educação e a saúde pública vão sendo sucatea-
das, com dramática perda de recursos, e as nomeações de Temer deixam clara a
intenção de favorecer o esvaziamento do Estado nessas áreas e o favorecimento da
iniciativa privada, às custas de deixar a população mais pobre desatendida.
O Ministério da Educação foi brindado com a nomeação de Mendonça Filho
(DEM) como ministro. Quando governador de Pernambuco, em 2005, ele fortale-

31
“Temerosas transações”: ensaios sobre o golpe recente no Brasil

ceu a privatização das escolas estaduais. O escárnio chegou ao ponto de Mendonça


Filho ter recebido integrantes do grupo golpista e ultrarreacionário Revoltados On
Line, entre eles o “ator” Alexandre Frota, com propostas como o projeto “Escola
sem partido”, que visa a impedir qualquer debate e reflexão política nos colégios,
como se fosse possível apenas apresentar conteúdo objetivo e de forma neutra.
Paralelamente, houve demissões em massa de assessores técnicos do Ministério,
notadamente daqueles envolvidos no Fórum Nacional de Educação. Além disso,
a pesquisa não tem melhor prognóstico do que a educação: o novo ministro do
Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, o bispo licenciado da Igreja Uni-
versal Marcos Pereira (PRB), um criacionista, quase foi nomeado para a pasta de
Ciência, Tecnologia e Inovação, a qual foi inclusive fundida com o Ministério das
Comunicações, deixando claro quão importante o setor é para o governo “interino”.
Por sua vez, o nome escolhido para ministro da Saúde foi Ricardo Barros
(PP), que teve como maior doador individual de sua campanha para deputado fe-
deral – com R$ 100 mil – um dos proprietários e presidente do Grupo Aliança,
grande administradora de planos de saúde privados. Não surpreende que o novo
ministro, comprometido com os planos de saúde e não com a saúde pública, tenha
declarado que o tamanho do Sistema Único de Saúde (SUS) precise ser repensado e
que o Brasil não terá como sustentar para sempre o acesso universal à saúde. Fábio
Mesquita, que era diretor do Departamento de ST/AIDS e Hepatites Virais, pediu
demissão do cargo devido ao despreparo técnico e à sabotagem operacional sobre
as políticas públicas de saúde promovida por Ricardo Barros e por seu secretário
-executivo Antônio Nardi (como Barros, filiado ao PP).

Quando volta a democracia?

O futuro é uma incógnita. A esquerda tentará usar a tragédia atual para au-
mentar a polarização entre progressistas democráticos e golpistas de direita, esva-
ziando o centro-geleia e possibilitando a disputa por hegemonia a médio prazo – é
o que defendo em outro texto (REIS, 2017) – ou, como parece, vai seguir natura-
lizando a situação e buscando pactuações para manter o sistema político o mais
intacto possível, temerosa das ofensivas judiciais e militares? A população perma-
necerá passiva ou eclodirão revoltas violentas? Políticos golpistas manterão o po-
der ou o Judiciário o tomará para si. O regime autoritário preservará a aparência
institucional sob comando civil ou militares intervirão e darão um golpe de velho
tipo? A violação de direitos e garantias vai se manter no nível atual ou poderá se
intensificar, por exemplo, com a disseminação de graves atentados contra os direi-
tos humanos? Todas essas são possibilidades de desencadeamentos das interações

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Lorena Madruga Monteiro, Luciana Santana (organizadoras)

entre os atores políticos – independentemente de estes se definirem ou não como


políticos. Mesmo a eleição presidencial prevista para 2018 poderia eventualmente
não ocorrer. De todo modo, é preciso ter clareza que sua provável realização não
significa automaticamente a volta do regime democrático.
Além da incompreensão sobre o que é o golpe e da impressionante resis-
tência a se chamar a coisa pelo nome – “ditadura” – é comum essa equivocada
crença de que, se realizada a eleição presidencial de 2018, a democracia terá sido
restabelecida. Isso não pode ser afirmado, independentemente do que ocorrer em
tal eleição. Por quê? Primeiramente, é grande a possibilidade de o favorito nas pes-
quisas, o ex-presidente Lula, ser tornado inelegível pela “lei da ficha limpa” por
meio de condenação carente de provas (foi condenado em primeira instância pelo
juiz federal Sergio Moro a nove anos e meio de detenção em julho de 2017, e ficará
inelegível se o Tribunal Regional Federal da 4ª Região, ao qual sua defesa recorreu,
mantiver a sentença, e se depois disso o ex-presidente for condenado também em
julgamento em segunda instância), tal como se tornou possível com o novo modo
de atuação do Judiciário, o qual denunciei antes do golpe de Estado (REIS, 2015). A
exclusão de Lula sem motivo legítimo do processo eleitoral, por si só, tiraria o cará-
ter contestatório da eleição necessário para uma poliarquia, conforme o modelo de
Dahl (1997), se tratado a sério10.
Há, no entanto, razões adicionais para se discordar que uma eleição em 2018,
mesmo com a participação de Lula, significaria a volta da democracia: não haveria
garantia, dependendo de quem vencesse a eleição, de que este poderia governar,
não seria derrubado. Uma vez tendo sido dado o golpe em 2016, seria preciso se
esperar algum tempo para, no futuro, dizer-se que os pleitos de 2018 significaram
a redemocratização. Como nota O’Donnell (1999):

em um regime democrático, as eleições são competitivas, livres, iguali-


tárias, decisivas e includentes, e os que votam são os mesmos que, em
princípio, têm o direito de ser eleitos – os cidadãos políticos. […] Final-
mente, as eleições devem ser decisivas, em vários sentidos. Primeiro, os
vencedores devem tomar posse dos cargos para os quais foram eleitos.
Segundo, com base na autoridade conferida aos seus cargos governa-
mentais, os funcionários eleitos devem poder tomar as decisões que
o marco democrático legal e constitucional lhes autoriza. Terceiro, os
funcionários eleitos devem concluir seus mandatos nos prazos e/ou nas
condições estipulados por essa estrutura institucional. Eleições livres,
igualitárias e decisivas implicam, como argumenta Adam Przeworski,
que governos podem perder eleições e devem acatar seus resultados.

10 O próprio Dahl é pouco rigoroso quanto a isso, considerando a existência minimamente competitiva de
dois partidos quaisquer como suficiente.

33
“Temerosas transações”: ensaios sobre o golpe recente no Brasil

Ou seja, as eleições no Brasil, até prova contrária, não podem ser considera-
das decisivas. Com o golpe de Estado de 2016, comprometeu-se o que Álvarez. et
al. (1996) chamam “irreversibilidade ex post”, característica central para a demo-
cracia juntamente com a incerteza ex ante – deve ser possível a vitória da oposição
– e a repetibilidade, isto é, as eleições se sucederem no tempo, não sendo um evento
isolado. Tira-se daí, portanto, uma regra para que se possa classificar regimes como
democracias: uma vez ocorrendo ruptura, essa avaliação só pode ser realizada a
posteriori, retrospectivamente (ÁLVAREZ. et al., 1996). É preciso que se tenha uma
sequência de eleições limpas, prolongando-se no tempo, com chances reais para
que a oposição as dispute, sem novos golpes. O mais cedo possível para se certificar
de que a democracia teria voltado em 2018 no Brasil seria, portanto, apenas em
janeiro de 2023, e isso somente na eventualidade de o mesmo grupo político da
presidenta Dilma Rousseff sair vitorioso nas urnas e esse presidente eleito passar a
faixa para seu sucessor ou iniciar seu segundo mandato.
O problema, no entanto, é muito maior do que uma questão de tipologia
acadêmica, do que um exercício de taxonomia. Há no continente, e também fora
dele, uma tendência a que o sistema representativo tenha cada vez menor impacto
sobre as políticas implementadas, com a dominação do Estado pelo capital, com a
delegação de áreas relevantes das políticas públicas para instituições não majoritá-
rias fora do controle de representantes eleitos, com o comprometimento das dife-
renças entre as candidaturas por meio da atuação midiática e dos financiamentos
privados de campanha e, por fim, com os golpes de Estado institucionalizados. O
desafio de construção de uma narrativa que não naturalize o fim de qualquer cará-
ter democrático para a representação é fundamental para que a luta pelos direitos e
interesses da cidadania continue sendo possível, de um jeito ou de outro.

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Lorena Madruga Monteiro, Luciana Santana (organizadoras)

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Lorena Madruga Monteiro, Luciana Santana (organizadoras)
3
A POLÍTICA E AS REGRAS DO JOGO
DE UMA DEMOCRACIA QUE ESCAPA
AO BRASIL ATUAL

Igor Suzano Machado

A atual conjuntura política brasileira nos convida a reflexões acerca das ca-
racterísticas da democracia e do país. A julgar por alguns dos clássicos da inter-
pretação do Brasil, o brasileiro não seria muito disposto a obedecer regras, que
lhe aparecem mais como obstáculos na concretização de seus interesses do que
como meios para a concretização desses interesses sob padrões de razoabilidade.
A democracia por sua vez, exige justamente o contrário: entender que existem re-
gras acima dos interesses pessoais, responsáveis por fazer da concretização desses
interesses algo que, nem por isso, anula a legitimidade dos interesses concorrentes.
Tendo isso em vista, adentro no contexto atual por intermédio de interpretações
clássicas de pensadores brasileiros acerca das dificuldades de concretização do
ideal democrático no país, para então me socorrer da filosofia política contem-
porânea enquanto guia capaz de, no sentido contrário, orientar nossas ações em
direção à efetivação de uma comunidade política verdadeiramente democrática.
Posteriormente, discuto os problemas daí advindos para a realização de escolhas
políticas complexas, exigidas pelo contexto brasileiro atual.
Já disseram algures que o brasileiro não gosta de esportes: gosta de ganhar.
Gostava da Fórmula 1 quando Ayrton Senna era campeão. Sem brasileiros cam-
peões, perdera o interesse. Gostou do tênis no auge de Gustavo Kuerten. Depois
disso, não quis mais saber. No que tange aos esportes, há, inclusive, outra frase cujo

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“Temerosas transações”: ensaios sobre o golpe recente no Brasil

sucesso no Brasil é mais uma prova de que talvez, por aqui, não faça tanto senti-
do o lema de que o importante é competir. Pois, volta e meia, emerge na boca de
torcedores na comemoração de vitórias de merecimento duvidoso os assustadores
dizeres do “roubado é mais gostoso”. Indo além do campo esportivo, há autores que
tentam imaginar se faria sentido em mais algum lugar do mundo a ideia muito co-
mum no país de que, em alguns casos, pode-se dizer que “a lei não pegou”. Roberto
DaMatta é um dos autores que chama atenção para os casos em que a lei é ignorada
sem maiores perturbações das relações sociais, tendo em vista que ela não é “gente
como nós” e sua desmoralização não incomoda tanto. (DAMATTA, 1984, p. 81).
Podemos remontar também a Sérgio Buarque de Holanda e sua diferencia-
ção entre o trabalhador e o aventureiro e a importância que este último – muito
mais do que o primeiro – teve na colonização brasileira. Tal colonização guardaria,
assim, como traço fundamental, a ideia de que vale a pena arriscar grandes perdas
tendo em vista grandes ganhos, mas não valeria a pena a vida dedicada ao trabalho
metódico e diário. Prevalece o ideal do homem que quer “colher os frutos sem ter
de plantar a árvore”, ou do português que, segundo um crítico, tinha mais facilida-
de para se arriscar numa caravela até o Brasil atrás de ouro, do que para tomar um
cavalo de Lisboa ao Porto para negócios mais comezinhos. (HOLANDA, 2012, p.
44-46). O objetivo final torna-se a referência única e os riscos que podem existir em
se buscar tal objetivo pelo caminho mais curto compensam mais do que o trabalho
de se chegar a ele por um procedimento mais garantido, porém lento. As regras e os
procedimentos que se interponham entre a pessoa e seu objetivo, sempre que pos-
sível, devem ser evitados. O lucro sem trabalho. A vitória sem treino. O desprezo
pela regra e pelo procedimento. Ou seja, muito amor ao resultado, acompanhado
de consequente desprezo por tudo que o atrasa, incluindo regras e procedimentos
que deveriam valer para todos.
O mesmo Sérgio Buarque chegara a afirmar que a democracia, entre nós,
teria sido “sempre um mal-entendido” (HOLANDA, 2012, p. 160). Afinal, a de-
mocracia demanda obediência a regras e procedimentos de cunho impessoal,
ou seja, que não poderiam ser “dribladas” em prol de benefícios pessoais, como
poderiam ser dribladas defesas taticamente treinadas que insistissem em se pôr
no caminho entre o brasileiro e o gol. Como desenvolver certo afeto por regras e
procedimentos que, por vezes, levam exatamente ao oposto do que a gente quer?
Como amar um sistema político que pode vir a favorecer nossos inimigos? Sain-
do das ciências sociais para a música, lembro-me da memorável “Geni”, do filho
de Sérgio Buarque, Chico Buarque. Maltratada por “ir com qualquer um”, servira
para livrar o povo dos arbítrios militares. Mas, passado isso, lembrando-se que
ela “vai com qualquer um”, ela, “bendita” que já pôde nos salvar, volta a ser a
“maldita” a ser cuspida. Como continuar respeitando uma democracia que nem
sempre irá com os nossos favoritos? E que tal se a lei puder ser aplicada apenas

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Lorena Madruga Monteiro, Luciana Santana (organizadoras)

aos nossos desafetos? Não custa lembrar outra citação famosa no país: “para os
amigos tudo, para os inimigos a lei […]”
Não entrarei no mérito de o quanto essa descrição do Brasil não seria válida
também para outros países.11 Mas, ainda que não represente nenhuma jabuticaba
genuinamente nacional, a descrição não deixa de ecoar no contexto presente, em
que a política, ao menos em seus agentes mais exaltados ou com maior poderio de
ação, prefere desprezar a distinção entre o jogo e suas regras. Quem ousa falar de
regras a serem seguidas, é acusado de não fazer mais do que jogar do lado do ad-
versário. O problema é que, desprezada a diferença entre se discutir o resultado do
jogo e as regras que legitimam a construção de tal resultado, a ideia de adversário
perde o sentido. O adversário só existe numa relação triádica, em que, para além
dos dois lados adversários, existe um terceiro lado, responsável pela mediação do
combate. Esse é o lado das regras. Sem esse terceiro lado, não há porque haver res-
peito pelo outro e, consequentemente, deixa de existir o adversário para emergir o
inimigo, isto é, aquele opositor com relação ao qual não compartilho um futuro em
comum. O inimigo é a figura do opositor num estado de guerra, e que, portanto,
pode ser eliminado. O adversário é aquele que eu enfrento tendo a expectativa de
compartilhar o mesmo futuro com ele, seja sobre o mesmo território político, seja
ao longo de um mesmo campeonato. Ele eu não elimino, pois não é necessariamen-
te um inimigo. Pelo contrário, pode ser mesmo um amigo, como atestam diversos
jogadores de futebol, adversários dentro de campo e amigos fora dele.
Como numa disputa esportiva, que inclui inclusive lutas em seu sentido lite-
ral, a política também envolve o combate. Mas esse combate não precisa ser entre
inimigos. Ainda que a política, tal como afirma Foucault invertendo a frase célebre
de Clausewitz, seja a guerra continuada por outros meios, os outros meios não fa-
zem dela meramente outra guerra. Trata-se de uma ritualização capaz de transfor-
mar uma disputa antagônica em uma disputa agônica, para usar uma terminologia
cara à filósofa política Chantal Mouffe. Diz ela que, enquanto o antagonismo cons-
titui uma relação nós/eles na qual as partes são inimigas que não compartilham
nenhuma base comum, o agonismo estabeleceria uma relação nós/eles na qual as
partes em conflito, mesmo admitindo não existir solução racional para sua disputa,
reconheceriam a legitimidade de seus oponentes. Isso significaria, continua ela,
que, mesmo em conflito, essas partes da relação agonística se perceberiam como
pertencentes à mesma associação política e ao mesmo espaço simbólico comum
dentro do qual tem lugar o seu embate. Nesse contexto, ganharia destaque a figura
do adversário em detrimento da figura do inimigo. O modelo adversarial se apre-
sentaria assim, segundo ela, como constitutivo da democracia porque permitiria

11 Assim como em leituras críticas dessa tradição do pensamento social e político nacional, em que tem
destaque, por exemplo, a obra de Jessé Souza.

39
“Temerosas transações”: ensaios sobre o golpe recente no Brasil

à política democrática transformar os antagonismos em agonismos. Com isso, a


dimensão conflituosa se mantém presente, mas se desenvolve sob condições regu-
ladas por um conjunto de procedimentos democráticos aceitos pelos adversários.
(MOUFFE, 2007, p. 27-28).
Logo, no embate político atualmente observado no Brasil, o exercício a ser
feito por todos os lados em disputa, caso tais lados almejem compartilhar um ter-
reno democrático comum, passa por dois passos. O primeiro, que poucos parecem
dispostos a fazer, é reconhecer no outro um adversário, isto é, alguém que você
enfrenta sem poder renunciar a um conjunto de regras comuns responsáveis por
mediar essa relação de forma a preservar um ambiente institucional saudável para
que o perdedor da presente disputa possa, no futuro, tornar-se dela vencedor e, por
isso, acorde em compartilhar com você o mesmo futuro que, ao privilegiar regras
equânimes, em vez de um lado específico, pode ser aceito todos os envolvidos.
Porém, isso não é tudo. Ao contrário do que diz um famoso comentarista esporti-
vo, nem sempre as regras são claras. É por isso que Ronald Dworkin, importante
filósofo jurídico e político norte-americano, chama atenção para o quanto com-
partilhamos, além de regras, princípios que devem orientar a melhor interpretação
possível de tais regras.
E é por isso que, para ele, ao contrário de outros filósofos que refletem sobre
a natureza do direito sob vertentes positivistas ou pragmatistas, não é a mera von-
tade do intérprete e aplicador da lei que deve ser parâmetro para a sua correção,
mas sim a integridade do ordenamento jurídico como um todo, especialmente no
que tange às normas compartilhadas no plano constitucional e, dentre essas, as res-
ponsáveis por prescrever nossos direitos civis e políticos. Esse segundo passo, no
entanto, seja por má-fé, ou preguiça de aceitar o ousado convite feito por Dworkin
– que, como o próprio reconhece, só poderia ser levado às últimas consequências
por um juiz de poderes hercúleos – tem se feito ausente num nível ainda mais pro-
fundo do que o primeiro, sendo substituído pela retórica fácil de enunciação de re-
gras avulsas, selecionadas com intuito de dar suporte ao lado preferido daquele que
as utiliza e não com o intuito de construir uma narrativa que, como exige Dworkin,
apresente nossa história institucional como um todo coerente e que se apresenta
em sua “melhor luz”.
Faço apelo a mais uma referência fundamental da filosofia política, bastante
cara a Dworkin, para sublinhar a importância desse ponto, chamando à argumen-
tação o filósofo político John Rawls. Ao desenvolver sua influente teoria da justiça
na obra O liberalismo político, Rawls chamara atenção para a importância que seus
princípios de justiça adquiriam no que ele chamou de uso de uma “razão pública”.
(RAWLS, 2000). Tais princípios permitiriam às discordâncias políticas dos conten-
dores apelar a princípios comuns, para que, em meio à discordância, mantivessem
um ponto de apoio, que deveria ser, para Rawls, o principal atributo das institui-

40
Lorena Madruga Monteiro, Luciana Santana (organizadoras)

ções políticas: a justiça. Logo, se o que está em jogo são nossas instituições políticas,
ainda que por meio de pessoas que com elas não se confundem, mas que a elas
representam, o debate não pode ser pautado por meras referências a interesses par-
ticularistas, como justificativas com base na minha família, ou na minha religião,
ou na aniquilação e exclusão do partido ou da opinião do outro. Tampouco pode
ser pautado por regras fora de contexto, com o tolo argumento de se basear no que
está previsto em lei, mesmo que essa lei seja a Constituição.
Ou seja, no debate sobre nossas instituições políticas fundamentais, faz-se
necessário o apelo a argumentos que recorreram não ao que nos diferencia em
relação a preferências políticas, mas ao que nos iguala nos procedimentos de ex-
pressão dessas preferências, como eleições justas, e princípios de uma comunidade
pluralista e respeitosa aos direitos daqueles que divergem de nós, como o princípio
da liberdade de expressão, da presunção de inocência e do devido processo legal.
Enquanto tais procedimentos e direitos puderem ser ignorados apenas para a sa-
tisfação de nossas preferências particulares, o ideal democrático estará distante da
nossa vivência política, ainda que esteja supostamente expresso em textos legais,
opiniões jornalísticas, decisões políticas e mesmo sentenças judiciais.
O desprezo por esse ideal liberal-democrático nos leva a um problema sé-
rio no que tange à discussão dos futuros possíveis para o país. Claro que há e
deve haver discordância razoável acerca do melhor direcionamento das nossas
políticas públicas. Porém, a discordância genuína, que não descamba para um
diálogo de surdos, nunca é absoluta, mas sim uma divergência que se apoia em
algum ponto em comum que permite que se concorde, ao menos, a respeito do
que se discorda. Sem respeito a regras básicas do jogo e uma noção de justiça a
ser concretizada pela ação política, perdemos esse ponto em comum e, conse-
quentemente, a possibilidade de um diálogo frutífero sobre como lidar com a
discordância razoável. Não se discute mais as melhores táticas para vencer o jogo,
mas, durante o jogo, discute-se a própria regra, em benefício próprio. Analise-
mos alguns exemplos concretos do problema.
Em julho de 2016, o editorial de um jornal de grande circulação no país de-
clarou que, aproveitando a oportunidade dada pela crise fiscal, chegara a hora de
se corrigir uma grande injustiça, acabando de vez com o ensino superior gratuito.
Segundo tal editorial, não seria justo que a totalidade das pessoas arcassem com
os custos de manutenção das universidades públicas, sendo que, em muitos casos,
alunos dessas universidades teriam condições de financiar seus estudos por conta
própria, tal como no ensino superior privado. Segundo o editorial, isso seria mais
justo do que fazer com que o erário público sustentado por impostos de diferentes
pessoas, inclusive de gente mais pobre que esse aluno, arcasse com tais custos, o
que, na visão do editorial, seria uma redistribuição às avessas, tirando dos pobres
para dar aos ricos, isto é, usando o dinheiro de pobres pagadores de impostos para

41
“Temerosas transações”: ensaios sobre o golpe recente no Brasil

financiar o curso universitário de alguns estudantes em melhores condições finan-


ceiras do que eles.
Como era de se esperar, o editorial suscitou reações contrárias, com gente
argumentando que, num sentido oposto ao que dizia o jornal, injusto mesmo seria
não haver ensino superior gratuito, já que este seria uma via de ascensão social para
alunos que não teriam condições de pagar por uma universidade privada.12 Afinal,
o que é mais justo e melhor para o país: um ensino superior público pago ou gratui-
to? Uma argumentação semelhante pode ser desenvolvida a respeito de um amplo
sistema público de saúde e de seguridade social.13 Inclusive, uma possível reforma
no Sistema Único de Saúde brasileiro (SUS) já foi posta na mesa como alternativa à
crise econômica atual14 e a querela política em torno do plano do presidente Barack
Obama de instituir algo parecido nos Estado Unidos mostra o quanto tal medida
é controversa. Afinal, um amplo sistema público de saúde é o único caminho de
concretização dos chamados direitos humanos, ou pelo contrário, uma forma de
violação de tais direitos?
A resposta a tal pergunta, dentro dos debates contemporâneos sobre a
justiça – e daí porque a noção de justiça, a meu ver, é mais fundamental do que
a noção de direitos humanos, posto que esta seria dependente daquela – não é
unânime. Para ficar apenas na tradição liberal deontológica, que seria a tradi-
ção de vínculos mais fortes com a ideia de direitos humanos e na qual o presen-
te artigo tem se baseado,15 seria muito diferente como tal questão seria vista,
de um lado, por liberais que se espelham no liberalismo mais igualitarista de
John Rawls16 e, de outro, por liberais que se espelham no chamado liberalismo
libertário de Robert Nozick.17
Para os primeiros, a sociedade deve ser tomada como um todo solidário
e cooperativo e a desigualdade dentro dessa sociedade só se justifica na medida
em que a posição daqueles em melhor situação, de alguma forma beneficia aque-
les em situação pior. Ou seja, sob esse ponto de vista, faria sentido se pensar em
políticas redistributivas do governo, por meio da contribuição das parcelas mais

12 Nesse aspecto, ver: Wyllys (2016, www.cartacapital.com.br).


13 Há uma série de diferenças quando se fala em sistemas públicos de educação e de saúde, como, por
exemplo, a maior previsibilidade do evento “ensino superior”, quando comparado a eventos relacionados a
enfermidades. Para a continuação do argumento, no entanto, a comparação é suficiente.
14 Nesse sentido, ver: Collucci (2016, www1.folha.uol.com.br).
15 Deontológicas seriam as ideias de justiça baseadas em direitos invioláveis, enquanto teleológicas seriam
as ideias de justiça baseadas em melhores resultados, podendo encarar, portanto, a ideia de direitos huma-
nos de forma meramente instrumental. Por isso, para a presente reflexão, irei ignorar a maior amplitude do
debate sobre a justiça, que poderia incluir perspectivas utilitaristas ou perfeccionistas de justiça.
16 Além de Rawls, outros autores que poderiam ser enquadrados nessa perspectiva seriam, por exemplo, o
próprio Ronald Dworkin e Will Kymlicka.
17 Além de Nozick, outros autores que poderiam ser enquadrados nessa perspectiva seriam, por exemplo,
Friedrich Hayek e Milton Friedman.

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Lorena Madruga Monteiro, Luciana Santana (organizadoras)

ricas, por exemplo, via cobrança de impostos de uns, para o financiamento de um


sistema público e gratuito de ensino ou de saúde para outros. Isso não envolveria
nenhuma violação dos direitos daqueles que pagassem os impostos e, por outro
lado, seria mais justo com aqueles em pior situação econômica, possíveis benefi-
ciários desses sistemas.
Já para os segundos, essa abstração chamada sociedade não existe e a ideia
de solidariedade social é a causa dos nossos problemas e não sua solução. Isso por-
que se ignorarmos a abstração da sociedade e pensarmos que somos os únicos
donos das nossas capacidades produtivas e, consequentemente, dos frutos do nosso
trabalho, não faz sentido uma entidade como o Estado nos cobrar algo em nome de
outras pessoas. Claro que posso doar minhas riquezas para quem eu quiser e fazer
caridade como bem desejar. Contudo, a partir do ponto que o Estado me obriga a
abrir mão da riqueza que produzo, em prol do benefício de pessoas que não fui eu
quem escolhi, tudo por conta de uma suposta solidariedade que existiria entre mim
e os demais membros da sociedade, o que procede é uma espécie de roubo, ou, em
última instância, uma situação mesmo de trabalho forçado. Nesse caso, apropriar-
se de parte do fruto do meu trabalho para financiar um sistema de saúde para
outras pessoas utilizarem seria não apenas injusto, como algo violador da minha
disposição sobre meu próprio corpo, meu trabalho e minha propriedade.
A discordância descrita acima é um exemplo das controvérsias que se apre-
sentam tanto no plano teórico, quanto no plano prático, a respeito do que seria uma
sociedade melhor, ou mais justa. Não entrarei aqui na dificílima questão filosófica
a respeito de se essa divergência acerca do que é justo é uma questão de indetermi-
nação – isto é, não chegamos a um consenso sobre a justiça porque a justiça é, em
última instância, indeterminada e relativa – ou de incerteza – isto é, ainda que não
tenhamos certeza sobre o que é justo, devemos continuar tentando descobrir, pois
não termos certeza de qual seria essa justiça, não significa que não exista uma única
e melhor que as demais. Para os fins da minha argumentação, basta apenas termos
em vista a existência dessa discordância, ao menos em certo nível, que inclui, por
exemplo, a necessidade, ou não, de existência de um sistema público de saúde ou
de educação superior.
Podemos expandir a controvérsia a outros temas que têm sido pautados
pela opinião pública e atores políticos no Brasil, como a privatização da Petrob-
rás. Trata-se de uma empresa pública ineficiente que só serve para a corrupção e
para ser “cabide de empregos” e que, portanto, precisa ser urgentemente privati-
zada? Ou trata-se de uma empresa de setor estratégico, cuja melhor gestão deve
ser feita pelo setor público, como representante dos interesses nacionais, e não
por interesses privados? Ou ainda: quanto aos direitos trabalhistas, eles preci-
sam ser diminuídos para estimular uma economia em crise? Ou sua manutenção
nos patamares atuais é prioritária? E a idade de aposentadoria dos brasileiros e

43
“Temerosas transações”: ensaios sobre o golpe recente no Brasil

brasileiras? Deve ser aumentada? Ou é possível superar a crise fiscal do sistema


previdenciário sem alterações desse tipo?
Todas essas questões não são simples e são genuínas decisões políticas, pois
envolvem escolhas entre princípios de organização social divergentes, assim como
implicam em responsabilidade na gestão dos recursos públicos. O que nos leva
à questão de qual seria a melhor forma de discutir e implementar tais escolhas.
Quanto a essa forma, voltamos à discussão sobre as regras do jogo, ganhando des-
taque a ideia de democracia, com seu sedutor ideal de governo do povo. Ainda que
se discuta qual deve ser a exata configuração de um regime democrático, parece
que há algo de incontornável no que tange ao debate sobre o que é justo, que seria:
aqueles sobre os quais se aplicarão as normas de justiça, devem decidir qual é sua
forma preferida de ver implementada a justiça. Logo, o povo deveria decidir o que
é mais justo, ou, ao menos, dentre as opções do que seria justo, aquela opção que
mais lhe agrada e convém naquele momento.
Segundo o editorial jornalístico citado anteriormente, dada a crise econô-
mica, este seria o momento oportuno de debater ao menos uma dessas questões
políticas difíceis: a da gratuidade do ensino superior. De acordo com vários atores
políticos relevantes, seria o momento de debater todas elas. O problema é que, por
outro lado, dada a crise política, esse é o pior momento para tais discussões, pois
passaria ao largo justamente dos procedimentos democráticos que aparecem como
a melhor maneira de discutirmos a substância da justiça dentro de uma forma
igualmente justa, posto que debatida pelo público mais amplo de toda a comunida-
de política em questão. A democracia representativa aparece em destaque perante
concorrentes – como regimes não democráticos e democracias plebiscitárias – jus-
tamente ao permitir um fluxo de debates e escolhas em torno de ideias. Cria-se um
fluxo de amadurecimento de um debate e escolha entre opções que posteriormente
poderão ser cobradas por seus erros e acertos. É isso que a atual conjuntura blo-
queia, tornando inadequados, por conseguinte, os debates desses temas difíceis,
posto que ignora e mesmo se contrapõe a uma das fontes de representação do nos-
so regime democrático que é presidencialista e hoje desdenha das últimas eleições
presidenciais.
É claro que existem muitas formas de organizar o regime democrático, que
pode não ser um regime presidencialista. Esta também é uma escolha política ge-
nuína e complicada – e, diante de clamores da classe política pela adoção extem-
porânea de um regime parlamentarista, é bom lembrar, uma escolha igualmente
inadequada para o momento. E é claro que a chancela da eleição enquanto fonte
de legitimidade da representação política não significa carta branca para que o
presidente eleito faça o que quiser. Daí que existem mecanismos como o impea-
chment. Acontece que o caso brasileiro do impeachment da presidenta Dilma
acabou por avançar para além da destituição da presidenta, adentrando numa

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Lorena Madruga Monteiro, Luciana Santana (organizadoras)

destituição de governo. Um caso em que quem assume o governo é um vice-pre-


sidente cujo partido já havia migrado para a oposição, sem que ele, no entanto,
tivesse abandonado a vice-presidência. Se isso não fosse suficientemente proble-
mático, passa-se a atacar políticas e símbolos do governo destituído e as alianças
passam a ser feitas com partidos derrotados nas urnas. Sem adentrar no mérito
do quanto havia de meramente simbólico na presença de tal trecho nas metas do
governo deposto, não deixa de ser assombroso que se retire das metas do governo
justamente a meta de diminuição da desigualdade de renda,18 em explícito con-
traponto a slogans da administração anterior.
Lembro-me do, nesse caso, insuspeito, ministro do Supremo Tribunal Fede-
ral Gilmar Mendes, ao defender a perda do mandato do parlamentar que mudasse
de partido no meio da legislatura, argumentar justamente que tal entendimento do
nosso sistema eleitoral decorria do direito do eleitor de ver respeitada sua vontade
no que tange à composição do governo em termos de situação e oposição, já que
casos de infidelidade partidária poderiam fazer com que um deputado de quem
se esperasse oposição ao governo, passasse a compor a base aliada, frustrando seu
eleitor.19 Uma inversão entre situação e oposição sem a chancela de um processo
de consulta popular, dessa forma, macula a ideia de democracia e, por conseguinte,
bloqueia um procedimento justo para a discussão dos termos da própria justiça a
ser substantivada via ações do governo.
É isso que enfraquece leituras de um tipo “pragmático-eufórico” da atual
conjuntura, comum entre aqueles que, sentindo-se mais próximos dos derrotados
do que dos vencedores da última eleição presidencial, comemoram que o país tem
seguido procedimentos corretos e efetivado institutos constitucionalmente previs-
tos – no caso, o impeachment – numa narrativa feliz de um país que institucional-
mente, vai bem. Mas não, ele não vai. E, ainda que não se veja a atual conjuntura
sob um ponto de vista, digamos, “hermenêutico-indignado”, como daqueles que
bradam contra o Golpe de Estado, tendo em vista que apenas a canalhice oportu-
nista veria algo de justo no atual processo de impeachment, deve-se ao menos optar
por um posicionamento “legalista-triste”: se a lei do impeachment nos permitiu
chegar a esse ponto, temos de, no mínimo, concluir que a lei é ruim. Ainda que se
possa jogar a culpa menos em políticos usurpadores do que em instituições ruins,
que se curvam excessivamente fácil aos caprichos dos atores políticos, não há como
olhar para o quadro atual como um quadro em que não estamos em uma situação
de crise política profunda e igualmente profundo descrédito da democracia.

18 Nesse sentido ver: Coutinho, Affonso e Macedo (2016, politica.estadao.com.br).


19 Ainda que o temor do ministro tivesse a ver com mecanismos de cooptação da oposição pela situação,
em suas palavras “Era a democracia que estava em jogo nesse sistema, porque, se há capacidade de transfor-
mar oposição em situação dessa forma, é claro que nós vamos chegar ao ponto de fazer com que a oposição
desapareça”. (ADI 3999, p. 56-57).

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“Temerosas transações”: ensaios sobre o golpe recente no Brasil

Nessa crise de instituições responsáveis pela efetivação de escolhas políticas,


como podemos sequer fazer essas escolhas? Qualquer decisão, com isso, já nasce
corrompida por um vício de origem. E é por isso que certos procedimentos demo-
cráticos, como o processo de escolha de representantes, não são do mesmo nível
das escolhas difíceis citadas no início do artigo. São escolhas mais fundamentais,
ou mesmo, para alguns, são sequer uma escolha, sendo a única fonte aceitável de
escolhas no que tange à política, enquanto vinculante da obediência dos cidadãos
aos seus comandos. Em igual medida, não apenas o respeito à vontade dos cida-
dãos expressa em eleições, mas também o livre debate entre tais cidadãos, para que
sua escolha nessas eleições se assente sobre as melhores bases, precisam ser toma-
das como ainda mais fundamentais que a decisão final, sobre qual política pública
escolher. É por isso que medidas que impeçam esse livre debate, como a proibição
de protestos políticos, criminalização de movimentos sociais, ou aberrações como
a ideia por trás da chamada lei da “escola sem partido”, não são apenas opções po-
líticas, mas escolhas a respeito de que política está em jogo: se democrática ou não.
Nesse ponto, liberais de faceta mais igualitária e seus adversários libertários
estariam de acordo. Ainda que discordem do tanto que o Estado pode intervir na
redistribuição de riqueza, ambos os lados irão concordar que o Estado não deve
intervir na livre manifestação de pensamento e expressão política. São leituras di-
ferentes que partem da ideia de direitos humanos fundamentais. Mas essa ideia,
ainda que possa ser conciliada com diferentes ideais de justiça distributiva, não
poderá ser conciliada com o desrespeito à liberdade de expressão, incluindo a liber-
dade de credo e de orientação política, cujo melhor espelho em instituições de uma
democracia representativa envolve o respeito aos resultados eleitorais que reflitam
as opiniões políticas dos cidadãos, assim como o respeito ao livre debate, capaz de
informar as preferências políticas a serem expressas em diferentes mecanismos de
participação e representação políticas desses cidadãos.
Sendo assim, é justo acabar com a gratuidade do ensino superior público,
modificar o tamanho do SUS, privatizar a Petrobrás, flexibilizar as leis trabalhistas,
aumentar a idade mínima de aposentadoria, etc.? Talvez seja justo. Podemos conti-
nuar discutindo tais temas e ver a que conclusão chegamos. E essa conclusão talvez
seja a de que tais medidas são as mais justas as serem tomadas e, assim, as que con-
duzirão melhor o país ao futuro que desejamos. Mas, certamente, não é justo que
tais medidas sejam tomadas sem consulta aos envolvidos e em condições que não
permitam o livre debate de suas consequências.

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Lorena Madruga Monteiro, Luciana Santana (organizadoras)

REFERÊNCIAS

BRASIL. STF. ADI 3999 DF. Rel. Ministro Joaquim Barbosa. Julgado em
12/11/2008. DJ de 17/04/2009, p. 99. Disponível em: < http://www.stf.jus.br/por-
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Saúde. Jornal Folha de São Paulo, São Paulo, maio. 2016. Disponível em: <http://
www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2016/05/1771901-tamanho-do-sus-precisa-ser
-revisto-diz-novo-ministro-da-saude.shtml>. Acesso em: 15 ago. 2017.

COUTINHO, M.; AFFONSO, J.; MACEDO, F. Comissão do Congresso retira ‘dis-


tribuição de renda’ das metas do governo. Estadão Jornal Digital, São Paulo, jul.
2016. Disponível em: <politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/comissao-
do-congresso-retira-distribuicao-de-renda-das-metas-do-governo/>. Acesso em:
15 ago. 2017.

CRISE força o fim do injusto ensino superior gratuito. O globo, Rio de Janeiro,
jul. 2016. Disponível em: <https://oglobo.globo.com/opiniao/crise-forca-fim-do
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2017.

DAMATTA, Roberto. O que faz do brasil, Brasil?. Rio de Janeiro: Rocco, 1984.

HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26. ed. São Paulo: Companhia
das Letras, 2012.

MOUFFE, Chantal. En torno a lo político. Buenos Aires: Fondo de Cultura Econó-


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RAWLS, John. Liberalismo político. 2. ed. São Paulo: Ática, 2000.

WYLLYS, Jean. As cinco mentiras do Globo sobre a universidade pública. Carta


Capital, São Paulo, jul. 2016. Disponível em: <http://www.cartacapital.com.br/so-
ciedade/as-cinco-mentiras-do-globo-sobre-a-universidade-publica>. Acesso em:
15 ago. 2017.

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“Temerosas transações”: ensaios sobre o golpe recente no Brasil
4
IMPASSES DA DEMOCRACIA BRASILEIRA:
PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO,
IMPEACHMENT E CRISE INSTITUCIONAL

João Paulo S. L. Viana


Marcio Cunha Carlomagno
Valter Rodrigues de Carvalho

Introdução

O Brasil conheceu ao longo da sua vida republicana pelo menos seis ex-
periências distintas de sistemas político-partidários20. O arranjo institucional
denominado “presidencialismo de coalizão”, nascido em 1985 com a redemo-
cratização, e formalizado com a promulgação da Constituição Federal de 1988,
encontra-se atualmente diante de uma das maiores crises de nossa história. Não
obstante ser observado por muitos estudiosos como a mais longeva e virtuosa
experiência democrática brasileira (REIS, 2007; BRAGA; RIBEIRO; AMARAL,
2016), desde sua fundação vem suscitando críticas que se prolongaram durante

20 Conforme Meneguello (1998), a descontinuidade dos partidos e sistemas partidários é uma dos aspectos
fundamentais no estudo dos partidos no período Republicano brasileiro. Nesse sentido, a partir de 1889,
seis sistemas partidários se sucederam até 1985. O período oligárquico da República Velha, de 1889 a 1930.
Um sistema pluripartidário iniciado com a Revolução de 1930. De 1945 a 1965, após o fim do Estado Novo,
o sistema pluripartidário da experiência democrática que dura até o golpe de 1964. De 1965 a 1979, um
sistema bipartidário organizado pelo regime militar. De 1979 a 1985, ainda sob a ditadura militar, o multi-
partidarismo controlado. E o sistema multipartidário, iniciado com a redemocratização por intermédio da
Emenda Constitucional nº 25.

48
Lorena Madruga Monteiro, Luciana Santana (organizadoras)

a década de 1990, acerca da incapacidade da estrutura institucional de efetivação


da governabilidade e consolidação das instituições políticas21.
Após o instável período que se sucedeu a Assembleia Nacional Constituinte,
a partir de meados dos anos 1990, o sistema político brasileiro parecia caminhar
rumo à institucionalização. As eleições presidenciais apontavam para uma disputa
centrada em dois grupos políticos de centro-direita e centro-esquerda, encabeça-
dos por PT e PSDB, a relação Executivo-Legislativo indicava que, a despeito de
uma presidência dotada de excessivos poderes de agenda e barganha, os partidos
mostravam-se coesos, disciplinados e dispostos a cooperar com o governo. A esta-
bilidade macroeconômica, acompanhada dos índices de crescimento e distribuição
de renda, do início do século XXI, confirmava uma sólida trajetória à instituciona-
lização do modelo brasileiro.
Ainda que o governo Dilma tenha vivenciado grandes dificuldades a partir
das jornadas de junho de 2013, após a eleição de 2014 o quadro político mudou
consideravelmente. A recusa do PSDB em aceitar o resultado das urnas, o apro-
fundamento da crise econômica, os escândalos de corrupção na Petrobrás exi-
bindo o lado obscuro do financiamento privado de campanhas, aliado ao cresci-
mento da insatisfação popular e a perda de maioria pelo governo no parlamento
foram os principais fatores que contribuíram diretamente para o impeachment
da ex-presidenta.
Ressalta-se o protagonismo do judiciário com a operação Lava Jato,
constituindo-se como ator de grande relevância no cenário político nacio-
nal. Abranches (2015), o pai fundador do conceito de presidencialismo de
coalizão, analisa que a mediação do judiciário nos impasses entre executivo
e legislativo, após CF de 1988, seria “uma consequência natural da dinâmica
intrínseca do presidencialismo de coalizão e da ordem constitucional repu-
blicana que estabeleceu a divisão harmônica de jurisdição entre três poderes”.
Segundo ele, o judiciário exerceria o papel antes destinado aos militares cons-
titucionalmente.
Nesse contexto, o presente estudo busca compreender, a partir do presiden-
cialismo de coalizão e do papel do judiciário, os fundamentos da crise política bra-
sileira até o impeachment de Dilma Rousseff, tendo como foco de análise as princi-
pais questões que contribuíram para a queda do governo petista.

21 Ver, por exemplo: Lamounier e Meneguello (1986); Maiwaring (1991); Lamounier (1992); Góes (1992);
Ames (2001).

49
“Temerosas transações”: ensaios sobre o golpe recente no Brasil

O presidencialismo de coalizão e a crise do impeachment

O modelo institucional do “presidencialismo de coalizão” (ABRAN-


CHES, 1988), preservou elementos consagrados da república brasileira, como
o sistema de governo presidencialista, separação de poderes, representação
proporcional de lista aberta, multipartidarismo e federalismo. Esse arcabou-
ço institucional justificava-se a partir da heterogeneidade e do “pluralismo de
valores” que marcariam a sociedade. Tal arranjo reserva ao chefe do executi-
vo a árdua tarefa de construção da governabilidade, mediante a formação de
maiorias legislativas sustentadas por um leque de alianças entre os partidos
no Congresso Nacional22. Desse modo, a gestão da coalizão é observada como
condição fundamental para o sucesso do governo.
Durante a Assembleia Nacional Constituinte prevaleceu entre os congres-
sistas o argumento pró-liberalização à criação de legendas partidárias. Nenhuma
regra sobre formação, criação e funcionamento dos partidos políticos foi imposta
pelos parlamentares23. A ideia dos legisladores era não restringir ou limitar, qual-
quer ação desse tipo seria observada como resquícios do autoritarismo militar. Os
constituintes acreditavam que o tempo eliminaria as legendas sem raízes societá-
rias (VIANA; COELHO, 2008).
A insatisfação viria logo em seguida com o tumultuado quinquênio após
a promulgação da Carta Magna, que ainda não havia completado um ano e pro-
postas de reforma política já começavam a aparecer com frequência na imprensa
e entre os parlamentares brasileiros. As críticas giravam em torno da incapacidade
de enraizamento societário dos partidos políticos e a alta fragmentação partidária
no Congresso Nacional, observada como um empecilho à formação de maiorias
sólidas no parlamento, aptas a governar.
Conforme Lamounier (1992), o arranjo político combinava fragmentação
partidária e uma multiplicidade de contrapesos, típicas das democracias “conso-
ciativas” europeias, que sob uma perspectiva equivocada de seus defensores pode-
riam ser neutralizados por intermédio de componentes controladores da presidên-
cia “plebiscitária”. Segundo ele, não haveria no Brasil clivagens étnicas, linguísticas
e culturais existentes em países como Holanda, Bélgica e Suíça. Assim, no caso
brasileiro, as clivagens seriam de ordem econômica, social e regional, o que não
justificaria a opção por um modelo consociativo. Tratava-se mais de uma situação
consociativa, do que um modelo propriamente dito.

22 Ver: Figueiredo e Limongi (1999); Santos (2003)


23 A Lei dos Partidos 9096/95 fixou regras para a formação de legendas partidárias, estabelecendo o critério
formal de 0,5% de assinaturas do número de eleitores votantes na última eleição para a Câmara dos Depu-
tados, excluindo brancos e nulos, dividido em pelo menos 1/3% dos estados.

50
Lorena Madruga Monteiro, Luciana Santana (organizadoras)

As vinte e duas candidaturas e o fracasso na eleição presidencial de 1989 dos


dois maiores partidos brasileiros à época, PMDB e PFL, herdeiros do bipartidaris-
mo ditatorial de ARENA e PMDB, além do plebiscito sobre formas e sistemas de
governo realizado em abril de 1993, foram os principais acontecimentos para que
a partir daí a reforma política fosse inserida na agenda de importantes setores da
sociedade brasileira (NICOLAU, 2003). Nesse contexto, um dos pontos centrais da
crítica possuía como alvo o sistema eleitoral e a legislação eleitoral. Como recorda
Maiwaring (1991, p. 46):

[...] O sistema eleitoral brasileiro contribuiu para minar os esforços de


construção de partidos mais efetivos. Vários aspectos da legislação elei-
toral brasileira não têm paralelo (ou têm muito pouco) no mundo, e ne-
nhuma democracia dá aos políticos tanta autonomia vi-à-vis seus par-
tidos. Essa legislação eleitoral reforça o comportamento individualista
dos políticos e impede a construção partidária. Os graus extremamente
baixos de fidelidade e disciplina partidária encontrados nos principais
partidos (à exceção dos vários partidos de esquerda) são tolerados e es-
timulados por essa legislação.

Numa conjuntura marcada pelo impeachment do ex-presidente Fernando


Collor de Mello (PRN), um político outsider, filiado a um partido nanico que de-
tinha à época de sua eleição apenas 3% de assentos na Câmara dos Deputados,
predominava o argumento de que o desenho institucional brasileiro, formado por
uma “combinação explosiva”, entre presidencialismo, separação de poderes, repre-
sentação proporcional, multipartidarismo, federalismo, favoreceria a um “diálo-
go de loucos” dentro do parlamento (GÓES, 1992), constituindo-se o Brasil numa
perspectiva comparada “um caso notório de subdesenvolvimento partidário” (LA-
MOUNIER; MENEGUELLO 1986).
Na contramão das críticas ao modelo vigente, estudos posteriores, sobretu-
do no âmbito da relação executivo legislativo (FIGUEIREDO; LIMONGI, 1999;
SANTOS 2003), contestaram de forma veemente as visões pessimistas sobre o ar-
ranjo institucional da Nova República. Um mergulho no plenário da Câmara dos
Deputados demonstrava que, ao contrário das teses predominantes, dentro do par-
lamento os partidos eram fortes, comportavam-se de forma coesa e disciplinada,
acompanhando as lideranças. Diante de um executivo dotado de relevante poder
de agenda, a coalizão governista possuía um alto grau de sucesso na aprovação dos
projetos de seu interesse.
No plano eleitoral, a partir de 1994 observa-se uma tendência à estabilização
da competição política expressa, fundamentalmente, nas eleições presidenciais, em
torno de dois blocos ideológicos, um de centro-esquerda e outro de centro-direita,
liderados por PT e PSDB. Entre 1986 e 2016 o número de eleitores cresceu de 69
milhões para cerca de 145 milhões, com predominância dos centros urbanos e sig-

51
“Temerosas transações”: ensaios sobre o golpe recente no Brasil

nificativa participação de segmentos mais jovens da população. Atualmente, o Bra-


sil é o quarto maior eleitorado do mundo, atrás apenas de Índia, EUA e Indonésia.
De fato, a democracia brasileira vivenciou um aumento considerável no
eleitorado, além de relevantes transformações no seu perfil. Ao abordar o caso
brasileiro, Meneguello (2003, p. 349) afirma que diante de uma conjuntura de
“enfraquecimento da relação de representação nas várias democracias ocidentais,
é notável a presença de partidos como referenciais de orientação do eleitorado no
sistema político”.
Nesse contexto, “A partir de meados da década de 1990, o cenário de crise
dos partidos tradicionais da era Collor foi dando lugar a um quadro mais estável
(NICOLAU, 2017)”. A mais longeva e estável experiência democrática da história
brasileira começava então a exibir índices razoáveis de institucionalização. A es-
tabilidade econômica com o plano Real em 1994, e posteriormente as “virtuosas”
presidências de FHC e Lula, com a alternância de poder entre PSDB e PT, do go-
verno do sociólogo tucano, ao metalúrgico e líder sindical petista, confirmavam a
tão celebrada conquista da estabilidade política.
Nas últimas duas décadas, a volatilidade eleitoral apresentava queda cons-
tante, o comparecimento eleitoral girou em torno de 80%, os índices de filiação
partidária representam cerca de 10% do eleitorado – um dos maiores do mundo
(BRAGA; RIBEIRO; AMARAL, 2016). Após a eleição de Dilma Rousseff (PT) em
2010, o número efetivo de partidos na Câmara dos Deputados se estabilizava em
11 legendas. Pesquisa do Datafolha24 naquele ano apontava que 46% dos eleito-
res brasileiros se identificavam com os partidos políticos. Os indicadores políticos,
econômicos e sociais eram apresentados com euforia à opinião pública brasileira.
Todavia, após as manifestações populares do “outono brasileiro” em junho de
2013, o quadro mudou substancialmente. Com o aumento crescente da insatisfação
popular, o lema “Sem partido” se espalhou pelo Brasil, com consequências diretas
no pleito de 2014. A reeleição de Dilma Rousseff (PT) sobre Aécio Neves (PSDB),
naquele ano, foi marcada também pela maior fragmentação partidária recente do
Congresso Nacional, com 28 partidos representados no parlamento. A conjuntura
política apresentava uma guinada conservadora, com a proliferação de partidos na-
nicos à direita do espectro ideológico. Posteriormente, a vitória de Eduardo Cunha
(PMDB) à presidência da Câmara dos Deputados, ratificava o quadro de iminente
conservadorismo e graves riscos à tão aclamada governabilidade, conquistada a
duras penas.
No início do segundo mandato de Dilma, a recusa do PSDB e o restante da
oposição em aceitar o resultado eleitoral, estimulada pelo adensamento da crise eco-

24 Conforme o Datafolha, dos 46% de eleitores que se identificavam com um partido político, 23% tinha
preferência pelo PT, seguido pelo PMDB com 6%, e o PSDB também com 6%.

52
Lorena Madruga Monteiro, Luciana Santana (organizadoras)

nômica, as denúncias com relação ao financiamento de campanhas privadas, o es-


cândalo de corrupção na Petrobrás e os altos índices de reprovação popular do gover-
no levaram o país a um processo de impeachment sob o qual pairam sérias dúvidas
acerca de sua legalidade. Vale ressaltar aqui as ambiguidades no tocante a existência
de crime de responsabilidade cometido pela então presidenta da República – reforça
tal percepção uma punição maior à Dilma atenuada pelo Senado Federal.
Diante do parlamento mais conservador das últimas décadas, marcado pela
acentuada fragmentação partidária, as dificuldades de gerenciamento de uma coa-
lizão governamental complexa e heterogênea ideologicamente evidenciavam a falta
de autoridade de uma presidenta sem habilidade política, cada vez mais enfraque-
cida e isolada politicamente. Certamente, a vitória de Eduardo Cunha para a presi-
dência da Câmara dos Deputados, com o compromisso de fortalecimento e inde-
pendência do parlamento, marcou o limiar de um ciclo desastroso para o governo
que, diante de um legislativo mais “autônomo”, sob a liderança de um parlamentar
cujas práticas políticas seguiam em direção contrária à democracia e ao respeito às
regras do jogo, viu desabar a sua base de apoio parlamentar e, consequentemente,
as condições de governabilidade.
Nesse sentido, o conflito com Eduardo Cunha foi o fator decisivo de ins-
tabilidade do segundo governo Dilma, o que ratificou aos atores a fragilidade de
uma governante inábil, de pouco traquejo político, e sua notória possibilidade de
destituição. A saída do PMDB da base governista e, posteriormente, a debandada
de aliados situados mais à direita do espectro político, como PP, PTB e PSD, repre-
sentou a cartada final para a aprovação com folga do impeachment na Câmara.
Sob sérias suspeitas acerca da inexistência de crime de responsabilidade, o jul-
gamento político fruto da vontade de uma maioria parlamentar, contrária ao governo
petista, inaugura perigoso precedente para institucionalidade democrática do país.
Ademais, o afastamento de Cunha e, posteriormente, sua prisão colocam ainda mais
dúvidas sobre a legitimidade do processo de impedimento de Dilma Rousseff.

Presidencialismo consensual, fragmentação e relações executivo-legislativo

Existe um longo debate teórico sobre a característica consensual da democra-


cia brasileira. Segundo Amorim Neto, em uma aproximação com a teoria de Arend
Lijpação com a teoria de Arend Liphart, “O Brasil é claramente um caso de demo-
cracia consensual, apesar de ser um sistema puramente presidencialista” (AMORIM
NETO, 2009, p. 113). O modelo consensual – em oposição ao modelo majoritário,
que tende a concentrar poder e se caracterizar pelo confronto – tende a difundir
o poder entre os diversos atores sociais e possuir um estilo decisório acomodativo
(AMORIN NETO, 2009). Uma vez que o poder está difundido entre muitos agentes,

53
“Temerosas transações”: ensaios sobre o golpe recente no Brasil

estes necessitam entrar em uma concertação para que governos possam funcionar
adequadamente. Crises políticas acontecem quando esta cooperação não é alcançada.
Por que, então, o consenso falha? Como argumenta o próprio Amorim Neto,
para que o modelo funcione “a prática de governos de ampla coalizão, cerne do
modelo consensual de democracia e uma das marcas distintivas do atual regime
político brasileiro é, sem dúvida, fundamental para que os presidentes governem
efetivamente.” (AMORIM NETO, 2009, p. 125). O que, então, pode levar a que exe-
cutivo e legislativo não cooperem?
Diversas explicações têm sido ofertadas nos anos recentes. Sem prejuízo a
demais fatores, dois elementos especificamente sobre a relação executivo-legisla-
tivo são importantes para entender a crise do segundo governo Dilma Rousseff: a
fragmentação partidária e a mudança do comportamento reativo do legislativo –
ritmo este ditado por seu presidente naquele momento, Eduardo Cunha.
Primeiro, a composição de coalizões de governo é afetada diretamente pelo
número de atores com os quais se precisa negociar, isto é, pelo número de partidos
no parlamento. O Brasil atingiu, em 2014, o maior número de partidos efetivos no
legislativo do mundo. O gráfico a seguir ilustra a evolução desta fragmentação.

Fonte: (Gallagher 2015)

Outro aspecto que pode nos ajudar a compreender a crise política por qual
passou Dilma Rousseff foi a mudança no equilíbrio de forças ocorrida nas relações

54
Lorena Madruga Monteiro, Luciana Santana (organizadoras)

entre executivo e legislativo e a adoção, pelo legislativo, de comportamento mais ati-


vo. Quando assumiu a presidência da Câmara, o deputado Eduardo Cunha alardeou
que pretendia dar a Casa caráter “proativo” e “independente”. Embora os termos utili-
zados por Cunha talvez fossem somente retórica para justificar seu rompimento com
o executivo, eles encontram relação direta com as explicações sobre o parlamento
brasileiro, no debate teórico se nosso legislativo seria “reativo” ou “proativo”.
Santos e Almeida (2011) resumiram que “Segundo a abordagem funciona-
lista, um Parlamento pode ser ativo, reativo ou ‘carimbador’.” (SANTOS; ALMEI-
DA, 2011, p. 19). E concluiu: “Os estudos sobre o Legislativo brasileiro [...] indicam
ser esta uma instituição de perfil reativo” (SANTOS; ALMEIDA, 2011, p. 26). Ser
reativo significaria que o legislativo:

delega a iniciativa das proposições legais mais importantes para o Exe-


cutivo. A definição da agenda, assim como as prioridades no que tange
à ordem de apreciação dos projetos, é transferida para o governo e ne-
gociada, posteriormente, com os parlamentares que lideram o partido
ou coalizão legislativa majoritária. (SANTOS; ALMEIDA, 2011, p. 20)

A análise de alguns dados primários nos indica que a promessa de Cunha


talvez tenha se efetivado na prática, não sendo mera retórica – o que provavelmen-
te implique a mudança da caracterização sobre o legislativo nacional. Os gráficos
a seguir mostram o número de votações nominais levadas ao plenário da Câmara
dos Deputados, no período de 1991 a 201725. Podemos verificar os valores por ano,
legislatura e por presidência da Casa.

25 1991 é o primeiro ano cujos dados estão disponíveis em formato digital. Para 2017, os
dados estão atualizados somente até o dia 30 de setembro. Sobre isso. Ver: Câmara dos
Deputados (2017, http://www2.camara.leg.br).

55
“Temerosas transações”: ensaios sobre o golpe recente no Brasil

É possível se fazer algumas ressalvas metodológicas. Estes dados brutos se


referem a todas votações nominais realizadas em plenário, o que inclui tanto proje-
tos de lei, emendas, medidas provisórias, PECs, quanto também procedimentos do
processo legislativo, como requerimentos de retirada de pauta, inversão de pauta,
adiamento etc. 
Uma hipótese possível seria que, como algumas das relações partidárias fi-
caram mais conflituosas nos anos recentes, o aumento no número de votações le-
vadas a cabo no plenário fosse um reflexo não da quantidade de projetos, mas do
crescimento de procedimentos sendo realizados. Ou seja, os projetos sendo debati-
dos estariam sofrendo mais oposição. Contudo, uma análise preliminar do período

56
Lorena Madruga Monteiro, Luciana Santana (organizadoras)

2007-2017 indicou que os procedimentos não são responsáveis pelo crescimento


constatado, mantendo-se em níveis equivalentes no período.
Qual seja o item legislativo responsável por estes padrões, os dados são
um indicador do aumento da quantidade de trabalho sendo realizado no ple-
nário. Note-se que a atual legislatura (55ª legislatura, que tomou posse em 2015
e tem mandato até 2018) já bateu o recorde, como aquela com mais votações
nominais, um ano antes de seu final. Até setembro de 2017, já havia realizado
733 votações. O recorde anterior era da 53ª legislatura (2007-2010), que havia
procedido com 625 votações. 
O recorte por presidência parece corroborar a hipótese sobre o papel de
Eduardo Cunha neste fenômeno, já que o presidente da Câmara possui controle da
agenda, tanto sobre o conteúdo da pauta quanto sobre o ritmo de trabalho. Quando
percebemos os estilos diferentes de cada presidente, entendemos melhor as discre-
pâncias dos resultados. 
Uma interpretação possível seria que o parlamento está mais atuante do que
no passado. A mudança da caraterística do legislativo brasileiro de reativo para
um padrão mais ativo parece ter produzido efeitos sobre as relações estabelecidas
com o executivo, logo, na própria dinâmica da democracia consensual brasileira.
Segundo esta hipótese, este seria um dos elementos que poderiam ajudar a explicar
a crise ocorrida no segundo governo Dilma Rousseff. Restam, contudo, duas ques-
tões. A primeira: será esta mudança de perfil a causa da crise ou consequência, por
exemplo, do espaço aberto pela falta de liderança política da presidenta? A segunda
questão: será este fim do consenso entre executivo e legislativo um novo padrão,
que permanecerá de agora em diante, ou o legislativo retornará, no futuro, de volta
aos padrões passados?

O papel do Judiciário na crise política

Antes de tecermos algumas considerações acerca do papel do Judiciário na


crise atual, convém recuperar um pouco o debate sobre a judicialização da política
e politização da justiça no Brasil nas últimas décadas. Isso nos ajudará a elucidar
melhor a atuação do Judiciário na atual conjuntura.
Os estudos sobre o ativismo judicial no Brasil até meados dos anos 2000
enfocaram o Supremo Tribunal Federal (doravante STF) e seu papel no controle
de constitucionalidade das leis emanadas dos demais poderes por meio da Ação
Direta de Inconstitucionalidade (doravante ADINs) (ARANTES, 1997; VILHE-
NA, 2002; VIANNA, 1997; 2006; OLIVEIRA, 2005; TAYLOR, 2006). Há um vasto
acervo de estudos sobre o tema, com diversos enfoques teórico-metodológicos e
resultados distintos quanto à existência ou não de uma judicialização da política.

57
“Temerosas transações”: ensaios sobre o golpe recente no Brasil

Entretanto, algumas evidências parecem comuns a estes estudos; por exemplo, as


que atribuem o ativismo judicial ao desenho institucional do Judiciário depois de
1988 – mais aberto e com um modelo de controle híbrido de constitucionalida-
de, agravado pela ausência de precedente limitante (ARANTES, 1997; VILHENA,
2002) – e à crise do sistema político-representativo – desconfiança da população
nos políticos e nos partidos – e aproximação da justiça dos cidadãos – por meio
da ampliação da comunidade de controle constitucional e da Ação Civil Pública
(VIANNA. et al., 1997; ARANTES, 1997). No entanto, apesar do desenho institu-
cional aberto, as contingências do jogo político constituem variável explicativa de
grande valor, onde a força da oposição ao governo mostra-se importante no cresci-
mento de ADINs no STF (TAYLOR; DA ROS, 2006).
O protagonismo do Judiciário na cena política, com enfoque nas ADINs no
STF, foi encarado de diversas formas. Vianna et alii (2006), partem da compreensão
de que a ação do Judiciário nas relações políticas e sociais não constitui intervenção
indevida da esfera judicial na esfera política, mas, antes, uma proteção aos me-
nos favorecidos; mais um meio de cumprir a agenda da igualdade prometida pela
Constituição cidadã. A judicialização da política e das relações sociais, na perspec-
tiva dos autores, não pode ser vista como usurpação pela justiça – porque os juízes
não são eleitos – das atribuições dos poderes políticos –, mas uma forma, comple-
mentar, da população fazer representar seus interesses.
Há mesmo quem não aceite a afirmação de que a justiça coloniza as atribui-
ções da política no Brasil (OLIVEIRA, 2005, p. 559). Para a autora, a judicialização
da política –, entendida como suspensão ou realização de ações próprias da esfera
política – só é concretizada se perfazer um ciclo com três fases. Primeiro, ocorre o
acionamento do Judiciário por meio do ajuizamento de processo – etapa que con-
figura apenas politização da justiça. Segundo, dá-se o julgamento liminar – caso
seja solicitado. Por último, julgamento de mérito do processo, onde pode ocorrer a
judicialização da política de fato.
Em um estudo sobre as ADINs impetradas contra o Programa de Privatiza-
ções da era FHC (1995-2002) Oliveira (2005) não compreende como um processo
de judicialização da política. Nesse sentido, não cumprindo o ciclo, onde a última
etapa implica na suspensão – no todo ou em parte – da política pretendida pelos
poderes políticos, não se pode falar de judicialização da política, mas tão somente
de politização da justiça. Entretanto, a autora reconhece o Judiciário como arena
institucional capaz de impor custos decisórios aos poderes políticos – atrasar e
desgastar o governo.
Parece-nos que essa foi a deixa que permitiu Taylor e Da Ros (2006) estu-
dar o ativismo judicial nos governos FHC (1995-2002) e Lula (2003-2008), com
foco nas ADINs no STF. Ressalta que os padrões de ativismo do Judiciário nos
governos FHC e Lula estão condicionados pelas contingências do jogo político

58
Lorena Madruga Monteiro, Luciana Santana (organizadoras)

-partidário – governo versus oposição. A judicialização não pode restringir-se


aos casos em que houve suspensão de políticas públicas decididas pelos poderes
políticos. Mas, antes, deve entender “as táticas judiciais, em outras palavras, não
estão necessariamente assentadas na expectativa de vitória judicial” (TAYLOR;
DA ROS, 2006 p. 827). Em outros termos, “o simples acionamento da corte por
partidos oposicionistas e por diferentes grupos de interesse possui um significa-
do que extrapola o posicionamento finalmente firmado pela Corte nesses contex-
tos” (TAYLOR, 2006, p. 832).
Portanto, o Judiciário se torna uma arena de visibilidade política para a opo-
sição desfilar suas bandeiras e marcar posição. Judicialização da política não preci-
sa ser, necessariamente, a vitória dos impetrantes contra o governo na arena judi-
cial. Ela pode ser, e tem sido, o recurso da oposição para retardar ou mesmo mudar
em parte as decisões do governo; ou, ainda, declarar oposição, fazendo desta arena
uma forma de visibilidade para suas plataformas políticas.
Essa definição mais elástica da judicialização nos parece mais fecunda para
compreender o fenômeno do ativismo judicial. A verdade é que a vertiginosa as-
censão da justiça na cena política não se deve à ação casuística e esporádica de
juízes particulares. Como apontou Garapon (1995, p. 36), “o direito tornou-se a
nova linguagem através da qual é possível formular os pedidos políticos que, de-
sapontados, se voltam, agora, em grande número, para a justiça”. Mais que isso, o
Judiciário e a constelação de juízes, encarna, diante do desencanto com a política e
as ideologias, “uma nova forma de conceber a democracia”.
Há cerca de quatro anos os noticiários de TVs, jornais e revistas impressas,
Rádios, sites, redes sociais estão povoados de uma miragem judicial. No centro
desse embate político-jurídico encontra-se a Operação Lava-Jato. O ativismo ju-
dicial que ora se observa no Brasil constitui mais uma fronteira de colonização da
política aberta pelos juízes, em uma escalada que se iniciou a partir dos anos 90.
Estamos diante não apenas de uma justiça que coloniza a esfera política. Mais que
isso, ela dilapida a própria classe política, ao criminalizá-la, em parceria com as
mídias, a tal ponto que a autoridade política, que se encontra desprestigiada, pouco
ou quase nada representa para o cidadão comum.
Em primeiro lugar, se na França Garapon (1995) chamou a imputabilidade
de autoridades públicas de “o fim da exceção jacobina” – elas se viram responsáveis
perante os tribunais –, podemos dizer que no Brasil tivemos “o fim da exceção oli-
gárquica”, ao assistirmos uma virada nos costumes políticos a partir da Operação
Lava-Jato, na qual autoridades públicas, antes algo inimaginável, foram levadas a
responderem por atos de corrupção. A operação tem o mérito de desmontar o Mo-
dus Operandi do sistema político e revelar sua persistente face patrimonial, onde a
relação entre empresas privadas e classe política – por meio de supostas doações de
recursos para campanhas, que no fundo não passam de investimentos para obter

59
“Temerosas transações”: ensaios sobre o golpe recente no Brasil

contratos de serviços públicos – revelou-se tão promíscua que o desencanto com os


políticos chegou a patamares perigosos.
Em segundo lugar, a judicialização da política ocorre menos pela provo-
cação dos atores políticos, como nos parece ser o caso anterior, e mais pela ação
do Ministério Público Federal, tendo como foco à corrupção dos agentes públi-
cos. Mais que isso, ela revela uma primazia da justiça sobre a política, quando,
com o concurso da mídia, magistrados e procuradores são colocados lado-a-la-
do com autoridades políticas para disputarem a audiência do público. Assim,
a escalada judicial, não obstante a nobreza de seus fins, tem se revelado devas-
tador para as liberdades fundamentais. O perigo reside na forma como juízes e
promotores têm atuado para desbaratar os esquemas de corrupção. Aliados às
mídias, convocam o apoio do público e da opinião pública para trazer à luz e
reforçar fatos e delitos julgados em seus tribunais. Embora não desconhecido
dos países ocidentais, na atual crise uma aliança Judiciário, Ministério Púbico,
mídias e Opinião Pública revela uma face desconhecida e um tanto perturba-
dora da democracia, porque leva por terra princípios como o Devido Processo
Legal e a Presunção de Inocência.
Em terceiro lugar, há um consenso de que o poder dos pequenos juízes, que
vem abalando os alicerces do establishment político nas democracias ocidentais,
não seria possível sem o concurso da mídia (GARAPON, 1995). Se por um lado
a justiça, diferentemente da deliberação política, encarna o espaço neutro, trans-
parente, com o devido processo legal e contraditório, mediado pelo processo. Por
outro, a interferência da mídia, embora imprescindível nas democracias, desarran-
ja as mediações intrínsecas e necessárias ao funcionamento do processo judicial.
“Ora, as mídias aboliram as três distâncias essenciais que são a base da justiça: a
delimitação do espaço protegido, o tempo diferido do processo e a qualidade oficial
dos atores deste drama social. Elas distorcem o quadro judicial, paralisam o tempo
e desacreditam a autoridade” (GARAPON, 1995, p. 78). Como temos visto nos jul-
gamentos da Operação Lava-Jato, juízes e promotores atuam muito mais em fun-
ção das tendências das mídias e da opinião pública que das leis e da Constituição. O
grande tribunal que vem julgando, condenando de forma antecipada e atropelando
a mediação do processo e suas garantias, é a opinião pública, fustigada pela mídia.
Em quarto lugar, as novas democracias, nas quais se inclui o Brasil, carac-
terizam-se pela fragilidade institucional das organizações representativas, respon-
sáveis por canalizar os interesses da sociedade à esfera política (MANIN, 1995;
MAINWARING, 2001). Manin (1995) denominou de democracia do público e se
caracteriza pela incerteza e o reforço ao personalismo. A fragilidade das institui-
ções representativas – partidos e parlamentos – enseja à personalização da política,
a falta de accountability vertical – dos governados sobre os governantes – e a neces-
sidade de reforço na accountability horizontal – entre os órgãos estatais (O’DON-

60
Lorena Madruga Monteiro, Luciana Santana (organizadoras)

NELL, 1998).
Porém, como temos observado ao longo da Operação Lava-jato, no rastro
do reforço das instituições de controle, como Judiciário e Ministério Público, fica
a devastação da esfera política e sua representação. O populismo, ora condenado
na esfera política, grassa na esfera judicial. Um exemplo, dentre tantos, é o fato das
mídias mensurarem a popularidade do juiz Sérgio Moro ao lado de personalidades
políticas, como o ex-presidente Lula. Embora se revele um contrassenso – o tempo
e espaço da justiça não são os mesmos da política –, essas sondagens são a perfei-
ta expressão do juiz político, que necessita sentir a temperatura do público para
orquestrar de forma estratégica suas ações no campo da justiça. Uma prova mais
que contundente de que a opinião pública, em última análise, julga e condena (ou
condena e julga?).
Em quinto lugar, é sabido que a ascensão da justiça na cena política, para
além da reconfiguração dos sistemas políticos democráticos, se deve à sua transfor-
mação em arena das paixões e combates políticos, antes restrito ao campo político
(GARAPON, 1995; THOMPSON, 2002). Nos fatos e notícias diárias que povoam
as mídias, há uma lógica sacrificial, em que uma parte da classe política, fortemente
identificada com os governos do PT – não apenas ela, mas naquela reside toda a
“diabolização”, a quem se atribui à origem da corrupção no Brasil –, foi pega como
bode expiatório, exposta diariamente nas diversas mídias impressas e televisivas
como exemplo de expiação da luta de juízes heroicos contra políticos vilões e mal-
feitores. Um exemplo, não o único, de luta maniqueísta são as fotos de capas de
jornais e revistas, onde o juiz Sergio Moro aparece em um Ringue em posição de
luta com o ex-presidente Lula. São imagens que nem de longe simbolizam o que se
espera de um juiz, que não deve, pelo ritual dos processos judiciais, mostrar-se um
inimigo do réu – situação que até pode ser tolerável para o Ministério Público, que
tem a função de acusar.
Segundo Garapon (1995), de forma ambígua, ao mesmo tempo em que o in-
teresse pela justiça é o reforço de um contrapoder, é também interesse pela vingan-
ça. É uma forma emotiva de fazer política que se concilia com uma opinião pública
que representa os laços sociais por meio de código binário “agressor/vitima”. É uma
visão simples “[...] daquilo que um discurso político tecnocrático acaba por obscu-
recer. Essa abordagem emocional e maniqueísta da política dá, sem dúvida, origem
ao populismo” (GARAPON, 1995, p. 102). O recurso ao direito penal sustenta-se
pela força da simplicidade e lógica binária que possibilita. A solução penal gera,
mediatamente, a identificação com a vítima e a diabolização do outro.
Como notou Thompson (2002, p. 139), o escândalo político, marca das de-
mocracias liberais, é retroalimentado por meio da divulgação diária de escândalos
de corrupção. Embora possíveis em regimes não democráticos, é nas democracias
liberais que os escândalos floresceram, graças à lógica competitiva desses regimes

61
“Temerosas transações”: ensaios sobre o golpe recente no Brasil

– eleições livres e periódicas, apelos constantes ao público mais amplo e relativa


liberdade de imprensa.
O uso de institutos penais, como a Delação Premiada e a Prisão Cautelar, tem
sido a marca do recurso ao direito penal que fazem uso os juízes nas investidas mora-
lizadoras da Lava-Jato. O uso degenerado desses institutos e um robusto jornalismo
de delação se transformou no elo entre promotores, juízes e o público telespectador
(THOMPSON, 2002; GARAPON, 1995). Um exemplo, não o único, são os vazamen-
tos para as mídias de delações, documentos e conversas interceptadas. O que tem isso
de tão perturbador? Ora, guardadas as devidas proporções, estamos diante de uma
forma de atuação dos tribunais pouca distinta dos regimes de exceção. Princípios
como o Devido Processo Legal e a Presunção de Inocência cedem ante a condenação
antecipada do grande tribunal representado pela Opinião Pública.
Ressalte-se, ainda, que a forma como vem sendo usado o instituto da Prisão
Cautelar é algo que se pode chamar de tortura branda, digamos assim, para forçar a
Deleções Premiadas que, na maioria das vezes, não são cotejadas com um conjunto
probatório calcado em documentos. Por outro lado, há um reforço mútuo entre as
mídias, juízes e promotores por meio dos vazamentos de delações, documentos e
comunicações interceptadas. O exemplo mais marcante, não o único, foi a divul-
gação, em rede nacional, de conversas telefônicas interceptadas do ex-presidente
Lula, por ocasião de sua nomeação a ministro da Casa Civil do agonizante governo
Dilma, com a própria presidente; uma flagrante e perigosa violação, pois presiden-
tes têm suas comunicações protegidas pela Constituição e sujeitas apenas à aprecia-
ção do Supremo Tribunal Federal - foro privilegiado.
Por fim, Tocqueville (1978) demostrou como a liderança que emerge nos
momentos fundantes de uma nação está imbuída de espírito público e nobreza de
propósito. Mas, diz ele, a institucionalização da democracia faz emergir outro tipo
de liderança, medíocre em qualidades e nos propósitos, mas que faz um ruindo
estridente nas tribunas do parlamento sem ostentar espírito público. A rotinização
da democracia apequena a liderança e estreita seus ideais políticos.
A situação do Brasil hoje é de crise de liderança, nos termos posto por To-
cqueville (1978). Faz-nos lembrar, para usar outro exemplo, o quadro pintado por
Weber (1978) na Alemanha pós-Bismarck, cuja força da burocracia e à irrelevância
do parlamento, criava barreira intransponível à construção nacional.
A crise de liderança pela qual o Brasil passa é o componente mais duradouro
e perturbador desse processo de esgarçamento da atividade política, aliada à crise
moral e ética. Em um mundo de confiança solapada, o populismo judicial contribui
enormemente para reforçar a crença do cidadão comum nos juízes como restaura-
dores da moralidade e dignidade da vida pública. A fragilidade institucional enseja
à confiança do eleitor em personalidades políticas, como apontou Manin (1995),
mas agora menos nos políticos profissionais e mais nos juízes e promotores que

62
Lorena Madruga Monteiro, Luciana Santana (organizadoras)

surgem, como diria Garapon (1995), como os novos campeões da moralidade pú-
blica e criminalizadores da atividade política.
Entretanto, há potenciais riscos na escalada judicializante e devastação da dig-
nidade da atividade política. Assistimos diariamente ao espetáculo judicial nas TVs,
rádios, jornais impressos, sites e redes sociais e pouco nos perguntamos se o Judiciá-
rio tem a solução para os dilemas do país. Na verdade, o Judiciário, não obstante o
papel essencial que tem para democracia – é o regime que se distingue de outros pelo
controle da legalidade dos atos do poder soberano –, é um órgão burocrático do Esta-
do que atua sob observância de regras e procedimentos – ao menos normativamente.
Por mais elástico que tenha se tornado o direito no Welfare State contemporâneo
(CAPELLETTI, 1999), não permite aos juízes e promotores encontrarem a destreza,
legitimidade e consenso próprios da ação política. Em outros termos, seu papel ja-
mais poderá incluir o campo político por excelência. Se perdurar o espetáculo judi-
cial, por mais nobre que sejam seus objetivos, o País continuará acéfalo de lideranças
políticas, com grande prejuízo para o futuro político, social e econômico.

Conclusão

A incapacidade da liderança de Dilma Rousseff em gerenciar a coalizão, diante


da altíssima fragmentação partidária na eleição de 2014, e uma notória mudança no
padrão de atuação do Legislativo, liderado por Eduardo Cunha, de uma postura rea-
tiva para uma atuação mais ativa, certamente contribuiu diretamente para o colapso
do governo petista e a consumação de um impeachment duvidoso no tocante a exis-
tência de crime de responsabilidade. Por outro lado, ao que parece, no atual governo
Michel Temer a retomada da cooperação entre Executivo e Legislativo se deve a uma
aproximação da ideologia do Executivo com a mediana ideológica do Congresso.
A chegada de Temer e do PMDB à presidência foi incapaz de promover o
retorno à estabilidade, aprofundando ainda mais a crise política, com a adoção de
uma agenda de medidas impopulares e a explosão de denúncias de corrupção sobre
a base de apoio ao governo do PMDB. Em que pese à permanência de uma conjun-
tura de instabilidade, o governo Temer tem mantido o controle da base legislativa,
indicando, possivelmente, o retorno a uma conjuntura de bom gerenciamento da
base legislativa do governo no parlamento.
O desenho institucional brasileiro, denominado pela literatura como demo-
cracia de consenso (LIJPHART, 2003), revelou toda sua força nesse momento de
crise de liderança. Vimos que os estudos sobre a judicialização da política e poli-
tização da justiça – fenômenos da vida democrática contemporânea – apontavam,
dentre outras causas, o modelo híbrido de controle de constitucionalidade, com
uma via concentrada no STF – cujo controle é abstrato e em tese – e uma via difu-

63
“Temerosas transações”: ensaios sobre o golpe recente no Brasil

são incidental, realizada por juízes inferiores –, cujo controle é concreto e válido
para o caso específico. Assim, a agenda de reformas do controle constitucional, du-
rante os anos 1990 e parte dos 2000, girou em torno desse aspecto que potencializa
o consensualismo, ao arremessar o sistema de justiça na arena política (ARANTES,
1997; CARVALHO, 2016). Tal agenda visou, o que foi consagrado com a reforma
de 2004 (PEC 45), fortalecer a via concentrada de controle no STF em detrimento
da via difusa nos juízes inferiores, amenizando a judicialização que, em tese, é mais
propensa nas instâncias inferiores do Judiciário.
Mas nos parece, também, que a atual cooperação entre Executivo e Legis-
lativo no governo Temer se deve a uma reação aos excessos do sistema de justiça.
Não obstante o governo do PMDB ter retomado um padrão anterior de relação
cooperativa entre o Executivo e Legislativo, o Judiciário, embora recentralizado
com o intuito de “despolitizá-lo”, nunca foi tão ativo. O STF, devido à excessiva
politização, tem se mostrado um tribunal ad doc em suas decisões, mesmo depois
de reforma que instituiu a Sumula Vinculante, principal instrumento de contenção
da politização pela via difuso-incidental (ARANTES, 1997; CARVALHO, 2016) e
da Repercussão Geral, que abortou boa parte dos processos de percorrer todas as
instâncias do Judiciário até desaguar no STF, gerando lentidão na justiça e desvir-
tuando o papel de Corte Constitucional do STF.
O atual governo, embora tenha retomado o padrão de preponderância do
Executivo em suas relações com o Legislativo, marca do presidencialismo de coa-
lizão na Nova República, em que aquele faz valer suas preferências, não arrefeçou
à crise política. O país vive hoje uma crise de liderança do regime democrático.
A crise de liderança é o componente mais duradouro e levou ao processo de es-
garçamento da atividade política, aliada à crise moral e ética. Em um quadro de
confiança solapada e deslegitimação dos partidos e líderes políticos, os membros
do judiciário surgem, no mais claro populismo judicial, como concorrentes a dis-
putarem legitimidade com os políticos.
Porém, os riscos dessa escalada judicializante são reais. Como dito ante-
riormente, não obstante o papel essencial que o Judiciário tem para democra-
cia, ele é um órgão burocrático do Estado cuja atuação se dá mediante obser-
vância de regras e procedimentos legais – ao menos em tese. Por mais elástico
que tenha se transformado o direito contemporâneo, não é possível a atores
do sistema de justiça recompor a destreza, legitimidade e consenso, que só a
política pode fazer. Perdurando o espetáculo judicial, que o atual governo não
conseguiu deter – em parte porque conta com lideranças que estão no centro
dos maiores escândalos de corrupção das últimas décadas –, o país continuará
acéfalo de lideranças políticas, prolongando, indefinidamente, a crise política,
com sérios riscos de ruptura institucional.

64
Lorena Madruga Monteiro, Luciana Santana (organizadoras)

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68
Lorena Madruga Monteiro, Luciana Santana (organizadoras)
5
HÁ UM PROCESSO DE
DESDEMOCRATIZAÇÃO NO BRASIL?
NOTAS SOBRE A PEC 241

Lorena Madruga Monteiro


Laura Napomuceno
Laura Lobo

Nos últimos anos, o Brasil vive uma crise política e institucional. Para alguns
analistas políticos o ápice desta crise foi o impeachment da presidenta Dilma Rou-
sseff, para outros, foi o início. Após o impeachment, a dinâmica política do Parla-
mento brasileiro concentrou-se nas votações em caráter de urgência de Projetos de
Emenda à Constituição, popularizadas pela sigla PECs. Essas foram previstas na
Constituição de 1988 e são um instrumento de mudança constitucional que evita
o custo político e institucional da instauração de uma Assembleia Constituinte. A
iniciativa de uma PEC cabe ao presidente da república, 1/3 dos Deputados e Se-
nadores, ou então por, pelo menos, mais da metade das Assembleias estaduais. O
processo de aprovação passa pela Comissão de Justiça e Cidadania e por dois tur-
nos nas casas legislativas. Entretanto, embora sejam projetos que modificam, caso
aprovados, a Constituição, não podem modificar as cláusulas pétreas da mesma.
Entre essas cláusulas estão: O modelo federativo de Estado, a separação dos pode-
res e os direitos e garantias individuais.
Esse instrumento de emenda constitucional tem sido o recurso utilizado fre-
quentemente após o impeachment de Dilma Rousseff. Anteriormente, em outras
legislaturas, outros governos, também fora utilizado, mas seus conteúdos não ti-
veram impactos diretos a toda sociedade brasileira, como, por exemplo, a PEC do
teto de gastos de número 241 na Câmara dos Deputados, e número 55 no Senado,

69
“Temerosas transações”: ensaios sobre o golpe recente no Brasil

aprovadas em 2016. Diante desse fenômeno, este ensaio descreve a dinâmica exe-
cutiva-legislativa, o conteúdo e o debate político jurídico da PEC 241/55 com o ob-
jetivo de discutir se o Brasil está passando por um momento de desdemocratização
e instaurando uma nova constitucionalidade, distinta da Democrática instaurada
com a Constituição de 1988.

Agenda neoliberal e o processo de desdemocratizaçao

A agenda neoliberal, ou ultraliberal, ganhou contornos inimagináveis nos


últimos anos, e principalmente após o impeachment sofrido por Dilma Rousseff
em 2016. A aprovação pelo legislativo e pelo executivo ilegítimo em exercício de
políticas de austeridade (contenção de gastos e aumento de impostos), tal como as
defendidas pelo FMI a partir da primeira década dos anos 2000, tem mobilizado a
dinâmica executiva-legislativa e a agenda política. Portanto, um projeto neoliberal
não aprovado pela população via eleições tem sido imposto através de projetos de
emendas constitucionais.
Essa conjuntura, instaurada após o golpe político e institucional de 2016,
rompe um longo período de democratização no Brasil, com grandes avanços na
área social, dentre outras. Através de políticas de redistribuição de renda o Brasil
saiu do mapa da fome, reduzindo suas taxas de extrema pobreza. Assim como ofer-
tou uma série de serviços públicos para uma parcela da população que até então
encontrava-se distante do Estado. Além do fortalecimento da participação popu-
lar no processo de formulação de políticas públicas, da competição eleitoral, e da
mobilização dos movimentos sociais e dos Partidos Políticos. Pode-se considerar,
nesse sentido, que o Brasil, nos últimos 15 anos estava em processo profundo de
democratização, no sentido atribuído por Charles Tilly.
Charles Tilly (2013), em seu livro Democracia, distancia-se da perspectiva
constitucionalista e procedimental, ao compreender Democracia apenas como um
regime político que pode passar por processos de democratização e desdemocrati-
zação. Segundo o autor é epistemologicamente e cientificamente muito mais válido
comparar processos de democratização e desdemocratização do que se o país é
democrático ou não, questionando a perspectiva comparativista de muitas análises
políticas, como a de Robert Dahl em Poliarquia, por exemplo.
No caso brasileiro, que, apesar do golpe institucional, ainda é uma Democra-
cia, em seu sentido constitucional e formal, avaliar o impacto da democratização
do regime nos últimos anos, ou a quebra de democratização na experiência recen-
te, parece um bom caminho a seguir, uma vez que “um regime é democrático na
medida em que as relações políticas entre o Estado e seus cidadãos engendram con-
sultas amplas, iguais, protegidas e mutuamente vinculantes” (TILLY, 2013, p. 73) e

70
Lorena Madruga Monteiro, Luciana Santana (organizadoras)

se desdemocratiza quando ocorre a “[...] retirada das principais redes de confiança


dos processos políticos públicos, a inscrição de novas desigualdades categóricas e
a formação de centros autônomos de poder que ameaçam a influência do proces-
so político público sobre o Estado e o controle popular sobre o processo” (TILLY,
2013, p. 175).
Tilly sugere quatro quadrantes para comparar regimes considerados demo-
cráticos. Por um lado, existem aqueles com alta capacidade antidemocrática (sem
voz pública, e alto grau de repressão estatal a qualquer manifestação política) e
aqueles com baixa capacidade antidemocrática (em que existem grupos mobiliza-
dos, múltiplos atores políticos). Por outro, há aqueles regimes com alta capacidade
democrática (movimentos sociais com voz pública, Partidos Políticos mobilizados,
consultas públicas, eleições competitivas, políticas públicas estatais e baixo nível
de violência política), e os com baixa capacidade democrática (pouco monitora-
mento estatal nas políticas públicas, envolvimento de atores semilegais e ilegais na
política, nível alto de violência). (TILLY, 2013). Embora ainda seja um momento
incipiente para classificar o caso brasileiro nos quadrantes sugeridos por Tilly, o
processo de aprovação da PEC 241/55 permite mapear alguns indícios do que vem
ocorrendo no Brasil, por isso o descrevemos abaixo.

PEC 241/55: Dinâmica executivo-legislativo e o cerceamento do debate e da


vontade pública

No dia 15 de Junho de 2016, foi proposta pelo então Vice-Presidente da Re-


pública, no exercício do cargo de Presidente da República, Michel Temer, a Propos-
ta de Emenda à Constituição de número 241, mais notoriamente conhecida como
“A PEC do teto dos gastos”.
É notório que, por se tratar de uma alteração na Carta Magna da República,
o procedimento referente às emendas constitucionais difere das leis ordinárias, ele
é mais dificultoso – ou, em tese, seria mais – devido às repercussões que poderão
ocorrer diante de suas modificações. Ademais, porque as constituições não podem
ser voláteis, seu procedimento de mudança não pode ser tão simples e rápido quan-
to o método dos outros tipos de leis, uma vez que:

[...] os textos constitucionais não podem estar ao sabor das circunstân-


cias, fragilizados diante de qualquer reação à sua pretensão normativa e
disponíveis para ser apropriados pelas maiorias ocasionais. Se isso ocor-
rer, já não terão condições de realizar seu papel de preservar direitos
e valores fundamentais em face do poder político e das forças sociais.
(BARROSO, 2015, p. 175)

71
“Temerosas transações”: ensaios sobre o golpe recente no Brasil

Portanto, é necessário que frua uma harmonia entre a variabilidade e a se-


gurança no texto constitucional. Diante dessa prerrogativa o art. 60, Constituição
Federal/88, atendo-se ao caráter formal da mudança constitucional, traz que a Car-
ta Magna poderá sofrer modificações mediante propostas de: “I - de um terço, no
mínimo, dos membros da Câmara dos Deputados ou do Senado Federal; II - do
Presidente da República; III - de mais da metade das Assembleias Legislativas das
unidades da Federação, manifestando-se, cada uma delas, pela maioria relativa de
seus membros”. Em seus parágrafos, o referido artigo legisla que o quórum de apro-
vação precisa ser de ⅗ dos votos de cada Casa do Congresso além de que em cada
uma haverá discussão e votação em dois turnos.
Com isso, a PEC tratada neste ensaio teve sua iniciativa no Poder Executivo,
representado pelo Presidente Michel Temer – esse é o único momento em que há a
participação do presidente, além da promulgação, toda votação é feita pelos parla-
mentares, os legisladores.
No primeiro turno de votação, na Câmara dos Deputados, a PEC nº 241/2016
obteve 366 votos favoráveis, 111 desfavoráveis e 2 abstenções, totalizando 479 de-
putados participando da votação. No segundo turno, atingiu 359 votos favoráveis,
116 desfavoráveis e 2 abstenções, totalizando 477 deputados participando da deli-
beração. Com esse quórum, a PEC 241/2016 seguiu para o Senado passando a ser
chamada de PEC 55/2016.
No Senado, em seu primeiro turno, a emenda obteve 61 votos favoráveis con-
tra 14 desfavoráveis, enquanto, em seu segundo turno, o placar foi de 53 apoiando
a medida e 16 contrários. É interessante observar que, no portal e-cidadania, no
site do Senado, na época em que estava havendo a tramitação na referida casa, foi
feita uma consulta pública acerca da PEC 55/2016 e o resultado foi de 345.716 votos
contrários à medida e 23.770 a favor.
Mesmo não sendo uma votação vinculante, é cabível observar que essas pes-
quisas de opinião ocorrentes no portal deveriam servir para uma reflexão mais
incisiva acerca da proposta por parte dos parlamentares, principalmente, devido
ao seu conteúdo, que irá repercutir na vida dos cidadãos brasileiros pelos próximos
dez anos podendo ser renovada por mais dez.
Em termos de conteúdo a PEC em tela visa alterar o ato das disposições
constitucionais transitórias, para assim instituir o Novo Regime Fiscal. Dito de ou-
tro modo, ela propõe fixar um limite para a despesa primária total tanto do Poder
Executivo, do Poder Judiciário, do Poder Legislativo, quanto de outros órgãos es-
senciais à Justiça, como o Ministério Público da União e da Defensoria Pública da
União (art. 107, Ato das Disposições Constitucionais Transitórias). A priori, essa
medida pode parecer benéfica para a população brasileira, pois sua justificativa tem
como base que:

72
Lorena Madruga Monteiro, Luciana Santana (organizadoras)

[...] esse instrumento visa reverter, no horizonte de médio e longo pra-


zo, o quadro de agudo desequilíbrio fiscal em que nos últimos anos foi
colocado o Governo Federal. (...). Note-se que, entre as consequências
desse desarranjo fiscal, destacam-se os elevados prêmios de risco, a per-
da de confiança dos agentes econômicos e as altas taxas de juros, que,
por sua vez, deprimem os investimentos e comprometeram a capacida-
de de crescimento e geração de empregos da economia. Dessa forma,
ações para dar sustentabilidade às despesas públicas não são um fim em
si mesmas, mas o único caminho para a recuperação da confiança, que
se traduzirá na volta do crescimento. A raiz do problema fiscal do Go-
verno Federal está no crescimento acelerado da despesa pública primá-
ria. No período 2008-2015, essa despesa cresceu 51% acima da inflação,
enquanto a receita evoluiu apenas 14,5%. Torna-se, portanto, necessário
estabilizar o crescimento da despesa primária, como instrumento para
conter a expansão da dívida pública. Esse é o objetivo desta Proposta de
Emenda à Constituição. (MEIRELLES; OLIVEIRA, 2016, p. 4)

Entretanto, congela-se por vinte anos os gastos públicos em educação, saúde


e segurança pública, e nada garante que gere crescimento econômico. Portanto,
diante de uma crise política institucional a aprovação de um projeto que instaura
um novo regime fiscal carece de legitimidade.
O governo obteve de forma rápida a aprovação da nº PEC 241/55 tornan-
do-a emenda constitucional. Seu trâmite foi feito às pressas, tanto pela Câmara
dos Deputados quanto pelo Senado Federal, sem o devido exaurimento do debate
acerca de seu conteúdo e futuras repercussões, além de que, não houve uma escuta
devida da vontade da população, que é quem sofrerá diretamente com o seu vigor.
Investimentos em áreas essenciais-saúde, educação e assistência social- estarão
limitados conforme a emenda. Fortemente criticada por seu conteúdo, que visa estag-
nar os gastos essenciais à população durante vinte anos, a atual emenda é alvo de críticas
de juristas e cientistas políticos brasileiros. Evidenciando a incongruência da medida, o
professor de Direito Constitucional da PUC/SP, Luís Guilherme Arcário Conci, expõe
que a PEC representará um retrocesso no âmbito social, pois “Essa emenda estabelece
limites futuros sem antever uma realidade que pode se transformar. Antecipar em 20
anos despesas sem saber as transformações pelas quais a sociedade vai passar, significa
estabelecer um prognóstico que pode se mostrar equivocado” (JUSTIFICANDO CAR-
TA CAPITAL, 2016, http://justificando.cartacapital.com.br).
Adriano Pilatti, professor de Direito Constitucional da PUC/RJ, por sua
vez, manifestou em suas redes sociais que:

proibir aumento real da despesa pública por vinte anos, sem crescimen-
to zero da taxa de natalidade, equivale a suprimir uma geração, atrofiar
os serviços públicos, denegar acesso à nutrição, ao saneamento, à segu-
rança, à justiça, à cultura e outros bens da vida. É uma decisão genocida,
tão cruel quanto desvincular os benefícios previdenciários do reajuste

73
“Temerosas transações”: ensaios sobre o golpe recente no Brasil

do salário mínimo, o que nada mais significa do que condenar aposen-


tados e pensionistas à indigência, à doença, à humilhação e à morte.

Segundo Pillatti não apenas o reajuste inflacionário não será o suficiente para
abarcar todas as demandas sociais tornando os aparatos públicos ainda mais obsole-
tos e incapazes de suprir as necessidades do povo, que em situações de crise econômi-
ca, dependem ainda mais dos serviços públicos. Ressalta-se que com o congelamento
dos gastos a arrecadação não parará de acontecer e o dinheiro, que antes seria des-
tinada para os gastos essenciais a população, deverá ser alocado em outros setores.
Este é mais um ponto em que a emenda viola a carta magna de 1988, tendo em vista
que a constituição estabelece uma ordem de prioridades para a destinação de verba,
sendo os direitos fundamentais seu primeiro ponto de parada.
Ronaldo Jorge Araújo Vieira Junior, consultor legislativo do Senado Federal
na área de direito constitucional, administrativo, eleitoral e partidário, posicionou-
se em nota técnica contrária a PEC, quando afirma que “Eliminar, como pretende a
PEC nº 55, de 2016, a possibilidade de o Chefe do Poder Executivo – legitimamente
eleito pelo povo, por intermédio do voto direto, secreto, universal e periódico –
definir o limite de despesas de seu Governo significa retirar-lhe uma de suas prin-
cipais prerrogativas de orientação, direção e gestão” (MURAKAWA; LIMA, 2016,
http://www.valor.com.br).
Para Ronaldo, a emenda significa atar as mãos e impedir o chefe do poder
executivo de fixar suas diretrizes e definir suas estratégias durante o exercício de seu
mandato, impedindo-o de exercer com plenitude o mandato que lhe foi conferido a
partir da soberania popular, prevista no parágrafo único do art. 1º da Constituição
Federal/88. O consultor expõe também o artigo 60, parágrafo 4º da Carta Magna, que
explana que não se pode ser “objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a
abolir” a “forma federativa do Estado”, o “voto direto, secreto”, “universal e periódico”,
a “separação dos poderes” e os “direitos e garantias individuais”, apontando que existe
uma violação dessas quatro “cláusulas pétreas” inserida na PEC nº 55/2016, agora já
vigendo como Emenda Constitucional 95. Ressaltando-se, portanto, que qualquer
tentativa de violação às cláusulas pétreas, mesmo que não sejam feitas de forma dire-
ta, devem ser prontamente apontadas como inconstitucionais.
Luiz Felipe Miguel, Doutor em Ciência Política, e professor da UNB, é um
dos cientistas políticos brasileiros mais influentes na análise da conjuntura atual.
Segundo Miguel (2016), a PEC 241/55 é a tentativa de engessar as políticas do Es-
tado brasileiro por vinte anos, isto é, por cinco mandatos presidenciais- feita por
um presidente que não conquistou nenhum mandato. Portanto, considera que esta
PEC que muda profundamente o texto constitucional carece de legitimidade, uma
vez que, foi proposta por um presidente sem o aval popular, assim como não foi
fruto de amplo debate com a sociedade e o Congresso.

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Lorena Madruga Monteiro, Luciana Santana (organizadoras)

Miguel destaca também que a aprovação da PEC nas duas casas legislativas
revela a falência da representação política no Brasil, uma vez que as preferências
dos eleitores não foram consideradas, mas sim, dos setores econômicos. Portanto,
segundo Miguel (2016) “[...] é uma emenda à constituição, pelo qual um governo
carente de legitimidade quer definir as políticas púbicas por 20 anos. A votação
foi feita às pressas, sem qualquer tipo de debate- nem mesmo no Congresso- e sob
uma densa camada de desinformação”.
As posições de Miguel acerca dessa matéria refletem a posição da maioria dos
cientistas políticos brasileiros refletida na Moção de repúdio à PEC 241/55, promo-
vida pela Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais,
em que considera “que qualquer país que ambicione o desenvolvimento soberano
e autossustentável deve priorizar os investimentos em ciência e tecnologia e educa-
ção- e não o rentismo e o ajuste fiscal em detrimento de políticas sociais.26” 
Verifica-se que na PEC 241/55 o debate muitas vezes não foi exaurido e dis-
cutido o suficiente, tendo assim, muitas vezes, a argumentação jurídica e política
sendo suprida por uma justificativa de interesses partidários que se esconde por
trás da proposta de emenda. Neste caso específico, constatou-se que os parlamen-
tares a favor da PEC não se importaram com o apelo popular, tanto que a pesquisa
feita no portal e-cidadania, no site do Senado, demonstrou que a população era
contrária a PEC, além de manifestações ocorridas em desfavor da mesma.
Portanto, é preciso salutar a importância que o debate acerca dessas propostas de
emendas representa e como os parlamentares precisam escutar tanto especialistas das
áreas que serão afetadas quanto à população em si, visto que eles são representantes do
povo. Ademais, é preciso preservar os direitos sociais já conquistados nos últimos anos
de aprofundamento da democracia no Brasil, ao menos em tese, de forma a procurar
outras soluções para a melhoria econômica do país sem que, necessariamente, precise
restringir os gastos nas áreas da saúde, educação e dos programas sociais.

Considerações finais

A análise da tramitação da PEC 241/51 e de sua repercussão jurídica e social


permite compreender o processo de desdemocratizaçao e de crise institucional em
curso no Brasil. Claro que a aprovação da PEC 241/51 é apenas um aspecto nesse
amplo processo no Brasil. O que se verifica, em termos de desdemocratizaçao, no
sentido atribuído por Tilly, é que a manifestação e vontade popular, traduzida por um
lado, na posição dos movimentos sociais, e por outro, na fala de especialistas, foi rom-
pida no processo legislativo de aprovação da PEC dos gastos, como ficou conhecida.

26 Sobre isso, ver: ANPOCS (2016, http://www.anpocs.com).

75
“Temerosas transações”: ensaios sobre o golpe recente no Brasil

Mesmo que ainda seja incipiente pensar o caso brasileiro nos quadrantes
sugeridos por Charles Tilly, uma vez que isso demandaria uma profunda análise
histórica da formação política e social brasileira, é possível pensar num enfraque-
cimento profundo das capacidades democráticas brasileiras em curso após o golpe
institucional que destituiu Dilma Rousseff do governo brasileiro.

76
Lorena Madruga Monteiro, Luciana Santana (organizadoras)

REFERÊNCIAS

BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo. 5. ed. São


Paulo: Saraiva, 2015.

BRASIL. Constituição Federal de 1988. Promulgada em 5 de outubro de 1988.


Emenda constitucional. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
constituicao/Emendas/Emc/emc95.htm> . Acesso em: 23 abr. 2017.

CÂMARA DOS DEPUTADOS DO BRASIL. Proposta de Emenda constitucional.


Disponível em: <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?i-
dProposicao=2088351>. Acesso em: 23 abr. 2017.

COUTO, C. G.; ARANTES, R. B. Constituição, governo e democracia no Brasil.


Revista Brasileira de Ciências Sociais,  São Paulo,  v. 21, n. 61, jun, 2006. p. 41-62.

VIEIRA, Ronaldo Junior. As Inconstitucionalidades Do “Novo Regime Fiscal”


Instituído Pela Pec nº 55, de 2016. Boletim Legislativo, Senado, v. 53, nov. 2016.

JURISTAS comentam PEC 241 e apontam os graves retrocessos que ela represen-
ta. Justificando Carta Capital, São Paulo, out. 2016. Disponível em: <http://justi-
ficando.cartacapital.com.br/2016/10/10/juristas-comentam-pec-241-e-apontam
-os-graves-retrocessos-que-ela-representa/>. Acesso em: 18 abr. 2017.

MURAKAWA, F.; LIMA, V. Consultor do Senado diz que PEC do gasto é in-
constitucional. Valor, nov. 2016. Disponível em: <http://www.valor.com.br/po-
litica/4768267/consultor-do-senado-diz-que-pec-do-gasto-e-inconstitucional>.
Acesso em: 15 ago. 2017.

SENADO FEDERAL. Consulta pública PEC 55/2016 proposta de emenda à cons-


tituição nº 55 de 2016. Disponível em: <https://www12.senado.leg.br/ecidadania/
visualizacaomateria?id=127337&voto=contra>. Acesso em: 28 jun. 2017

SESSÃO extraordinária nº 251. Disponível em: <http://www2.camara.leg.br/ativi-


dadelegislativa/plenario/chamadaExterna.html?link=http://www.camara.gov.br/
internet/votacao/mostraVotacao.asp?ideVotacao=7214&tipo=partido>. Acesso
em: 28 jun. 2017

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“Temerosas transações”: ensaios sobre o golpe recente no Brasil

SESSÃO extraordinária nº 274. Disponível em:<http://www2.camara.leg.br/ativi-


dadelegislativa/plenario/chamadaExterna.html?link=http://www.camara.gov.br/
internet/votacao/mostraVotacao.asp?ideVotacao=7252&tipo=partido>. Acesso
em: 28 jun. 2017.

Tilly, Charles. Democracia. Petropolis, Vozes, 2013.

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Lorena Madruga Monteiro, Luciana Santana (organizadoras)
6
O BRASIL VIVE SEU NOVO TRANSE

Emerson do Nascimento
Luciana Santana

“E a Terra entrou em transe e/


No sertão de Ipanema /
Em transe e /
No mar de Monte Santo” (Caetano Veloso)

Há exatos cinquenta anos era lançado Terra em transe. O clássico de Glau-


ber Rocha discutia o cenário político nacional pós-golpe de 1964 e trazia à tona
a sensação de frustração e de imobilidade que grassou as esquerdas à época. “Até
quando suportaremos?”, esbraveja o personagem Paulo Martins, o poeta e jorna-
lista vivido por Jardel Filho, enquanto o político conservador e golpista, Porfírio
Diaz, interpretado por Paulo Autran, é coroado numa das mais antológicas e me-
moráveis cenas do cinema nacional. Trata-se de uma leitura polêmica e dramática
do momento político brasileiro, mas é também uma metáfora que transcende seu
contexto e perfaz uma interpretação sobre os modos e as formas de se fazer política
no Brasil. Passadas cinco décadas, é impossível não pensarmos nos paralelismos
possíveis entre aquele momento e o atual, afinal os arquétipos que permeiam a cena
política brasileira e a metáfora de uma nação submersa sob uma espécie de grande
transe ainda se aplicam e são deveras explicativos.
Como foi possível que o Estado fosse golpeado pelos militares sem maio-
res resistências? Por que não houve reação? Por que o povo se calou? Por que não

79
“Temerosas transações”: ensaios sobre o golpe recente no Brasil

reagimos? Do título à sua edição e montagem, o longa é uma resposta a esta ques-
tão – assistimos a tudo meio que embrenhados numa espécie de transe profundo,
paralisados, hipnotizados. Glauber carrega nas tintas para mostrar que chegamos
à modernidade, porém, ainda imersos no arcaico, no atraso. Nossa modernização
fora seletiva e, não por acaso, nossa esfera pública seria restritiva e incipiente, nosso
modo de fazer política ainda é fustigar o opositor, o que seria, na fala de um soció-
logo do nosso tempo, a nossa maior singularidade (SOUZA, 2000).

Fonte: Terra em Transe (1967).27

A despeito das diferenças contextuais, os personagens e as situações postas em


tela pelo diretor de Terra em transe, não por acaso, parecem se repetir hoje. A alegoria
de Eldorado não nos deixa mentir. A ideia mítica de uma terra banhada a ouro, o cená-
rio de todas as possibilidades que emprenhou o imaginário de todos os conquistadores
e saqueadores desde o século XVI é uma referência atemporal à terra que se materiali-
za como uma promessa constante de realização futura – aqui, naturalmente, qualquer
semelhança não é mera coincidência. Eldorado é síntese política, cultural, econômica,
social e religiosa do Brasil de ontem e de hoje. Dentre os memoráveis personagens que
saltam da película de Glauber, há que se destacar o idealista Paulo Martins, o poeta e
jornalista que, num primeiro momento, alia-se ao político conservador, Porfírio Diaz e
depois, ao vereador progressista eleito governador, Felipe Vieira.
Há na trajetória de Paulo Martins, o protagonista-narrador do longa, uma
sucessão de frustrações. Primeiro frustra-se com Diaz ao perceber que seus ideais
progressistas não se materializarão pela via tecnocrática e acaba por afastar-se dele

27 Em outra cena memorável do filme, Glauber carrega nas alegorias quando, durante o comício do can-
didato populista Vieira à presidência da república de Eldorado, o povo, caracterizado como despreparado,
despolitizado e incapaz de exercer seu papel político é calado, acusado de extremista, sufocado e morto pela
turba dos presentes enquanto um partidário de Viera pronuncia um discurso inócuo contra as esquerdas ao
som estridente de muito samba e pandeiro.

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Lorena Madruga Monteiro, Luciana Santana (organizadoras)

em favor da sua liberdade pela criação de uma poesia mais política e engajada. Dis-
tante da capital, na província de Alecrim, Paulo conhece a militante Sara e resolve
dedicar-se à campanha eleitoral de Vieira, em função da sua agenda reformista.
Uma vez eleito, os acordos estabelecidos com a elite latifundiária obrigam Vieira
a quebrar suas promessas de campanha e reprimir os camponeses com as forças
policiais. Desiludido, Paulo retorna a capital e submerge numa grave crise existen-
cial. Convidado por Sara a promover oposição à Diaz, Paulo resolve produzir um
filme para expor as falcatruas e traições de Diaz. Atacado agora por Diaz, Paulo
se filia à promissora campanha eleitoral de Viera para presidência de Eldorado. O
povo participa de forma eufórica da campanha de Vieira, que passa a assustar a ala
conservadora, que decide, preventivamente, executar um golpe de estado. Nestes
momentos finais, vemos Paulo entregando uma arma a Vieira, que se ressente de
resistir. Paulo agora se frustra pela segunda vez. Nas cenas finais, enquanto Paulo
morre com o fuzil erguido, Diaz é coroado com toda pompa e circunstância.

Fonte: Terra em Transe (1967) 28

28 Distante de qualquer didatismo, o filme celebra o caos como metáfora do contexto político e social brasi-
leiro após a intervenção militar de 1964. No cartaz do filme acima a tradução em arte das questões postas ao
público: a explosão de ideias e a desordem vertida na bricolagem de imagens que compõem o segundo pla-
no do cartaz e, no primeiro plano, ao centro, sob o fundo vermelho, na primeira metade, a imagem do jor-
nalista e poeta Paulo Martins, agora feiro guerrilheiro de arma ao punho. Na segunda metade, logo abaixo,
a imagem sensual de Sílvia, a representação antagônica de Martins – a personagem apática, fria e sem falas.

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“Temerosas transações”: ensaios sobre o golpe recente no Brasil

O filme foi extremamente mal recebido à época, sobretudo pelas esquerdas.


Quiseram ver no longa do cineasta baiano uma espécie de romantismo guevarista,
uma ode à luta armada. Bobagem. Poucos críticos perceberam que Terra em transe
tratava menos de um prognóstico político e mais de uma espécie de autocrítica do
próprio diretor. As similaridades entre Paulo e o próprio Glauber, per si, já dispen-
sam maiores comentários, mas o que poucos notaram naquele momento foi que o
diretor colocava em xeque a fórmula quixotesca das nossas esquerdas, as vias pelas
quais julgávamos possível construir uma sociedade mais equânime.
A trajetória de encantamentos e desencantamentos pela qual passa Paulo cha-
ma nossa atenção para o quanto seus ideários de igualitarismo e justiça social vão se
perdendo a cada desencanto. Nesse sentido, a vida de Paulo parafraseia a trajetória
de ilusões políticas sistemáticas com que se conformaram as esquerdas brasileiras até
então. Primeiro o desencantamento com a falência do projeto da revolução nacional-
democrática que deveria casar através de um grande acórdão a burguesia nacional e a
classe trabalhadora sob a liderança do grande líder caudilho e autoritário. Tudo como
única e última forma de superar os obstáculos pré-capitalistas próprios da nossa for-
mação socioeconômica. Depois, o desencanto com o prelúdio do projeto nacional-
desenvolvimentista, revestido de valores urbano-industriais, do carisma populista,
do nacionalismo, marcado pela ascensão dos trabalhadores, mas que se encerrou de
forma abrupta com a intervenção militar de 1964.

Fonte: Terra em Transe (1967) 29.

29 Paulo Autran em cena antológica do cinema nacional – o coroamento do personagem Porfírio Díaz, o
político conservador e golpista de Terra em Transe: “Aprenderão! Aprenderão! Dominarei essa terra! Bota-
rei estas histéricas tradições em ordem pela força, pelo amor da força! Pela harmonia universal dos infernos,
chegaremos à civilização”.

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Lorena Madruga Monteiro, Luciana Santana (organizadoras)

O personagem de Paulo é, ao mesmo tempo, metáfora e síntese das esquerdas


no Brasil. E é para essa condição que o diretor baiano chama atenção – a esquerda
segue tomada como que por uma espécie de transe. O transe contamina as perso-
nagens, as campanhas eleitorais, o golpe de Estado e os projetos políticos. No que
pese as distinções entre as conjunturas políticas passada e recente, há ainda mui-
to do que falar sobre a ideia de transe nas esquerdas brasileiras. Essa situação de
transe promove, de acordo com a provocação de Glauber, alucinações, a perda da
consciência, uma espécie de êxtase que oscila entre o realismo e o sonho.
A perda da conexão entre o projeto político de uma sociedade mais justa e
igualitária e os meios possíveis para sua consecução. Há que se julgar, para alguns,
que pelos mais nobres fins, pode-se tudo para conquistá-los. Outros, mais cristãos,
dirão que os fins quase nunca justificam os meios, mas se não há espaço para inven-
tar, para transformar, o que resta aos idealistas? Essa fórmula cervântica de encan-
tamento-desencantamento é partilhada por muitos no filme, mas é em Paulo que
se materializa com maior propriedade: “Eis quem é o pai da pátria! [referindo-se ao
oportunismo de Diaz]”. “Está vendo Sara, quem era o nosso líder? O nosso grande
líder? [expondo sua decepção com Vieira por não resistir ao golpe de Diaz]”. “O
povo não pode acreditar em nenhum partido”.
Em 1964, o medo da hegemonia das esquerdas e da ascensão dos traba-
lhadores propiciou o golpe de Estado empreendido pelos militares e que duraria
21 longos anos. Retomando a democracia em 1985, vivenciamos uma hegemonia
eleitoral das esquerdas, com a vitória do Partido dos Trabalhadores nas eleições
presidenciais nos anos de 2002, 2006, 2010 e 2014. De lá para cá muita coisa mu-
dou, mas o arranjo político, que a maioria dos cientistas políticos julgava sólido e
blindado, mostrou-se tão frágil e precário quanto antes.
A derrubada da presidenta Dilma, que teve como marco inicial a aceitação
da denúncia pelo presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, em de-
zembro de 2015, através de um processo questionável, pôs em destaque aquilo que
antes julgávamos resolvido – os derrotados não respeitaram o resultado soberano das
últimas eleições.
O sistema político sofreu, sem qualquer sombra de dúvidas o seu maior aba-
lo e, desde muito cedo, vários analistas da cena política nacional foram categóri-
cos em afirmar: é o fim da chamada Nova República. Abriu-se um campo aberto.
O jogo foi tomado por uma profunda sensação de insegurança jurídica. Direitos
sociais há muito ditos consolidados foram revirados e a voz e a vez de minorias e
outros grupos historicamente, postos em condição de subalternidade na história
brasileira recente, foram materialmente ameaçadas. A elite política e econômica
branca, machista, cristã e racialista retomou sua pretensa sensação de superiorida-
de sobre todos. O monstro, que parecia a cada dia figuração de um passado distan-
te, mostrou que apenas adormecia em berço esplêndido.

83
“Temerosas transações”: ensaios sobre o golpe recente no Brasil

Nossas elites nunca foram democráticas no sentido substantivo da pala-


vra, eis a constatação que relutamos em crer, talvez porque sigamos embrenha-
dos em transe. Não há democracia plena sem igualdade de condições e oportu-
nidades de preferências30.
Acreditamos que essa face arcaica e primitiva havia se domesticado através
da prática democrática, até assistirmos ao circo de horrores de uma Casa Legislati-
va composta na sua grande maioria por deputados envoltos em grandes esquemas
de corrupção, desde então públicos, deporem uma presidenta democraticamen-
te eleita e sob a qual não pairava nenhuma acusação de corrupção, em nome de
“Deus”, da “família”, “pela inocência das crianças”, “contra a corrupção” e até mes-
mo “em favor do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra”, o único militar indiciado
pela Justiça brasileira pelo crime de tortura. Ficou patente, ante aquele cenário, e
em todos os capítulos que se seguiram ao circo, que nossa elite política nunca se
acostumou bem às regras do jogo político. Para eles a democracia ainda é um regi-
me que traz em si um risco premente de subverter a hierarquia “natural” das coisas.
Os avanços sociais advindos da gestão petista, a extensão da universidade àqueles
que nunca imaginaram integrá-la, a ampliação das políticas de assistência social e
de transferência de renda, a política econômica de emprego e de elevação do salário
mínimo e a erradicação da miséria, somados às transformações no plano cultural
e simbólico de grupos e minorias marginalizados em termos do autorreconheci-
mento dos sujeitos como seres portadores de direito, incomodaram e muito a elite
dirigente nacional.
Qualquer paralelismo entre o golpe que depôs a presidente Dilma e o golpe
militar de 1964 não é mera coincidência, considerando as devidas peculiaridades.
Não reunimos hoje as condições estruturais e conjunturais para uma ditadura aber-
ta no Brasil. Não há confluências, nem favorecimentos, no cenário internacional,
ademais, a política tornou-se algo ainda mais complexo, muito aquém da capacida-
de de gestão das Forças Armadas.
Não obstante, a ruptura institucional, promovida em 2015, parece inaugurar
uma democracia menor que o entendido como mínimo para sua realização – fala-
mos aqui de uma democracia cujo, aquilo que lhe era tomado como precondição
mínima para sua efetivação, o sufrágio eleitoral e o respeito à decisão das urnas,
parece oscilar ao prazer direto das classes políticas e econômicas. Essa elite parecia
acomodada já às regras democráticas, mas a ascensão de uma nova classe trabalha-

30 O termo “democracia” em Dahl significa um sistema político que tem como uma de suas características
a qualidade de ser prestativo aos seus cidadãos e são três as oportunidades plenas que os cidadãos devem
ter para que um governo possa ser então, responsivo a eles: a) a oportunidade de formular preferências; b)
a oportunidade de expressar suas preferências a seus cidadãos e ao governo por meio da ação individual e
coletiva e c) a oportunidade de ter suas preferências igualmente consideradas na conduta do governo, ou
seja, consideradas sem discrimina o decorrente do conteúdo ou da fonte da preferência.

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Lorena Madruga Monteiro, Luciana Santana (organizadoras)

dora, a partir da gestão petista incomodou-a de uma forma que só encontramos


precedentes às vésperas do golpe de Estado de 1964. A impressão mais imediata
que se tem é que as classes dirigentes até toleraram o sufrágio universal e seus re-
sultados, até que isto não incomodou a estrutura hierárquica e desigual da nossa
sociedade. A ameaça aos seus privilégios fê-la revoltar-se contra o PT e, ancorada
no capital financeiro nacional e na mídia, promover um processo de deslegitima-
ção de governos democraticamente eleitos e de criminalização do próprio PT.
“Temos que dar um golpe, virar a mesa, fazer a história”. A frase cuja autoria
dificilmente seria questionada hoje se atribuída a um Romero Jucá ou mesmo ao
próprio Michel Temer é, na verdade, proclamada por Diaz, no longa de Glauber,
diante da possibilidade de ser derrotado nas urnas por Vieira, o político populista
apoiado pelo povo. Depois, Diaz afirma: “Como feras famintas [o povo], eles dese-
jarão sempre mais e mais, até o seu próprio sangue. O povo no poder, isso nunca,
entende? Nunca. Pela liberdade morreremos, por Deus, pelo poder”. O diretor cap-
tou com uma sensibilidade ímpar e traduziu em cenas aquele que parece ser o pa-
vor congênito da elite política e financeira nacional, a saber: o medo material e sim-
bólico que as regras da hierarquia social sejam quebras. E para restaurar a ordem,
seja no cenário de intrigas de Eldorado, seja na cena política recente brasileira, vale
desrespeitar o resultado das urnas e vale quebrar as regras do jogo democrático
em nome dos interesses pessoais e de classe, pois não fora esse mesmo o sentido
do diálogo vazado entre o senador Romero Jucá (PMDB-RR) e Sérgio Machado
(ex-presidente da Transpetro) em maio de 2016:

Romero Jucá: “– Conversei ontem com uns ministros do Supremo. Os


caras dizem ‘ó, só tem condições de... sem ela [Dilma]. Enquanto ela
estiver ali, a imprensa, os caras querem tirar ela, essa porra não vai parar
nunca’”.
Sérgio Machado: “– Rapaz, a solução mais fácil era botar o Michel
[Temer]
É um acordo, botar o Michel, num grande acordo nacional”.
Romero Jucá: “– Com o Supremo, com tudo”.

Mas para entendermos o novo golpe de Estado perpetrado pela direita brasi-
leira não basta citarmos que estes sempre foram pouco afeitos à institucionalidade.
É preciso também realizar uma espécie de reflexão sobre nosso autoengano. Com
algum atraso o PT percebeu que as eleições não resolvem os conflitos políticos,
bem como, entenderam que quem ganha as eleições, necessariamente, não ganha o
apoio político necessário para executar seu programa de governo.
Na sua trajetória errante, as esquerdas brasileiras sempre apoiaram seu pro-
jeto de transformação social em algum moinho de vento que, logo depois, se des-
fez frente à crueza do realismo político – se entre 1948 a 1964 vislumbramos essa
espécie de sonho de autonomia popular que logo se desfez com o cerceamento das

85
“Temerosas transações”: ensaios sobre o golpe recente no Brasil

liberdades constitucionais advindas através de golpe de Estado, entre 2002 e 2015


parece que não fizemos muito diferente e as consequências foram igualmente ne-
fastas. A partir da primeira vitória de Lula para a presidência, o PT assumiu publi-
camente que os interesses do capital financeiro não deveriam ser enfrentados, mas
acomodados a partir de uma grande coalizão. Essa atitude colocou em evidência,
inclusive, a necessidade de dialogar e incorporar parcelas do que havia de pior e
mais retrógrado no cenário político nacional. As velhas aves de rapina se integra-
ram ao novo projeto político de poder que se configurava.
Como promover o novo trazendo para si aquilo que sintetizava o modo
mais vil de fazer política no Brasil? Naturalmente, manter sujeitos de parâmetros
e princípios políticos tão distintos sob um mesmo guarda-chuva teria um preço e,
neste caso, o sentido do termo foi literal. A necessidade de compra de apoio polí-
tico para aprovação de projetos nunca foi novidade para qualquer analista do sis-
tema político brasileiro. Todavia, a fenda aberta pelo PT, a partir da sua política de
conciliação entre o capital financeiro e os velhos caciques políticos em prol de um
projeto de sociedade ofereceram, de certa forma, os instrumentos pelos quais seus
opositores, depois apoiadores, e depois, mais uma vez, opositores, usariam para en-
cerrar esse projeto social e, logo em seguida, criminalizar, não somente o PT, como
também todo movimento de esquerda e até mesmo a reflexão crítica neste país.
A partir de 2002, Lula, redirecionando a agenda política do PT, emprenhou
de pragmatismo e realismo a situação político-eleitoral do partido como uma es-
pécie de vanguarda da esquerda nacional. Os treze anos de gestão do partido à
frente da presidência, definitivamente, mudaram a cara do país. Com todas as suas
contradições é um feito inegável. Contudo fica patente que aquilo que foi a força do
lulismo [o seu pragmatismo] também foi o seu principal limite. Naturalmente, é fá-
cil e confortável, a posteriori, afirmar que essa conciliação promovida pelo partido
desde a corrida eleitoral quando do primeiro mandato de Lula daria errado sob al-
gum aspecto, contudo, perguntamos: havia outro modo? A experiência petista não
deve ser desprezada ou descartada em função de seus equívocos, ela deve, antes de
tudo, ser problematizada pelo pensamento de esquerda.
Ainda paira sobre nós, de certa feita, a áurea do transe. Acreditamos que as
transformações econômicas da matriz social seriam suficientes e vimos que não.
A direita nacional com o apoio da mídia e o suporte do próprio aparelho jurídico,
posto em suspensão por inúmeras vezes ao largo dos vazamentos de estudas e da
corrida das delações premiadas, tomaram o Estado de assalto mais uma vez. Não
resistimos, inertes que estávamos, tal qual 1964. Vendeu-se ao povo a ideia de que
o impeachment de Dilma era a solução para todos os problemas. Criminalizou-se
o PT e atacou-se todas as realizações populares dos mandatos de Dilma e Lula.
Michel Temer assumiu a presidência, comprometido publicamente, desde a sua
primeira recomposição ministerial, com um estado de coisas claramente antigo e

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Lorena Madruga Monteiro, Luciana Santana (organizadoras)

conservador. A denúncia do procurador-geral da República, Rodrigo Janot, res-


ponsabilizando o nome do usurpador do Planalto em prática de corrupção passiva
e em prática de obstrução da justiça foi barrada mediante a compra deslavada de
apoio parlamentar. Lembrando: a Câmara que destituiu a presidenta Dilma, sob a
qual não recaia nenhum crime de responsabilidade fiscal, mas tão somente chama-
das pedaladas fiscais, as quais não passam de manobras fiscais não previstas consti-
tucionalmente como crime de responsabilidade, mostraram-se contrários à denún-
cia apresentada pela Procuradoria-geral da República contra Michel Temer. Desta
vez, curiosamente, a mesma Câmara que destituiu a presidente sob a bandeira do
combate à corrupção, decidiu pela rejeição da investigação contra o presidente em
defesa da estabilidade política do país.

Fonte: Agência Brasil 31

Passados cinquenta anos do filme de Glauber, há algo nele que ainda o faz
atual e problematizador da ordem política brasileira – o duelo shakespeariano e
aflitivo das esquerdas entre o idealismo social e o ceticismo rigoroso. Esse dualis-
mo reflete-se na personagem de Paulo, o poeta cansado das palavras, mas também
atravessa o filme do começo ao fim na sucessão de cenas de profundo lirismo ar-

31 Declaração pública de Michel Temer em maio de 2017 a respeito da sua incriminação, mediante divul-
gação do áudio da delação premiada de Joesly Batista, dono de uma das principais e maiores empresas do
agronegócio no Brasil: “Aviso que não renunciarei. Não vou renunciar porque não tenho nada a esconder
[...] A investigação do STF será o território onde surgirão todas as explicações e no Supremo demonstrarei
minha inocência. Não renunciarei. Repito: não renunciarei [...] Exijo investigação plena e rápida, tão rápidas
quanto as investigações clandestinas”.

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“Temerosas transações”: ensaios sobre o golpe recente no Brasil

rebatadas por sequências de explosões de violência. Ouvimos ao final, rajadas de


metralhadoras em meio à melodia de Villa-Lobos.
É, de fato, um filme sobre a degradação do ideal no mundo real, sobre os
limites de realização de um sonho, sobre como conciliar estes extremos. Está ali, em
preto e branco, as vicissitudes e os limites de um projeto político de transformação
da nossa sociedade escravista e hierárquica – o embate entre o político e o pessoal.
O processo tardio e seletivo de modernização da sociedade brasileira criou as con-
dições que molda a lógica autoritária da práxis política da nossa classe dirigente,
a qual, ao longo dos últimos 24 meses, não hesitou em dar demonstrações fartas
do seu desprezo pelo povo e mostrar que entende a política como uma atividade
exclusivamente palaciana ou de bastidores. O dilema insolúvel que a personagem
de Paulo encontra no governador Vieira, espremido entre as promessas eleitorais e
os compromissos assumidos com a oligarquia são sintomáticos de que, mesmo pas-
sadas cinco décadas, nos falta autocrítica e como que em transe, parecemos ainda
incapazes de perceber o que se passa ao nosso redor.
Agora, quando vivemos uma fase explícita de desmonte de uma série de
conquistas históricas e sociais, a cabo da ação coordenada e engenhosa da nossa
classe dirigente, da grande mídia e de setores do Judiciário, quando pesquisas de
opinião apontam que a popularidade de Michel Temer continua em queda e sua
aprovação por parte do eleitorado beira os 3%, faz-se mais crítica ainda à situação,
tendo em vista que sua legitimidade é deveras questionável para empreender uma
gestão diametralmente contrária à plataforma de campanha da presidenta Dilma.
Temer de assalto, em quase dois anos de governo, reprimiu movimentos so-
ciais, cortou gastos com programas sociais, reformou e asfixiou o ensino público,
alterou direitos trabalhistas, cortou investimentos públicos em saúde e educação
e ainda espera aprovar uma reforma previdenciária que atingirá sobremaneira o
trabalhador comum. Não bastasse, seu governo ainda retirou da Petrobrás a obri-
gatoriedade de exploração de 30% do pré-sal e abriu caminho para especulação
de empresas estrangeiras que agora estão aptas a explorar uma riqueza estratégica
para o desenvolvimento nacional. Flexibilizou as regras de licenciamento ambien-
tal, lançou propostas de redução de terras indígenas, liberou o uso de agrotóxicos,
tudo para agradar, no balcão de negócios, o suporte das bancadas conservadoras.
A população, mesmo frente ao ataque aos seus direitos e interesses, dividi-
da entre a frustração e a necessidade de sobreviver com o retorno do fantasma do
desemprego e da miséria, segue indiferente. Assim como no filme de Glauber, o
povo figura como uma alegoria, a figuração de um ritual [o democrático, talvez],
descartado e sufocado quando toma a palavra. Em alguns momentos o povo é visto
no filme como “ignorante, apático e analfabeto”, em outros, é interpretado a partir
de uma concepção excessivamente romântica. Talvez esteja aí uma última pílula de
Glauber para a inteligência nacional, afinal quem é o povo e o que esperar dele? O

88
Lorena Madruga Monteiro, Luciana Santana (organizadoras)

erro repetido das esquerdas, ontem e hoje, foi entender que os excluídos no Brasil
são apenas pobres economicamente e que bastaria redistribuir a renda para trans-
formar essa realidade. Mais, acreditaram, sub-repticiamente, que poderiam contar
com uma “boa burguesia” nesse projeto. Foram enganadas ontem e hoje. Comete-
ram o mesmo erro – creditaram à elite financeira desse país a esperança na mudan-
ça social e acreditaram que era possível recriar uma sociedade igualitária sem uma
reflexão mais profunda sobre o Estado, sobre a sociedade e, principalmente, sem
um pacto social genuinamente democrático.
Os ganhos materiais das classes populares não foram suficientes para im-
plantar uma noção crítica de cidadania entre aqueles que foram e se entenderam
desde sempre como excluídos e supérfluos. O golpe empreendido contra a presi-
denta Dilma foi também um golpe contra um projeto de sociedade em curso, foi
acima de tudo, uma intervenção “preventiva”, uma tentativa mal-acabada e torpe
de matar no berço a revolução cognitiva que possibilita a um país de origem es-
cravocrata, compreender que o filho do servente de pedreiro pode ser engenheiro,
que uma empregada doméstica possui direitos ou que frequentar aeroportos não é
uma exclusividade das classes enriquecidas às custas da especulação financeira ou
da classe média, mas um direito de todos. Talvez por isso, tal como em Terra em
transe, a população, mais uma vez, recepcione o novo golpe atônita, embasbacada,
perplexa e pior [no caso dos populares que apoiaram o impedimento da presiden-
ta], convencida de que as classes dirigentes desse país, que o Congresso mais venal
da história da nossa república, que a nossa mídia golpista ou que nossa casta jurí-
dica sectarista perseguem com destemor a corrupção e refundarão a moralidade
pública entre nós.
Em 1964 o golpe de realismo veio da caserna. Passados cinquenta e um anos,
quem diria, o golpe, que reluta mais uma vez em se assumir golpe, viria pela via legis-
lativa e pelas mãos daquela que deveria ser a guardiã da ordem constitucional: a casta
jurídica. Todavia, algo não mudou – o golpe foi, mais uma vez, uma resposta à ameaça
dos privilégios das classes dirigentes desse país. A explicitação dos conflitos de classes,
a partir das transformações advindas da ascensão social dos setores populares, amea-
çou o apartheid social sobre o qual se apoia a elite escravista brasileira que, para fazer
o trabalho “sujo” conclamou, através de um discurso cuidadosamente orquestrado
pela mídia, a classe média à ação e o resultado todos nós já acompanhamos.
A corrupção virou o vilão político, mas de nada se fala em reforma política,
posto que se entende que a corrupção é produto da má índole de alguns sujeitos
que precisam ser exorcizados, defenestrados ou banidos da vida pública brasileira.
O argumento é simplista e tão ordinário quanto a revolta extremista dos populares
que defendem a morte do ladrão de galinha, mas não possuem qualquer juízo de
valor sobre os sujeitos que promovem assaltos especulativos aos fundos de inves-
timentos públicos que impedem sua própria aposentadoria ou dos seus familiares.

89
“Temerosas transações”: ensaios sobre o golpe recente no Brasil

Antes, a violação de garantias individuais em favor da perseguição à corrupção


era mais que justificável, hoje, depois da presidenta deposta e do rearranjo político
promovido pelo seu vice então feito presidente, diz-se que a tal perseguição precisa
ser “estancada” sob pena de “corroer a própria elite política”. Assim, segue a novela
diária da Operação Lava Jato, personalizando e promovendo reduções maniqueís-
tas àquilo que é um problema de contornos muito mais complexos e estruturais.
A correspondência entre as intrigas em tela de Terra em transe e o contexto polí-
tico atual é ainda quase que integral. De um lado o que há de mais antigo e conservador
na política nacional, o autoritarismo em toda a sua expressividade. Do outro, o idealis-
mo ingênuo, orquestrado por uma boa vontade sem medidas em promover a mudança
na ordem social das coisas. Entre um lado e o outro, as esquerdas, tomada pelo transe,
embebidas de esperança, mas carente de realismo. No pano de fundo, o povo, a massa
dos excluídos do poder, a figurar em um ou noutro projeto político, seduzidos, ora pelo
poder carismático dos caudilhos, ora pelas promessas políticas das lideranças populistas.
A estratégia petista, de conciliar as velhas oligarquias políticas com o rentismo do ca-
pital financeiro em prol de uma agenda de comprometimento ampliado do orçamento
público com a maioria pobre da população, parece parafrasear a alegoria histórica que
Glauber monta sobre o cenário brasileiro pós-golpe de 1964. O modelo perseverou por
treze anos de gestão do PT à frente da presidência da república, mas parece que encon-
trou, definitivamente, seu limite. Infelizmente, a transformação de massas de excluídos
em cidadãos plenos de direito não fora concluída.
O Brasil saiu do mapa da fome e estendeu-se o mínimo de dignidade a trinta
e seis milhões de pessoas, contudo, o projeto foi abortado em curso, quando es-
tes sujeitos, dotados agora do mínimo necessário à sua sobrevivência, passavam
a se entender também como dignos de respeito, portadores de direitos e dotados
de capacidade econômica, política, de trabalho, etc. Porém, não queremos com
isso desmerecer a experiência petista – muito pelo contrário. É um fato notório
as transformações sociais promovidas pela experiência do PT. Algum limite mui-
to importante, se compararmos com 1964, foi ultrapassado. Apesar dos avanços
à galope da agenda de retrocessos, há do ponto de vista político, uma fratura do
eleitorado nacional que tende a se refletir nas eleições de 2018.
Certamente estes retrocessos não se apagarão como que por um passe de
mágica e há sempre de se duvidar que a direita apresente um projeto político para
esses novos setores populares que ascenderam recentemente, o que alimenta a ex-
pectativa que um candidato à esquerda venha a ganhar as eleições para presidente –
o que nesse momento se contata nas pesquisas de intenção de voto para o próximo
ano. Todavia, resta saber: levando em conta que ao que parece o resultado das urnas
lhe é pouco ou nada sagrado, se isso acontecer, como agirá a direita brasileira?

90
Lorena Madruga Monteiro, Luciana Santana (organizadoras)

REFERÊNCIAS

BOBBIO, Norberto. Democracia. In: BOBBIO, N.; Matteucci, N.; Pasquino, G.


Dicionário de Política. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2007.

BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Tradução de Fernando Tomaz. 4. ed. Rio


de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001.

DAHL, Robert. Poliarquia: Participação e Oposição. São Paulo: Editora Universi-


dade de São Paulo, 1997.

______. On Democracy. New Haven: Yale University Press, 1998.


ROCHA, Glauber. Revolução do Cinema Novo. Rio de Janeiro: Alhambra; Embra-
filme, 1981.

______. Terra em Transe. Brasil, 1967.

SOUZA, Jessé. A modernização seletiva: uma reinterpretação do dilema brasileiro.


Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 2000.

91
“Temerosas transações”: ensaios sobre o golpe recente no Brasil
7
GOLPE, MÍDIA E MOVIMENTOS SOCIAIS:
APRENDENDO A LUTAR COM AS ARMAS
DO “OUTRO”.

Walcler de Lima Mendes Junior


Pedro Simonard
Josbeth Correia Macário

Em entrevista recente (REDE TVT, 2017, www.youtube.com), o sociólogo


Jessé Sousa, comentando sobre seu próximo livro, em que traça um perfil da classe
média brasileira, afirma que esse extrato social se divide em três grupos distintos:
liberais (em termos econômicos), fascistas e de esquerda. A esquerda representaria
um grupo minoritário, os liberais expressariam um grande centro dessa categoria
social e os fascistas representariam espantosos 30% do total. Apesar da utilização
de redes sociais como Facebook ocorrer de forma quase proporcional entre os ex-
tratos da sociedade, quando se investiga a utilização da internet como um meio de
pesquisa e busca de informação, verifica-se um desequilíbrio significante.

Apesar de apresentar alto percentual de utilização, as redes sociais, en-


tretanto, estão em segundo lugar entre as atividades exercidas na inter-
net. A busca por informações foi a mais utilizada, apontada por 84%
dos usuários. Na classe A, esse percentual atinge 96% dos usuários e na
classe D e E, 64%. Também há diferença na comparação por grau de
instrução. Entre os que possuem nível superior, essa atividade foi citada
por 95% dos entrevistados. Por outro lado, 63% dos analfabetos ou das

92
Lorena Madruga Monteiro, Luciana Santana (organizadoras)

pessoas com baixo grau de alfabetização disseram ter buscado informa-


ção online nos últimos três meses (EBC, 2013, http://www.ebc.com.br).

Esse desequilíbrio, no que diz respeito à busca de informação, vai produzir


diferenças no uso da internet, principalmente, no tocante ao conteúdo acessado,
replicado e comentado. Segundo pesquisa do próprio Facebook no Brasil (FACE-
BOOK, 2015, https://www.facebook.com), quase metade da população brasileira é
usuária da mídia. Em outra pesquisa esse número ultrapassa a metade, chegando a
53% da população brasileira (ABA, 2017, http://www.aba.com.br). Porém, os con-
teúdos relativos ao que se busca, replica-se ou se comenta, variam bastante entre
os extratos sociais e, consequentemente, em relação à formação intelectual e pro-
fissional do usuário. Isto é, existe um grande grupo que acessa e comenta de forma
genérica quase todos os assuntos, esporte, cultura, política, sociedade. Porém, esse
mesmo grupo que comenta de forma genérica é pouco motivado a se informar ou
pesquisar na internet os mesmos assuntos que de forma rápida e genérica comenta.
Esse grande grupo prefere usar a mídia para fins de entretenimento, comunicação
com pessoas de interesse ou para consumo de produtos em plataformas de venda
on-line. Segundo esta mesma pesquisa existem diferenças não só no modo como as
classes sociais no Brasil usam as mídias sociais, mas também, diferenças relativas
à proporção de pobres, classe média e elite na sociedade comparada à presença
desses extratos sociais na rede. Essas diferenças refletem disparidades na formação
escolar-acadêmica dos usuários.

A pesquisa revela ainda que metade dos usuários de internet do país


completou o ensino médio, índice acima da média da população brasi-
leira, que é de 37%. Os internautas que possuem curso superior também
aparecem em proporção maior do que a da população: 29% dos inter-
nautas concluíram o ensino superior ao passo que na população total
do país esse índice é de 17%. Por outro lado, os usuários de internet que
estudaram até o ensino fundamental são minoria na rede (20%), mas
maioria no país (45%). (ABA, 2017, http://www.aba.com.br).

Os dados relativos à classe social apresentam outra desproporcionalidade


na comparação entre o número de pobres dentro da população e o número de po-
bres que acessam a rede, o mesmo vale para as demais classes.

Por classe, de acordo com a atualização do Critério de Classificação Econô-


mica Brasil, modelo que classifica economicamente a população brasileira,
em vigor desde 1º de janeiro deste ano, a classe A, que representa apenas
2% da população, possui 4% dos usuários de internet do país, enquanto
a maioria se concentra nas classes B (34%) e C (52%). Por outro lado, as
classes D/E representam 21% da população, mas reúnem apenas 10% dos
internautas. Ainda assim, significa que uma em cada cinco pessoas das clas-
ses D/E acessa a internet. (ABA, 2017, http://www.aba.com.br).

93
“Temerosas transações”: ensaios sobre o golpe recente no Brasil

O que se pode concluir do cruzamento desses dados é que existe uma pre-
sença na rede sensivelmente maior do extrato social referente à classe média bus-
cando informação, enquanto as classes populares teriam uma tendência a utilizar a
rede ou para entretenimento ou como veículo de comunicação entre pessoas de seu
círculo social, logo, com menos disposição a acessar assuntos relacionados à polí-
tica, ideologia, questões sociais, história, economia, ecologia, entre outros. Outro
dado relevante diz respeito ao uso de e-mail que é muito mais significativo entre as
classes A e B. Esse fato pode indicar uma maior disposição, entre indivíduos dessas
classes, em desenvolver uma comunicação própria através da escrita. Haveria então
uma coincidência entre os números relativos à formação intelectual do usuário e o
tipo de uso e conteúdo acessado. Esse cruzamento de dados pode indicar além do
perfil socioeconômico, uma maior ou menor disposição do usuário em se informar
para debater, escrever, comentar e se posicionar sobre assuntos políticos de forma
mais assertiva na rede social.

uso de e-mails é apontado como atividade exercida nos últimos três


meses por 70% dos usuários. A disparidade entre classes sociais, no
entanto é grande: classe A, com 94%, e classes D e E, com 46%. A
proporção decresce com a diminuição do nível de renda: na classe
B, 80% disseram ter enviado ou recebido e-mail, e na classe C, 63%.
[...]. (EBC, 2013, http://www.ebc.com.br).

Ao compararmos os dados apontados por Jessé Sousa, sobre o perfil ideo-


lógico político da classe média brasileira com os dados levantados pelas pesquisas
sobre o perfil dos usuários e o tipo de uso que fazem da rede, chegaremos ao resul-
tado de um padrão médio de usuário disposto a se informar e se posicionar sobre
assuntos relacionados à política, sociedade, ideologia, economia, história etc., ma-
joritariamente, pertencente à classe média, por sua vez, caracterizada por um perfil
conservador ou explicitamente fascista em sua maioria.
A internet e as mídias sociais, por extensão, tornaram-se plataformas que
estimulam um tipo de uso e um tipo de comunicação específicos. Comunicação
com trocas simultâneas em um espaço-tempo comprimido, textos, respostas e co-
mentários rápidos e curtos, frases de efeito, via de regra, marcadas pela repetição de
senso-comum vulgar. Anonimato, perfis falsos e a paradoxal sensação de proximi-
dade virtual somada ao distanciamento físico dos corpos dos usuários estimulam
a proliferação de discursos com conteúdo preconceituoso, raivoso e violento. O
descompromisso histórico que a forma rizomática da plataforma agudiza, estimula
uma total falta de linearidade do discurso, sugerindo que se algo desagrada o re-
ceptor ou enunciador, seja uma postagem ou um comentário que contradiz o ponto
de vista do usuário, o conteúdo pode ser sumariamente apagado, quando não se
exclui o próprio interlocutor, como quem elimina um personagem em um jogo

94
Lorena Madruga Monteiro, Luciana Santana (organizadoras)

virtual. Uma vez realizada essa ação de exclusão, torna-se a postar o comentário ou
a replicar a informação, já livre da impertinente presença do contradito. Segundo
as regras subjetivas, majoritariamente adotadas entre os usuários desse tipo de co-
municação e plataforma, considerada neutra e democrática, por essa mesma maio-
ria, é sugerido evitar textos longos ou complexos. Reforçando o descompromisso
histórico, dados, fontes e referências indicadas são, via de regra, ignoradas ou de-
sacreditadas, mesmo quando se tratam de organizações de relevância indiscutível
como ONU, UNESCO, IBGE, PNUD, etc. Um texto de maior volume, profundida-
de e fôlego, estaria mais apropriado para um formato de livro ou artigo e, segundo
critério geral, seria inadequado para as mídias sociais. Por vezes se avisa, quase
como quem comete um delito, que a seguir o usuário vai se deparar com um texto
extenso. Geralmente, esse tipo de aviso é seguido de um pedido de desculpas. A
fragmentação do discurso é estimulada pela própria fragmentação da plataforma: é
possível ler uma notícia/propaganda de uma ONG atuando em combate à fome ou
em favor de refugiados, logo depois se deparar com um animal de estimação fazen-
do gracinhas, seguido de uma propaganda sobre um novo remédio ou tratamen-
to para emagrecer, seguido por uma notícia sobre uma celebridade internacional,
seguido por um vídeo de um cantor popular, seguido por uma curiosidade sobre
o modo de vida dos monges tibetanos, seguido por um comentário contra o MST,
seguido por um ataque direto ao movimento feminista, seguido por uma piada de
fundo racista, machista ou preconceituosa no trato de religiões de matriz africana,
ou contra o pobre, ou contra o índio, etc. Essas postagens são acompanhadas por
comentários favoráveis ou contrários que, por sua vez, manifestam-se através de
mensagens curtas, símbolos emotivos, frases de senso-comum, palavras de baixo
calão, ameaças, etc.
O que se questiona aqui é o efeito de instância democrática, efeito de ágo-
ra, manifestando-se em uma estrutura disforme, rizomática, plataforma ou campo
reflexivo capaz de amalgamar hipertextos em que, aparentemente, uma expressão
de anarquia ou jogo randômico se impõe ante toda vã tentativa de controle. Essas
características, a princípio, inspirariam um sentido pleno de liberdade e isonomia,
como é alardeado pelos idólatras/ideólogos das novas tecnologias de comunicação.
Por outro lado, há outros fatores a considerar. O que se pretende aqui, não trata de
uma demonização das mídias sociais, mesmo porque, boicotá-las nesse momento
de total aderência ao modelo poderia soar no mínimo inócuo. Trata-se, então, de
interpretar esse modelo de comunicação a partir daquilo mesmo que ele se propõe
em termos estéticos, políticos e técnicos, a saber, certa predisposição para produzir
para si e para seus usuários um efeito/sensação/sentido de ubiquidade que se dobra
sobre tudo o que se manifesta aí.
Segundo essa interpretação, a promessa de ubiquidade e onipotência daqui-
lo que se expressa na rede seria o que seduz e convence o usuário a aderir a esse

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“Temerosas transações”: ensaios sobre o golpe recente no Brasil

modo de comunicação. Porém, o efeito de sensação de poder aqui sugerido, pode-


ria também produzir, como efeito colateral, esse tipo de consideração, sugerida nos
seguintes termos:

[...] o fascismo. E não somente o fascismo histórico de Hitler e de Mus-


solini - que tão bem souberam mobilizar e utilizar o desejo das massas
-, mas o fascismo que está em nós todos, que martela nossos espíritos
e nossas condutas cotidianas, o fascismo que nos faz amar o poder, de-
sejar esta coisa que nos domina e nos explora (FOUCAULT, 2015, p.5).

Foucault prescreve um receituário de resistência e combate ao fascismo que


nos habita para ser aplicado em ação cotidiana e prosaica, como gesto circunstancial
de marcação de um território que implica ser defendido. Entendo território32 aqui,
não somente como espaço físico, lugar, mas como expressão, afecção, isto é, ato de
sentir e expressar que se manifesta de forma simultânea no corpo de cada indivíduo.

Libere a ação política de toda forma de paranoia unitária e totalizante;


- Faça crescer a ação, o pensamento e os desejos por proliferação, jus-
taposição e disjunção, mais do que por subdivisão e hierarquização pi-
ramidal;
- Libere-se das velhas categorias do Negativo (a lei, o limite, a castração,
a falta, a lacuna), que o pensamento ocidental, por um longo tempo,
sacralizou como forma do poder e modo de acesso à realidade. Prefira
o que é positivo e múltiplo; a diferença à uniformidade; o fluxo às uni-
dades; os agenciamentos móveis aos sistemas. Considere que o que é
produtivo, não é sedentário, mas nômade;
- Não imagine que seja preciso ser triste para ser militante, mesmo que
a coisa que se combata seja abominável. É a ligação do desejo com a
realidade (e não sua fuga, nas formas da representação) que possui uma
força revolucionária;
- Não utilize o pensamento para dar a uma prática política um valor de
verdade; nem a ação política, para desacreditar um pensamento, como
se ele fosse apenas pura especulação. Utilize a prática política como um
intensificador do pensamento, e a análise como um multiplicador das
formas e dos domínios de intervenção da ação política;
- Não exija da ação política que ela restabeleça os “direitos” do indiví-
duo, tal como a filosofia os definiu. O indivíduo é o produto do poder.
O que é preciso é “desindividualizar” pela multiplicação, o desloca-
mento e os diversos agenciamentos. O grupo não deve ser o laço orgâ-
nico que une os indivíduos hierarquizados, mas um constante gerador
de “desindividualização”;
- Não caia de amores pelo poder. (FOUCAULT, 2015, p. 6). (Pelas nor-
mas da ABNT, citações diretas longas não podem ultrapassar 13 linhas,
podes dividir a citação em duas partes e/ou fazer uso de supressões [...]

32 O conceito/categoria de território aqui aplicado toma por base os seguintes textos: Deleuze e Guattari,
1995; Deleuze e Guattari, 1997.

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Lorena Madruga Monteiro, Luciana Santana (organizadoras)

Considerando a recente emergência da “nova onda” conservadora e rea-


cionária que marca presença nos campos da política e da sociedade, assume-se
que esse receituário foucaultiano nunca soou tão utópico e distante. Caberia então
refletir sobre que percurso histórico a relação entre comunicação e mobilização
política produziu marcas, rastros, em direção ao que hoje se experimenta através
da presença da internet e das redes sociais como promessa de democratização e
uso isonômico do espaço midiático. O paradoxo ou conflito se instaura quando
se percebe que, a despeito da promessa de democratização sugerida pela rede, o
que se experimenta, após uma década de uso e presença cotidiana das mídias so-
ciais como ferramenta de mediação no campo do debate político e ideológico, é a
emergência de forças fascistas e reacionárias produzindo reverberações e adesões
significativas. Com base no que Jessé Sousa (REDE TVT, 2017, www.youtube.com)
propõe na entrevista já citada, pode-se sugerir que ao contrário de outras tecnolo-
gias de comunicação, a rede se apresenta não só como ferramenta arisca ao uso das
classes populares, mas como ferramenta que, ao contrário, da tão idealizada ágora
digital, opera em sentido oposto, promovendo injunções entre forças reacionárias
e conservadoras que antes se apresentavam dispersas e atomizadas. Ao contrário
do que ocorreu na rede (como efeito pretendido ou como efeito colateral), certas
injunções entre comunicação e política, cuja morfologia historicamente se origina
ou conta com forte presença da classe popular, promoveram, desde o século XIX,
efeitos de sinergia entre diferentes forças da classe trabalhadora ou mesmo entre
classes sociais distintas como veremos adiante.

[...] já se começa a valorizar a profunda inserção dos anarquistas nos


modos de vida e expressão da cultura popular [...] se desconhece ou se
oculta que as formas de luta dos movimentos libertários se desenvol-
vem em grande medida a partir de tradições organizativas de profundas
raízes entre os camponeses e os artesãos, e se menospreza o explícito
encarecimento devotado pelos anarquistas às formas e modos populares
de comunicação (MARTIN-BARBERO, 2003, p. 151).

Sobre esses modos de comunicação popular o autor propõe que:

nessa cultura de taberna e dos romanceiros, dos espetáculos de feira


e da literatura de cordel, se conservou um estilo de vida no qual eram
valores a espontaneidade e a lealdade, a desconfiança frente as grandes
palavras da moral e da política, uma atitude irônica para com a lei e
uma capacidade de gozo que nem os clérigos nem os patrões puderam
amordaçar (MARTIN-BARBERO, 2003, p. 153).

Frente essa colocação, cabe questionar o quanto lutar com as armas, ferra-
mentas e tecnologias do outro pode ou não produzir o resultado esperado. Um
contraexemplo da colocação acima se encontra nos bastidores da produção do fo-

97
“Temerosas transações”: ensaios sobre o golpe recente no Brasil

lhetim, de meados do século XIX, “Mistérios de Paris”, de Eugene Sue. Conside-


rando que a grande imprensa, via de regra, apoia e reproduz a voz conservadora da
burguesia, pelo menos, desde quando esta ascende ao poder político, um folhetim
– formato de novela em capítulos que era publicado regularmente em jornais de
grande circulação – tratando das classes populares poderia sugerir uma narrativa
caracterizada pela presença de estereótipos e preconceitos ou, na melhor e mais
generosa das hipóteses, um tipo de narrativa que enfatizaria o caráter exótico de
lumpesinato amorfo. Porém, ao longo da produção do folhetim, ocorre um efeito
interessante de injunção de forças oriundas de classes sociais distintas: através da
narrativa de “Mistérios de Paris”, a elite intelectual passa a somar forças com os
sindicatos e os grupos anarquistas oriundos das classes trabalhadoras e populares.

No começo o folhetim recolhe a visão de um turista que nos conta suas


andanças em um país exótico, só que esse país exótico são os bairros
pobres da própria cidade. [...] Entretanto o interesse despertado pelo
folhetim aumenta a cada dia e obriga seu autor a se informar mais de
perto, vestindo-se de operário e percorrendo os bairros populares. [...]
A fusão de realidade e fantasia efetuada no folhetim escapa dele (Sue),
confundindo a realidade dos leitores com as fantasias do folhetim. As
pessoas do povo tem a sensação de estar lendo a narrativa de suas pró-
prias vidas (MARTIN-BARBERO, 2003, p.189-190).

Eugene Sue, por causa de seus folhetins que abordam o modo de vida popular
tão de perto, acabará no exílio, acusado de inspirar e incentivar o levante de 1848.
“No ambiente que precedeu 1848, porém, tais propostas foram lidas pela classe po-
pular como um convite à mudança e uma justificativa para o levantamento” (MAR-
TIN-BARBERO, 2003, p. 191). Propõe-se ainda que o desinteresse ou dificuldade de
transpor ou romper fronteiras entre a realidade e a literatura de folhetim expressa o
quanto a cultura popular, mesmo entre a classe intelectual é delegada a um segundo
plano, muitas vezes romantizado ou folclorizado, isto é despido de toda potência re-
volucionária. “Essa ausência de leitura na análise do folhetim exprime, à direita e à
esquerda, a não valorização do leitor popular” (MARTIN-BARBERO, 2003, p.191).
Retornando a contemporaneidade das redes sociais, esse contraexemplo leva
a questionar o efeito de anestesiamento das forças oriundas das classes populares
em sua adesão ao modelo de comunicação formatado pela bitola das redes sociais.
Como já colocado, lugar que privilegia a produção do discurso político-ideológico
de interesse e autoria da classe média. O grande paradoxo promovido pelas redes
sociais diz respeito à desconstrução de uma hipótese que serviu por um tempo
à crítica de base frankfurtiana-marxista sobre os meios de comunicação de mas-
sa. Essa crítica apontava a forma como, passo a passo, o debate político foi sendo
substituído pela verdade científica, ou por um modelo que propunha a “dissolução
tecnocrática do político” (MARTIN-BARBERO, 2003, p. 294).

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Lorena Madruga Monteiro, Luciana Santana (organizadoras)

Se os problemas sociais são transformados em problemas técnicos, ha-


veria uma única solução para todos. Em vez de uma decisão política
entre diferentes objetivos sociais possíveis, seria o caso de buscar uma
solução tecnocientífica acerca das maneiras corretas para obter-se uma
finalidade pré-fixada. Para tal, seria possível prescindir do debate po-
lítico; não cabe submeter à votação um fato técnico ou uma verdade
científica. O cidadão acaba sendo substituído pelo especialista (MAR-
TIN-BARBERO, 2003, p. 294).

Porém, o processo contínuo de consolidação das redes sociais como lugar de


estabelecimento de verdades, em vez de fortalecer e valorizar o saber cientifico, acaba
por prescindir desse tipo de respaldo técnico, abolindo também a figura do especia-
lista. Não se trata mais de comprovar um ponto de vista, uma notícia, uma análise de
algum fato, a partir de um argumento racional ou uma prova, mas de demarcar e de-
fender um ponto de vista a partir de paixões e crenças. Esse ponto de vista é cada vez
menos receptivo a questionamentos e reflexões, visto que toma por base humores,
dogmas e simpatias que anulam o debate democrático e o dissídio que se estabelece
no jogo entre diferenças de fala e escuta, pergunta e resposta. A rede social e a inter-
net de modo geral pretende abolir, através da sensação de simultaneidade e equiva-
lência entre as falas e respostas, as separações clássicas entre emissor e receptor, meio
e mensagem. Em síntese, o lugar torna-se esquizofrênico quando todos falam, todos
emitem mensagens e ninguém se escuta, ninguém recepta.
Ainda sobre a estreita relação entre mídia e política deve-se também conside-
rar o duplo jogo do poder midiático que pode atuar no sentido de promover golpes
sobre Estados democráticos ou revoluções libertárias que desestabilizam ditaduras,
dependendo do lado para o qual o pêndulo dos humores midiáticos se incline33.

[...] se é verdade que os meios de comunicação massivos podem ser inter-


pretados como um alargamento tecnológico do espaço público, portanto
como uma suposta ampliação do funcionamento democrático, não se se-
gue necessariamente que esses meios possam ser tidos como responsáveis
pela construção ou consolidação de instituições democráticas no real-his-
tórico. A única justificativa histórica do discurso da mídia de massa é a
atenção (momentânea, flutuante, caótica) que lhe pode dispensar uma
audiência. A observação das experiências políticas na América Latina
durante toda a década de 90 deixa clara que o aumento do número de
consultas populares, eleições parlamentares, prestações públicas de con-
tas, crescimento da pluralidade de fontes de informação [...] não impediu
que determinados países (o Peru, por exemplo) terem passados por fases
pouco democráticas e muito corruptas (SODRÉ, 2006, p. 171).

33 Vide a estreita relação da mídia empresarial com o golpe de 1964, no Brasil ou o apoio da mídia interna-
cional à tão alardeada primavera árabe que em efeito de dominó foi destituindo do poder central aiatolás e
mulás em países do Magreb ao Oriente Médio.

99
“Temerosas transações”: ensaios sobre o golpe recente no Brasil

Logo, deve-se considerar o comportamento da mídia, historicamente con-


servadora e elitista, e as consequências de seu cambio de posicionamento em oca-
sião das manifestações de 2013, cujos protagonistas foram a princípio classificados
pela mídia hegemônica como “vândalos e baderneiros”. Depois, a mesma mídia
hegemônica refaz essa construção visando o esvaziamento da popularidade e sabo-
tagem explícita do Governo Dilma. A mídia hegemônica inverte seu discurso e a
mídia e passa a incentivar a presença do povo nas ruas, porém, devidamente refor-
matado na versão pseudonacionalista e pacificada nas cores da bandeira nacional
ou da seleção de futebol. De forma ordeira e aparentemente inofensiva, confun-
de-se manifestação política com coreografias carnavalescas, personagens infláveis,
afirmações conservadoras de caráter meritocrático, fascista, cristão e familiar.
Por outro lado, não se deve ignorar por completo a capacidade de resistência
e luta das organizações populares contra o que esse tipo de mídia promove, mesmo
naquele ano de 2013, em que a juventude universitária e urbana deixou-se encap-
sular e seduzir pela narrativa da mídia hegemônica. Considerando esse sequestro
momentâneo de forças progressistas, assume-se que é de um simplismo crasso,
toda análise sociopolítica que se apoia na separação excludente entre movimento
social e tecnologias, oriundas seja de que extrato social forem. Um exemplo disso é
o modo de luta e resistência de etnias latino-americanas, cujos esforços e conquis-
tas por reconhecimento de direitos e inserção social podem incorporar tecnologias
e recursos de seus alteres.

As políticas que reconhecem um papel importante à negociação se sus-


tentam no papel constitutivo das transações no desenvolvimento das
culturas. Referi-me a vários estudos antropológicos sobre as atuais es-
tratégias de trabalho, comercialização e consumo dos indígenas latino
-americanos que mostram a defesa enérgica de seus patrimônios étnicos
e de sua autonomia política nem sempre se opõe às transações inter-
culturais e à integração crítica na modernidade. Os indígenas frequen-
temente buscam se utilizar das técnicas mais avançadas de produção e
consumir bens industriais; reclamam, também, um maior acesso à edu-
cação e às comunicações de massa. Ainda que subsistam movimentos
étnicos resistentes à ocidentalização, amplos setores vêm se apropriando
de conhecimentos, recursos tecnológicos e culturais modernos (CAN-
CLINI, 2001, p. 251).

Logo, as relações entre as forças populares e o poder midiático, nem sem-


pre deve ser tomado de forma dicotomizada. Para certas correntes da teoria da
comunicação, a apropriação das tecnologias midiáticas e mesmo de valores de re-
produtibilidade e alcance discursivo, originalmente pensados para servir ao poder
hegemônico do dominador, pode e deve ser assumido por organizações de base
popular definidas por aspectos étnicos, objetivos de luta, construção de territoria-
lidade, dentre outros.

100
Lorena Madruga Monteiro, Luciana Santana (organizadoras)

Assim, não se trata de fechar trincheiras, a exemplo das barricadas da Co-


muna de Paris no sangrento e longínquo século XIX, mas de repensar formas de
luta sem o pudor de usar as armas do inimigo. O problema dessa tomada de decisão
de ordem estratégica diz respeito à necessidade de incorporar e decifrar uma gama
muito mais ampla de signos e recursos narrativos e de comunicação do que o que
se verifica em culturas e formas de resistência mais fechadas que operam dentro da
zona de conforto, isto é, dentro do ethos especifico do movimento.

Não me refiro apenas ao surgimento de termos, metáforas, procedimen-


tos metonímicos, narrativas e mesmo gêneros, mas também à configu-
ração de “novas” – com toda a relatividade da afirmação – necessidades
e reinvindicações à sua concretização, ou não, em “atores” identificáveis
ou em instituições. [...] Como nos manuais de sobrevivência, na crise
é preciso ler mais signos do que numa etapa normal. E não, por certo,
de modo direto, mas sim, prosseguindo no labirinto de deslocamentos,
bricolagens, reciclagens, hibridismos, e também inovando, criando-os
(FORD, 1999, p. 107).

Os desafios referentes a como estabelecer estratégias de enfrentamento não


são poucos nem simples, principalmente quando demandam um senso de organi-
zação e mobilização das camadas populares da sociedade e, o que é mais complexo,
a partir de um aprendizado de uso das armas e estratégias estabelecidas em função
da manutenção do status quo da elite burguesa. Logo, essa contaminação, mais do
que uma exigência em tempos de crise, deve ser assumida como forma de luta,
seja para culturas urbano-modernas, seja para as chamadas tradicionais, com forte
marcação étnica. Trata-se então de forçar o território do monopólio midiático no
sentido de se fazer ouvir, assim como pautar e determinar conteúdos e modos dis-
cursivos que contemplem, de forma sensível, questões socioculturais relativas aos
movimentos e segmentos da base social.

Evidentemente, trata-se de algo que sempre está na cultura, não só


nas culturas “tradicionais”, mas também naquelas que são altamente
semiotizadas pela relação “em eco” entre as culturas urbanas e a mí-
dia e pelo efeito desta relação com todo o âmbito social. Mas se acen-
tua diante das arbitrariedades e dos choques que a crise e a política
neoliberal da Nova Ordem introduzem na vida cotidiana, diante da
precariedade e da esquizogenia das respostas institucionais, diante
da carência de assistência informativa, diante da emergência aleató-
ria – por “casos” – de debate social e diante da falta de consciência
real sobre nossa pluriculturalidade. Não somente como conjunto de
valores ou modelos de conhecimento, mas também como formas de
perceber ou construir sentidos em velhas e novas formações cultu-
ras. Tema básico, este último, que não aparece apenas na produção
de hipóteses, na percepção de novos comportamentos sociais, mas
também nos caminhos de aprofundamentos sociais da democracia

101
“Temerosas transações”: ensaios sobre o golpe recente no Brasil

tanto na redução das crescentes disparidades econômicas quanto na


aceitação ou no processamento das diferenças culturais. (MARTIN
-BARBERO, 2003, p.108).

Feito esse balanço sobre as possibilidades estratégicas de atuação das classes


populares através do uso de mídias que interfiram no campo político, pode-se ca-
minhar para questões que dizem mais diretamente do modo como se articulou o
desmonte de segmentos e grupos na base da sociedade, promovendo uma reversão
no que vinha sendo realizado em termos de solidificação de políticas sociais e de
ampliação do leque de consumo e direitos, principalmente entre as camadas sociais
historicamente ignoradas pelo Estado.
Atualmente, o país passa por uma espécie de balanço geral do fazer e pensar
política. O pós-golpe sobre o Governo legitimamente eleito da Presidenta Dilma
Rousseff apresenta articulações de forças que historicamente jamais contaram ou
precisaram contar com qualquer tipo de apoio ou aprovação oriunda das classes
populares. Não configura nenhum mal-estar ou ameaça à manutenção do atual
Governo a tomada de certas decisões antipopulares em direção a um modelo de
governabilidade que claramente beneficia setores da elite, enquanto ignora e des-
mantela as políticas de implantação de direitos sociais. Essa configuração é forma-
da por setores claramente posicionados a favor do golpe e da pronta instauração de
um programa de governo que reverte todas as ações sociais que os três mandatos
dos governos petistas produziram ao longo de 12 anos ininterruptos. Os principais
setores e sujeitos do golpe são: (1) parte do poder judiciário que tem atuação de
pivô e produção do respaldo legal à constituição do golpe, repetindo como farsa o
drama produzido em 1964, ocasião em que o STF tratou de dar seu aval à destitui-
ção do Presidente João Goulart, declarando vaga a cadeira da Presidência da Repú-
blica; (2) sujeitos da elite econômica, ligada à Fiesp e ao capital financeiro/rentista,
ao agronegócio com forte presença no Congresso Federal, o que se convencionou
chamar de “bancada ruralista”; (3) partidos políticos de tradicionalmente vincu-
lados a forças conservadoras, como o PSDB, o DEM, o PSC, o PTB, o PP, o PPS e
a mudança de posicionamento do PMDB que no meio do processo passa a apoiar
o golpe; (4) sujeitos, instituições e partidos de claro posicionamento de esquerda
que passam a ver no golpe uma possibilidade de mudança radical, considerando
suas críticas e divergências em relação aos resultados dos governos petistas; (5) por
fim, mas não menos importante, a participação da mídia, principalmente da mídia
corporativa, empresarial e monopolista que patrocina e incentiva ações favoráveis
ao golpe, transformando eventos insignificantes em notícias espetaculares, dando
cobertura ao vivo a toda manifestação golpista e pautando noticiários que atuam
majoritariamente de forma a produzir justificativas ao golpe.
Frente tamanha articulação de poder, considerando os setores que agrupa,

102
Lorena Madruga Monteiro, Luciana Santana (organizadoras)

alguma resistência vem se manifestando dentro e fora do campo midiático. Essa


resistência é formada (1) por algumas instituições, organizações e sujeitos da es-
querda que fizeram autocritica e voltaram a apoiar e reconhecer os resultados e a
legitimidade dos governos petistas, (2) pela reorganização do PT, que também faz
uma autocrítica e se rearticula, sabendo que é a principal força política contra o
golpe, e, (3) por fim, o que se convencionou chamar de mídia alternativa, que, se
a princípio chegou a se posicionar de forma crítica ao governo de Dilma Rousseff
(vide as manifestações de 2013), em momento posterior, colocou-se a favor do go-
verno eleito e contra o golpe.
A mídia alternativa, apesar de descentralizada acaba se articulando na ins-
tância das redes sociais e da web em geral, seja através de programação pontual
como Mídia Ninja e Jornalistas Livres, seja através de programação fixa como a
TVT (TV dos trabalhadores) ou Rede Brasil Atual, para não citar nome a nome
inúmeros blogs e sites que agregam esforços de apoio ao fim do golpe, como o do
jornalista Luís Nassif. Em um momento tão desalentador e de tamanho desmonte
das instituições, políticas e ações democráticas, vozes se reorganizam.
O ex-presidente Lula da Silva declarou em entrevista que: “Na diversidade
as pessoas tendem a baixar a cabeça, não é todo ser humano que tem coragem de
enfrentar a diversidade de cabeça erguida, essa é uma coisa que a gente tenta dizer
para as pessoas todos os dias”34. É possível, considerando a quantidade de informa-
ção e notícias produzidas na diversidade de sites, blogs e postagens na web, abdicar
da programação da mídia corporativa e usufruir apenas desse conjunto de mídias
alternativas. O problema é que o espaço digital também está loteado pela mídia
corporativa e o número de usuários que acessam esses grandes grupos ultrapassa
os acessos da mídia alternativa. Portais dos grandes conglomerados como G1, da
Rede Globo, R7, da Rede Record e Folha/UOL apresentam números que possibi-
litam afirmar que esses grupos vencem a mídia alternativa em seu próprio campo.
Assume-se que a internet, diferente dos meios tradicionais, impresso, rádio e
televisão, abre possibilidades para que discursos com pontos de vista contrários ao
das grandes corporações midiáticas alcancem relevância e um número significativo
de receptores. Contudo, a internet também permite que um sem número de fal-
sas notícias circulem, gerando uma enorme desinformação. Estudo, realizado pela
Associação dos Especialistas em Políticas Públicas/AEPP, utilizou os critérios do
Monitor do Debate Político no Meio Digital, criado por pesquisadores da USP, para
identificar os dez sites brasileiros que mais propagam notícias falsas (pós-verdades)
pelo Facebook. Segundo notícia publicada pelo site Brasil 247.

34 Fala do ex-presidente Lula em entrevista à Rádio Brasil Atual. Programa Hora do Rango. (RBA, 2017,
www.redebrasilatual.com.br).

103
“Temerosas transações”: ensaios sobre o golpe recente no Brasil

Não são sites de empresas da grande mídia comercial, tampouco veí-


culos de mídia alternativa com corpo editorial transparente, jornalistas
que se responsabilizam pela integridade das reportagens que assinam,
ou articulistas que assinam artigos de opinião [...] Tratam-se de sites
cujas “notícias” não têm autoria, são anônimos e estão bombando nas
bolhas sociais criadas pelo Facebook e proliferam boatos, calúnias e di-
famações. (BRASIL 247, 2017, www.brasil247.com).

Segundo esta notícia, os pesquisadores da AEPP, é possível identificar carac-


terísticas comuns a estes sites:

1. Foram registrados com domínio .com ou .org (sem o .br no final), o


que dificulta a identificação de seus responsáveis com a mesma transpa-
rência que os domínios registados no Brasil.
2. Não possuem qualquer página identificando seus administradores,
corpo editorial ou jornalistas. Quando existe, a página ‘Quem Somos’
não diz nada que permita identificar as pessoas responsáveis pelo site e
seu conteúdo.
3. As “notícias” não são assinadas.
4. As “notícias” são cheias de opiniões — cujos autores também não são
identificados — e discursos de ódio (haters).
5. Intensiva publicação de novas “notícias” a cada poucos minutos ou
horas.
6. Possuem nomes parecidos com os de outros sites jornalísticos ou blo-
gs autorais já bastante difundidos.
7. Seus layouts deliberadamente poluídos e confusos fazem-lhes parecer
grandes sites de notícias, o que lhes confere credibilidade para usuários
mais leigos. (BRASIL 247, 2017, www.brasil247.com).
8. São repletas de propagandas (ads do Google), o que significa que a cada
nova visualização o dono do site recebe alguns centavos (estamos falando
de páginas cujos conteúdos são compartilhados dezenas de milhares de
vezes por dia no Facebook!). novamente ultrapassa as 13 linhas.

Sobre essa questão a Folha de São Paulo35 em seu caderno Ilustríssima publi-
cou reportagem de Fábio Victor “como funciona a fábrica de títulos sensacionalis-
tas e inverdades que se disseminam nas redes sociais”. A reportagem mostra como
estes sites se estruturam, como são divulgados, e, o que é mais preocupante, que são
sustentados por publicidade atraída pelo grande número de visualizações alcança-
do. Seria importante também que a FSP e os outros veículos da mídia empresarial
impressa fizessem uma autocrítica porque, ao longo do processo do Mensalão do
PT, do impedimento da Presidenta Dilma Roussef e das acusações contra o ex-pre-
sidente Lula, ela própria utilizou suas páginas para distorcer informações.
Um caso de manipulação clara foi a publicação no jornal O Estado de São
Paulo sobre doação de empreiteiras ao Instituto Lula e ao Instituto FHC. A mesma

35 Caderno Ilustríssima, no dia 19 de fevereiro de 2017, Folha de São Paulo.

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Lorena Madruga Monteiro, Luciana Santana (organizadoras)

página, publicada em sua edição de 7 de novembro de 2015, contém duas reporta-


gens. Na parte superior, a chamada em destaque informa que “Lula recebeu quase
R$4 milhões da Odebrecht, diz PF”, dando a entender que o próprio Lula e não o
Instituto Lula, teria recebido pessoalmente o dinheiro. Logo abaixo, há outra repor-
tagem com o título “Empreiteira doou R$ 975 mil a Instituto FHC, aponta laudo”.
A manipulação é evidente porque trata do mesmo fato – doação de empreiteiras a
Institutos pertencentes a dois ex-presidentes – é abordado de maneira a pessoalizar
a doação dada ao Instituto Lula e a despersonalizar a doação feita ao Instituto FHC.
Dois eventos importantes nos permitem expor a discussão rasa e baseada
no senso comum, muitas vezes em mentira pura e simples, que circula nas redes
sociais. O primeiro diz respeito à Greve Geral realizada em 28 de abril de 2017.
Alguns argumentos daqueles contrários à greve criticavam o fato de se a greve era
contra as reformas trabalhistas e da Previdência propostas pelo governo golpista,
porque ela aconteceu depois da sessão da Câmara na qual a reforma trabalhista foi
apreciada, tentando desqualificar a greve pelo fato dela ter ocorrido “fora do prazo
ou da época”. Este argumento desconsidera o fato de a Greve Geral ter sido organi-
zada desde a grande manifestação Dia Nacional de Paralisação Geral, realizada em
14 de março de 2017. Isto quer dizer que a proposta de Greve Geral contou com an-
tecedência de quarenta e quatro dias antes da sua realização. Por que tanto tempo?
Porque uma Greve Geral é algo complexo que demanda tempo para se organizar e
mobilizar. O argumento de que ela seria extemporânea omitiu estas informações e
centrou-se em uma inexistente extemporaneidade para tentar deslegitimá-la.
Voltando à questão inicial exposta no parágrafo anterior, quando a data de
28 de abril foi proposta, o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia,
ainda não tinha proposto nenhuma data para votar a emenda constitucional da
reforma trabalhista. A partir da divulgação das pesquisas de opinião que mostram
que o governo golpista conta com um apoio popular mínimo e que as reformas
por ele propostas também não contam com apoio popular, Rodrigo Maia propôs
votar a reforma trabalhista a toque de caixa, antes da data da Greve Geral, porque
desconfiava que esta poderia obter sucesso, como foi, e influenciaria negativamen-
te o ânimo da base golpista para votar as reformas. O presidente da Câmara dos
Deputados não conseguiu colocar em votação a reforma da Previdência na mesma
semana do ataque à CLT. Adiou sua votação para ganhar tempo para comprar os
deputados da base golpista. Este, então, foi o motivo pelo qual a votação da reforma
trabalhista ocorreu dois dias antes da GG.
Outra questão surpreendente, vinda daqueles que criticaram a Greve Ge-
ral, perguntava o porquê dela não ter sido realizada no domingo! Na sexta-feira
atrapalhou a vida de todo mundo. Uma resposta bem-humorada a este questio-
namento que circulou nas redes sociais é que Greve Geral não é micareta e não
tem que ocorrer nos dias em que os cidadãos estão descansando. A pergunta

105
“Temerosas transações”: ensaios sobre o golpe recente no Brasil

dos opositores à Greve Geral demonstra um certo grau de desconhecimento


político porque um dos objetivos mais importantes, senão o mais importante,
de uma greve, sobretudo de uma Greve Geral, é paralisar a produção e causar
prejuízo ao capitalista. Domingo já é um dia de descanso quando a produção
já está parada (pelo menos até que as regras da reforma trabalhista entrem em
vigor. A partir daí, nada de repouso semanal remunerado, nada de horas extras
remuneradas etc.). Que sentido faria realizar uma greve em um domingo ou
feriado? Nem para ficar de folga uma greve no domingo seria eficiente já que o
trabalhador já folga neste dia! “Ah, mas a greve causou prejuízo ao patronato e
isto vai causar mais demissões”. Este argumento pueril parte do princípio que
o patronato precisa de motivos para demitir o trabalhador. A reforma traba-
lhista foi aprovada para facilitar a demissão do trabalhador porque vai baratear
a mão de obra e não para facilitar a contratação: o capitalista não quer gerar
empregos: ele quer aumentar seus lucros e os lucros serão cada vez maiores
quanto mais precário for o trabalho, quanto mais facilmente demissível for o
trabalhador. A precarização do trabalho gerou demissões e crises em todos os
países onde ela foi implementada e os casos mais emblemáticos e significativos
são os EUA, Portugal, Espanha e a Grécia.
Por fim, outro argumento dos detratores da Greve Geral foi que ela impediu
o direito de ir e vir. Geralmente, este é um argumento muito utilizado pelos sujeitos
motorizados que ficam irritados com os engarrafamentos causados pela ocupação
das vias públicas pelos grevistas. Em São Paulo uma senhora mostrou-se revoltada
porque não conseguiria chegar ao aeroporto de Guarulhos para pegar – entenda o
pegar como quiser – seu namorado que estava chegando de viagem. Absurdo uma
greve interferir assim na vida amorosa e sexual de uma pessoa. Em Pernambuco
e em São Paulo grevistas foram atropelados porque estavam impedindo o sagrado
direito de ir e vir do burguês e do pequeno burguês motorizado. Pelo visto, para
estas pessoas, o direito à vida é um direito inferior frente ao direito de ir e vir. Elas
não consideram o cerceamento cotidiano deste direito para aquelas pessoas que,
por receberem um salário baixo ou por não terem emprego, não podem ir e vir li-
vremente já que não possuem dinheiro suficiente para isto. Uma simples caminha-
da pelas ruas centrais das metrópoles brasileiras nos permite constatar uma enor-
me quantidade de trabalhadores empregados que dormem nas ruas e só voltam
para casa nos finais de semana. Por quê? Porque seus salários não lhes permitem
gastar dinheiro com o deslocamento com transporte público. Ou eles exercem seu
“sagrado” direito de ir e vir ou eles comem. Não é possível fazer as duas coisas. E os
desempregados então? Direito de ir e vir se exerce com salários dignos e passe livre
nos transportes públicos.
Outro tema que vem sendo muito discutido é a atuação da justiça brasileira
que vem inovando seus conceitos. O que a operação Lava Jato e algumas decisões

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Lorena Madruga Monteiro, Luciana Santana (organizadoras)

do STF vem implementando é uma espécie de Direito Seletivo que é muito grave e
para o qual atos semelhantes conduzem a decisões diferentes e, mesmo, conflitan-
tes. Como característica básica deste direito encontramos as delações “premiadas”,
as convicções e a “desnecessidade” de provas.
Este direito começou a ser elaborado no julgamento do Mensalão do PT, já
na escolha do próprio objeto do julgamento porque o Mensalão do PSDB, mais
antigo e, à época, prestes a prescrever, foi posto de lado. Neste julgamento, por
exemplo, uma ilustre ministra do STF alegou que, na falta de provas contundentes,
iria condenar o réu, no caso o José Dirceu, porque a literatura assim o permitia.
A literatura teria permitido várias condenações em outros processos, mas não foi
utilizada com tamanha liberdade nestes casos.
À esposa do ex-governador do Estado do Rio de Janeiro foi permitido cum-
prir sua prisão preventiva em casa porque, segundo a decisão do juiz, o casal tem
filhos menores que precisavam da mãe para cuidar deles. Nas prisões femininas
brasileiras existem dezenas de milhares de mulheres na mesma situação que nun-
ca puderam gozar deste direito. Por que a uma ré este direito é assegurado e para
milhares de outras não? Por que a mídia empresarial e os blogs de centro e direita
não deram a esta questão a devida cobertura? E, principalmente, por que a opinião
pública comportou-se de uma maneira crítica à liberação da ex-primeira dama,
mas calou-se no que concerne ao direito das milhares de outras mulheres presas
que poderiam gozar deste mesmo direito?
As gravações ilegais de conversas telefônicas entre o ex-presidente Luís Iná-
cio Lula da Silva e a Presidenta em exercício Dilma Rousseff foram liberadas pelo
juiz Sérgio Moro para a divulgação manipuladora e tumultuária na mídia empresa-
rial, fato condenado por vários juristas, mas prontamente defendido pelo Ministro
Gilmar Mendes no Supremo Tribunal Federal. Contudo, este mesmo ministro con-
denou veementemente as gravações telefônicas nas quais os apoiadores ou mem-
bros do governo golpista apareciam envolvidos em negociatas. Por que a mídia em-
presarial, os blogs de centro e direita optaram por explorar à exaustão as gravações
ilegais entre o ex-presidente e a Presidenta e deram muito menos importância às
outras gravações?
A atuação da mídia e da opinião pública na atual conjuntura política do
Brasil revela um problema estrutural de raízes profundas que é uma crise ética
que afeta todas as camadas da população brasileira que expõe suas veias abertas
hodiernamente devido ao fenômeno das mídias sociais. Antes destas, era possí-
vel identificar um discurso conservador e reacionário nos grandes veículos da
mídia corporativa que, mais do que uma causa, é uma consequência do conser-
vadorismo da sociedade brasileira. Os proprietários destas mídias não são extra-
terrestres malvados que saltam de uma nave espacial e vêm assolar os cidadãos
brasileiros com seu conservadorismo antiético. Na verdade, são frutos do mesmo

107
“Temerosas transações”: ensaios sobre o golpe recente no Brasil

caldo de cultura que origina as manifestações racistas que grassam nas mídias so-
ciais, cujas algumas outras manifestações são o alastramento assustador de seitas
pentecostais Brasil afora e a eleição de representantes que formam no Congres-
so Nacional a bancada da Bala/Boi/Bíblia. Este fenômeno não é recente, basta
lembrarmo-nos da célebre frase “aos amigos tudo, aos inimigos, a lei”, atribuída
a diferentes políticos conservadores brasileiros, atualizada e ressignificada pela
atuação dos responsáveis pela operação Lava Jato, bem como por ministros do
STF e congressistas brasileiros.

108
Lorena Madruga Monteiro, Luciana Santana (organizadoras)

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110
Lorena Madruga Monteiro, Luciana Santana (organizadoras)
8
DA CULTURA COMO POLÍTICA AOS
PERIGOS PARA AS POLÍTICAS CULTURAIS:
UMA REVISÃO DO MINC (2003-2016)
E COMENTÁRIOS SOBRE O FUTURO
DAS POLÍTICAS CULTURAIS

Leonardo De Marchi

Introdução

O impedimento da presidenta Dilma Rousseff marca o início oficial (ainda


que suas forças promotoras tenham se organizado e conspirado desde, pelo menos,
o ano de 2013) de um novo momento na história política do país. Esse outro mo-
mento ainda exige distanciamento histórico para que se possa ter uma dimensão
exata dos retrocessos e problemas que ele causará ao desenvolvimento do Brasil,
notadamente em médio e longo prazos. O que já é possível comentar, no entanto, é
como esse abjeto movimento tem investido contra diferentes áreas da democracia
brasileira. A produção científica, a educação, a segurança e a saúde públicas, os mo-
vimentos sociais, os direitos trabalhistas são os alvos mais urgentes desses ataques,
cujo objetivo é minar qualquer possibilidade de democracia pluralista que come-
çavam a emergir na nova República. Anuncia-se, assim, o desejo de retorno a uma
democracia restrita ou, se a manipulação de instrumentos legais não for suficiente,
mais um período de autoritarismo brutal.
Nesse contexto de eclipse da razão, um dos setores que tem sido fortemente
atacado é o da cultura. Isso não é acaso, tampouco menos importante. Com efeito,

111
“Temerosas transações”: ensaios sobre o golpe recente no Brasil

essa foi uma das áreas que mais avançou durante os governos encabeçados pelo
Partido dos Trabalhadores (PT), graças ao esforço de indivíduos e grupos civis or-
ganizados que tiveram espaço e possibilidade para repensar e refazer a relação en-
tre Estado e cultura no país. Após décadas de ausências, autoritarismos e instabili-
dades das políticas culturais, a partir da administração de Gilberto Gil (2003-2008)
à frente do Ministério da Cultura do Brasil (MinC), buscou-se repensar o papel do
Estado na área da cultura a partir da redefinição do próprio conceito de “cultura”.
Ao adotar uma conceituação antropológica do termo, pôde-se alinhar o tratamento
dado pelo Estado à cultura aos direitos culturais.
Isso significa dizer que a cultura passou a ser entendida não como folclore
(conforme professa certa abordagem populista à cultura), como belas-artes (confor-
me a perspectiva liberal), como lugar de difusão de uma ideologia de Estado (como
foi tratada durante os regimes políticos autoritários), ou ainda, como mero entrete-
nimento que deve ser repassado à iniciativa privada, mesmo que utilizando verbas
públicas (como defende a abordagem neoliberal), mas, sim, como a capacidade de
invenção coletiva de símbolos, valores, ideias e comportamentos de modo a afirmar
que todos os indivíduos e grupos sociais são sujeitos culturais (CHAUÍ, 1995). Nesse
sentido, o termo passou a ser entendido como sendo composto em três dimensões
complementares: (a) como expressão simbólica, (b) direito à cidadania e (c) campo
potencial para o desenvolvimento econômico sustentável (MINC, 2010; 2012).
Isso significa dizer que, pela primeira na história da vida política do Bra-
sil, a “cultura” passou a ser alinhada aos direitos fundamentais do Homem, como
“direito cultural”. Dessa forma, o MinC pôde propor outras formas de fazer polí-
tica que, sob o rótulo de “cultural”, fizeram avançar o reconhecimento nas esferas
cultural e política do país de diferentes grupos minoritários ou subalternos. Em
outros termos, tais grupos, os quais nunca foram considerados pelas elites como
dignos de cidadania, tiveram certo apoio para apresentarem seus modos de vida
como direitos a serem respeitados, protegidos e ampliados. Daí que o MinC tenha
se mobilizado para apoiar diversas manifestações das nações indígenas, de afrodes-
cendentes, da comunidade LGBT, entre outras.
Independente de limitações e equívocos que tenham sido cometidos ao lon-
go dessas administrações do MinC, não resta dúvida de que, entre os anos de 2003
e 2016, todas as gestões reforçaram o compromisso do ministério com os valores
democráticos pluralistas e a parte neodesenvolvimentista dos governos encabeça-
dos pelo (mas não restritos ao) PT36. Acima de tudo, buscou-se revolucionar não

36 O que significa dizer, criticamente, que nem todo os agentes que compunham a coalisão comungavam
de tal projeto neodesenvolvimentista, como ficaria explícito na articulação e aplicação do golpe de 2016.
Sobre a definição de neodesenvolvimentismo e de política cultura neodesenvolvimentista de cultura. Sobre
o tema, ver: Marchi (2014).

112
Lorena Madruga Monteiro, Luciana Santana (organizadoras)

apenas a posição do ministério na burocracia estatal (considerado como moeda


de troca política de baixo valor para a classe política e uma pasta sem função clara
para a comunidade artística) como também tornar o MinC uma instância articu-
ladora de um fazer-cultura de maneira democrática e plural. Também foi isso que,
em seu discurso de posse, Gilberto Gil quis dizer com a frase: “formular políticas
culturais é fazer cultura” (GIL, 2003, p.11).
É justamente isso que se encontra sob virulento ataque hoje. Desde que Michel
Temer (PMDB-SP) assumiu a presidência, há um sistemático esforço de esvaziamen-
to do MinC, tendo em vista sua extinção. Num primeiro momento, anunciou-se que
ele perderia o status de ministério, transformando-se em Secretaria a ser anexada
ao Ministério da Educação. Diante dos protestos da comunidade artística, contudo,
Temer recuou em sua decisão, mas impôs cortes severos (e injustificados) ao seu or-
çamento. Ao mesmo tempo, nomeou para serem ministros personagens pouco ativos
na área da política cultural ou políticos de pequena envergadura que procederam
o desmonte da burocracia construída nos últimos anos, muitas vezes substituindo
técnicos do quadro administrativo por aliados políticos sem competência para tais
funções. Em meados de 2017, o MinC estava na iminência de encerrar suas ativida-
des por falta de dinheiro para manter suas atividades mais básicas.
Há toda uma literatura que analisa, em minúcia, os diferentes aspetos das
políticas culturais do MinC nesses anos. Particularmente notável é a Coleção
Cult, publicada pela Editora da Universidade Federal da Bahia (EDUFBA), que
apresenta coletâneas de artigos científicos em que se analisam as políticas cultu-
rais desde os governos de Luís Inácio “Lula” da Silva até o primeiro governo de
Dilma Rousseff (RUBIM, 2010; RUBIM; BARBALHO; CALABRE, 2015). Além
desses livros, há diversos artigos científicos dedicados ao tema. Eu mesmo dei
uma pequena contribuição ao analisar o Plano da Secretaria da Economia Cria-
tiva, em outra oportunidade (MARCHI, 2014). Assim, para fugir da mesmice,
neste artigo assumo outra perspectiva.
Especificamente, busco fazer uma análise panorâmica dos trezes últimos
anos de gestão do MinC, sublinhando aquilo que considero ser sua principal rea-
lização, qual seja, a conciliação das políticas culturais com os direitos culturais ou,
em outros termos, a reformulação do conceito de “cultura” a fim de que se pudesse
incluir na agenda de um ministério dedicado à cultura temas sensíveis a uma de-
mocracia pluralista, como inclusão social, direitos culturais, diversidade cultural e
sustentabilidade ecológica. Em uma expressão, emprestada de Ignacy Sachs (2005),
entendo que nesses anos, o MinC foi uma das principais instâncias do governo que
praticou uma política que visasse um novo tipo de desenvolvimento, ecologica-
mente sustentável, economicamente sustentado e socialmente inclusivo. Acredito,
igualmente, que esse seja o principal motivo do MinC ter se tornado alvo de uma
política cujo objetivo é simetricamente oposto.

113
“Temerosas transações”: ensaios sobre o golpe recente no Brasil

Dividi o ensaio em três partes. Na primeira, resgato brevemente a discussão


sobre direitos culturais a fim de lembrar ao leitor que sua inclusão numa agenda de
políticas culturais não constitui um gesto lógico e óbvio, mas representa, sim, uma
escolha política por certo tipo de democracia e de desenvolvimento. Em seguida,
faço um resumo do movimento de revitalização do MinC durante as últimas ges-
tões, sustentando que seu principal feito foi o de desafiar concepções tradicionais
das elites políticas à cultura (CHAUÍ, 1995) e, com isso, romper definitivamente
com as três tristes tradições das políticas culturais no Brasil, conforme formula An-
tônio Rubim (2007): ausências, autoritarismos e instabilidades. Por fim, descrevo
os principais desafios apresentados não apenas ao MinC, como também à própria
possibilidade de se praticar políticas culturais em um cenário político e ideológi-
co pós-golpe, dominado pela ideologia anarcoliberal, temperada com radicalismo
religioso, que objetiva estabelecer uma democracia restrita às elites, ou ainda, na
expressão de Jacques Rancière (2014), dominado pelo ódio à democracia.

Direitos culturais e políticas culturais no Brasil: uma difícil conciliação

Para compreender os avanços e retrocessos em termos de políticas culturais


no Brasil no século XXI, faz-se necessário entender de que maneiras as políticas
públicas para a cultura se alinham à temática dos direitos culturais. Isso porque,
dependendo da definição adotada para o termo “cultura”, a questão dos direitos
culturais pode ficar excluída das preocupações das políticas culturais, por mais pa-
radoxal que isso soe. Pode-se mesmo dizer que foi a busca pela convergência dessas
duas temáticas o principal fator que concedeu notoriedade às recentes administra-
ções do Ministério da Cultura do Brasil (MinC). E é sua separação que está em jogo
no período posterior ao impedimento de Dilma Rousseff.
O conceito de direitos culturais começa a ser definido com a Declaração
Universal dos Direitos do Homem, pela Assembleia Geral das Nações Unidas, em
1948. Nesse documento, assegurava-se a participação livre de todo indivíduo na
vida cultural da comunidade, na fruição das artes e na participação do progresso
científico e de seus benefícios (Artigo 27). Tal concepção seria ratificada no Pacto
Internacional Relativo aos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, de 1966 (Ar-
tigos 13 e 15). A partir do que se pode rotular de “virada culturalista” da UNES-
CO, a questão dos direitos culturais também se tornou central para essa agência,
particularmente através de sua adesão à causa da diversidade cultural. Conforme
se afirma no Artigo 5o da Declaração Universal sobre Diversidade Cultural (2001),
os direitos culturais propiciam um ambiente favorável à diversidade cultural, na
medida em que:

114
Lorena Madruga Monteiro, Luciana Santana (organizadoras)

Os direitos culturais são parte integral dos direitos humanos, os


quais são universais, indivisíveis e interdependentes. O florescimen-
to da diversidade criativa exige a plena implementação dos direitos
culturais, conforme definido no Artigo 27 da Declaração Universal
dos Direitos Humanos e nos artigos 13 e 15 do Pacto Internacional
sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Todas as pessoas
têm, portanto, o direito de se expressar e criar e disseminar seu tra-
balho na língua de sua escolha, e em particular na língua materna.
Todas as pessoas têm direito a uma educação e formação de quali-
dade que respeitem plenamente a sua identidade cultural. E todas as
pessoas têm o direito de participar da vida cultural de sua escolha
e realizar suas próprias práticas culturais, sujeitas ao respeito pelos
direitos humanos e pelas liberdades fundamentais. (UNESCO, 2001,
livre tradução37).

Essa cláusula deixa patente que os direitos culturais pouco têm a ver, portan-
to, com as práticas artísticas em si; eles se relacionam com o direito de indivíduos
e grupos sociais de requisitarem sua condição de soberania e cidadania através da
afirmação de suas próprias visões de mundo, costumes, conhecimentos, línguas
maternas e/ou expressões artísticas. Isso porque o próprio conceito de “cultura” é
movido: da associação à ideia liberal de artes (belas-artes, artes liberais), passa-se
para o conceito da antropologia cultural. Nesse sentido, a UNESCO redefiniria o
conceito de “cultura” a partir de sua “Conferência mundial sobre políticas cultu-
rais”, realizada na Cidade do México, em 1982:

em seu sentido mais amplo, a cultura pode ser agora entendida como
o complexo integral de distintos traços espirituais, materiais, intelec-
tuais e emocionais que caracterizam uma sociedade ou grupo social.
Ela inclui não apenas as artes e as letras, mas também modos de vida, os
direitos fundamentais do ser humano, sistemas de valores, tradições e
crenças. (UNESCO, 1982, p. 1, apud LIMA, 2014, p. 28).

Como observa Andreas Huyssen (2014, p. 209), qualquer discussão so-


bre direitos culturais deve partir de sua conjugação aos direitos sociais e polí-
ticos do indivíduo, pois a cultura não deve ser separada dos direitos da pessoa
ou dos direitos da cidadania. Tal entendimento do significado de cultura tem
profundas implicações jurídicas, políticas e até econômicas, uma vez que os

37 Cultural rights are an integral part of human rights, which are universal, indivisible and interdependent.
The flourishing of creative diversity requires the full implementation of cultural rights as defined in Article
27 of the Universal Declaration of Human Rights and in Articles 13 and 15 of the International Covenant
on Economic, Social and Cultural Rights. All persons have therefore the right to express themselves and to
create and disseminate their work in the language of their choice, and particularly in their mother tongue;
all persons are entitled to quality education and training that fully respect their cultural identity; and all per-
sons have the right to participate in the cultural life of their choice and conduct their own cultural practices,
subject to respect for human rights and fundamental freedoms.

115
“Temerosas transações”: ensaios sobre o golpe recente no Brasil

direitos culturais se tornam um vetor de inclusão social e econômica em comu-


nidades nacionais através de um apelo à universalidade dos Direitos Humanos.
Por isso, os direitos culturais têm sido mobilizados para proteger modos de
vida de minorias étnicas ou classes subalternas em Estados nacionais, tendo
em vista a inclusão desses indivíduos e grupos na vida política nacional. Sejam
aplicados a grupos tradicionais como indígenas ou descendentes da diáspora
africana, judia ou mulçumana, sejam a comunidades contemporâneas, como os
homossexuais e transgêneros, o direito cultural é elevado à categoria de con-
dição instrumento jurídico e político para a consolidação de uma sociedade
democrática pluralista38.
Assim como ocorre com os direitos humanos, que são direitos singulares
e altamente problemáticos de serem defendidos em instâncias nacionais, os di-
reitos culturais são também uma arena de disputa discursiva e política. Como
o próprio Andreas Huyssen (op. cit.) sublinha, eles podem ser mobilizados até
por grupos políticos conservadores a fim de impedir os avanços do reconhe-
cimento dos direitos de minorias sociais, étnicas e/ou religiosas em contextos
nacionais. De toda forma, mesmo nesses casos, é crítico entender que não é um
ato natural e imediato alinhar “políticas culturais” aos “direitos culturais”. Pelo
contrário, é imprescindível certa vontade política para tanto. Afinal, de acordo
certa perspectiva, a “cultura” pode ser definida como uma esfera restrita às ex-
pressões artísticas, sendo considerada como a esfera por excelência do “desin-
teresse”, portanto alheia ao papel político e social dos direitos culturais. Nesse
caso, a atuação do Estado pode se restringir ou ao mero incentivo à frequência
de instituições dedicadas às belas-artes (teatro, museus e, na melhor das hi-
póteses, cinemas) ou simplesmente abdicar de políticas culturais em favor da
iniciativa privada. O caso do Brasil é paradigmático desses entendimentos e
isso fica explícito no tortuoso caminho de suas políticas culturais antes, e até
mesmo depois, da criação de seu Ministério da Cultura.

38 Para Norberto Bobbio (2000), há diferentes tipos de democracias, uma vez que esse termo se remete,
fundamentalmente, a uma técnica de decisão coletiva sobre temas de interesse geral. Assim, os pontos
nevrálgicos e mais disputados do debate sobre democracia são (1) quem pode decidir tais questões, (2)
como estabelecer certa igualdade entre os que tomam as decisões e (3) de que forma se devem tomar
decisões. Portanto, uma democracia pode ser absolutamente restrita a pequenos grupos de pessoas que
são consideradas como iguais entre si a fim de decidirem, excluindo todos os que não seriam por eles
considerados iguais. Daí que a democracia da Grécia antiga, dos Estados Unidos dos chamados Pais
Fundadores ou do Brasil da Velha República fossem extremamente restritivas em relação a quem podia
votar ou não. Por isso, o tipo de democracia que Bobbio defende é a que facilita o desenvolvimento de
diferentes instâncias de decisão coletiva ao longo de toda a sociedade civil (associação de moradores, de
pais e professores, subprefeituras etc.), expandido o direito de decidir sobre temas de interesse geral. Isso
é o que o autor entende por democracia pluralista.

116
Lorena Madruga Monteiro, Luciana Santana (organizadoras)

A reformulação do MinC, 2003-2016: uma revisão dos principais avanços e des-


caminhos

O pesquisador de políticas culturais Antônio A. C. Rubim (2010) entende que a


história das políticas culturais no Brasil é marcada por três tristes tradições: ausência,
autoritarismo e instabilidade. Com isso, quer dizer que, na relação entre Estado e cultu-
ra, identificam-se momentos de ausência do Estado em termos de proposição de polí-
ticas públicas ou seu oposto, uma presença intensiva, porém marcada por intervenções
hierarquizadas e excludentes (decisões impostas de cima a baixo, que objetivam a rea-
lização de fins políticos específicos; não a inclusão social via cultura), ou ainda, quando
há alguma iniciativa do Estado em fomentar a vida cultural de maneira democrática,
ela se caracteriza mais como uma ação de um governo (muitas vezes, dependente da
boa vontade de um grupo de indivíduos específicos) do que uma política de Estado,
sendo logo descontinuada de acordo com o vai e vem da vida política.
Essas três tristes tradições talvez possam ser mais bem entendias se enqua-
dradas nas concepções que as elites políticas brasileiras têm sobre o que é “cultura”
e qual seria o papel do Estado em relação a ela. Nesse sentido, a filósofa Marilena
Chauí (1995, p.81) identifica quatro grandes abordagens das elites políticas do país
ao tema da cultura:

• Liberal: restringe a definição de “cultura” a belas-artes, conside-


radas a partir da diferença clássica entre artes liberais e servis. Nesse
sentido, a cultura é entendida como esfera do desinteresse, no sentido
kantiano do termo, sendo considerada como supérflua para merecer a
atenção do Estado.
• Autoritária: o Estado se apresenta ou como produtor oficial de
cultura ou como censor da produção cultural.
• Populista: ocupa-se de uma abstração denominada “cultura po-
pular”, entendida como produção cultural do “povo” e identificada com
o artesanato e o folclore.
• Neoliberal: entende “cultura” como entretenimento, delegando
à iniciativa privada as decisões sobre investimentos públicos no setor.

A contrapartida dessas abordagens é o clientelismo de parte da comunidade


artística (notadamente, as corporações de comunicação e cultura), que encara o
Estado como um grande balcão de negócios, através seja de subsídios seja de pa-
trocínios financeiros. Assim, nunca se percebe o Estado como um interlocutor para
a construção de políticas públicas que alavanquem o setor (CHAUÍ, 1995, p. 81).
Tanto as tristes tradições quanto as tradicionais abordagens à cultura podem
ser facilmente identificadas na tortuosa trajetória do MinC. A criação de um ministé-
rio específico sinalizava, em 1985, que a cultura poderia deixar de ser entendida pelo
Estado brasileiro ou como um privilégio de elites ilustradas ou lócus de criação da
solidariedade, passando a ser considerada como uma força propulsora para a cons-

117
“Temerosas transações”: ensaios sobre o golpe recente no Brasil

trução de uma democracia pluralista. Como afirmara um dos primeiros ministros da


pasta, o economista Celso Furtado, a cultura deveria ser o insumo de uma criativida-
de que poderia alavancar um novo desenvolvimento endógeno no país (CALABRE,
2009; FURTADO, 1978). No entanto, desde seu início, a finalidade do ministério não
ficou evidente. Por um lado, não se estabeleceu um diálogo direto e sistemático com
a comunidade artística. Por outro, gozando de baixo orçamento, a pasta apresentava
pouco apelo para a classe política, num governo (o de José Sarney, PMDB-MA) que
utilizou sistematicamente a entrega de cargos públicos como moeda de troca por
aprovação de projetos políticos no Legislativo. Logo, os primeiros anos de existência
do ministério foram marcados pela sucessiva troca de ministros e baixa consolidação
de uma estrutura burocrática que garantisse as atividades do ministério. Apenas du-
rante a breve passagem de Celso Furtado é que se iniciou uma tímida montagem de
uma estrutura burocrática básica do ministério. Para tanto, Furtado tentou solucio-
nar o problema crônico de falta de orçamento através de uma lei de incentivo fiscal,
a Lei Sarney (que seria a base da Lei Rouanet, posteriormente) (CALABRE, 2009).
A partir do caótico governo de Fernando Collor de Mello (1990-1992), po-
rém, inicia-se um período de “retirada do Estado” do campo da cultura, baseando-
se numa concepção propriamente neoliberal da cultura. Collor rebaixaria o MinC
à secretaria (uma vez que a cultura não tem interesse), dissolvendo uma série de
importantes departamentos a ele incorporados. A recuperação do status de minis-
tério, em 1992, não lhe garantiu melhor sorte. Na gestão de Francisco Weffort como
ministro da cultura (1995-2003), a ausência do Estado aprofundou-se. Valendo-se
apenas de leis de incentivo fiscal, o MinC isentou-se de propor uma política na-
cional de cultura, entregando ao setor privado a decisão da aplicação de recursos
públicos (BOTELHO, 2001; RUBIM, 2010). A cultura era apresentada como nada
mais do que um “bom negócio” para empresários (mas nem sempre pertencentes
ao setor da cultura), para utilizar os termos do único e sintomático documento
publicado pelo ministério em todo esse período (MINC, 1995).
Essa breve descrição serve para dar a dimensão ao leitor dos desafios que as-
sumidos pelas gestões do ministério a partir da vitória de um governo de centro-es-
querda, liderado pelo Partido dos Trabalhadores (PT). Assim que assume a gestão
do MinC, Gilberto Gil (2003-2008) marca uma posição de ruptura em relação às
tristes tradições da política cultural no país e tenta “trazer o Estado de volta”, desta
vez de uma forma parcimoniosa e democrática. Em seu discurso de posse, Gil fez
questão de refutar cada uma das tradicionais abordagens do Estado à cultura no
país. Assim, foi explícito em sua crítica à abordagem liberal, ao dizer que:

e o que entendo por cultura vai muito além do âmbito restrito e restriti-
vo das concepções acadêmicas ou dos ritos e da liturgia de uma suposta
“classe artística e intelectual”. (GIL, 2003, p. 10).

118
Lorena Madruga Monteiro, Luciana Santana (organizadoras)

Da mesma forma, quis afastar-se da corrente populista.

Do mesmo modo, ninguém vai me ouvir pronunciar a palavra “folclore”.


Os vínculos entre o conceito erudito de “folclore” e a discriminação cul-
tural são mais do que estreitos. São íntimos. “Folclore” é tudo o que [...]
é produzido por gente inculta, por “primitivos contemporâneos”, como
uma espécie de enclave simbólico, historicamente atrasado, no mundo
atual. (GIL, 2003, p. 10).

Também se diferenciou da abordagem autoritária:

Não cabe ao Estado fazer cultura, mas, sim, criar condições de acesso
universal aos bens simbólicos. Não cabe ao Estado fazer cultura, mas,
sim, proporcionar condições necessárias para a criação e a produção de
bens culturais. Não cabe ao Estado fazer cultura, mas, sim, promover o
desenvolvimento cultural geral da sociedade. (GIL, 2003, p. 11).

Porém, dedicou especial atenção à abordagem neoliberal, que caracterizou a


administração de Weffort:

Mas, ao mesmo tempo, o Estado não deve deixar de agir. Não deve optar
pela omissão. Não deve atirar fora de seus ombros a responsabilidade
pela formulação e execução de políticas públicas, apostando todas as
suas fichas em mecanismos fiscais e assim entregando a política cultural
aos ventos e aos deuses do mercado. (GIL, 2003, p. 11).

Finalmente, Gil sublinhou que o caráter inovador de sua gestão residiria em


outra concepção do termo “cultura”, isso é:

cultura como tudo aquilo que, no uso de qualquer coisa, se manifesta


para além do mero valor de uso. Cultura como aquilo que, em cada ob-
jeto que produzimos, transcende o meramente técnico. Cultura como
usina de símbolos de um povo. Cultura como conjunto de signos de
cada comunidade e de toda nação. Cultura como o sentido de nossos
atos, a soma de nossos gestos, o senso de nossos jeitos. Desta perspec-
tiva, as ações do Ministério da Cultura deverão ser entendidas como
exercícios de antropologia aplicada. (GIL, 2003, p. 10).

Na verdade, não era a primeira vez que essa concepção antropológica de “cultu-
ra” (particularmente próxima à antropologia cultural) foi adotada por um governo lide-
rado pelo PT. Marilena Chauí (1995) relata esse mesmo movimento na gestão do PT na
Secretaria de Cultura do município de São Paulo, entre 1989 e 1992. Naquela oportu-
nidade, lembra a filósofa, passou-se a definir “cultura” como a “capacidade de invenção
coletiva de símbolos, valores, ideias e comportamentos de modo a afirmar que todos os
indivíduos e grupos são seres culturais e sujeitos culturais” (CHAUÍ, 1995, p. 81).

119
“Temerosas transações”: ensaios sobre o golpe recente no Brasil

Nesse outro sentido de cultura, o MinC pôde começar a alinhar “política cul-
tural” aos “direitos culturais”, isso é, pôde-se entender as políticas culturais como
meios de alcançar a inclusão social e garantir o direito à cidade para diferentes
grupos sociais. Com efeito, nos documentos do ministério, passou-se a considerar
a “cultura” como sendo formada por três dimensões complementares: (a) expressão
simbólica, (b) direito à cidadania e (c) campo potencial para o desenvolvimento
econômico sustentável. No próprio discurso de posse, Gil faria questão de sinalizar
a guinada política ao enfatizar que “[...] o acesso à cultura é um direito básico de
cidadania, assim como o direito à educação, à saúde, à vida num ambiente saudá-
vel” (GIL, 2003, p. 11). Significa dizer que a cultura deveria figurar como recurso
fundamental de um novo desenvolvimento, ambientalmente sustentável, economi-
camente sustentado e socialmente inclusivo (SACHS, 2005).
Tal conceituação do termo foi decisiva a ampliação das competências do
MinC. Se a política cultural deve se respaldar nos direitos culturais, torna-se pos-
sível ao ministério apoiar manifestações culturais de diversos grupos sociais mi-
noritários ou subalternos (como as de movimentos afro-brasileiros, indígenas e da
comunidade LGBT), além de agir em favor da ampliação do acesso à comunicação
digital e propor políticas para fomentar a economia da cultura. Nesse sentido, os
chamados “Pontos de cultura39” foram o feito mais emblemático da gestão de Gil-
berto Gil, na medida em que materializavam suas concepções de fazer cultura de
baixo para cima.
Com efeito, as gestões de Gil e de João Luiz Silva “Juca” Ferreira (2008-2011,
então filiado ao Partido Verde), seu principal assessor, deixaram patente o esforço
para tornar o ministério o agente articulador de implementação de políticas cul-
turais de Estado; não mais de governo. Para tanto, o ministério buscou abrir um
diálogo direto com agentes produtores de cultura a fim de ouvir suas opiniões e
demandas, além de aprovar leis que, acima de tudo, estabelecessem compromissos
que iriam além de suas gestões ou mesmo dos governos futuros, caso do Programa
Cultura Viva e, ambiciosamente, do Plano Nacional de Cultura.
Na medida em que a legitimidade do MinC se consolidava, as administra-
ções de Gil e, sobretudo, Juca Ferreira avançaram em relação a temas sensíveis den-
tro do campo da cultura, como o tema dos direitos autorais e a reforma da Lei
Rouanet. Bastante ativo na discussão sobre direitos autorais na era digital, Gilberto
Gil filiou-se ao grupo de reformistas que reivindica uma mudança profunda na

39 Parte relevante do Programa Cultura Viva, que tinha como diretrizes possibilitar que a própria população
produzisse cultura, os Pontos de Cultura foram projetos socioculturais financiados pelo MinC e imple-
mentados por entidades governamentais ou não governamentais. Por meio de edital público, o Ministério
seleciona instituições que já produzem atividades culturais. Ao assinar um convênio entre o governo, essas
instituições passariam a receber, durante três anos consecutivos, o valor de 60 mil reais/ano, num total de
180 mil reais, tendo de prestar constas anualmente.

120
Lorena Madruga Monteiro, Luciana Santana (organizadoras)

maneira como se concebe e se regula esse tipo de propriedade intelectual no Brasil


e no mundo. Isso geraria descontentamento em meio a certos setores do campo das
artes (notadamente, a música e o audiovisual), sendo um elemento de tensão im-
portante para futuros acontecimentos dentro do ministério. Com efeito, a proposta
de alguma nova lei de direitos autorais nunca chegou a ser votada, sendo sempre
um tema de difícil manejo para o MinC (REIA; MIZUKAMI, 2015).
Esse mal-estar se fez sentir logo no primeiro mandato da presidenta Dilma
Rousseff (2011-2015), que nomearia Ana Maria Buarque de Hollanda (2011-2012),
intérprete e compositora, além de funcionária da Funarte, como sucessora de Juca
Ferreira (afastado porque seu partido, então (o PV), havia deixado a base governis-
ta). Ao assumir o ministério, Ana de Hollanda se posicionou em franca oposição à
postura das administrações anteriores, em particular no que se referia aos direitos
autorais. Sua falta de diálogo público não permite que se saiba qual era, efetivamen-
te, seu entendimento sobre o que deveriam ser as políticas culturais. Contudo, sua
brevíssima gestão ficou marcada por (1) sua implicância com as propostas de Juca
Ferreira e (2) a criação da Secretaria da Economia Criativa.
As tensões resultantes da posição das administrações Gil-Juca em relação ao
tema dos direitos autorais ficaram patentes quando a gestão de Ana de Hollanda pron-
tamente solicitou à Casa Civil o retorno do Projeto de Lei de reforma dos direitos auto-
rais, a fim de que pudesse realizar “revisões” no texto (REIA; MIZUKAMI, 2015). Ape-
sar de apresentar um novo projeto de lei para consulta pública, o PL não seria devolvido
até a segunda administração de Juca Ferreira, em 2015, o que inviabilizava sua votação
pelo Legislativo. No entanto, sua grande ação construtiva foi a criação da Secretaria da
Economia Criativa (SEC), em 2011, cujo planejamento para os anos de 2011-2014 foi
detidamente comentado por mim em outra oportunidade (MARCHI, 2014). Nesse do-
cumento, conforme defendi, apresentava-se uma concepção de novo desenvolvimento
tendo como pilares a proteção e o fomento da diversidade cultural, em consonância
com os projetos da UNESCO e da UNCTAD para a economia criativa.
Apesar do elaborado Plano, a SEC começou a perder protagonismo com a
saída de Ana de Hollanda e a entrada da senadora Marta Suplicy (2012-2014, então,
filiada ao PT), indicada, aparentemente, por interesses políticos do PT relaciona-
dos à disputa à Prefeitura de São Paulo40. Finalmente, em mais uma demonstração
de persistência da tradição da instabilidade das políticas culturais no país, Marta

40 Nos bastidores da política, à época, comentava-se que Marta Suplicy se apresentou ao PT como a can-
didata para a Prefeitura de São Paulo nas eleições municipais de 2012. Ao que parece, essa possibilidade foi
rechaçada, porém, por grandes líderes do partido (especificamente, Luís Inácio “Lula” da Silva) que pret-
eriram Marta por Fernando Haddad (PT), que se tornaria, de fato, Prefeito de São Paulo naquelas eleições.
Não há como se confirmar tal especulação. O fato é que, a partir de então, Marta Suplicy abandonaria o PT,
migrando para o PMDB, e se tornaria uma das articulistas mais proeminentes do impeachment de Dilma
Rousseff (PT) e do governo de Michel Temer (PMDB).

121
“Temerosas transações”: ensaios sobre o golpe recente no Brasil

Suplicy cederia seu lugar para uma segunda gestão de Juca Ferreira (2015-2016).
Esse foi um gesto (talvez já desesperado) de Rousseff na tentativa de recobrar o
apoio de parte significativa da comunidade artística, fortemente desapontada com
as duas administrações anteriores que representaram retrocessos nos logros obti-
dos pelas gestões Gil-Juca. Apesar de tentar retomar o ímpeto reformista de sua
gestão anterior, Juca Ferreira não teve recurso, ambiente nem tempo suficientes
para retomar tais projetos.

Entre o anarcoliberalismo elitista e o reacionarismo religioso: desafios das po-


líticas culturais após o golpe

Mesmo que apresentando limitações e erros em suas iniciativas, além de não


se evitarem rixas político-ideológicas pontuais que acabaram prejudicando o avan-
ço de certas pautas urgentes do ministério (como no caso dos direitos autorais ou
até da Secretaria da Economia Criativa), não se pode negar que todas as adminis-
trações do MinC durante 2003 e 2016 avançaram de forma inédita na concepção e
aplicação de políticas culturais progressistas. Contudo, desde o impedimento (im-
peachment) da presidenta Dilma Rousseff, em 31 de agosto de 2016, e a ascensão
do governo de Michel M. E. Temer (PMDB-SP), instalou-se um cenário político
pouco animador para tais políticas culturais no país.
Temer não tardou, aliás, em (1) adotar uma agenda de reformas ultraliberais
(rotulada de “Uma ponte para o futuro41”) e (2) desconstruir ações que caracteri-
zaram os governos anteriores articulados pelo PT. Um dos alvos de retaliação foi o
MinC. Em um primeiro momento, como parte de uma política de “corte de gastos”
do governo, Temer decidiu extinguir ministérios, especulemos sobre seu enten-
dimento, sem função manifesta. Assim, determinou que o MinC se tornasse uma
secretaria a ser anexada ao Ministério da Educação, em uma clara manifestação da
concepção liberal-tradicional sobre a cultura. Diante da oposição da comunidade
artística, porém, o presidente retrocedeu, mantendo o status de ministério. Con-
tudo, com a nomeação de Marcelo Calero (2016), as gestões do MinC passaram
a se preocupar com o desmonte da estrutura administrativa construída nos anos

41 Quando ainda se discutia a possibilidade ou não de impedimento da, então, presidenta Dilma Rousseff,
lideranças notáveis do PMDB apresentaram uma proposta de políticas públicas que tinham por objetivo,
em última instância, diminuir a participação do Estado brasileiro na economia nacional diretamente e, mais
importante, afrouxar sua mediação das relações entre capital e trabalho. Assim que assume a presidência,
Michel Temer coloca a proposta como sua prioridade em termos de política de governo, destacando-se as
chamadas reformada da previdência social e a reforma trabalhista. Sobre a proposta “Uma Ponte para o
Futuro”, o documento encontra-se disponível em: <http://pmdb.org.br/wp-content/uploads/2015/10/RE-
LEASE-TEMER_A4-28.10.15-Online.pdf>. Acesso em: 02 jun. 2017.

122
Lorena Madruga Monteiro, Luciana Santana (organizadoras)

anteriores. Logo, extinguiram-se diversas secretarias, inclusive exonerando funcio-


nários concursados e dispensando pessoal contratado.
Devido à instabilidade do próprio governo Temer, envolto em inúmeras acu-
sações de corrupção ativa, o MinC voltou a ser “moeda de troca” entre aliados
políticos. O resultado foi a alta rotatividade de ministros: contabilizam-se cinco
em pouco mais de um ano de governo42. Finalmente, o Executivo determinou ar-
bitrariamente um corte de, aproximadamente, 43% do orçamento do ministério
(que passou de R$721 milhões para R$412 milhões, em 2017, sendo que apenas
R$ 69.755.378 tinham sido repassados para o ministério, até 06 de julho de 2017,
de acordo com fontes na imprensa). Até a finalização deste artigo, havia a efetiva
possibilidade de suspensão das atividades da pasta por falta de recursos. Indepen-
dentemente dessa possibilidade se concretizar ou não, o fato é que tal cenário tem
contribuído para a desarticulação das relações entre o ministério e a comunidade
artística e, logo, seu esvaziamento como lócus de proposição de políticas públicas.
A situação de precarização da estrutura do ministério levou à publicação
da “Nota de repúdio dos servidores ao desmanche do MinC”, pela Associação dos
Servidores do Ministério da Cultura (AsMinC), em 04 de julho de 2017. Logo na
introdução do texto, afirma-se que:

os servidores do Ministério da Cultura, reunidos em assembleia ex-


traordinária da AsMinC no dia 30 de junho de 2017, na sede do MinC,
decidiram, por unanimidade, se somar às vozes roucas das ruas, que
clamam por dignidade e direitos culturais no Brasil. Demonstramos o
nosso mais veemente repúdio ao processo de desmantelamento e des-
manche das políticas culturais brasileiras. Os cortes orçamentários, por
exemplo, que foram de 43% nos últimos meses, são imorais e, inclusi-
ve, inconstitucionais. O artigo 216-A, que institui o Sistema Nacional
de Cultura, determina, em seu parágrafo primeiro, inciso XII, que haja
uma “ampliação progressiva dos recursos contidos nos orçamentos pú-
blicos para a cultura”, e não sua redução. Esse artigo tem sido constante-
mente ignorado e desrespeitado. (ASMINC, 2017).

Em relação à breve passagem de diferentes ministros pela pasta, denunciou-


se a “aparelhagem” do ministério:

desde então, o Ministério da Cultura tem sido constantemente castigado


por um processo político caracterizado pelos constantes cortes orçamen-
tários e pelo fisiologismo na ocupação da pasta, com a intensa troca de
ministras(os), que parece ser intencionalmente direcionado a extinguir
qualquer política que trate de valorizar as questões que possam refletir
sobre a cidadania, a identidade de nosso povo, e a diversidade cultural

42 Entre maio de 2016, enquanto Temer ainda era Presidente Interino, e julho de 2017, foram ministros da
cultura, respectivamente: Marcelo Calero, Roberto Freire, João Batista de Andrade, André Amaral Filho e
Sérgio Sá Leitão.

123
“Temerosas transações”: ensaios sobre o golpe recente no Brasil

necessárias à construção de um processo voltado para uma (re)democra-


tização efetiva do país. Em pouco mais de um ano, três pessoas diferentes
já estiveram no comando da pasta: Marcelo Calero, Roberto Freire e João
Batista de Andrade. Infelizmente, o Ministério da Cultura tem sido víti-
ma do mais sórdido processo de troca-troca partidário, no qual os gru-
pos políticos utilizam o ministério como “moeda” em troca de apoio no
Congresso Nacional. Além de desestabilizar qualquer processo técnico,
voltado para uma gestão eficiente, esse fato só gera dificuldades na con-
tinuidade das políticas de estado, e imobiliza os serviços prestados pelo
Ministério, uma vez que muitas das ações dependem de decisões tomadas
no âmbito da burocracia de alto-escalão. (ASMINC, 2017).

Além disso, denuncia-se a desarticulação da estrutura administrativa que


estava sendo montada, resultando na inviabilidade iminente das atividades:

o resultado, novamente, é a incerteza e falta de clareza sobre princípios


básicos nos quais as políticas públicas se baseiam. Nesse sentido, vale
destacar que, durante a gestão de Calero, o Ministério passou por uma
reestruturação, em que setores foram reduzidos, servidores foram exo-
nerados e muitos cargos foram extintos. A nova estrutura mal tinha sido
colocada em prática quando Calero pediu exoneração. Em mais um
episódio da política brasileira, evidenciou-se um caso de corrupção. O
resultado do episódio, é que, apesar da nova estrutura, o órgão tem ope-
rado na ausência de um regimento interno, o que, além de confrontar o
princípio da legalidade, que pauta a atuação da Administração Pública,
inviabiliza a própria gestão. Prevalece um ambiente de incerteza quanto
à estrutura do Ministério, seus objetivos, o escopo de suas políticas e,
principalmente, o papel desempenhado pelo órgão. (ASMINC, 2017).

As dificuldades não se restringem, infelizmente, ao governo federal. As elei-


ções municipais de outubro/novembro de 2016, realizadas no rescaldo do impe-
dimento de Rousseff, foram marcadas pela ascensão de novos (e imprevisíveis)
personagens no cenário político, fortemente identificados com posições políticas
neoliberais, em termos de economia, e conservadoras, no plano social. Como re-
sultado, por um lado, ratificou-se a perspectiva neoliberal, propriamente anarcoli-
beral, que considera as artes apenas como um bem supérfluo que deve ser cuidada
pela iniciativa privada, mais do que isso, que repudiam qualquer participação do
Estado como uma forma de “populismo” (termo utilizando de forma imprecisa e
deliberadamente distorcida) que acarreta ineficiência da máquina pública. Tal con-
cepção ficou particularmente materializada na figura do prefeito de São Paulo, João
Doria Jr. (PSDB-SP). Por outro, aproveitou-se o álibi da crise econômica para se
retirar o apoio a diversas manifestações culturais de minorias, como uma forma de
minar o avanço de direitos culturais. O caso mais notável tem ocorrido na cidade
do Rio de Janeiro. O prefeito eleito em 2016, Marcelo Crivella (PRB-RJ), represen-
tante de correntes religiosas neopentecostais, anunciou o corte de incentivos dados

124
Lorena Madruga Monteiro, Luciana Santana (organizadoras)

pela Prefeitura a uma série de manifestações culturais, desde a Parada LGBT à festa
de Carnaval da cidade. Independentemente da efetivação ou não desses cortes, a
mera disposição de retirar o apoio do Estado às expressões culturais de minorias
explicita o ataque à concepção ampliada de cultura, revelando a gravidade do mo-
mento político para a cultura. Ao que parece, esta volta a ser vista como supérflua
ou, ainda pior, como lócus de certa posição política “à esquerda” que deve ser com-
batida e até mesmo eliminada.

Considerações finais

Diante de um cenário político de difícil qualificação e impossível previsão,


cabe questionar o futuro das políticas culturais como um todo. Afinal, como se
argumentou ao longo deste artigo, as políticas culturais devem ser entendidas para
além do mero acesso aos bens culturais (artes e entretenimento); elas devem ser
concebidas como fundamentalmente vinculadas a valores adequados a fomentar
uma democracia pluralista, de acordo com a qual a sociedade civil tem o poder de
deliberar sobre a condução da política. Parafraseando Gilberto Gil (2003, p.11) em
seu discurso de posse do MinC, pode-se dizer que, adotando uma concepção am-
pliada de cultura, produzir cultura é fazer política, isso é, é poder tomar decisões de
baixo para cima. A cultura deve servir para gerar externalidades positivas sociais
(inclusão social, direitos culturais, direto à cidade), assim como econômicas.
É justamente isso que está em xeque no atual momento. Os grupos
sociais que apoiam uma tradicional concepção autoritária e, por isso,
desmobilizadora do poder criativo da sociedade civil (como bem notou
Marilena Chauí (op. cit.) em seu artigo supracitado) assumem um perigoso
protagonismo no confuso cenário político atual. Como argumenta Jacques
Rancière (2014), a atual forma do ódio à democracia que toma conta das elites
não se volta contra o conceito de “democracia”. Pelo contrário, tais grupos
reacionários se valem de um discurso de defesa da democracia e, sobretudo,
de instrumentos da democracia para impedir aquilo que mais desprezam, a
saber, a capacidade crescente da própria sociedade civil se organizar para to-
mar decisões sobre a conduta da vida política, ou ainda, como precisamente
define Norberto Bobbio (2000), tem-se ódio da democratização da sociedade;
não apenas do Estado43. Nas palavras de Rancière:

43 Norberto Bobbio (2000) faz uma distinção entre democratização do Estado, que seria a mera possibi-
lidade de votar em políticos numa democracia representativa tradicional, e democratização da sociedade,
o que significaria o desenvolvimento de outras instâncias de decisão de temas públicos, organizados pela
sociedade civil, e que daria forma ao que o autor classifica de democracia pluralista.

125
“Temerosas transações”: ensaios sobre o golpe recente no Brasil

mas o novo sentimento antidemocrático traz uma versão mais pertur-


badora da fórmula. O governo democrático, diz [essa corrente reacioná-
ria], é mau quando se deixa corromper pela sociedade democrática que
quer que todos sejam iguais e que todas as diferenças sejam respeitadas.
Em compensação, é bom quando mobiliza os indivíduos apáticos da
sociedade democrática para a energia da guerra em defesa dos ‘valores
da civilização’, aquele da luta das civilizações. (RANCIÈRE, 2014, p. 10).

Por isso é absolutamente urgente desacoplar a política cultural dos direitos


culturais, através do próprio ministério dedicado à cultura. Desse modo, agendas
progressistas de políticas culturais que encampem temas delicados (como diversi-
dade cultural, questão de gênero e sexualidade, inclusão social ou desenvolvimento
econômico sustentável) estão sendo sumariamente rechaçadas. Isso é estarrecedor
porque, acima de tudo, está em curso a substituição de uma agenda política que
caminhava em direção a uma democracia pluralista por uma democracia restrita,
ou ainda, um autoritarismo extremo, cujo preço para o futuro do país pode ser
incalculável. Nesse cenário, fica uma grave dúvida se ainda é possível fazer cultura
como política cultural no Brasil.

126
Lorena Madruga Monteiro, Luciana Santana (organizadoras)

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repúdio dos servidores ao desmanche do MinC. Disponível em: <http://asminc.org.
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128
Lorena Madruga Monteiro, Luciana Santana (organizadoras)

SOBRE OS AUTORES

EMERSON OLIVEIRA DO NASCIMENTO


Mestre e Doutor em Ciência Política pela Universidade Federal de Pernam-
buco. Professor de Ciência Política do Instituto de Ciências Sociais da Universidade
Federal de Alagoas. Email: emersondonascimento@yahoo.com.br

IGOR SUZANO MACHADO


Possui bacharelado em Direito pela Faculdade de Direito de Vitória (2004),
bacharelado e licenciatura em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Espí-
rito Santo (2005), mestrado em Sociologia pelo Instituto Universitário de Pesqui-
sas do Rio de Janeiro (2007) e Doutorado em Sociologia pelo Instituto de Estudos
Sociais e Políticos da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (2012), com estágio
de doutorado no exterior, financiado pela CAPES, no departamento de Governo
da Universidade de Essex, Reino Unido. Atualmente é Professor Adjunto II de So-
ciologia junto ao Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do
Espírito Santo. Email: igorsuzano@gmail.com

GUILHERME SIMÕES REIS


Professor efetivo da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Uni-
Rio). Doutor em Ciência Política pelo IESP-UERJ - Instituto de Estudos Sociais e
Políticos da UERJ (ex-Iuperj) - e mestre pelo antigo Iuperj. Pesquisador do Núcleo
de Estudos sobre o Congresso (NECON), pesquisou no Observatório Político Sul
-Americano (OPSA) de 2011 a 2013. Passou um período “sanduíche” como pesqui-
sador visitante na Universidade de Frankfurt, com bolsa CNPq, e foi premiado no
doutorado com a bolsa Faperj Nota 10. Graduou-se em Jornalismo pela PUC-Rio,

129
“Temerosas transações”: ensaios sobre o golpe recente no Brasil

onde também fez pós-graduação em Sociologia Política e Cultura. E-mail: guilher-


me.s.reis@unirio.br

JOSBETH CORREIA MACÁRIO


Mestrando em Sociedade, Tecnologias e Políticas Públicas do Centro Uni-
versitário Tiradentes - UNIT/AL, na linha de pesquisa Sociedade, Território e Polí-
ticas Públicas. Possui graduação em Comunicação Social - Jornalismo pela Univer-
sidade de Marília (2004). É especialista em Processos Midiáticos e Novas Formas
de Sociabilidade pela Universidade Federal de Alagoas (2006). E-mail: betomaca-
rio@hotmail.com

JOÃO PAULO S. L.VIANA


Professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de
Rondônia (UNIR). Doutorando em Ciência Política na Universidade Estadual de
Campinas (UNICAMP). Analista político do Blog Legis-Ativo, do portal Estadão.
Entre seus principais trabalhos constam a autoria de: Reforma Política: cláusula de
barreira na Alemanha e no Brasil (Edufro, 2006); E coorganizador, entre outras: O
Sistema Político Brasileiro: Continuidade ou Reforma (Edufro, 2008); e A Bolívia
do no século XXI: Estado plurinacional, mudança de elites e plurinacionalismo
(Appris, 2016). E-mail: joaopauloviana@hotmail.com

LAURA LOBO
Graduanda em Direito no Centro Universitário Tiradentes (UNIT/AL). Bol-
sista PROVIC no projeto de pesquisa “A CONSTITUCIONALIDADE DA AGENDA
LEGISLATIVA PÓS IMPEACHMENT DE DILMA ROUSSEFF: ANÁLISE DAS
PECs EM CARÁTER DE URGÊNCIA NA CÂMARA DOS DEPUTADOS” coor-
denado pela Dra. Lorena Madruga Monteiro. Participante do Grupo Democracia e
Justiça do Observatório de Democracia e Interdisciplinaridade do Centro Univer-
sitário Tiradentes. Email: lauralobo2312@gmail.com

LAURA NAPOMUCENO
Graduanda em Direito no Centro Universitário Tiradentes (UNIT/AL). Bol-
sista PROVIC no projeto de pesquisa “A CONSTITUCIONALIDADE DA AGENDA
LEGISLATIVA PÓS IMPEACHMENT DE DILMA ROUSSEFF: ANÁLISE DAS
PECs EM CARÁTER DE URGÊNCIA NA CÂMARA DOS DEPUTADOS” coor-

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Lorena Madruga Monteiro, Luciana Santana (organizadoras)

denado pela Dra. Lorena Madruga Monteiro. Participante do Grupo Democracia e


Justiça do Observatório de Democracia e Interdisciplinaridade do Centro Univer-
sitário Tiradentes. Email: laurabnepomuceno@gmail.com

LEONARDO DE MARCHI
Doutor em Comunicação e Cultura pela UFRJ. Professor Visitante na Facul-
dade de Comunicação Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (FCS
-UERJ) e Colaborador Permanente do Programa de Pós-Graduação em Comuni-
cação da UERJ (PPGCOM-UERJ). E-mail: leonardodemarchi@gmail.com

LORENA MADRUGA MONTEIRO


Professora PPGI do Programa de Pós-Graduação em Sociedade, Tecnolo-
gias e Políticas Públicas do Centro Universitário Tiradentes (UNIT-AL). Pesquisa-
dora do Instituto de Tecnologia e Pesquisa (ITP-SE). Mestre e Doutora em Ciência
Política pela UFRGS. Graduada em Ciências Sociais UFRGS. E-mail: lorena.ma-
druga@gmail.com

LUCIANA SANTANA
Professora adjunta de Ciência política no Instituto de Ciências Sociais da
Universidade Federal de Alagoas. Graduada em História, é Mestre e Doutora em
Ciência Política pelo DCP/UFMG, com instância sanduíche na Universidade de
Salamanca. É coordenadora do curso de Ciências Sociais na modalidade a distan-
cia e do Comitê de Ética e Pesquisa, ambos na UFAL. Líder do grupo de pesquisa
“Instituições, comportamento político e democracia”. E-mail: lucianacfsantana@
yahoo.com.br

MARCIO CUNHA CARLOMAGNO


Doutorando em Ciência Política pela Universidade Federal do Paraná
(UFPR). Mestre em Ciência Política pela mesma instituição, com período “san-
duíche” na Université de Montréal (Canadá). E-email: mccarlomagno@gmail.com.

PEDRO HENRIQUE SIMONARD SANTOS


Professor de Programa de Pós-Graduação Pleno I 1 (Professor PPG Pleno I
1) no Programa de Pós-graduação em Sociedade, Tecnologias e Políticas Públicas

131
“Temerosas transações”: ensaios sobre o golpe recente no Brasil

do Centro Universitário Tiradentes. Graduado em Ciências Sociais pela Universi-


dade Federal do Rio de Janeiro (1987), mestrado em Artes pela Universidade de
São Paulo (1995) e doutorado em Ciências Sociais pela Universidade do Estado do
Rio de Janeiro (2005). Membro do conselho editorial da Editora Universitária Tira-
dentes e pesquisador do Núcleo de Tecnologias Sociais do Instituto de Tecnologia
e Pesquisa (ITP-SE). E-mail: pedrosimonard@gmail.com

VALTER RODRIGUES DE CARVALHO


Doutor em Ciência Política pela Pontifícia Universidade Católica de São Pau-
lo (PUC-SP). Realizou estágio Pós-doutoral Capes-UFPI. É professor e pesquisador
na Uninassau. Autor dos livros Atores Partidários e Entrada Estratégica em Com-
petição Eleitoral de Múltiplas Arenas: A experiência brasileira, Edufpi, 2014; e De-
mocracia e Justiça no Brasil (Edufpi, 2015). E-mail: valter.carvalhosp@gmail.com

WALCLER DE LIMA MENDES JUNIOR


Graduado em comunicação Social, Jornalismo, Mestre e Doutor em Planeja-
mento Urbano e Regional pelo IPPUR/UFRJ. Professor Titular II e pesquisador do
Centro Universitário Tiradentes (Unit/Alagoas) no Programa de Pós-Graduação
em Sociedade, Tecnologias e Políticas Públicas (SOTEPP). Líder do Grupo de Pes-
quisa Nordestanças da UFAL. E-mail: walclerjunior@hotmail.com

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Lorena Madruga Monteiro, Luciana Santana (organizadoras)
A presente coletânea Temerosas Transações: Ensaios sobre
o golpe recente no Brasil, organizada por Lorena Madruga
Monteiro e Luciana Santana, teve como intuito reunir refle-
xões de autores, pesquisadores, que têm se manifestado
constantemente sobre o momento de ruptura institucio-
nal, social e política que o Brasil vive após o impeachment
da presidenta Dilma Rousseff. O objetivo é que os en-
saios presentes na coletânea fiquem materializados nesse
e-book para que, no futuro, contribuam para contar essa
história como contraponto à narrativa construída pelos
meios de comunicação brasileiros. Todos os ensaios têm
em comum a percepção de que a Democracia, que estava
em flanco processo de expansão no Brasil, foi golpeada
por interesses distintos da maioria do povo brasileiro.   Os
ensaios contemplados na coletânea refletem sobre esse
contexto de ruptura institucional e política em curso no
Brasil através da análise das relações executivo-legislati-
vo, da atuação do judiciário, da dinâmica do golpe, das
possibilidades da esquerda, dos retrocessos no campo da
cultura, da democracia e dos direitos sociais.  

133

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